Ditos filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves

August 11, 2017 | Autor: Maria Leonor Xavier | Categoria: Philosophy, Medieval Philosophy, Contemporary Philosophy, Joaquim Cerqueira Gonçalves
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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115.

DITOS FILOSÓFICOS DE JOAQUIM CERQUEIRA GONÇALVES Maria Leonor Xavier

Um abuso de discípula Venho aqui dar um testemunho pessoal, um testemunho de escuta de ditos filosóficos do Prof. Doutor Joaquim Cerqueira Gonçalves, proferidos ao longo de sucessivos cursos anuais da disciplina de Filosofia Medieval, que tive a oportunidade de ouvir, como sua aluna primeiro (ano lectivo de 1978/1979) e sua assistente depois. Durante esses cursos, apontei múltiplos fragmentos do seu discurso filosófico, desenvolvido em diálogo sempre vivo com os seus alunos, entre os quais gostava de encontrar combativos interlocutores. Esses cursos são a fonte deste trabalho de selecção, reorganização e apresentação dos registos por mim então efectuados. Não recorro aqui a obras escritas, que estão ao dispor do público em geral. O meu propósito é dar testemunho de uma via de acesso ao pensamento filosófico de Joaquim Cerqueira Gonçalves, que muitos dos seus alunos partilharam comigo, mas que eu tive o privilégio de trilhar através de uma continuada experiência de escuta. É verdade que o nosso Professor de Filosofia Medieval não aprovava que os seus alunos tirassem apontamentos das suas lições, preferindo fazer pensar para além da aula, mesmo após ter sido escutado com perplexidade, a ser precipitadamente mal entendido por escrito. Essa desaprovação, manifestou-a, desde logo, na primeira lição do ano lectivo de 1982/1983, em que me apresentou como assistente e no momento em que eu me preparava para apanhar e apontar, o mais que pudesse, as suas palavras. Na medida em que não me inibi de o fazer, transgredi a sua vontade. Como tenho um sentido não puramente literal de obediência, nunca me arrependi do feito, que não cessou ainda de me oferecer proveito. O que aqui apresento, fazendo parte desse proveito, não é já uma inscrição apressada e imponderada de palavras suas, mas uma selecção reflectida e organizada de ditos seus, filosoficamente significativos e interpelativos. Apesar disso, se muitos desses ditos não tiverem sido fidedignamente adaptados à escrita, a responsabilidade é toda minha. O meu acto de registo transgressor parece, ademais, não encontrar razão que o justifique nos seus ditos, entre os quais figura uma tese hermenêutica solidária com aquela sua vontade expressa: «A expressão escrita é radicalmente diferente da expressão oral; não se deve escrever como se fala, nem falar como se escreve.» FM 82/831 Reconhecendo a irredutibilidade das duas expressões, a escrita e a fala, o Prof. Cerqueira Gonçalves não teria escrito como falou, nem eu deveria ter reduzido uma 1

Dito registado no curso da disciplina de Filosofia Medieval, de 1982/1983. Todos os restantes ditos são acompanhados de uma sigla similar, na qual varia apenas a indicação numérica relativa ao ano lectivo em que o dito foi registado. 1

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. expressão à outra, transcrevendo os seus ditos falados. Trata-se, por certo, de um abuso, cujos inconvenientes são incontornáveis: para além das inevitáveis perda e transformação dos dados de informação, a própria alteração da qualidade da expressão. Com tais inconvenientes, porquê então esse abuso? Antes de mais, porque «todo o pensar é irreversível» FM 83/84. Impunha-se, pois, não deixar passar, sem reter, o que não podia voltar inalterado; impunha-se captar esses momentos únicos do pensar, que o Prof. Cerqueira Gonçalves gostava de pôr em comum com quem o escutava activamente. Mas era difícil acompanhar o seu pensar. Confesso que, ao longo de uma prolongada experiência de atenta escuta, raramente surgia de imediato a desejada compreensão. Fui aprendendo, assim, que esta não acontece facilmente, como se de uma instantânea eclosão se tratasse. A compreensão é paciente e persistente; ela não pactua com a reacção meramente opinativa nem com a crítica inconsequente; ela tem esperança e perseverança; ela exige tempo. Isto mesmo aprendi com o Prof. Cerqueira Gonçalves, como confirmam os seus ditos, nos seguintes termos: «Por que é que há potência no intelecto humano? Por que é que nós não temos acesso completo ao intelecto universal? Porque é preciso tempo.» FM 82/83 «Não há hermenêutica sem tempo.» FM 86/87 Impunha-se, pois, não deixar perder aquilo que não era imediata e inteiramente compreensível; impunha-se registar, para mais tarde compreender. Era, todavia, impossível evitar que o registo não comportasse alguma perda e alteração de informação, as quais gostaria eu que fossem mínimas. Estes prejuízos tornam-se, contudo, menos inconvenientes, admitindo que tal registo não pode senão constituir já uma interpretação, que supõe outras possibilidades, que é irredutível à letra e que projecta sempre algo do intérprete, como preconizam, respectivamente, os seguintes ditos: «A hermenêutica já não tem, como função, evitar o erro, mas mostrar a polivalência da obra.» FM 82/83 «É impossível interpretar à letra qualquer texto.» FM 98/99 «Cada um interpreta conforme é.» FM 96/97 Assumo, pois, para além da margem de erro, a margem de perspectiva, que este registo inelutavelmente reflecte. Não encontro, aliás, nos ponderados inconvenientes, nem em cada um deles em particular nem no seu conjunto, razão suficiente para não tornar público este registo. É certo que publicar aquilo que é já de si um abuso torna-se um duplo abuso. Entretanto, nos próprios ditos filosóficos do Prof. Cerqueira Gonçalves, encontro razões bem mais fortes para cometer este duplo abuso. A primeira dessas razões vem no seguinte dito: «O filósofo nunca é o melhor intérprete de si próprio» FM 78/79 A ser assim, o filósofo cede a prioridade a outros na função de interpretar a sua própria filosofia, o que não só valoriza como autonomiza o processo da interpretação. Caberá aos outros intérpretes, mais do que ao filósofo, discernir e desenvolver as possibilidades de sentido da sua obra. Importa, pois, publicar este registo, não tanto por já interpretar quanto sobretudo por colocar ao serviço da interpretação uma parte do labor filosófico do Prof. Cerqueira Gonçalves, que, de outro modo, permaneceria inédita. Uma segunda razão vem noutro dito: «Há filósofos, porque alguém filosofa sobre eles.» FM 98/99 2

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Aqui, mais do que autonomizar a interpretação, faz-se depender desta a própria subsistência dos filósofos na nossa memória cultural: o filósofo, para além de dar lugar a outros na tarefa da interpretação, depende deles quanto à perenização da sua filosofia. Importa, pois, publicar estes ditos, para que outros filosofem sobre eles; para não deixar esquecer a filosofia que neles se diz. Há, por fim, uma qualidade nestes ditos filosóficos, que só por si justificaria conservá-los e dispô-los ao serviço do público, a saber, a sua força exortativa. Como o próprio Prof. Cerqueira Gonçalves assumiu e cumpriu: «Em filosofia, nada podemos impor, apenas podemos exortar.» FM 85/86 De facto, não me lembro de alguma lição sua que não fizesse pensar. O seu magistério em filosofia sempre foi uma exortação à filosofia. O meu desejo é que estes ditos, não obstante a minha interpretação escrita, possam continuar a exercer a função exortativa que tiveram enquanto ditos orais. Antes de apresentar propriamente os ditos, gostaria ainda de esclarecer um pouco o processo de organizá-los. A seriação cronológica não é o primeiro critério de organização, intervindo apenas subsidiariamente. A organização dos ditos obedece prioritariamente a uma organização temática, que reflecte a minha apreensão de algumas linhas de orientação do pensamento cerqueiriano. Os temas exprimem-se por palavras ou curtas expressões, que constituem os títulos principais e secundários, concebidos para introduzir os diversos agrupamentos de ditos. Não obstante os títulos temáticos precederem os ditos, aqueles não são pontos de partida, mas pontos de chegada da minha interpretação, como sugere, aliás, o seguinte dito acerca do papel da autonomização das palavras na linguagem: «O homem não fala nem pensa com palavras, mas com sentenças. As palavras não são o ponto de partida, mas o ponto de chegada: são focos para onde o pensamento tende a polarizar-se.» FM 83/84 O processo de organização dos ditos foi realmente um processo de reorganização permanente, cujo resultado era imprevisível à luz do plano inicial. Não terá sido, porém, pura arbitrariedade minha, o que ditava essa constante reorganização. Terá sido, antes, a busca de uma razão ou ordem interna, já existente mas não explícita, que deveria prover à articulação dos ditos. Se «pensar é fazer imagens, é fazer metáforas» FM 86/87, pensar o processo de organização dos ditos filosóficos do Prof. Cerqueira Gonçalves é imaginar um puzzle, cuja configuração última permanece inalcançável ao cabo de reiterados ensaios de aproximação. A aproximação aqui apurada é uma organização em quatro títulos principais: Hermenêutica da filosofia e filosofia da hermenêutica Para uma história filosófica da filosofia A cultura ocidental: entre o gnosticismo e o cristianismo Uma filosofia da reciprocidade, ou da generosidade Começar com a hermenêutica da filosofia é começar por pôr a filosofia em questão, o que sempre fazia, o Prof. Cerqueira Gonçalves, ao dar início a um curso ou a um percurso de filosofia. De facto, um dos seus ensinamentos mais marcantes sempre foi a exigência de um questionamento radical da actividade filosófica, inclusivamente, dos pontos de partida de qualquer projecto de trabalho em filosofia. Entretanto, uma das suas constantes filosóficas era a rejeição de um pensar objectivante a favor de um pensar interpretante, o que determina o enquadramento hermenêutico da questão da filosofia, à luz dos ditos seguintes: 3

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. «Pensar não é essencialmente objectivar; nós fundamentalmente não objectivamos.» FM 98/99 «Nunca há uma interpretação única do dado, há sempre outras possibilidades.» FM 98/99 Questionar revela então ser uma exigência do pensar interpretante, posto que é função própria da questão, discernir mais do que uma possibilidade sobre a matéria em causa. Questionar a filosofia, para o Prof. Cerqueira Gonçalves, é, de facto, discernir e actualizar alguma ou, porventura, algumas das possibilidades de interpretá-la. Assumida a índole interpretante do pensar filosófico, urge uma reflexão filosoficamente elaborada sobre a interpretação, isto é, uma filosofia da hermenêutica. Neste domínio, o Prof. Cerqueira Gonçalves preconiza uma ampla comunidade da função de interpretar, que provê quer a uma precaução anti-antropocêntrica quer a uma integração da dualidade de natureza e cultura, como ressalta nos dois próximos ditos: «Tudo interpreta (até as pedras); não é exclusivo do homem, interpretar; também os animais interpretam (não há instintos puros).» FM 86/87 «A cultura é sempre uma leitura.» FM 98/99 A maior parte dos ditos coleccionados sobre hermenêutica centra-se, contudo, nas formas culturais de interpretar a realidade, como o mito, a religião, e até a ciência, concebida esta, em forte tensão, senão mesmo em oposição, com a filosofia. Deste modo, a filosofia da hermenêutica dá origem a uma filosofia da cultura. Neste horizonte da filosofia da cultura, a filosofia da história da filosofia merece a autonomia relativa de um capítulo específico. Na verdade, o Prof. Cerqueira Gonçalves nunca iniciava um curso de Filosofia Medieval sem uma reflexão prévia sobre o sentido da história da filosofia, a partir da relação própria da filosofia com a sua história. Mas só haverá uma relação própria da filosofia com a sua história, se for a filosofia a fornecer as condições do seu desenvolvimento histórico. Entre essas condições, inclui-se a criação de um tempo próprio: «A filosofia cria o seu próprio tempo.» FM 78/79 Princípio da sua própria temporalidade, a filosofia pode recusar os critérios exteriores e convencionais de ordenação da sua história. Ao defender esta possibilidade, o nosso Professor de Filosofia Medieval incentivava-nos a relativizar a fixidez da cronologia histórica e a procurar uma reorganização filosófica da história da filosofia. A sua leitura da história da filosofia, da filosofia medieval inclusive, inscreve-se, porém, no capítulo mais abrangente da sua filosofia da cultura, que expõe uma interpretação muito pessoal das características dominantes do que tem sido a cultura ocidental: «Uma das características da cultura ocidental é a dialéctica do gnosticismo e do anti-gnosticismo.» FM 82/83 O gnosticismo aqui mencionado não concerne apenas ao conjunto mais ou menos heterogéneo de movimentos heterodoxos dos sécs. II e III, habitualmente coligidos sob essa classificação. O gnosticismo, para o Prof. Cerqueira Gonçalves, representa um dos pólos aglutinadores de tendências e opções estruturantes da cultura ocidental. De tais tendências e opções, o nosso Professor não faz apologia, antes se distancia. No pólo oposto, milita, solitário, o cristianismo, assumindo o papel de alternativa ao modelo gnóstico de cultura na história do Ocidente, embora com uma influência cultural bem menor. Balizada por estes dois pólos, a interpretação cerqueiriana dos rumos da cultura ocidental abre com ditos sobre a gnose e fecha com ditos sobre o cristianismo. 4

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Mas, para além da coragem desta posição inconformada com as linhas de opção mais profundamente enraizadas na cultura ocidental, há uma parte essencial do pensamento filosófico do Prof. Cerqueira Gonçalves, que perpassa através dos seus ditos lectivos, e que se deixa abordar como uma filosofia da reciprocidade. Trata-se de uma filosofia dos opostos, que substitui a exclusão mútua pela dependência recíproca, isto é, que defende a interdependência dos opostos. A função de cada um dos opostos não é lutar pela anulação do outro, mas solicitar a diferença do outro. Uma filosofia que assim dá lugar à diferença pode ser dita, com propriedade, da generosidade. Para prover ao surto de todas as diferenças, de género distinto inclusive, esta filosofia da reciprocidade, ou da generosidade, postula o regresso à ontologia. Digo regresso, porque a ontologia persistiu sempre como uma das mais constantes preferências filosóficas do Prof. Joaquim Cerqueira Gonçalves, não fosse o curso de Filosofia Medieval de 1978/1979, o primeiro que escutei, um curso, por feliz coincidência, centrado na ontologia.

Hermenêutica da filosofia e filosofia da hermenêutica Hermenêutica da filosofia Uma ou várias acepções de filosofia? Há a considerar, em primeiro lugar, várias acepções negativas de filosofia. A filosofia não é… Nem problema: «A filosofia não é um problema.» FM 98/99; «A filosofia não é resolução de problemas, é desenvolvimento do sentido da realidade, questionando.» FM 98/99; «As questões não são problemas: os problemas pedem solução, que constitui uma superação de dificuldades; as questões requerem alargamento e aprofundamento.» FM 97/98 Nem crítica: «A filosofia como crítica é expressão do nosso maniqueísmo de luta: como temos medo da realidade, lutamos com ela. A crítica é sempre redutora.» FM 82/83 Nem redução à verdade: «A verdade não é bom critério para a filosofia, porque, com a verdade, a filosofia entra muitas vezes em conflito com a realidade. A filosofia deve ultrapassar os critérios (as perspectivas) e orientar-se para a realidade.» FM 83/84; «A passagem da realidade à verdade e desta à certeza é um processo de redução.» FM 85/86; «O que o homem fundamentalmente quer é não objectivar, mas objectiva quase sempre para dominar e ter certezas.» FM 85/86; «A verdade na filosofia ocidental está logicizada, i.e., reduz-se à identidade das relações no nosso mundo mental.» FM 86/87; «O império da lógica na cultura ocidental significa a redução da realidade à verdade, e desta, à certeza.» FM 86/87 O que é, então, a filosofia? Ou, melhor, o que faz a filosofia? A filosofia descobre um mundo excessivo A filosofia descobre: «A filosofia não constrói; a filosofia descobre.» FM 83/84; «A filosofia não tem objectos, vai descobrindo.» FM 85/86; «O homem não é perguntador, é perguntado.» FM 82/83; «A qualidade do filósofo não é a do inventor, é a de se deixar provocar pelo novo, por algo que não é ele.» FM 83/84 5

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. A filosofia faz como a poesia: «Quem faz filosofia ou quem faz poesia tem a consciência da inspiração, isto é, de que aquilo que diz não é dele.» FM 82/83; «A inspiração é saber ouvir.» FM 82/83; «O filósofo ou o poeta é aquele que sabe, privilegiadamente, ouvir os outros.» FM 82/83; «O poeta é o que menos original é. A filosofia tem afinidade com a poesia porque também não é original.» FM 83/84 A filosofia confronta-se com o irrecusável da relação: «O problema da filosofia é apenas um: o da relação. O cogito é sempre uma relação, pensar é sempre pensar com...» FM 82/83; «O problema central da filosofia é o da relação.» FM 82/83, 83/84; «Nós pensamos, pensando com… o mundo, os outros, a vida.» FM 82/83; «O irrecusável do cogito humano não é o eu, é o outro.» FM 84/85; «O outro é uma experiência radical, não é a construção de um objecto.» FM 85/86; «Conhecer o mundo é pôr em relação o nosso mundo com o dos outros.» FM 83/84; «Nós comunicamos uns com os outros porque cruzamos o nosso mundo com o mundo dos outros.» FM 86/87; «As grandes virtudes da filosofia são a generosidade e a coragem.» FM 98/99 A filosofia parte do espanto com um mundo excessivo: «A filosofia, que parte da vivência, supera em profundidade o modelo sujeito-objecto, que é um modelo derivadíssimo.» FM 85/86; «O mundo é um momento mais primitivo do que a relação sujeito-objecto.» FM 86/87; «A filosofia parte do espanto com o mundo que nos excede.» FM 85/86; «Começamos a pensar quando o mundo de que partimos nos excede. Pode-se partir de vários mundos historicamente diferenciados.» FM 84/85; «Não há filosofia sem tradição, sem memória, sem mundo.» FM 86/87; «Todo o mundo é racional; o mundo é já uma organização da realidade.» FM 86/87; «O mundo mais susceptível de provocar espanto no filósofo é o mundo dos filósofos, pelos excessos de mundo que dá.» FM 83/84; «Quando o filósofo compreende este mundo, já o ultrapassou.» FM 83/84 A filosofia que descobre não pode construir? A filosofia que descobre está na origem da filosofia que constrói. A filosofia não constrói o mundo que descobre, mas parte deste mundo, que ela não constrói, para construir um mundo diferente. A filosofia que constrói… É activa: «Fazer filosofia é fazer a experiência de uma acção humana, daquilo que eu construo.» FM 98/99; «Agir é contruir o nosso mundo; conhecer é construir o nosso mundo mental.» FM 86/87; «A filosofia mostra-se, não se prova.» FM 86/87 É criadora: «Todo o acto criador é entendido, porque é um acto de homem. Todo o acto que não é criador, é o caos.» FM 82/83; «A filosofia viu a criação como uma expressão de si própria, por isso a desenvolveu.» FM 82/83; «Faz-se filosofia, fazendo-se a realidade.» FM 86/87; «Toda a obra de criação é boa, mas nenhuma obra deve aniquilar o outro.» FM 86/87 É auto-fundamentadora: «A filosofia tem um carácter auto-fundamentador, não aceita nada que venha de fora, do exterior, que não decorra da sua própria actividade, embora não resulte exclusivamente de uma expressão mental. Uma expressão mental é já um processo derivado.» FM 86/87; «A filosofia é auto-fundamentadora; ela não aceita nada que não passe pelo exercício do próprio pensar. Tudo pode passar pelo exercício do pensamento, inclusivamente, o problema religioso.» FM 86/87; «A filosofia é englobante, auto-fundamentadora e crítica.» FM 86/87

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Constrói um mundo diferente: «Há filosofias constituídas e há uma filosofia em construção por cada um. A filosofia é uma construção não construída porque, por um lado, é necessário que o seja, e, por outro, é a única construção livre. É uma realidade diferente que determina os nossos próprios juízos; não somos nós os proprietários desses juízos.» FM 78/79; «Pensamos, construindo o nosso mundo, encontrando pontos de referência.» FM 85/86; «Construímos o nosso mundo a partir de um mundo dado, que é o mundo da tradição.» FM 85/86; «Ninguém aprende filosofia a não ser construindo um mundo.» FM 86/87; «A filosofia apenas tece a vida de maneira diferente.» FM 86/87; «O poeta, ou o filósofo, é aquele que tece o mundo de maneira diferente.» FM 86/87; «O mundo construído radicalmente é o mundo filosoficamente construído.» FM 83/84 Com que género, ou géneros, se pode definir a filosofia? Cultura, literatura e hermenêutica A filosofia é cultura: «Porque o homem é um ser essencialmente cultural, a filosofia é mais um diálogo com os outros do que um diálogo com a matéria bruta.» FM 82/83; «Toda a cultura tende a ser filosófica.» FM 86/87; «A filosofia não é o único saber ou o saber supremo, é expressão de cultura.» FM 98/99 Linguagem filosófica? «Não há linguagem filosófica, menos ainda terminologia filosófica.» FM 85/86; «Não fazemos filosofia sem a linguagem que temos e sem linguagem nova.» FM 98/99 A filosofia é literatura: «A filosofia é literatura, antes de ser filosofia.» FM 83/84; «Não há género literário filosófico, há filosofia em todos os géneros literários. Nós é que confinamos o género literário da filosofia a algumas obras.» FM 98/99; «Onde há literatura, há filosofia. A filosofia é a grande expressão da literatura.» FM 98/99 A filosofia é hermenêutica: «A filosofia é hermenêutica.» FM 86/87; «Quando interpretamos, não repetindo, mas criando, verificamos que não somos nós que falamos, mas é a realidade que fala em nós.» FM 82/83; «Não é psicológica nem hermeneuticamente possível reduzir a filosofia à recepção da tradição, porque não se pode interpretar a não ser criando ou recriando.» FM 86/87 Uma questão tradicional: a filosofia é una ou múltipla? A filosofia é una: «A filosofia não tem divisões, a não ser divisões pragmáticas.» FM 78/79; «Toda a divisão não é intrínseca à filosofia, mas a divisão da ciência influenciou a divisão da filosofia.» FM 82/83 Não obstante a unidade da filosofia, esta admite… Divisões pragmáticas: «As divisões da filosofia são mais suscitadas pelo pragmatismo da escola do que pela natureza da filosofia. Mas o pragmatismo não deve constituir o primeiro critério de divisão. Se a escola começa por ser uma expressão do saber, com o tempo ela tende a tornar-se um invólucro do saber.» FM 83/84; «O ensino da filosofia e a tipificação histórica das diferenças da filosofia são exteriores à filosofia.» FM 98/99 Divisões históricas: «O que pode legitimar uma divisão em filosofia é um critério histórico, pois a historicidade é inerente à filosofia, embora não do modo como está institucionalizado.» FM 82/83; «A única divisão capaz de oferecer resistência à unidade da filosofia é a divisão histórica, por constituir um critério interior à própria filosofia. O único critério de divisão que resiste à unidade da 7

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. filosofia, estabelecendo nela a diversidade, é o da temporalidade ou da historicidade.» FM 83/84 Singularização: «Cada um tem a sua filosofia, mas isto não é subjectivismo nem relativismo, porque a filosofia de cada um é insubstituível.» FM 78/79 Diferenciação pelas obras: «Onde aparece a diversidade em filosofia? Nas obras. Sem a experiência de fazer uma obra, não nos podemos aperceber da diferença entre as obras.» FM 98/99 Filosofia da hermenêutica Um sentido amplo de interpretação Saber é interpretar: «Hoje, temos uma noção alargada de hermenêutica, que permite dizer que todo o saber é uma hermenêutica, privilegiando a liberdade, constitutiva da interpretação, na construção do saber, e, desse modo, favorecendo uma concepção anti-necessitarista do saber.» FM 82/83; «O homem só conhece interpretando, porque o mundo não é representação, é um processo dinâmico.» FM 82/83; «O problema humano é um problema de leitura.» FM 85/86 O modelo artístico da interpretação: «O trabalho e a interpretação são obras de arte.» FM 82/83; «Uma obra de arte é mais objectiva do que a matemática, que é convencional.» FM 85/86 O valor da escrita: «A insistência na escrita tem por função tornar o leitor activo e comprometido.» FM 83/84; «A escrita mobiliza mais do que a oralidade o ser do homem, no âmbito da arte e do trabalho.» FM 83/84; «Escrever é essencial. O homem escreve para se superar exprimir uma realidade diferente dele.» FM 82/83; «O escritor não tem linguagem; nele linguagem e realidade atingem a maior solidariedade.» FM 83/84; «Escrever não é objectivar.» FM 85/86; «Há que enfrentar a realidade, para enfrentar o texto.» FM 82/83 O descentramento do autor: «Quando o autor escreve uma obra, ele quer superar-se como autor.» FM 82/83; «Quando se escreve um texto, a intenção é fazer uma obra. Mas uma obra, de modo geral, não tem intenções (quando as tem, é uma fraca obra). A obra excede o autor e as suas intenções. A obra é sempre uma forma de universalização.» FM 82/83 O centramento do texto: «O texto é insubstituível.» FM 82/83; «O texto é tudo.» FM 82/83; «As palavras não existem; o que existe é o texto.» FM 85/86; «A obra é um processo de universalização, de unificação e de diferenciação.» FM 98/99 O texto e os outros textos: «Uma das funções do texto é gerar outros textos.» FM 97/98 «Um texto é uma possibilidade de outro texto.» FM 98/99; «A obra não é o livro; a obra é o livro e a tradição do livro até hoje.» FM 98/99 O texto da vida: «Se toda a nossa vida é produção de sentido, não é difícil equipará-la a um texto. A vida e a memória são textos.» FM 98/99; «Nós não podemos viver sem escrever uma obra, mesmo que a nossa vida seja pequena e não tenha leitores.» FM 98/99; «Viver uma vida, por frágil e medíocre que seja, é sempre uma grande manifestação de procura de sentido.» FM 98/99; «A procura de sentido é a procura daquilo que dá perenidade à vida. O sentido é perene.» FM 98/99; «O texto da linguagem natural é sempre uma progressão de sentido.» FM 98/99 O texto, modelo de racionalidade: «O texto é um modelo de racionalidade e o ser humano, um ser hermenêutico.» FM 97/98; «O que significa que o texto seja um modelo de racionalidade? Significa que partimos sempre de algo com sentido.» FM 97/98 8

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. O mundo, categoria hermenêutica: «O que aproxima o autor do intérprete é o mundo dos dois.» FM 82/83; «O autor não quis ser autor, mas construir um mundo.» FM 82/83; «Quando falamos e escrevemos, queremos fazer o mundo.» FM 82/83; «O mundo tem sempre um horizonte, um destinatário.» FM 82/83; «O mundo é o resultado de uma interpretação na qual nós somos activos.» FM 86/87 Explicação e compreensão: «A explicação é própria de um pensamento causalista. O problema da causalidade tem sentido, mas perguntar pela causa é fugir ao confronto directo, imediato, com a realidade.» FM 86/87; «Uma filosofia de explicação é uma filosofia de afastamento da realidade.» FM 98/99; «A compreensão comporta explicação e vivência.» FM 86/87; «Nós compreendemos pelas diferenças e explicamos pelas uniformidades.» FM 98/99; «Compreender é bem escutar, o que supõe uma atitude de acolhimento.» FM 98/99 Será por isso que foi dito: «O pensamento é feminino.» FM 83/84? O processo hermenêutico A atitude: «Há que olhar o texto com liberdade.» FM 82/83 A tarefa: «Há sobretudo que explicitar as obras que nos interpelaram.» FM 82/83 As fases: «À primeira fase, de dogmatismo do intérprete, sucede a segunda fase, de dogmatismo do texto, a qual deve ser, por sua vez, superada por uma fase de equilíbrio.» FM 82/83; «Nós vamos do nosso contexto para o texto e do texto para o contexto do texto: há que integrar todos estes factores.» FM 82/83; «Acedemos ao contexto através do texto. Os comentadores têm importância, sobretudo, no desenvolvimento histórico.» FM 82/83 A exigência hermenêutica da questão: «Toda a interpretação é um questionamento.» FM 82/83; «A questão é inerente ao processo hermenêutico, porquanto é próprio deste, perguntar ao texto que possibilidades de sentido ele tem.» FM 98/99; «A questão é inerente ao pensamento, à linguagem.» FM 98/99; «A questão é inerente a todo o processo de pensar, a todo o processo de discurso.» FM 98/99; «A questão não é apenas uma metodologia, um processo de diálogo, mas é, sobretudo, o desenvolvimento de um conteúdo.» FM 98/99; «A questão é a estrutura da experiência: discriminação de possibilidades de sentido e escolha do melhor sentido.» FM 98/99; «A questão constitui o trabalho da razão, que contesta o que está dado para descobrir novos sentidos.» FM 98/99 A importância da linguagem No princípio, está a linguagem: «Há um mundo, que é o mundo da linguagem, que está antes do homem, no homem e depois do homem. Há um enraizamento ontológico da linguagem.» FM 82/83; «A questão da linguagem é por onde tudo começa: onde não há palavra, não há realidade.» FM 87/88 O primado da linguagem sobre o pensamento: «O pensamento é linguagem.» FM 82/83; «Não há pensamento fora da linguagem.» FM 85/86; «Enquanto não se falar, não se sabe.» FM 82/83; «Não há pensamento sem trabalho, isto é, sem fala, sem escrita. Saber é saber dizer, sobretudo, quando dizemos com a nossa fala, a nossa escrita, as nossas atitudes, com a nossa vida.» FM 82/83; «A linguagem está antes do pensamento; a linguagem não é expressão do pensamento, ou não é apenas expressão do pensamento.» FM 85/86; «A linguagem é lógica, mas não é a lógica.» FM 98/99; «A lógica é mental, mas a linguagem é mais do que mental.» FM 98/99

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. A linguagem é expressão da realidade: «Nós falamos porque a realidade quer falar, pois esta é constitutivamente falante, isto é, inteligível.» FM 83/84; «A linguagem é expressão do homem, da realidade.» FM 85/86; «Quando dizemos bem, não sabemos o que dizemos; quando dizemos o que sabemos, dizemos pouco.» FM 83/84; «A língua é um fenómeno humano que ultrapassa o próprio homem.» FM 83/84; «Duas vertentes da linguagem natural são a expressão (dizer) e a comunicação.» FM 86/87; «A realidade é filtrada pela linguagem; a realidade exprime-se em linguagem; a língua é decisiva para a expressão do próprio mundo.» FM 86/87 A realidade excede a linguagem: «A realidade excede sempre a linguagem.» FM 98/99; «A linguagem serve sobretudo para dizer que o mais importante não está dito ainda.» FM 98/99; «Nós dizemos a realidade como se (fosse um objecto do nosso entendimento), porque não podemos dizer como ela é.» FM 82/83; «Toda a linguagem é simbólica. O símbolo exprime a tentativa de dizer aquilo que excede.» FM 98/99; «A simbólica é mais primitiva do que a semiótica, mas não é arbitrária.» FM 98/99; «A linguagem não traduz a natureza tal como é, mas o valor que ela tem para nós, pelo que é simbólica.» FM 98/99; «A linguagem é um processo de metaforização em direcção à especulação.» FM 98/99; «Todo o processo de conhecimento é um processo simbólico.» FM 98/99; «Se há uma revelação, a linguagem não decorre só da ordem natural das coisas, mas também daquilo que Deus revelou, e aquilo que Deus revelou excede a natureza.» FM 98/99 A linguagem na cultura ocidental: «A força da linguagem é tal na cultura ocidental que só existe aquilo que tem um nome, o nome que está no dicionário ou nos clássicos.» FM 83/84 Hermenêutica e filosofia da cultura O início cultural da interpretação No princípio do homem, está a cultura: «O paraíso vem depois da cultura, que é essencial ao homem.» FM 82/83; «Toda a natureza é cultura.» FM 82/83; «O mundo é cultural.» FM 86/87; «O cosmo desenvolve-se através da cultura.» FM 98/99; «A cultura é um ar que se respira.» FM 82/83; «O homem não é um ser natural, mas um ser cultural.» FM 86/87; «O homem pretende apenas explicitar a sua vida através da cultura.» FM 83/84; «Naquilo que o homem é, tem muita influência a cultura e o que o homem pensa sobre si mesmo.» FM 84/85; «O que cada um pensa é sempre verdadeiro, mas dentro das possibilidades da cultura.» FM 98/99; «Costuma dizer-se: contra factos, não há argumentos. O contrário, porém, é que acontece: os factos que não se enquadram na nossa cultura, nós não os vemos.» FM 98/99 A cultura interpreta: «Todo o processo cultural é um processo de leitura.» FM 82/83; «Diferentes culturas comportam diferentes interpretações do saber e da posição do saber dentro da cultura.» FM 83/84; «Tudo o que nós dizemos do pensamento, mais do que uma análise nossa, é expressão de um consenso cultural.» FM 83/84; «Todos nós somos ensinados porque recebemos um texto, o texto dos valores da nossa cultura.» FM 98/99 Cultura e axiologia A memória cultural: «Nós somos uma memória cultural, um património.» FM 96/97; «A acção humana supõe uma memória cultural, que nada tem a ver com o

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. passado; trata-se de uma organização de todos os dados adquiridos, na direcção do mais valor.» FM 98/99 A cultura é constitutivamente axiológica: «A cultura é uma organização axiológica.» FM 83/84; «Toda a cultura é uma organização do mundo, a partir de uma ordem de valores.» FM 86/87 O mundo, categoria axiológica: «O homem é livre de constituir mundo.» FM 82/83; «O mundo é uma organização de valores em torno de um padrão ou termo absoluto. Há mundos mais abertos e mundos menos abertos» FM 83/84; «O mundo pode ser mais ou menos universal, mais ou menos aberto.» FM 85/86; «O mundo não é arbitrário: nem tudo é igual a tudo, há uma hierarquia, há uma axiologia.» FM 86/87; «É difícil que uma constituição do mundo fuja à referência ao absoluto.» FM 86/87; «A cultura é um processo de transcendência.» FM 83/84; «A ciência tece relações horizontais; a ordem de valores tece-se mais com articulações verticais.» FM 86/87 O sentido das componentes culturais A religião Religião, valor e componente de cultura: «O valor religioso é o valor-padrão de uma cultura.» FM 82/83; «A cultura é mais profunda e complexa do que a ciência. A cultura tem ingredientes que a ciência rejeita, como a religião.» FM 86/87 A religião é racional: «A religião é uma organização do mundo. Não podemos viver no irracional.» FM 86/87; «Todas as expressões religiosas são racionais. A expressão religiosa é uma das primeiras expressões da razão.» FM 86/87; «A religião é uma grande expressão da razão.» FM 87/88 Religião e filosofia: «A filosofia deve viver da tensão com a religião. A realidade excede-nos sempre. Por isso, a filosofia deve penetrar ao máximo na realidade que experienciamos, naquilo que nos é mais imanente, e que nos levará à transcendência irrecusável.» FM 83/84; «O pensamento ocidental é uma laicização do pensamento religioso.» FM 87/88 A fé: «A fé é uma forma diferente da razão, de mostrar conteúdo.» FM 86/87; «Se a razão se faz, em grande parte faz-se com a fé.» FM 87/88; «A tensão entre fé e razão é inerente à própria razão.» FM 87/88; «A fé uma determinação irredutível a um objecto, e um princípio de acção.» FM 98/99; «A necessidade da fé para o conhecimento é análoga à necessidade da virtude para o conhecimento.» FM 98/99; «A fé, não o cogito, é o único fundamento sólido, irremovível do conhecimento.» FM 98/99; «A questão da fé é uma questão de esperança.» FM 98/99 O mito O mito é racional: «Hoje, o mito é já considerado uma das grandes manifestações da razão.» FM 82/83; «A razão exprime-se como um mito, porque não se pode reduzir a ela própria, não se pode reduzir a um objecto.» FM 82/83; «O mito tem a mesma função e intenção do logos, que é estabelecer uma ordem na realidade, embora por meios diferentes: o mito procura descrever aquilo que nos ultrapassa; o logos procura dominar a realidade por nós criada, o mito inclusive.» FM 82/83; «O mito é a tentativa do homem dizer tudo aquilo que pode, sabendo que não pode dizer tudo; o logos é aquilo que o homem diz, como explicação, sabendo que não pode explicar tudo.» FM 83/84; «O mito é também logos, mas de natureza diferente do logos positivista.» FM 86/87 11

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. O mito é excessivo: «O mito surge quando o homem não consegue transformar em objecto aquilo que quer explicar.» FM 82/83; «Os mitos são uma resposta ao problema do mal, porque o mal nos excede.» FM 83/84; «O que é comum a todos os mitos é a tentativa de dizer, como se fosse assim, o melhor possível, aquilo que nos excede.» FM 83/84; «O mito é sempre expressão de uma realidade que excede o homem.» FM 86/87; «A razão tem tido quase sempre a característica fundamental da autonomia: a razão rejeita quase sempre factores que lhe sejam externos. Manifestação disso é o contraste entre razão e mito, porquanto o mito integra aquilo que o excede.» FM 86/87 O mito em filosofia: «A filosofia é uma purificação do mito, não uma anulação do mito.» FM 82/83; «O mito é um ingrediente essencial da filosofia.» FM 82/83; «Toda a filosofia é desenvolvimento do mito.» FM 83/84; «Tanto a filosofia como a literatura devem recuperar o mito, a capacidade de mitificação, isto é, a capacidade de voltar à realidade.» FM 83/84; «Aquilo que está mais próximo de uma visão e fundamentação ontológica é o mito.» FM 82/83; «Em filosofia, não fazemos mais do que trabalhar alguns mitos.» FM 84/85; «A cultura é uma mitologia que se vai racionalizando.» FM 86/87 O mito na filosofia grega: «A grande expressão da escola clássica era o mito.» FM 82/83; «Toda a filosofia antiga foi um comentário ao mito, como exemplifica a dualidade de matéria e forma.» FM 83/84; «A teoria hilemórfica de Aristóteles não é uma expressão da razão pura, mas uma teoria mítica.» FM 83/84; «Platão reconheceu que a filosofia necessitava do mito.» FM 82/83; «Toda a filosofia grega é em parte uma racionalização (purificação) do mundo do Olimpo, estabelecendo a ordem dentro deste. É, por isso, bastante sensível a tendência para o monoteísmo já em Platão e Aristóteles.» FM 83/84; «A filosofia grega é uma racionalização dos mitos.» FM 86/87 A ciência A ciência, uma opção cultural: «A ciência é uma construção nossa.» FM 83/84; «A ciência é o espelho da sociedade que a criou.» FM 83/84; «Se a ciência é produto, pode alterar-se.» FM 83/84; «A ciência é sempre convencional, não é irrecusável.» FM 85/86; «Nós temos as ciências que queremos.» FM 86/87; «A cultura é que determina a ciência.» FM 98/99 Ciência e filosofia, opostas entre si: «A filosofia existe porque a realidade não pode ser objectivada; a ciência existe porque pode ser objectivada. Os objectos da ciência são a nossa redução do mundo e são também os ideais que nós temos das coisas.» FM 82/83; «A ciência não tem sentido de globalidade.» FM 83/84; «A filosofia tende mais a ser uma sabedoria do que uma ciência.» FM 82/83; «O que condiciona a filosofia não é a realidade, mas a realidade da ciência.» FM 86/87 Duas tendências cruzadas na vida da cultura Tendência de formalização: «É constitutivo da nossa realidade, começarmos primeiro por ser criativos, para logo tendermos a formalizar, a institucionalizar aquilo que criámos, retirando-lhe a força originária.» FM 82/83; «Nós tendemos a naturalizar, a cristalizar as criações culturais.» FM 82/83; «Todo o saber tende a formalizar-se, tende a ser científico, tende a substituir a realidade, tal como ela é, pela realidade, tal como nós a dominamos.» FM 82/83; «Todo o saber tende a cientificar-se; esta tendência também se verificou na Idade Média, embora vários factores travassem esse processo, como a predominância dos problemas humanos e a 12

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. importância dos temas teológicos.» FM 86/87; «O pensamento ocidental tem-se caracterizado por esse resvalar da filosofia para a ciência, mas talvez seja constitutivo do filosofar, formalizar-se na ciência.» FM 83/84; «A filosofia ocidental tende a cientificar-se, por medo da liberdade.» FM 86/87; «Toda a escola tende para o escolasticismo formal.» FM 83/84; «O processo normal de todo o estudo é um processo de formalização.» FM 83/84; «Toda a linguagem começa por ser uma criação que tende a formalizar-se.» FM 84/85; «Na filosofia ocidental, sempre houve a tendência de reduzir a filosofia à lógica, a ciência que serve para qualquer objecto.» FM 95/96; «A ciência tende a absolutizar-se. Uma das formas de absolutização da ciência é pela lógica, isto é, pela consideração de uma lógica inerente a toda a ciência.» FM 98/99 Tendência de abertura: «Se a cultura não tiver sentido de globalidade, morre e petrifica-se.» FM 83/84; «Todo o saber tende a ser um saber englobante; toda a ciência tende a ser filosofia.» FM 86/87; «Todo o saber humano apela para o saber filosófico, porque a filosofia procura um sentido amplo para a razão.» FM 86/87; «A linguagem natural não tende para a univocidade, mas para a analogia.» FM 86/87; «A analogia supera a univocidade e a equivocidade, trata do parcialmente igual e do parcialmente diferente.» FM 86/87; «Com o cristianismo, a razão vai-se desformalizando, porque o logos vai-se personalizando.» FM 86/87; «A dialéctica, hoje, é a manifestação de que o esquema científico não é suficiente.» FM 86/87

Para uma história filosófica da filosofia Uma filosofia do tempo e da história O tempo O tempo é irrecusável: «Tudo passa, só o tempo é que não pode ser ultrapassado, embora tudo tenda para a simultaneidade.» FM 82/83; «Com Plotino e Stº. Agostinho, substitui-se o ponto de referência astral, cosmológico, do tempo, pelo ponto de referência psicológico.» FM 83/84; «Há um cogito talvez muito mais importante do que todos os outros, que é o cogito do tempo.» FM 85/86 O tempo para além do presente: «O passado e o futuro constituem a impossibilidade de reduzir a conceito, a realidade; esta tem passado e tem futuro, isto é, tem margens conceptualmente irredutíveis.» FM 82/83; «O actualismo constitui uma fuga à realidade, à história.» FM 87/88; «Entre o princípio e o fim, os gregos privilegiam o princípio, os milenaristas, o fim; no meio, porém, o princípio e o fim mostram-se inesgotáveis.» FM 98/99 A memória para além do passado: «A memória é um presente sem contornos, uma realidade total e viva» FM 78/79; «O mundo da humanidade é a sua memória. Neste sentido, a memória é mais do que psicológica, mais do que objectiva, é ontológica.» FM 82/83; «Não há realidade sem memória.» FM 86/87; «O processo pelo qual verificamos como a memória ultrapassa o indivíduo humano é semelhante ao modo como nos cruzamos com a transcendência na nossa experiência histórica.» FM 83/84 O passado

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. A questão prévia: «Por que é que o homem se preocupa com o passado?» FM 78/79 A segregação intelectualista do passado: «A inteligência, mais do que vontade, debruça-se sobre o passado.» FM 83/84 Contra um passado segregado, em favor de um passado integrado: «Só há passado para quem não é capaz de viver o presente.» FM 78/79; «O passado não existe; existe a tradição e a tradição é o mundo.» FM 83/84; «O passado não existe; aquilo que existe é uma tradição viva.» FM 98/99; «Faz parte da complexidade do homem, ser uma realidade com passado.» FM 87/88; «Importa construir o futuro, assente nas raízes do passado.» FM 87/88 O futuro A predilecção voluntarista pelo futuro: «A vontade, mais do que a inteligência, olha para o futuro.» FM 83/84; «A tradição gerou o presente porque quer ser futuro; o presente é uma intencionalidade para o futuro.» FM 84/85; «O mundo vive de ser mais mundo. O mundo do passado esclarece-se melhor no futuro. A actualidade não é critério de valor.» FM 86/87 A história em função do futuro: «Por que é que nos debruçamos sobre a história? Porque nos preocupamos com o futuro.» FM 82/83; «O que é fundamental, na noção de história, é a perspectiva do futuro.» FM 82/83; «Nós tememos a história, porque tememos o novo. Todo o zelo actual do homem é acautelar o futuro, isto é, negá-lo.» FM 83/84; «Quem se dedica à história, preocupa-se com o futuro.» FM 86/87; «O conhecimento de uma época esclarece-se melhor a partir da época seguinte.» FM 98/99 O valor do futuro em filosofia: «Nós pensamos aquilo que tem hipótese de futuro.» FM 98/99 O valor do futuro em hermenêutica, por influência do cristianismo: «Em toda a hermenêutica de inspiração cristã, é o futuro, e não o passado, que dá a chave da interpretação.» FM 83/84; «O futuro é que elucida o passado: esta é uma característica fundamental da hermenêutica medieval.» FM 86/87; «A hermenêutica dominante até Stº. Agostinho não valorizava o tempo nem a história, pois tomava por último critério a adequação às ideias eternas; a hermenêutica pós-cristã lê o passado à luz do presente e do futuro, valorizando a diferença temporal e a progressão do Antigo para o Novo Testamento.» FM 97/98; «Em hermenêutica, a tendência fundamentalista procura o sentido no início, enquanto a que assume a mediação da tradição procura o sentido no futuro.» FM 86/87 O futuro escatológico A escatologia em alternativa à nostalgia da origem: «A dilatação do mundo, para o grego, estava no princípio; para o cristão, está no fim. Há aqui interferência de modelos religiosos, mas foi por eles que a historicidade penetrou na filosofia.» FM 83/84; «Na Idade Média, o problema do fim era mais relevante do que o problema da origem, ainda que este estivesse presente no interesse pelo tema da Criação, que fez retomar o esquema aristotélico das quatro causas.» FM 85/86; «O homem medieval é mais escatológico do que nostálgico.» FM 85/86; «A Cidade de Deus, de Stº. Agostinho, não é um ideal arquetípico, é uma comunidade escatológica.» FM 84/85 A escatologia em função da história: «A Cidade de Deus, de Stº. Agostinho, é uma comunidade escatológica, isto é, uma comunidade histórica e a superação da comunidade histórica.» FM 85/86; «A ideia de história não seria viável, sem 14

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. escatologia, sem referência a uma transcendência, se não entra na circularidade.» FM 85/86 A história A história não é redutível a uma dialéctica necessitarista: «A história não é dialéctica.» FM 82/83; «A historicidade não é limitada por alguma estrutura dialéctica porque é um processo criador.» FM 82/83; «Há que encontrar um modelo de compreensão da história, segundo o qual possamos compreender que dois dados estão relacionados entre si, sem que um deles derive necessariamente do outro.» FM 83/84; «A história comporta diferença e unidade, irreversibilidade, progresso e liberdade.» FM 83/84; «A história supõe a intervenção do contingente.» FM 86/87 Os critérios de progresso em questão: «O progresso é uma ideia que temos a partir do cristianismo, mas que não sabemos bem o que é, dada a falibilidade dos critérios comuns de progresso.» FM 83/84; «O progresso da ciência é um dos factores, não o único critério de progresso.» FM 83/84; «Sinal de que o progresso é algo que nos ultrapassa, é a necessidade de recorrer ao mito para o expressar.» FM 83/84 A história, entre a ciência e a filosofia da história: «Pode ou não a história ser ciência? Se é ciência, não há história.» FM 86/87; «Os historiadores, muitas vezes, não captam a unidade dos acontecimentos; os filósofos, por outro lado, tendem a não respeitar a diversidade dos acontecimentos.» FM 86/87; «A história exige unidade dentro da diversidade.» FM 86/87 O valor comunitário da história em oposição ao valor social da utopia: «As sociedades vivem da utopia. As comunidades são profundamente históricas.» FM 85/86; «Todas as sociedades procuram ser utópicas, a-históricas. A comunidade só pode ser histórica.» FM 85/86 A valorização cristã e pós-cristã da história A valorização da história, por influência do cristianismo: «O cristianismo é a religião mais portadora de uma mensagem histórica.» FM 83/84; «A Idade Média tem uma ideia positiva de história, enquanto movimento que participa da eternidade.» FM 86/87 A valorização agostiniana da história: «O agostinismo é um grande movimento historicista.» FM 87/88; «Toda a tradição ocidental, que valoriza a história, é de estirpe agostiniana.» FM 98/99 A história para além da essência: «Para Aristóteles, a história nada acrescenta à essência; o medieval considera, com a essência, o estado da essência, isto é, a situação histórica, o que supõe a vulnerabilização da essência ao tempo.» FM 86/87; «A filosofia medieval introduz o tempo na essência e acentua a importância da relação entre as essências.» FM 86/87 O valor da história em oposição ao valor da natureza: «A tendência para a natureza corresponde normalmente a uma fragilização da categoria da história.» FM 83/84; «O mundo agostiniano é muito mais voltado para a história, enquanto o mundo tomista é muito mais voltado para a natureza.» FM 83/84; «O mundo de possibilidades infinitas é o mundo da história, não é o cosmológico.» FM 84/85; «São inversamente proporcionais os valores da natureza e da história, ou da cultura.» FM 85/86; «A Idade Média está muito mais centrada na cultura e na história do que na natureza. Deus manifesta-se na contingência da história e essa contingência não é necessariamente irracional.» FM 98/99

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. A natureza em relação com a cultura: «Tem pertinência a ideia de natureza, desde que não a reduzamos a uma só natureza.» FM 86/87; «Não há nenhuma natureza fixa.» FM 86/87; «A cultura é expressão de natureza.» FM 86/87; «A Idade Média é responsável pela fragilização da ideia de natureza: esta é uma ideia cultural. Antes da natureza, há Deus criador.» FM 98/99 Historicidade da cultura e da filosofia Historicidade da cultura A valorização cristã e medieval: «A historicidade é essencial à mundividência cristã.» FM 82/83; «A razão cristã é aberta, repassada de historicidade, com referência à transcendência, personificada, universal e anti-literal.» FM 86/87; «A Idade Média é que deu à cultura o sentido da historicidade, que os renascentistas vieram a negar.» FM 82/83 A renegação actual: «A orfandade cultural é a característica actual de uma cultura que não quer ter pai nem mãe.» FM 86/87 Uma exigência do valor de tolerância: «O sentido da historicidade é fundamental para uma atitude de tolerância.» FM 86/87; «A intolerância é, em grande parte, expressão de insensibilidade ao histórico.» FM 86/87 Uma filosofia da razão histórica Um cepticismo sadio: «Não dominamos nem o princípio nem o fim do conhecimento, ele está necessariamente em aberto. Todas as determinações são temporárias e destinadas a passos futuros.» FM 78/79; «Como nós não sabemos tudo, há que duvidar do que sabemos.» FM 82/83 A razão não se faz sem tempo: «Nós pensamos como se …, porque pensamos num processo e o processo ultrapassa-nos.» FM 82/83; «A razão não existe, faz-se.» FM 87/88; «A razão não é intemporal. Pelo menos, a razão medieval, apoiada pela ideia de infinito, era uma razão aberta.» FM 98/99 A razão é vida: «A razão é vida, que se vai manifestando historicamente nas relações humanas.» FM 82/83; «A razão é um apelo da vida.» FM 82/83; «A razão, faculdade pura, não existe.» FM 83/84 A razão não é sem cultura: «A razão, em grande parte, é a organização da cultura.» FM 86/87; «Nós não temos a razão vazia; nós temos a razão cheia de tradição.» FM 86/87; «Há tantas razões quantas as culturas, quantos os mundos que organizamos.» FM 86/87 A razão não é substância, é organização: «A razão não é substantivo, mas adjectivo: a realidade é que é racional; a razão não existe.» FM 86/87; «Razão implica organização, coerência entre as partes; o que é racional, não é avulso.» FM 86/87; «A razão é um processo que se vai organizando na relação das razões finitas.» FM 86/87; «As coisas são racionais, quando estão relacionadas umas com as outras.» FM 86/87; «O conhecimento é a procura da mediação entre as coisas que não estão imediatamente articuladas.» FM 98/99 O centramento filosófico da razão: «A história da filosofia, porventura, nada mais é do que uma prolongada tentativa de definir e até de elaborar a razão.» FM 85/86; «Porquê o nosso fascínio pela razão? Porque estamos ligados a tudo; por isso, acreditamos naturalmente que tudo tem sentido.» FM 86/87; «Os critérios da razão podem ser ou mentais ou transcendentes (exs.: o Bem, em Platão; Deus, no cristianismo).» FM 86/87 16

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. A razão é histórica: «A historicidade da razão significa relativismo? A nossa razão não é relativa, mas histórica, participada.» FM 86/87; «A razão é englobante e histórica.» FM 86/87; «A ideia de progresso é outra característica inerente da razão, embora o progresso da razão não seja linear, estando sujeito a regressões.» FM 86/87; «A razão constrói-se.» FM 86/87; «A razão é histórica, não pode quedar-se em alguma das suas expressões.» FM 87/88 Histórias da razão contra a historicidade da razão: «A doutrina da dupla verdade, no séc.XIII, não atende à historicidade da razão.» FM 82/83; «A dupla verdade traduz a dificuldade de admitir uma verdade que é vida e que é histórica.» FM 86/87; «A história da razão, no mundo ocidental, esteve estreitamente associada à laicização da razão, que teve tendência para anular a própria história.» FM 83/84 Tendências cruzadas acerca da razão: «Toda a razão tende a ser universal, mas cada grupo tende a apossar-se dela.» FM 86/87; «Ou se alarga o sentido de razão ou ficamos com a oposição do racional ao irracional.» FM 86/87; A razão em relação com o amor: «O amor cria a razão, a hierarquização axiológica.» FM 86/87; «A razão deve limitar-se por amor; quando assim se limita, não se limita.» FM 86/87 A razão admite diferenças: «Há três considerações diferentes de razão: a razão científica, a razão dialéctica e a razão mística. A primeira é horizontal, a segunda é em espiral, e a terceira é vertical.» FM 86/87 Historicidade da filosofia Historicidade, uma propriedade essencial da filosofia: «A historicidade é co-natural à filosofia.» FM 82/83; «Filosofia é história da filosofia.» FM 82/83; «Não há filosofia de direito; há filosofia de facto. A filosofia não é aquilo que ela deve ser, mas aquilo que ela foi e aquilo que ela é capaz de ser.» FM 82/83; «Se a realidade é mutável, a filosofia é mutável.» FM 85/86; «A historicidade faz parte da definição de filosofia.» FM 86/87 A filosofia em oposição à ciência, quanto à respectiva historicidade: «Se a historicidade é inerente à filosofia, tal não é óbvio para a ciência, embora seja mais fácil fazer uma história da ciência. A filosofia não prescinde do passado; a ciência vive renegando o passado.» FM 82/83; «Enquanto o cientista é muitas vezes insensível à historicidade, esta é essencial ao filósofo.» FM 83/84; «A historicidade é constitutiva da filosofia, mas talvez não seja, da ciência.» FM 83/84; «À filosofia é intrínseca a ideia de tradição, de historicidade; à ciência, não.» FM 85/86; «Todo o saber é insensível à história, o que não significa que o saber não seja histórico.» FM 86/87; «Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido.» FM 98/99 A questão do reconhecimento da historicidade da filosofia: «Por que é que não se discutiu durante tanto tempo o problema da historicidade da filosofia? Por causa do prestígio da filosofia grega, aliás pouco sensível à história.» FM 86/87; «A filosofia é considerada histórica ou não, consoante o sentido do nosso agir e conhecer.» FM 86/87; «Sem a vivência do tempo, da nossa unidade e da nossa diferença, não entendemos a história da filosofia, nem nos apercebemos de que a filosofia é estruturalmente histórica.» FM 98/99 História da filosofia, mas não cronológica A filosofia tem o seu próprio tempo: «A filosofia cria o seu próprio tempo, a sua própria história.» FM 78/79; «Fazer história da filosofia é criar um tempo 17

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. filosófico» FM 82/83; «Fazer filosofia é criar tempo, é encontrar o passado e apontar para o futuro.» FM 98/99 A história cronológica da filosofia não é a história do tempo próprio da filosofia: «Uma história cronológica da filosofia pode ter uma configuração completamente diferente de uma história em que a filosofia cria o seu próprio tempo.» FM 78/79; «A seriação cronológica dos filósofos não corresponde, não coincide com as respectivas inter-influências.» FM 82/83; «Em filosofia, não há anacronismo.» FM 98/99 A história da filosofia, como hermenêutica: «A história da filosofia é depoimento sobre a idêntica e perene filosofia.» FM 82/83; «É um facto que a história da filosofia tem sido um comentário à filosofia grega.» FM 82/83; «É um facto que a filosofia medieval é uma exegese da filosofia antiga.» FM 82/83 Em questão, os critérios de organização para uma história não cronológica da filosofia: «Em filosofia, é discutível o modelo heideggeriano de progresso, segundo o qual o progresso está no desvelamento do ser encoberto pela ciência; é talvez preferível o critério da grandeza do mundo construído pelo filósofo: quanto maior é o mundo tanto mais progressivo ele é.» FM 83/84 Exemplos: «O mundo de Parménides é muito mais excessivo do que o de muitos filósofos contemporâneos; estes passam depressa.» FM 83/84; «Por ser uma época de excesso, a Idade Média estava fadada para ser uma época de interpelação.» FM 86/87

A cultura ocidental: entre o gnosticismo e o cristianismo «Não há incontornáveis nem irrecusáveis nas opções de cultura, que se manifestam na cultura ocidental.» FM 98/99 O gnosticismo ocidental Uma interpretação alargada da gnose A cultura ocidental, uma cultura gnóstica: «A gnose é um dos temas fundamentais, mais firmes e mais cíclicos da cultura ocidental.» FM 86/87; «A racionalidade ocidental é gnóstica; é uma racionalidade para resolver o problema do mal.» FM 98/99; «A cultura ocidental exprime, através dos mitos, da literatura e da ciência, o espanto perante o excesso do mal.» FM 98/99 O sentido da gnose: «A gnose é uma das grandes expressões da interpretação da cultura como libertação, salvação: de quê? Da diversidade, do tempo.» FM 98/99; «A gnose é uma tentativa de resolver o problema da vida por meio do conhecimento.» FM 86/87; «A gnose é uma tentativa de superar o homem, para o homem que não gosta de ser homem.» FM 86/87; «A gnose é inimiga do plural e do outro.» FM 98/99 Características da gnose: «Em princípio, o gnosticismo é racionalista.» FM 82/83; «A razão da gnose é fechada, automática, não tem em conta os valores da pessoa.» FM 86/87; «A gnose admitiu sempre certo sentido de revelação, automática, diferente da graça.» FM 98/99; «A gnose parece voltar-se para a transcendência, mas queda-se numa imanência.» FM 98/99; «Características do saber gnóstico são a instantaneidade e a transparência.» FM 98/99 Factores históricos 18

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Origens da gnose: «A gnose é anterior ao helenismo e ao cristianismo.» FM 98/99; «O judaísmo favoreceu mais a gnose do que o cristianismo, nomeadamente, através do livro da Sabedoria.» FM 98/99 Uma forte aliança entre gnosticismo e maniqueísmo: «A gnose histórica, que apareceu com o maniqueísmo, assenta nos princípios absolutos do bem e do mal, e identifica o mal com a matéria.» FM 82/83; «A gnose e o maniqueísmo são os grandes inimigos da cultura ocidental.» FM 83/84; «Há grandes afinidades entre o gnosticismo e o maniqueísmo, como o dualismo, o elitismo, e o ascetismo ou, em sentido oposto, a corrupção moral, motivados quer um quer outra pelo desprezo da matéria.» FM 86/87; «A gnose pagã e o maniqueísmo constituem uma ontologização das nossas vivências psicológicas do mal.» FM 98/99 A gnose em oposição ao cristianismo: «Os gnósticos não podiam aceitar a ideia de um Deus incarnado.» FM 82/83; «A gnose promove a conversão a si mesmo e a eliminação de si; o cristianismo privilegia a conversão do outro, em direcção ao outro e por meio do outro.» FM 98/99 A gnose no cristianismo ou a existência de uma gnose cristã: «O gnosticismo cristão, apesar do seu racionalismo, desenvolveu a influência da fé.» FM 82/83; «Elemento fundamental da gnose cristã é a introdução da fé.» FM 98/99; «É significativo o aparecimento de uma gnose cristã, compatível com uma razão personificada, detentora de vontade.» FM 86/87; «Por que é que o cristianismo quis ser gnóstico e há uma gnose cristã? Há dois factores a considerar: a formação cultural grega dos cristãos cultos; os livros doutrinais do Antigo Testamento, que favorecem a ética e o conhecimento.» FM 98/99; «Na gnose cristã, quanto mais se procura conhecer Deus, mais Deus se esconde.» FM 98/99 Expressões de gnose Na sociedade: «A sociedade ocidental é profundamente maniqueísta e gnóstica: a realidade é má; a vida é complicada; reconhecer os outros é difícil; os outros são o inferno. O que há a fazer é rejeitar o diverso e entrar numa unidade indiferenciada.» FM 95/96; «Todas as expressões, que defendem que a acção do homem é um domínio sobre a natureza, são expressões de gnose.» FM 78/79 Na cultura filosófica: «O grego filosofava pelo escândalo negativo perante o mal, o diverso, o múltiplo.» FM 83/84; «A diferença espanta.» FM 98/99; «O espanto do mal motivou a filosofia grega. A filosofia surgiu então como pedagogia de libertação do mal, do movimento, da matéria, do amor. Também a filosofia cristã teve esta tendência, através do sentido soteriológico, no qual Cristo aparece principalmente como redentor.» FM 83/84; «A filosofia ocidental é uma filosofia de redenção, gnóstica, que influenciou o cristianismo.» FM 98/99; «Já a filosofia grega era uma filosofia de salvação.» FM 86/87; «A filosofia antiga, caracterizada pela atracção da unidade e pela falta de sentido positivo do diverso, é profundamente soteriológica.» FM 87/88; «O estoicismo é uma espécie de gnosticismo: o Logos é salvador e a salvação realiza-se pelo conhecimento.» FM 98/99; «O idealismo alemão é a expressão mais completa da gnose.» FM 82/83; «A filosofia idealista é uma gnose, procurando evitar interferências transcendentes e afectivas.» FM 86/87; «Toda a cultura ocidental, científica e filosófica, é gnóstica, preconizando a redenção através do saber, uma redenção automática.» FM 98/99 Na cultura científica: «Porquê a tendência da cultura ocidental para a sua própria interpretação cientificista? Porquê a atracção do saber quantitativo? Por causa de certo maniqueísmo inerente à busca de certeza, de transparência.» FM 98/99; «A 19

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. ciência ocidental é ainda uma expressão da cultura de redenção, comum ao platonismo, ao maniqueísmo e ao gnosticismo.» FM 98/99; «A psicanálise não é uma expressão gnóstica?» FM 98/99; «Nós não vemos a ciência como ciência, nós vemos a ciência como o necessário incontornável da realização soteriológica da nossa vida.» FM 98/99 Temas gnósticos A luta: «Toda a luta de contrários não é uma gnose?» FM 82/83; «A cultura ocidental é constitutivamente beligerante.» FM 86/87; «Quando nos relacionamos uns com os outros, ou é para os reduzir ao mesmo ou é para os liquidar.» FM 95/96; «O entendimento da diferença em termos de luta de contrários é uma expressão da opção gnóstica da nossa cultura.» FM 98/99 A salvação: «A tendência nominalista favoreceu sempre uma salvação pela linguagem.» FM 83/84; «A gnose é uma atitude naturalista e laica de salvação.» FM 86/87; «Para a gnose pagã, a salvação é um processo automático que se segue ao conhecimento; o cristianismo e a gnose cristã requerem a interferência de factores transcendentes para a salvação, como a fé e a graça.» FM 86/87; «A antropomorfização da razão talvez seja ainda um processo soteriológico.» FM 86/87; «Não é claro para mim, em termos culturais, que nós tentemos mais evitar a morte que procurá-la. A filosofia soteriológica pode ser uma procura da morte, como forma de redenção.» FM 98/99; «A grande motivação humana da salvação é mais a libertação da vida do que a superação da morte.» FM 98/99; «Grande parte das teorias da imortalidade promovem a fuga à vida, uma vez que não preconizam a imortalidade individual.» FM 98/99; «O platonismo, o maniqueísmo e o gnosticismo são correntes contra a imortalidade individual, pois consideram a redenção uma integração no universal.» FM 98/99; «A soteriologia que anula o ser humano é própria da filosofia grega e da gnose; a que exalta o ser humano é própria do cristianismo.» FM 98/99 A libertação: «Nós não temos o sentido da liberdade, mas apenas o da libertação.» FM 85/86; «O modelo marxista é o modelo judaico de libertação. Será difícil entender Marx ou Freud sem um enquadramento judaico.» FM 85/86; «O modelo cristão não é um modelo de libertação.» FM 85/86 A filosofia ocidental Uma filosofia da consciência O centramento filosófico da consciência: «A filosofia ocidental tem sido uma filosofia antropocêntrica.» FM 84/85; «A razão da realidade mais não tem sido do que a projecção da consciência humana.» FM 86/87; «A filosofia sempre foi de certo modo uma filosofia do cogito.» FM 98/99; «As filosofias do cogito são filosofias patológicas, porque são sempre filosofias de tempo de crise.» FM 83/84; «O mundo da consciência é o mundo da defesa.» FM 86/87; «A consciência é, todavia, o nosso espelho de valores.» FM 86/87 Uma filosofia da consciência infeliz: «A filosofia ocidental tem vivido predominantemente da consciência, em particular, da consciência infeliz.» FM 84/85; «A consciência, trazendo consigo a pluralidade, é uma consciência infeliz.» FM 98/99; «A filosofia nasceu da consciência infeliz e a consciência infeliz nasceu da sua constitutiva multiplicidade.» FM 98/99 A filosofia da consciência infeliz nasce na Grécia 20

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. A filosofia grega parte da consciência, o que não é o caso na Idade Média: «Os gregos partiram da dualidade da consciência. Se o ponto de partida é já uma dualidade, será difícil ultrapassá-la. Para os medievais, o ponto de partida é um princípio único, o que muda radicalmente o sentido da dualidade.» FM 84/85; «Os gregos nunca ultrapassaram o dualismo, porque partiram da consciência.» FM 86/87; «A cultura grega partiu da dualidade da consciência. É preciso partir de algo mais radical.» FM 86/87; «Na Idade Antiga, o mundo não se distinguia do mundo da consciência; na Idade Média, o homem tem a sua lógica, mas Deus pode ter outra.» FM 86/87; «Na Idade Média, existe algo acima da consciência.» FM 86/87 A filosofia grega visa superar a dualidade da consciência: «Toda a filosofia grega, porventura, não é mais do que uma redução do múltiplo ao uno; é muito mais uma mística do que a filosofia medieval.» FM 95/96; «A filosofia grega e ocidental é uma terapia para ultrapassar a pluralidade e encontrar a unidade irrecusável.» FM 98/99; «A filosofia grega significa o esforço de superar a consciência infeliz.» FM 98/99; «A filosofia grega faz a redução da pluralidade à dualidade; a superação da dualidade é uma superação da filosofia.» FM 98/99; «Toda a filosofia grega é mística. A filosofia grega nunca encontrou razões para existir, isto é, para não ser superada.» FM 98/99; «A mística é uma abdicação perante um dualismo irredutível.» FM 98/99 Antropocentrismo e espiritualismo gregos O centramento do homem: «A filosofia antiga parece ter valorizado o mundo em vez do homem, ou então, no homem, a cabeça (a inteligência), o que pode ser uma forma requintada de perder o homem.» FM 84/85 A consideração e a perda do indivíduo: «Os gregos atenderam ao indivíduo, mas, devido a preconceitos contra a matéria, não puderam salvar epistemologicamente o indivíduo.» FM 85/86; «O indivíduo é aquilo que não se pode conhecer. Para o que não se pode conhecer, não há defesa jurídica possível.» FM 85/86 A preterição da matéria a favor do espírito: «A filosofia grega é um processo de distanciamento da matéria para aproximação do espírito.» FM 95/96; «O grego nunca teve uma filosofia que salvasse o corpo.» FM 98/99; «Na filosofia grega, dá-se a passagem da realidade (physis) para a mente.» FM 98/99 O centramento da razão, ou do intelecto: «A filosofia antiga está toda ela baseada na doutrina das faculdades (o que é começar e ficar no homem), privilegiando o intelecto. Os valores da razão impediam a arbitrariedade humana.» FM 85/86; «O grande modelo da filosofia grega foi o intelecto humano.» FM 86/87; «Na Grécia, a razão era universal, superior ao indivíduo, mas não à humanidade e ao mundo. A comunicação da razão universal com o homem dá-se na sua região superior, racional. Daqui a reduzir a razão universal à razão humana é um passo breve. A antropomorfização da razão e a redução da razão a uma faculdade humana não estão longe.» FM 86/87; «O intelecto universal é aquilo sem o qual toda a filosofia ocidental deixa de ter sentido.» FM 95/96 A redução do ser à mente, ou à consciência Parménides, o pioneiro: «Para Parménides, nós só temos uma certeza: é o ser. E o que é o ser? É o objecto do nosso pensamento e o ideal que temos da realidade.» FM 82/83; «Heraclito viu que o ser tinha uma espécie de sombra, de mistério, o outro do conceito de ser do pensamento.» FM 82/83; «Para Parménides, nós só temos uma coisa de certeza: o ser, que é o objecto do conhecimento e da consciência. Todos os outros, que procuraram ultrapassar Parménides (como Platão e Aristóteles), 21

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. provavelmente não o ultrapassaram, por causa do apego ao objecto da consciência, à certeza, em vez do positivo apego à realidade. A luta contra os sofistas favoreceu a posição de Parménides.» FM 83/84; «O ser de Parménides é o irrecusável no pensar. A filosofia ocidental permaneceu fidelíssima a Parménides.» FM 98/99 Platão, o parricida? Um parricídio linguístico: «Platão viu que não é possível o discurso, não é possível a vida, porque não há plural em Parménides.» FM 82/83; «Se Platão cometeu parricídio, fê-lo talvez apenas linguisticamente.» FM 83/84 Uma acepção apenas lógica de relação: «Os gregos tiveram necessidade de resolver o problema da relação por causa da organização da cidade, mas não ultrapassaram o nível lógico da relação. Veja-se Platão, no Sofista, onde a relação surge ao nível da linguagem, ou Aristóteles, no livro das Categorias, onde a relação surge como o mais débil dos acidentes. Com o cristianismo, a relação passa a ser coessencial a Deus; a relação não é mais vinda de fora, mas é constitutiva.» FM 82/83; «Os gregos ocuparam-se muito do problema da relação, mas da relação apenas lógica. Eles não chegaram à relação ontológica, porque não tinham a noção de subjectividade, de pessoa.» FM 83/84; «A relação lógica ou predicamental tem uma conotação linguística ou mental na filosofia grega.» FM 85/86 Reflexos da filosofia grega na cultura ocidental A ética A ética nos limites do humano: «Toda a ética da virtude é uma ética da honra, do egoísmo, da soberba.» FM 82/83; «A ética socrática é uma ética intelectualista.» FM 85/86; «Quanto à ética, se começarmos no homem e acabarmos nele, ficamos ou no estoicismo ou na guerra. A ética tem sentido, mas não fundada apenas na antropologia.» FM 82/83; «O encanto provocado pelo estoicismo conduziu a uma ética necessitarista, que nada tem a ver com a nossa vida.» FM 98/99 A ética científica: «A tendência da ética ocidental para se constituir como ciência é uma forma de anular a nossa responsabilidade.» FM 82/83; «Na pedagogia e na ética ocidentais, a liberdade é apenas consciência da necessidade.» FM 82/83; «Platão reconheceu que a virtude não é ensinável, mas toda a filosofia ocidental procurou dar-nos uma ética científica. É uma ética científica possível?» FM 82/83; «O grego pretendeu uma ética científica, mas ficou numa estética, porque a unificação não era total.» FM 82/83; «A cultura ética ocidental é, em boa parte, uma cultura estética.» FM 86/87; «Todo o saber ocidental é a procura de uma ética científica.» FM 98/99; «Expressão mais acabada do monopsiquismo na cultura ocidental é a construção de uma ética científica.» FM 98/99; «A bioética é, hoje, expressão de não identidade entre ciência e ética.» FM 98/99 A ciência A ciência unificante: «Quase toda a filosofia, quase toda a ciência tem sido uma actividade unificante, porque a nossa filosofia e a nossa ciência são a filosofia e a ciência gregas.» FM 82/83; «Toda a ciência tem sido um processo de unificação pragmático, mais do que pragmático, terapêutico.» FM 82/83; «A ciência veio resolver, nos gregos, o problema da unidade.» FM 84/85 A ciência, sem o indivíduo: «A ciência prescinde da densidade, do valor do indivíduo.» FM 82/83; «A ciência não cuida do individual.» FM 84/85; A ciência, como absoluto: «Depois de Aristóteles, o homem ocidental fez sempre este raciocínio: ou é ciência ou não vale. A persistência deste raciocínio 22

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. transporta a obsessão pela certeza e a angústia da liberdade.» FM 83/84; «O mundo ocidental tem a mística da razão. Nós investimos na razão com um ímpeto que excede a razão.» FM 82/83; «O Ocidente vive da mística da razão e da ciência.» FM 84/85; «Nós, os ocidentais, temos a mística da razão.» FM 86/87; «Só se entende através da ciência; nós só queremos entender através da ciência, o que é uma opção de cultura.» FM 98/99 A mística Uma redução à unidade: «A mística é uma espécie de diluição do diverso no uno.» FM 86/87; «A mística ainda é a expressão da atracção da unidade.» FM 86/87; «A tendência gnóstico-maniqueísta favorece a mística.» FM 98/99; «A visão mística anula o movimento do processo cognoscitivo humano.» FM 86/87; «A superação da razão e do diverso é um condimento da mística.» FM 98/99; «A mística é um processo de integração na unidade.» FM 98/99 A mística é solidária com a filosofia: «Só uma razão artificializada opõe filosofia e mística. Filosofia e mística são fenómenos de elite; quase sempre a mística acompanha a filosofia.» FM 87/88; «A filosofia dá-se melhor com a mística do que com a religião.» FM 98/99 A mística não prescinde da linguagem: «O ser é aquilo que pode ser dito; o que está para lá, como é que podemos falar dele? Com o melhor que temos (Platão). O místico não é arbitrário.» FM 86/87; «A mística é de uma profunda discursividade.» FM 87/88 A mística procede da razão: «A mística é uma exigência do próprio plano mental.» FM 86/87; «A mística chama a atenção para a complexidade da razão.» 87/88; «A mística aparece sempre no percurso de dilucidação da razão.» FM 87/88; «A mística pode ser o resultado da especulação, mas é também uma atitude de vida.» FM 98/99 A razão mística: «Há uma autêntica mística intelectual na Idade Média (Stº. Agostinho, Stº. Anselmo, Escola de S. Vítor).» FM 86/87; «A razão mística medieval é menos mística e mais intelectual do que a grega.» FM 86/87; «A razão mística medieval é resultante da razão dialéctica. A dialéctica permite a afirmação da transcendência, através da valorização das etapas do ser. A mística nunca perde o sentido da diferença, da consciência; não anula o tempo, embora supere o tempo.» FM 86/87; «A mística procura o sentido de uma racionalidade vertical.» FM 98/99 A mística difere da contemplação: «Não há que confundir mística e contemplação, embora a mística tenda a desenvolver a contemplação.» FM 98/99 A mística afectiva: «O cepticismo metafísico do séc. XIV, que valoriza o indivíduo, o afecto, a acção e a contemplação, promove uma mística afectiva.» FM 98/99 A religião em favor ou em desfavor da mística? «Em princípio, uma religião revelada, ou de inspiração, favorece a mística.» FM 98/99; «Nas religiões associadas ao poder, os místicos sempre foram seres muito incómodos, com pouca oportunidade de expressão.» FM 98/99 A mística é incomunicável, mas não esotérica: «Não há mística sem ser uma experiência profunda de cada um.» FM 98/99; «A mística nunca foi esotérica. A mística talvez seja a expressão menos esotérica, menos secretista, que há.» FM 98/99 A grande viragem histórica

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Da filosofia antiga para a moderna-medieval A modernidade da Idade Média: «Nós vamos estudar a Idade Média porque estamos dentro dela.» FM 98/99; «Nós somos muito mais filhos da Idade Média do que da Idade Antiga.» FM 98/99 A unidade da filosofia medieval e moderna: «Há dois grandes autores a ler, que são Platão e Kant: Platão, um antigo; Kant, um moderno, um medieval, um cristão e um contemporâneo.» FM 83/84; «Quase tudo o que está na filosofia moderna, já estava mais ou menos explicitamente na filosofia medieval.» FM 83/84; «Sem o cepticismo tematizado do séc. XIV, não seriam compreensíveis os irracionalismos e os racionalismos modernos, nem o maquiavelismo.» FM 86/87; «É muito difícil compreender Kant, o maquiavelismo e o liberalismo moderno, sem o séc. XIV.» FM 87/88; «Não obstante a discordância de princípio com a divisão da história da filosofia em épocas, é preferível a divisão em duas épocas, antiga e moderna, marcada esta pelo legado bíblico-cristão, à divisão em três épocas, antiga, medieval e moderna.» FM 98/99 Novidades filosóficas da Idade Média Novos focos temáticos, como a existência, a liberdade e outros: «A filosofia medieval foi marcada por dois horizontes cristãos: o da existência e o da liberdade.» FM 82/83; «Em Aristóteles, o saber tem de caber na formulação das quatro causas. Aristóteles não formulou a questão: por que é que as coisas existem? Porquê a existência?» FM 82/83; «A filosofia medieval pergunta radicalmente pelo porquê da existência, no horizonte cristão da Criação e da liberdade, o que era impensável na filosofia antiga.» FM 83/84; «A prioridade da existência nunca fora problematizada nem tematizada no mundo grego; o existencialismo tematizou-a apenas ao nível antropológico; o tomismo tematizou-a a um nível mais radical, o ontológico (contra Avicena, para quem a existência era um acidente).» FM 84/85; «Aristóteles preferiu a causalidade formal à material. Depois do cristianismo, pergunta-se pela causa das formas e pela da existência: porquê eu, porquê aqui, porquê agora (Pascal)?» FM 86/87; «S. Tomás de Aquino pôs uma questão que Aristóteles não pôs: a questão da causa da existência das coisas (Criação) e não apenas a da causa do movimento e do alimento das coisas, que eram eternas.» FM 98/99; «As principais novidades das filosofias medievais são acerca do infinito, da matéria, da vontade e da pessoa.» FM 83/84; «Mundo, liberdade e história são as três grandes categorias inovadoras da cultura medieval.» FM 86/87 A Idade Média na génese da ciência moderna: «O homem, como sujeito da ciência, surge positivamente na Idade Média.» FM 83/84; «A Idade Média foi responsável pela desdivinização do saber e do mundo. Os agostinianos foram quem mais contribuiu para isso.» FM 83/84; «Foram factores determinantes, na filosofia medieval, para o desenvolvimento da ciência, a ideia de ímpeto, a ideia de infinito e as condenações do séc. XIII.» FM 86/87; «A ideia de infinito foi fundamental na Idade Média, vindo a estimular o empirismo e o cepticismo.» FM 85/86; «Quais são as grandes teses que vão promover o desenvolvimento da ciência moderna a partir da Idade Média? A valorização da ideia de infinito, da ideia de Deus criador, de vontade, e da ideia de matéria.» FM 98/99; «O cristianismo teve influência na ciência e na técnica modernas, através da tematização da Criação (desdivinização do mundo) e da Redenção (preocupação com o ser humano, antropocentrismo).» FM 98/99; «A

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. questão da liberdade fragilizou imenso o mundo e favoreceu o desenvolvimento da técnica.» FM 98/99 Constantes e variáveis da filosofia ocidental na modernidade A filosofia da consciência A consciência em questão: «Qual é a causa da consciência? Esta questão conduz à queda do antropocentrismo e do antropomorfismo da razão. O homem é descentramento.» FM 86/87; «A consciência é um valor, mas um valor mediador.» FM 86/87 Vias modernas de descentramento do homem e da consciência: «Na filosofia, o cientismo, o positivismo e o estruturalismo constituem formas de fuga ao homem.» FM 85/86; «Com Freud, Nietszche e Marx, o mundo da consciência é já um resultado de…. Por isso, Husserl teve de admitir um mundo vivido anterior ao mundo da consciência. O objecto da consciência não é senão um símbolo do mundo que nos ultrapassa.» FM 83/84; «Nietzsche, Marx e Freud contestam a consciência, como condição primitiva. A consciência é construção, é resultado de…» FM 86/87; «O marxismo e o socialismo indiciam a necessidade de uma ontologia, embora constituam uma convenção em ontologia.» FM 87/88 A relação Variações sociais do problema do uno e do múltiplo: «O problema dos universais, mais do que gnosiológico, é humano (político): os nacionalismos concomitantes com o nominalismo tornaram impossível a ideia de império.» FM 83/84; «O problema do uno e do múltiplo não é só saber donde vem o múltiplo, mas é também o problema do conflito das liberdades, que é a forma como o problema é vivido hoje em dia.» FM 84/85; «A grande questão actual é tornar o mundo possível, isto é, tornar todos compossíveis.» FM 86/87; «A questão dos excluídos é uma consequência da lógica dualista, de exclusão, isto é, da redução de possibilidades a uma bivalência.» FM 98/99 A quase invariável ausência de um sentido profundo de relação: «Houve poucas épocas que interpretaram ontologicamente a categoria da relação. A relação tem sido quase sempre uma relação lógica (mental), do que resulta o maquiavelismo em termos socio-políticos.» FM 82/83; «A filosofia ocidental nunca teve uma categoria para a relação humana.» FM 98/99 O melhor sobre a Idade Média Pensar o melhor sobre a Idade Média, porque… Pensar é valorizar: «O mundo é um sistema orgânico para onde transferimos o que temos de melhor.» FM 85/86; «Toda a interpretação tende para maior e melhor.» FM 86/87; «Procura-se sempre o melhor sentido.» FM 98/99; «Se pensamos, é porque pensamos que vale a pena pensar; quando pensamos, pensamos o melhor possível.» FM 98/99 Um voluntarismo assumido A opção preferencial pela vontade, na questão do primado da inteligência ou da vontade na vida humana: «Tudo o que desencadeia a vida do homem é a vontade, não a inteligência.» FM 82/83; «A vontade não é uma relação a objectos.» FM 82/83; «A vontade é um princípio de iniciativa, ligado à criação.» FM 83/84; «A inteligência 25

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. é passiva e reprodutiva. A inteligência sem vontade reproduz o mundo feito; a inteligência com vontade é capaz de infinitas invenções.» FM 85/86 A vontade no início do saber: «Nós só vemos aquilo que queremos ver. A própria inteligência é uma preferência.» FM 82/83; «Pensar é preferir, é escolher: contra o cepticismo, uma vez que a preocupação com a certeza é substituída pela preocupação com a vivência; contra o fideísmo, uma vez que não é arbitrário o modo como se integra a vivência no todo.» FM 86/87; «A liberdade e a responsabilidade são decisivas no conhecimento: conhecer é sempre preferir, pôr uma coisa à frente da outra. O mundo não é inteligência pura.» FM 82/83; «As próprias leis da lógica requerem o nosso consentimento.» FM 98/99 O primado da vontade sobre a natureza: «A natureza não é princípio de si mesma, é fruto da decisão de uma vontade. Resultando de uma vontade sem limites, a natureza não tem fronteiras.» FM 85/86; «A lei harmonizada com o voluntarismo não é a lei natural.» FM 86/87; «A lei, em princípio, é um antropomorfismo.» FM 86/87; «A arte ou o modelo artístico é uma alternativa ao modelo da lei.» FM 86/87 O voluntarismo medieval O primado da vontade sobre a inteligência: «A filosofia medieval desloca-se do plano da inteligência para o plano da vontade.» FM 83/84; «A Idade Média privilegia, não o homem-inteligência, mas o homem integral, dotado de vontade.» FM 82/83; «O homem é fundamentalmente um ser de vontade.» FM 83/84; «A Idade Média caracteriza-se por um predomínio da vontade, agigantada com a noção de omnipotência, que permitiu relativizar todo o resto, inclusivamente, a ciência.» FM 83/84; «Quando a vontade é infinita, não tem sentido perguntar pelas razões.» FM 83/84; «A Idade Média privilegia o homem, como ser de vontade, e a vontade, como experiência radical da vida humana.» FM 84/85 O voluntarismo medieval em contraposição ao racionalismo grego: «Na Idade Antiga, a liberdade é consciência da necessidade, o mais importante para o homem é a razão para conhecer uma razão absoluta. Na Idade Média, o mais importante para o homem é a vontade para conhecer uma vontade infinita.» FM 82/83; «A inteligência vê o objecto conforme ele é; a vontade ama o objecto conforme ele é. Por isso, o homem não pode chegar a Deus pela inteligência (João Duns Escoto).» FM 84/85; «Os gregos não podiam atribuir um papel relevante à vontade, porque eles não dispunham de um modelo teológico para tal, e porque a vontade aniquilava a ciência e a sua necessidade.» FM 82/83; «Os gregos procuraram evitar a tirania pela submissão do sentimento à razão, porque lhes faltou a ideia de que o que mais caracteriza a vontade é a relação com o outro.» FM 82/83; «Para os gregos, a estreita afinidade entre memória e razão compensava o factor de contingência, que era o sentimento; para os medievais, essa afinidade compensava o factor de arbitrariedade, que era a vontade.» FM 82/83; «Platão acentuou a ideia, Aristóteles, a substância, para evitar o sofista e o tirano; os medievais acentuaram a relação, que não é arbitrária.» FM 85/86; «Se, na Grécia antiga, o homem vive para contemplar, na Idade Média o homem vive para transformar, devido à relevância da vontade e ao modelo criacionista. Por estes motivos, promove-se também a dimensão prática da ciência: uma vez que Deus cria e que o homem cria, a ciência é uma produção humana e trata do possível.» FM 82/83; «A própria Criação tem mais a ver com a vontade do que com a inteligência.» FM 82/83 A irrecusável vontade de saber ou não saber: «O cogito de Stº. Agostinho é o cogito da liberdade: sou livre, mesmo na procura da verdade.» FM 82/83; «O 26

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. medieval sentia a responsabilidade da verdade.» FM 83/84; «Uma tese medieval é que o homem é responsável de saber ou não saber.» FM 86/87; «Na Idade Média, o indivíduo pode querer rejeitar a verdade.» FM 98/99 O deslocamento do mal da inteligência para a vontade: «O mal não é já apenas um erro da inteligência, mas um pecado da vontade.» FM 82/83; «O homem antigo só errava; o medieval pecava.» FM 83/84; «O deslocamento do mal para a vontade humana faz cair o mito no tratamento do mal.» FM 84/85 O primado da lei positiva sobre a lei natural: «O medieval tem um modelo de lei muito mais positivo do que natural.» FM 82/83; «Se a Grécia privilegiava o modelo da lei natural, o modelo da lei positiva torna-se dominante na Idade Média. Dada a influência da Bíblia, note-se que a lei mosaica resulta de uma decisão de Deus.» FM 85/86; «A Idade Média privilegia mais a lei positiva do que a lei natural.» FM 86/87; «A filosofia medieval é mais uma filosofia da lei positiva do que da lei natural.» FM 98/99; «A filosofia medieval é muito mais uma filosofia da cultura do que uma filosofia da natureza.» FM 98/99 O primado da vontade sobre a necessidade na predestinação: «Na predestinação, Deus escolhe o homem: não há destino, há destinação.» FM 85/86 Um anti-necessitarismo assumido Valores anti-necessitaristas: «Os três grandes erros do necessitarismo são três negações: a da liberdade, a da historicidade e a do indivíduo.» FM 98/99 Exigências anti-necessitaristas, na Idade Média inclusive A transcendência divina, ou a negação do panteísmo: «A cosmologia grega é panteísta, incompatível com a responsabilidade.» FM 85/86; «Stº. Agostinho chegou a aderir à alma do mundo, mas viu depois que era a forma de estabelecer o fatalismo.» FM 83/84; «Se Deus não for transcendente, o mundo e aquilo que nele existe é necessário. É porque Deus é transcendente e não precisa da Criação que o homem pode ser livre.» FM 98/99 A infinitude do Criador: «Quem é capaz de criar? Deus, porque só Ele pode percorrer a distância do não-ser ao ser (S. Tomás de Aquino); porque só Ele pode produzir infinitos mundos, e não apenas o mundo (João Duns Escoto). Se apenas pudesse produzir o mundo, tudo o que nele existisse seria necessário e o homem não seria livre.» FM 78/79 A mutabilidade em Deus: «Nós não podemos pensar o fixo, o estático, embora possamos construir o estático. A mutabilidade de Deus é compatível com a mutabilidade do homem. Um Deus paralisado seria um ídolo.» FM 78/79; «A ideia de imutabilidade perde muito peso na Idade Média: a imutabilidade colide com a misericórdia em Deus.» FM 86/87; «A própria Trindade não é mais do que a expressão do dinamismo de Deus.» FM 78/79; «O Deus cristão revela-se historicamente.» FM 83/84 O anti-necessitarismo da filosofia medieval Em confronto com o necessitarismo da filosofia grega: «A filosofia grega foi expressão de liberdade relativamente à tragédia grega, expressão do fatalismo irracional do destino. Todavia, a filosofia grega instituiu o determinismo da ciência.» FM 84/85; «A filosofia grega procurou a racionalidade e substituiu o determinismo irracional do destino pelo determinismo racional.» FM 85/86; «Uma filosofia marcada pelo primado da inteligência é determinista.» FM 83/84; «O grego preocupou-se menos com a liberdade do que com a descoberta de leis racionais deterministas, 27

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. impondo à realidade a grelha da ciência.» FM 85/86; «A Idade Antiga opunha ao fatalismo do acaso, o determinismo científico; a Idade Média opõe ao fatalismo da ciência do mundo (astrologia), a liberdade.» FM 98/99; «A razão, na Idade Antiga, é mais imanentista e mais cosmocêntrica do que na Idade Média. Em contrapartida, a razão medieval é mais transcendentalista e mais antropocêntrica do que a razão antiga, porque o mundo estava em função do homem.» FM 86/87; «Na Idade Média, o mundo é resultado da vontade de Deus; tem, por isso, menos consistência ontológica e menos estabilidade do que na Idade Antiga; a razão deixa de ser autónoma e inerente ao mundo; a natureza torna-se símbolo, expressão de…» FM 86/87 Apesar do necessitarismo da filosofia árabe: «O que falta à filosofia árabe é a dimensão da historicidade.» FM 82/83; «As grandes teses cristãs, sobre a Criação e a liberdade, estão presentes na filosofia árabe, mas um fatalismo de cariz árabe associou-se facilmente ao necessitarismo grego.» FM 82/83; «A interpretação fundamental da filosofia grega pelos árabes, em relação com o Alcorão, é necessitarista.» FM 98/99 Aspectos do contingentismo medieval, de inspiração bíblica A relativização da lógica: «A mundividência medieval está muito mais ligada ao facto, ao contingente, do que ao necessário.» FM 82/83; «Não obstante a Bíblia ser palavra revelada, palavra contingente, a lógica era útil para deduzir as consequências.» FM 82/83; «O mundo da Bíblia é o mundo da Criação, do diálogo, da inspiração. Daí a natureza condicional da lógica.» FM 83/84; «A Idade Média contribuiu decisivamente para a formalização e a autonomização da lógica, privilegiando a lógica dialéctica de Aristóteles, relativamente à lógica demonstrativa.» FM 83/84; «A lógica de Aristóteles foi profundamente afectada pela sua metafísica necessitarista, incompatível com a metafísica contingentista cristã.» FM 83/84; «A lógica de Aristóteles, próxima de uma metafísica, porque parte de premissas necessárias, é incompatível com a mundividência cristã, no âmbito da qual Criação e Redenção são contingentes.» FM 86/87; «Uma vez que quase sempre só se conhece aquilo que se quer, por que é que os medievais (até ao séc.XII) só conheceram duas obras de Aristóteles? Porque eles não precisavam tanto de conteúdo quanto da forma que a lógica de Aristóteles fornecia.» FM 83/84; «Uma transcendência pessoal, não só inteligência como vontade, não apenas una como ternária, afectiva e providencialista, quebra os quadros da lógica.» FM 86/87 Um empirismo sadio: «Para os medievais, em virtude da noção de Criação, o mundo é um dado a olhar, não a construir ou a deduzir.» FM 82/83; «Como o homem não criou a realidade, há que abrir os olhos e saber como ela é.» FM 82/83; «O mundo não é construção humana, é criação de Deus: para conhecê-lo, há que olhar para ele.» FM 82/83 A conquista da liberdade humana ao mundo: «O homem medieval levou até às últimas consequências a ideia de liberdade; daí, não aceitar o determinismo da astrologia. Era preciso dissociar o homem do mundo, para salvaguardar o próprio homem.» FM 78/79; «A Idade Média não desenvolveu as ciências do quadrivium, isto é, as ciências matemáticas susceptíveis de prover à inteligibilidade do mundo, porque foi predominantemente antropocêntrica.» FM 78/79; «Na Alta Idade Média, a ciência não teve um desenvolvimento nem profissional nem autónomo: porquê? Porque a vontade tinha prioridade sobre a inteligência.» FM 82/83; «Os gregos defenderam que a liberdade é uma conquista da racionalidade; os medievais conquistaram a liberdade 28

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. à racionalidade.» FM 82/83; «Na filosofia medieval, a liberdade humana foi mais conquistada ao mundo do que aos outros (que não são o demónio).» FM 84/85 O sentido do saber A instrumentalidade da ciência: «A ciência é uma linguagem instrumental.» FM 83/84; «A ciência instrumentalizada é a ciência que se faz, não a ciência que se descobre (como no mundo antigo).» FM 83/84; «A relação do homem com o real passa muito pela operacionalidade; o homem é também um artífice: a ciência serve esta função.» FM 86/87 A instrumentalização da ciência na Idade Média: «Perante a ciência, o medieval tinha uma atitude pragmática: a ciência era o que era, isto é, um facto, não aquilo que deve ser (um ideal), nem aquilo que tem de ser (um a priori necessitante).» FM 82/83; «Os medievais instrumentalizaram a ciência, sem terem tematizado explicitamente o aspecto da historicidade da ciência.» FM 83/84; «Os medievais foram muito mais pragmáticos do que nós a respeito da ciência. A ciência não era o absoluto.» FM 98/99 O saber em função da vida Acima do saber, o homem: «O homem não se reduz ao seu saber, está sempre acima dele.» FM 82/83 O saber em função da vida, na Idade Média: «A Idade Média sabia para viver, não vivia para saber. Tendencialmente, a Idade Média toma o saber em função da vida, embora não exista uma relação unívoca entre a vida e o saber. O homem medieval dificilmente aceitava princípios de vida que favorecessem a profissionalização intelectual.» FM 82/83; «Na Idade Média, o saber não é um fim em si; não há que erigir monumentos ao saber, há que saber em função da vida; não há profissionais da filosofia nem da ciência.» FM 82/83; «O antigo e o contemporâneo educam para o saber; o medieval não educa para o saber, sabe para viver.» FM 83/84; «O homem grego ajustava-se à cultura, como a um ideal; o homem medieval faz a cultura ajustar-se ao homem.» FM 83/84; «Pertinentemente, o medieval foi exigente com a razão, porque acreditava que a vida humana tinha sentido.» FM 86/87; «Os medievais nunca identificaram a ciência com a vida e a realidade.» FM 98/99 O saber em função da vida, na Idade Média, é uma hermenêutica: «Os textos medievais são expressão de uma vida; são obras de carácter exegético e ético.» FM 97/98; «Para os medievais, o saber era uma hermenêutica.» FM 98/99; «Na Idade Média, a lógica cede prioridade à hermenêutica, para desvendar os mistérios do mundo e do Criador do mundo.» FM 98/99; «Elementos essenciais da hermenêutica medieval são a comunidade e a tradição. O medieval foi sempre relutante à aceitação de um sentido único.» FM 98/99; «Para Stº. Agostinho, o critério de sentido é a generosidade (caridade): generosidade do texto (o texto é aquilo que ele pode dar) ou sentido do texto conforme a generosidade?» FM 98/99 O saber prático O valor da transformação do homem: «O maior legado do Ocidente é a possibilidade de transformação do homem.» FM 83/84 A opção preferencial por uma educação para a vontade a uma educação para a inteligência: «Educar para a vontade ou para a inteligência? Educar para a vontade é educar para a sabedoria, que não tem a infalibilidade da ciência, porque conta com o factor da liberdade. Nós somos, porém, mais educados para a ciência, isto é, para a 29

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. inteligência» FM 82/83; «Educar o ser de vontade é educar para ser livre; educar o ser de inteligência é educar para um necessitarismo culto.» FM 83/84; «Educar para a inteligência é educar para os quadros estabelecidos; educar para a vontade é educar ou para o individualismo ou para a comunidade.» FM 83/84 Uma ética para a infinitude humana: «A ética da acção humana deve ser procurada na intencionalidade da vida humana.» FM 83/84; «Contra a ética do limite, a ética do risco.» FM 85/86; «A ética é uma colaboração na irradiação do real.» FM 86/87 O saber medieval é um saber prático: «O saber medieval tem um cariz essencialmente ético, porque trata da vida.» FM 82/83; «Na Idade Média, a ética sobrepõe-se à política. É com algum artificialismo que se isola e realça o pensamento político (respeitante aos regimes); mais relevante era a questão da organização da sociedade.» FM 85/86; «O saber não se caracterizava pela autonomia. Daí que as referências ao saber não venham em obras especializadas ou com uma finalidade teórica, mas em obras com carácter prático.» FM 83/84; «A filosofia medieval era uma filosofia tendendialmente prática.» FM 83/84 Um humanismo adverso a limites A infinitude humana: «O homem é um princípio excessivo, que está sempre a ultrapassar-se.» FM 84/85; «O espírito é o impulso que se excede constantemente.» FM 84/85; «A vontade em si mesma não tem limites, nem mesmo os limites da inteligência.» FM 85/86; «Se o indivíduo é cognoscível, trata-se de um conhecimento infinito.» FM 85/86 Um humanismo não antropocêntrico: «O verdadeiro humanismo não é antropocêntrico.» FM 85/86; «O homem é um colaborador.» FM 86/87 O humanismo medieval Um humanismo compatível com o teocentrismo: «O que é que é mais característico da Idade Média? A relação entre Deus e o homem, procurando salvaguardar a liberdade humana, e a relação entre os homens, com um sentido eminentemente comunitário, salvaguardando a liberdade humana.» FM 82/83; «O fim do homem medieval não é a cultura, é Deus, e não um Deus-cultura.» FM 83/84; «Justifica-se alguma negatividade da erudição e da ciência em interpretações medievais, porque a ciência tende sempre a constituir-se em absoluto, substituindo o absoluto.» FM 83/84; «Na Idade Antiga, o modelo da divindade é o homem; na Idade Média, o homem pode ser divinizado, pode ser divinamente adoptado, mas por natureza não é divino.» FM 83/84; «É um preconceito renascentista, que o teocentrismo medieval implique a ausência de humanismo.» FM 84/85; «O homem medieval, mais do que criador, era o cooperador livre de Deus.» FM 85/86; «Na Idade Média, Deus descentrou o homem, abrindo horizonte até ao infinito.» FM 85/86; «O humanismo é consentâneo com a teologia e a cosmologia.» FM 85/86; «O transcendente cristão é providencialista e mais transcendente do que o transcendente nos gregos.» FM 86/87; «Deus, porque é Deus, não é afectado por se aproximar dos homens.» FM 86/87 Alteração das grandes teses antropológicas da filosofia grega Acerca da dualidade corpo-espírito, a relativização do valor espírito e a valorização do corpo: «Há, na filosofia medieval, uma relativização do valor da alma, uma vez que esta deixa de ser, como era para os gregos, de natureza divina.» FM 30

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. 84/85; «No neoplatonismo, havia necessidade de interpor intermediários entre o espírito e a matéria, pois a dignidade do espírito não permitia uma relação directa com a matéria; no cristianismo, a relação pode ser directa porque o próprio Deus assumiu um corpo.» FM 84/85; «A tese da Criação determina tanto uma relativização do valor do espírito como uma valorização do corpo, reforçada esta pela tese da Incarnação.» FM 84/85; «O culto da morte, no cristianismo, está estreitamente associado com a irredutibilidade do corpo humano.» FM 84/85 Acerca da imortalidade da alma, uma maior incerteza: «Para os gregos, o problema da imortalidade da alma está indissociavelmente ligado ao problema da explicação da verdade. Para os medievais, dada a natureza criada da alma, a prova da imortalidade da alma é mais necessária do que para os gregos.» FM 84/85; «A questão da imortalidade era uma questão grega, porque o grego era eternista e via a realidade humana em função da realidade imperecível. Na Idade Média, por influência judaico-cristã, a imortalidade torna-se muito mais frágil, pois era relativa a um ser criado e contingente.» FM 98/99 Interioridade e transcendência A irrecusável interioridade: «Nós só conhecemos pela via interior. A nossa maior exterioridade é o mundo constituído (ideias feitas, preconceitos), que trazemos em nós.» FM 98/99 Uma intencionalidade de transcendência: «Só se conhece a alma, na medida em que se conhece Deus, porque a alma transporta esse excedente.» FM 84/85; «Para o cristianismo, a transcendência radical é Deus; para a maior parte da filosofia, é o mundo.» FM 85/86; «A ideia de mundo funciona frequentemente em substituição da ideia de ser.» FM 86/87; «O homem não é essencialmente subjectivo, mas expressão de ser.» FM 86/87; «O desespero é ausência de risco. O risco não é possível sem uma transcendência positiva.» FM 86/87; «A transcendência é a relação que cada um de nós procura.» FM 98/99 Interioridade e transcendência na Idade Média O sentido da experiência interior: «O medieval tem muito o sentido da experiência, mas da experiência interna do homem. Daí a emergência dos grandes místicos.» FM 83/84; «A grande experiência humana é a experiência espiritual, da qual a experiência sensível não é senão limitação.» FM 83/84; «A filosofia medieval é uma filosofia de experiência, inclusivamente, de experiência do transcendente.» FM 86/87 Interioridade e transcendência em Stº. Agostinho A irredutibilidade do espírito: «A relativização do corpo, em Stº. Agostinho, é uma forma de superação da dualidade de corpo e espírito.» FM 84/85; «Stº. Agostinho vive a experiência da libertação do que é exterior, da linguagem, de certo modo, também do corpo (lei da concupiscência), mas reconheceu que não se podia libertar do próprio espírito.» FM 85/86 A descoberta da subjectividade: «Só a partir de Stº. Agostinho, se passa a poder falar de subjectividade sem a reduzir ao subjectivismo.» FM 83/84; «Stº. Agostinho descobriu a subjectividade. Mas o sujeito não é arbitrário; no sujeito, Stº. Agostinho descobriu o irrecusável.» FM 98/99

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. A superação do modelo das faculdades: «Para Stº. Agostinho, as faculdades assentam na vida unitária, que é a vida do amor.» FM 83/84; «A diferença das faculdades não é radical, em Stº. Agostinho, mas expressão de amor.» FM 84/85 A intencionalidade de transcendência: «Os gregos exortavam: conhece-te a ti mesmo, isto é, conhece os teus limites, a tua medida, o teu justo meio! Os medievais exortam, Stº. Agostinho em especial: conhece-te a ti mesmo, isto é, conhece o que há em ti de melhor, o que em ti não é teu.» FM 85/86; «Em Stº. Agostinho, a máxima “conhece-te a ti mesmo” é uma exortação ao conhecimento em profundidade, ao conhecimento da relação, do encontro com a transcendência.» FM 85/86; «Stº. Agostinho vê o homem como vontade infinita, ou o enfrentamento do homem até ao infinito.» FM 85/86; «Stº. Agostinho tem um sentido ilimitado de experiência.» FM 87/88; «O pensamento agostiniano é profundamente interiorista e, ao mesmo tempo, comunitário. Stº. Agostinho tem uma vivência muito psicológica de Deus, ausente nos gregos e no Pseudo-Dionísio.» FM 87/88; «Há uma transcendência que exceda o próprio processo? Stº. Agostinho apreendeu a diferença entre o interior e a transcendência. Sinal do que é interior é a transformação em objecto.» FM 98/99; «A iluminação agostiniana é uma inteligência não objectivante.» FM 98/99; «A dialéctica permite a afirmação da transcendência, através da valorização das etapas do ser.» FM 86/87; «A transcendência, na Grécia antiga, era uma transcendência idealizada, que correspondia à projecção dos valores da cidade; a transcendência, na Idade Média, é o irrecusável descoberto na vida do indivíduo, o outro descoberto na dimensão da inter-subjectividade.» FM 85/86 A irredutibilidade do indivíduo Em filosofia: «Em filosofia, o irredutível qualitativo deve ser o indivíduo.» FM 82/83; «A realidade é irredutível à unidade: ou fazemos filosofia, que é uma vivência do múltiplo, ou fazemos a alienação da realidade.» FM 82/83 Na filosofia medieval: «Na Idade Média, sobressai a importância da qualidade, não apenas quanto à espécie, mas também quanto ao indivíduo. A filosofia medieval valoriza o qualitativo individual.» FM 83/84; «Os medievais preservaram não só o qualitativo da espécie, mas também o qualitativo do indivíduo.» FM 98/99; «Na filosofia grega, a espécie sobrepõe-se ao indivíduo; na filosofia cristã, a espécie subordina-se ao indivíduo.» FM 85/86; «A filosofia grega dá prioridade à essência relativamente ao indivíduo; a filosofia medieval dá prioridade ao indivíduo relativamente à essência.» FM 98/99; «O cristianismo descentrou o homem da sua razão, ao mesmo tempo que insistiu muito na razão individual.» FM 86/87; «A Idade Média promoveu o indivíduo relativamente à essência universal, mas, porque era profundamente comunitária, não se contentou com o indivíduo.» FM 83/84 A relação: o que faz o indivíduo ser pessoa A desvalorização da autonomia: «A vida é quebra de autonomia.» FM 82/83; «A vontade não é autonomia.» FM 85/86; «Autonomizar-se é perder o contacto com a realidade.» FM 86/87; «Toda a filosofia individualista é filosofia de crise: o homem sente-se perdido e o refúgio é o interior de si próprio.» FM 78/79 A realização do indivíduo como pessoa: «O indivíduo é um artifício, pois, mesmo quando pensado é relacionado. O próprio pensar é relação.» FM 78/79; «Tem memória, quem tem coração, quem é capaz de se relacionar com os outros em comunidade.» FM 82/83; «O homem não é nem o colectivo nem o individual, é a pessoa.» FM 82/83; «O homem é radicalmente individual; por isso, é radicalmente 32

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. comunitário.» FM 78/79; «A pessoa só é pessoa em relação com os outros.» FM 78/79; «A relação do homem não é uma relação ao saber, à verdade, mas uma relação à pessoa.» FM 82/83; «As pessoas são uma expressão comunitária.» FM 83/84 A realização do indivíduo como pessoa, na filosofia medieval: «O homem medieval estava muito mais virado para a filosofia, para a sabedoria, do que para a ciência, porque acreditava na irredutibilidade qualitativa do indivíduo. Como é que o medieval vive essa irredutibilidade do indivíduo? Na comunidade. Onde há indivíduo e relação, há pessoa.» FM 82/83; «Na Idade Média, a comunidade tinha primado sobre o indivíduo.» FM 98/99; «A categoria da relação, em Aristóteles, era apenas para ser aplicada aos objectos mentais da ciência. Ora, o indivíduo não é um objecto mental. Os medievais viram que a relação aristotélica não se aplicava às pessoas na Trindade. Eles precisavam de uma relação ontológica.» FM 83/84; «A categoria da relação, essencial à noção de pessoa, perdeu-se no séc. XIV e ainda não fomos capazes de recuperá-la.» FM 83/84 A relação de colaboração: «A vontade tende para outra vontade.» FM 85/86; «A única barreira que a vontade encontra é outra vontade.» FM 85/86; «É possível a fusão das vontades, pela colaboração, sem a redução delas.» FM 85/86; «A minha liberdade quer a liberdade do outro.» FM 85/86; «A minha liberdade é tanto maior quanto maior for a liberdade do outro.» FM 85/86; «A responsabilidade só se aguenta compartilhada.» FM 85/86; «A responsabilidade é sempre uma responsabilidade partilhada.» FM 86/87; «O homem é um colaborador.» FM 86/87; «A ideia de partilha e de colaboração é essencial na Idade Média.» FM 86/87 A comunidade A questão prévia: «Por que é que o homem vive em sociedade?» FM 78/79; «O que é que faz com que o homem viva em sociedade?» A hipótese rejeitada: «O homem vive em sociedade porque o homem é inimigo do seu semelhante e faz um pacto com ele para sobreviver.» FM 78/79 A resposta preferida: «O homem vive em sociedade porque é constitutivo do homem querer viver em comunidade, como querer jogar um jogo.» FM 78/79; «Todo o homem tem o sentido de comunidade, embora tenha sido difícil ao homem aprendê-lo.» FM 85/86 O valor da comunidade: «A comunidade é aberta, capaz de irradiação.» FM 82/83; «O que deve ser fim em si próprio é a comunidade.» FM 82/83; «O grego valoriza muito mais a comunidade de ideias; o medieval, muito mais a comunidade de pessoas.» FM 83/84; «Os valores da relação comunitária são os mais determinantes da vida humana.» FM 83/84; «Uma boa instituição não funciona se não for uma instituição comunitária.» FM 83/84; «A função da política é organizar minimamente a sociedade, para permitir o desenvolvimento de comunidades.» FM 85/86; «A comunidade não é um colectivo sobreposto ao indivíduo, mas o resultado da relação entre os indivíduos.» FM 84/85; «O amor do outro é uma forma de comunidade; o amor de si destrói a comunidade.» FM 84/85; «A comunidade harmoniza o indivíduo com o universal.» FM 87/88 Uma só comunidade ou múltiplas comunidades? «Uma comunidade não se mantém a si mesma; ela exige a alteridade das comunidades.» FM 84/85 A redenção através da comunidade: «O processo de redenção, talvez não o essencial, mas sim o mais urgente, deve desenvolver-se através de uma vida comunitária, de uma descoberta do outro, e não através de alguma forma individualista de auto-domínio, de algum auto-determinismo estrito.» FM 78/79 33

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. As religiões fomentam as comunidades: «Verdadeiro critério de progresso é todo aquele que estimula comunidades. As religiões são o que melhor tem fomentado a vida comunitária.» FM 78/79; «As grandes comunidades mundiais foram sempre de carácter religioso.» FM 85/86 O cristianismo é profundamente comunitário, na Idade Média inclusive: «O que assegurou a perenidade da religião cristã foi o facto de ela se ter transformado em comunidades vivas. As comunidades cristãs são profundamente marcadas pela historicidade.» FM 82/83; «Os dogmas cristãos são formulações tardias de formas de vida. O dogma, pelo seu carácter histórico e espontâneo, nunca apareceu como uma imposição. No cristianismo, há mais excomunhão do que heresia, porque o cristianismo é muito mais uma comunidade do que uma doutrina.» FM 82/83; «A Igreja foi sempre muito mais uma comunidade em marcha do que uma doutrina.» FM 83/84; «A grande unidade que o cristianismo reconhece, é a unidade das relações entre as pessoas.» FM 83/84; «O cristianismo católico vive muito mais de uma interpretação comunitária da Bíblia do que da própria Bíblia; o cristianismo protestante vive sobretudo de uma interpretação literária e individual da Bíblia.» FM 83/84; «A Idade Média, marcada pela religião cristã, é comunitária, mas não colectivista, embora não tenha uma concepção unívoco de comunidade.» FM 84/85; «A Trindade cristã é fonte de inspiração do estilo comunitário de vida.» FM 84/85; «A comunidade cristã é uma relação horizontal, uma relação vertical e uma relação diacrónica.» FM 85/86; «O cristianismo é exequível em comunidade, não em sociedade.» FM 86/87 A comunidade difere da sociedade: «A sociedade é dos cidadãos; a comunidade é dos homens.» FM 82/83; «A comunidade é irredutível à sociedade. A sociedade não se preocupa com o homem, mas apenas com o cidadão, que ela reduz a uma plataforma comum, como seja uma constituição.» FM 85/86; «As sociedades vivem da utopia. As comunidades são profundamente históricas.» FM 85/86; «Todas as sociedades procuram ser utópicas, a-históricas. A comunidade só pode ser histórica.» FM 85/86 A comunidade é essencialmente história: «A comunidade vive da história.» FM 85/86; «Só é possível uma vivência histórica dentro da comunidade.» FM 85/86 O primado da comunidade sobre o saber, na Idade Média: «Como, na Idade Média, o saber estava em função do viver, era mais importante organizar a vida do que o saber. Daí a prioridade da organização comunitária sobre a organização do saber.» FM 83/84; «A escola era constitutiva da cidade grega, mas é possível imaginar uma sociedade medieval sem escola.» FM 83/84 Comunidade e escola A questão prévia: «Nós estamos na escola porque somos racionais? Ou porque somos comunidade? Ou para assegurar a integração social, através de uma profissão?» FM 82/83 A resposta preferida, a favor de um modelo comunitário de escola: «O bom saber surge numa atmosfera comunitária.» FM 83/84 A escola antiga em confronto com a escola medieval: «A escola é um legado da antiga cultura grega. A escola não existe em todas as culturas. A escola grega preparava os homens para serem cidadãos.» FM 82/83; «A escola grega foi muito mais profissional do que vocacional.» FM 82/83; «Na Grécia, aprender era uma técnica individual, na qual a função do outro era apenas pretextual.» FM 82/83; «No mundo antigo, a cultura individualista processa-se pela transformação das ideias; o 34

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. sábio, para se transformar, não precisa de sair das suas próprias portas.» FM 83/84; «O que o homem antigo aprendia, estava virtualmente nele; o que o homem medieval aprendia, aprendia de fora, da relação ao outro.» FM 83/84; «A escola grega era profissionalizante (política); a escola medieval era educativa, promovendo sobretudo o desenvolvimento da comunidade.» FM 83/84 Alguma ambivalência sobre a escola universitária Um modelo comunitário de escola para a universidade: «A vida na universidade não é uma relação ao saber e à verdade, mas uma vida comunitária.» FM 82/83 O modelo profissionalizante de escola na universidade de facto: «Na Idade Média, a nostalgia de Atenas fez vencer o modelo da escola antiga, através da universidade.» FM 82/83; «A nossa escola tem mais a ver com a translatio studiorum do que com a transferência da comunidade.» FM 83/84; «A universidade tem já mais o sentido da função do que da vocação.» FM 83/84; «O ensino universitário não deve ter função, deve ter nível, e, se tiver nível, terá função.» FM 82/83 Reflexos culturais do humanismo medieval Um sentido mitigado de hierarquia: «A Idade Média é menos hierárquica do que se pensa. A nível filosófico, os mais hierarquizadores foram os neoplatónicos. A nível económico-social, é discutível o modelo monista do regime feudal.» FM 78/79; «Na Idade Média, a concepção do mundo é menos hierárquica do que na Idade Antiga, porque é menos qualitativa naquela do que nesta: desaparece a diferença entre mundo sub-lunar e mundo supra-lunar; os anjos podiam ser entendidos como compostos de matéria e forma, logo não eram irredutíveis ao mundo físico.» FM 82/83; «O medieval via o mundo hierarquizado, mas admitindo que os mesmos elementos participam de várias hierarquias.» FM 83/84 O pluralismo: «Desaparece a distinção entre bárbaro e romano, entre bárbaro e cristão, e aparece o homem.» FM 78/79; «O homem medieval fez a síntese humana mais conseguida em toda a História, entre uma enorme variedade de raças e grupos étnicos (romanos, bárbaros, árabes, etc.).» FM 82/83; «A Idade Média é um dos períodos mais complexos da História em termos de geografia humana, marcada pela fusão, pela síntese humana (étnica) e cultural.» FM 82/83; «A Idade Média é um mundo de comunicação.» FM 86/87; «A Idade Média tudo amalgamou; foi extraordinariamente pluralista; tentou a unidade.» FM 86/87; «O medieval é um pluralista; o seu mito fundamental não é a unidade, mas a diversidade.» FM 86/87 A unidade do Ocidente: «A unidade do Ocidente começa na Idade Média, com a assimilação do bárbaro.» FM 82/83; «O homem ocidental começa na Idade Média.» FM 83/84; «O perfil do homem ocidental é medieval.» FM 83/84; «A universidade era para o homo viator, não tinha fronteiras, esboçando desse modo a unidade do mundo europeu.» FM 82/83; «A União Europeia não seria possível, se não fosse a existência de um estilo de vida anterior à formação dos Estados modernos.» FM 97/98 O cristianismo e a cultura ocidental: relação e diferença Interpretando o essencial do cristianismo… «A novidade de Cristo foi fundir os dois primeiros mandamentos.» FM 82/83 «No cristianismo, é essencial o acolhimento do outro.» FM 83/84

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Os modelos bíblicos e a respectiva influência cultural A Aliança: «O modelo bíblico fundamental não é o da Criação, mas o da Aliança.» FM 82/83; «O mais importante do cristianismo talvez não seja nem a Criação nem a Redenção, mas sim a Aliança.» FM 82/83; «O mais específico da mensagem cristã é a Aliança do homem com Deus, à luz da qual se compreende a concepção cristã de Criação, como realização do múltiplo por amor.» FM 82/83; «O pecado é quebra de uma relação inter-subjectiva, quebra de uma relação de amizade, traição ao outro.» FM 82/83; «A culpa é complexo de uma consciência que tem mais a ver consigo própria do que com os outros.» FM 82/83 A Trindade e a Incarnação: «O que é que foi mais decisivo para a cultura ocidental: a Trindade ou a Incarnação? Ao nível dos modelos intelectuais, da especulação filosófica e teológica, a Trindade; em termos de cultura popular, a Incarnação.» FM 98/99 A Criação: «O mais importante do cristianismo talvez não seja a Criação, mas a Criação foi o tema que mais êxito obteve, por ser possível conciliá-la com as quatro causas de Aristóteles e, mais ainda, com o Timeu, de Platão.» FM 82/83; «A Criação é uma tese tipicamente bíblica ou existiu nas grandes tradições? Existiu nas grandes tradições e a Criação bíblica é uma espécie no género da Criação. Podendo corresponder a uma das quatro causas de Aristóteles, a causa eficiente, a categoria da Criação fez a ponte entre a filosofia grega e a filosofia medieval.» FM 83/84; «Não nos deve perturbar o facto de quase todos os textos sobre a Criação serem religiosos. A Criação, sendo uma ideia clara do ponto de vista religioso, é pouco clara do ponto de vista filosófico.» FM 83/84; «A Criação é um modelo de explicação do múltiplo, que valoriza a história e o contingente.» FM 98/99 O cristianismo e a cultura filosófica O cristianismo não é uma filosofia: «A religião cristã não é uma filosofia. Numa cultura, porém, que magnifica a filosofia, é natural considerar a religião uma filosofia. De qualquer modo, a religião ocupa-se de problemas profundamente humanos.» FM 82/83 O cristianismo influenciou a filosofia: «O cristianismo modificou completamente o comportamento humano, pelo que modificou radicalmente a filosofia.» FM 82/83; «O cristianismo influenciou a filosofia: em termos teóricos, através da Trindade, da temporalidade e da Criação; em termos práticos, através da Incarnação.» FM 98/99 O cristianismo em relação com a cultura grega: «A correspondente cristã do intelectualismo grego é uma gnose com dois elementos novos: a fé e a graça.» FM 82/83; «A humildade é apolínea, reconhecendo limites, enquanto a atitude de Prometeu (afim da de Cristo, na apologética antiga) é dionisíaca.» FM 82/83; «Em Platão, a filosofia, a dialéctica, o movimento e o amor são mediações; o cristianismo traz um Deus de amor.» FM 84/85 O cristianismo e a ética O cristianismo não é uma ética: «O cristianismo não é uma ética.» FM 78/79, 82/83; «O cristianismo não é uma ética, mas é uma religião, no sentido em que comporta uma relação do homem com a divindade. O facto religioso está para além da normatividade ética, que tende a subjugar o homem à lei.» FM 83/84; «O cristianismo não é uma ética; é muito mais uma relação pessoal e uma história.» FM 86/87 36

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. O cristianismo teve pouca influência na ética ocidental: «A moral ocidental não é fortemente marcada pelo cristianismo.» FM 83/84; «O mundo ocidental é cristão, mas, na ética, bastante pouco.» FM 86/87; «A ética da mesura e do justo meio é profundamente anti-cristã.» FM 86/87; «A ética mostra que as mundividências grega e cristã são irredutíveis.» FM 86/87; «A ética ocidental, ética das virtudes, teve grande dificuldade de integrar a humildade.» FM 98/99 O cristianismo sobrepõe o amor à ética: «A ética antiga era uma ética das virtudes. Stº. Agostinho diz, porém, que a única virtude é a ordem do amor. O amor é que cria a ordem e não o contrário.» FM 78/79; «Ama e faz o que queres: este é o princípio geral da ética agostiniana. Por isso, não deve falar de uma ética cristã.» FM 83/84; «A caridade significa aquilo que está acima da razão, aquilo que é gratuito.» FM 85/86; «O amor tem prioridade sobre a liberdade.» FM 86/87 O cristianismo e a mística O cristianismo não é uma mística: «O cristianismo não é uma mística, é um processo de incarnação.» FM 78/79, 84/85; «O cristianismo não tem grande propensão para a mística; é a religião do Logos e do Logos incarnado.» FM 87/88; A questão da existência de uma mística cristã: «Em todas as grandes culturas há uma saída mística que implica a diluição do indivíduo no universal. A mística cristã, todavia, tem que integrar o valor da personalidade e ter em conta a inter-subjectividade.» FM 84/85; «Haverá uma mística cristã? A mística é um processo de integração na unidade; a ontologia do cristianismo é uma ontologia da diferença.» FM 98/99; «A falar-se de uma mística cristã, ela valoriza e desenvolve quer a existência humana quer a diferença quer a união ou a comunhão diferencial.» FM 98/99 O cristianismo e o gnosticismo O vigor do anti-gnosticismo no cristianismo medieval: «O medieval trata fundamentalmente de liberdade, não de libertação.» FM 83/84; «As ordens mendicantes são uma reacção organizada contra o maniqueísmo.» FM 84/85; «Dominicanos e franciscanos surgem como reacção ao maniqueísmo dos sécs. XII e XIII.» FM 98/99; «S. Tomás de Aquino, um dominicano, portanto, membro de uma ordem que surge para combater os movimentos gnósticos, defendeu o valor da matéria e do indivíduo, em suma, o valor intrínseco da realidade.» FM 98/99; «Não obstante os surtos gnósticos da Idade Média, esta é dominantemente anti-gnóstica.» FM 98/99; «A razão medieval é uma razão anti-gnóstica.» FM 98/99 Uma interpretação anti-gnóstica do cristianismo, pelo descentramento das ideias de salvação e de redenção: «O cristianismo não é uma redenção e o sofrimento não é necessariamente seu constitutivo.» FM 78/79; «Uma hermenêutica possível do cristianismo é tomá-lo por uma filosofia de salvação, que nos vê como um povo de náufragos, mas não é a única possível.» FM 83/84; «O carácter redentor de Cristo não é estrutural. Cristo é Cristo independentemente do homem ser pecador ou não, mas tem-se interpretado Cristo mais como função do que como pessoa.» FM 83/84 Valores próprios do cristianismo O optimismo: «Uma das expressões culturais mais optimistas é a expressão cristã.» FM 78/79; «O Prometeu cristão é um homem colaborante, não revoltado, mas com um horizonte infinito, que o Prometeu grego não tem.» FM 85/86; «O cepticismo

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. antigo era um cepticismo pessimista, que conduzia à inércia; o cepticismo cristão é um cepticismo optimista, que promove a acção.» FM 87/88 O pluralismo: «O cristianismo é pluralista, é diferencialista.» FM 84/85; «O cristianismo é pluralista.» FM 85/86; «O cristianismo é muito personalista e pluralista.» FM 87/88

Uma filosofia da reciprocidade, ou da generosidade A irrecusável ontologia Porque… «O ser é irrecusável.» FM 85/86; «A irrecusabilidade da consciência é a irrecusabilidade da inteligibilidade do ser.» FM 86/87; «O saber é essencialmente experiência e a grande experiência é a experiência do ser.» FM 98/99 A filosofia e a superação do humano A superação do humano na intencionalidade humana: «Uma das intencionalidades da vida do homem é superar a sua humanidade.» FM 82/83; «Todo o pensamento, ou toda a acção, tende a ultrapassar o homem.» FM 84/85; «O homem age e pensa para sair do homem.» FM 85/86; «Toda a nossa actividade é acto de descentramento do homem.» FM 85/86; «O homem é um processo de desumanização.» FM 86/87; «Nós participamos no desenvolvimento do sentido que nos excede.» FM 98/99 A superação da sensibilidade pelo pensamento: «Na tentativa de superação da sua dimensão humana, limitada, subjectiva, o filósofo ultrapassa os dados da sensibilidade, para pensar uma realidade que transcende a sua dimensão. Esta direcção do pensamento pode levar-nos a conceber o mundo como uma realidade diferente daquela que nos é fornecida pelo conhecimento humano, não sendo este mais do que um dos pontos de vista possíveis de interpretação desse mesmo mundo, e não o único ponto de vista. O mundo aparece assim como uma realidade autónoma, de cujo conhecimento o homem pretende aproximar-se, e não uma gigantesca ampliação da dimensão humana, na qual o homem seria, à maneira grega, um microcosmo.» FM 78/79 A superação do homem pela razão universal: «A filosofia grega é antropomórfica, mas a intencionalidade dela é outra, é encontrar uma razão universal que se sobreponha ao homem.» FM 85/86 A superação do humano na intencionalidade da filosofia: «A filosofia é uma tentativa permanente de pensar o não humano, de ultrapassar o próprio homem.» FM 78/79; «Toda a questão que o homem põe é para ultrapassar o homem.» FM 84/85; «A filosofia apercebeu-se felizmente de que o homem nada é sem o que está para além dele.» FM 84/85; «A análise da acção e do pensamento humanos revela a necessidade de um descentramento do homem.» FM 86/87 O imperativo de dar voz à realidade, ao mundo: «A função do homem, do filósofo, é deixar falar a realidade através dele. Quando o homem não deixa que tal aconteça, é porque quer reduzir a realidade a si próprio.» FM 82/83; «O homem, se constrói o mundo, é porque não é o mundo.» FM 83/84; «O objecto da consciência não é senão um símbolo do mundo que nos ultrapassa.» FM 83/84; «O importante não 38

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. é ser mais homem, mas ser mais realidade.» FM 85/86; «Não me interessa desenvolver aquilo que sou, mas sim aquilo que tudo é.» FM 86/87; «Toda a realidade é um processo de transcendência.» FM 86/87; «O mundo não é a última expressão do real, mas um descentramento do homem; Deus é um descentramento do mundo.» FM 86/87 A intenção de globalidade da filosofia A englobância da filosofia: «A filosofia começa por uma intenção de globalidade. Em filosofia, não queremos ser profissionais, nem especialistas, mas globalistas.» FM 82/83; «A filosofia tem uma vocação englobante.» FM 83/84; «Actividades com sentido de globalidade são a religião, a arte e a filosofia, a qual talvez não atinja o envolvimento quotidiano das outras.» FM 83/84; «A filosofia é um saber unitário, auto-fundante e englobante.» FM 86/87; O mundo da filosofia, o mais universal possível: «Característica do mundo da filosofia é ser o mundo mais universal possível, em extensão e em qualidade.» FM 86/87; «O trabalho de especialização de hoje é uma elaboração não do mundo, mas de um determinado mundo.» FM 82/83; «A especialização é um aprofundamento limitado, não é um aprofundamento radical.» FM 83/84; «A ciência quer apenas um determinado mundo; a filosofia quer o mundo mais pleno possível.» FM 86/87 A universidade tem condições favoráveis para a filosofia: «A universidade tem condições privilegiadas para a filosofia, porque ela engloba o mundo do passado (bibliotecas) e o mundo do presente, que é o nosso.» FM 83/84; «A universidade, se não perder a característica da universalidade (primeiro de teor social, depois de teor intelectual), favorece o carácter englobante da filosofia.» FM 86/87; «Toda a razão tende a ser universal, mas cada grupo tende a apossar-se dela.» FM 86/87; «A razão, que tende a universalizar-se, tende também a institucionalizar-se.» FM 86/87 A filosofia como ontologia «A filosofia é ontologia.» FM 78/79 O essencial é ser: «Num pensamento, o importante não são os supostos, mas a afirmação. Numa proposição, é mais importante o elo de ligação, o “é”, do que os elementos de contraste.» FM 78/79; «O verdadeiro objecto da metafísica é o que é essencial em tudo e o essencial em tudo não é ser isto ou ser aquilo, mas é ser.» FM 78/79; «Em filosofia, ou se é, pensando, ou não se é, não pensando. A filosofia é a própria manifestação da vida, do ser, enquanto o saber, ou o não saber, é manifestação do ter, ou do não ter.» FM 78/79; No princípio, está o ser, não a natureza: «O início não está na natureza; o início está no ser.» FM 83/84; «Heidegger viu que não podia ficar ao nível da natureza, mas depois interpretou o ser em termos de physis.» FM 83/84; «A filosofia ocidental não foi ontológica até à Idade Média. A filosofia grega é dualista, como a consciência donde parte, o que não permite o ponto de vista universal, a partir do qual tudo é visto no plano do ser; a filosofia grega mantém-se no plano da natureza, isto é, das formas que se definem pela diferença específica.» FM 86/87 A lógica do ser: «O ser delimita a articulação, a estrutura comum e fundamental de toda a realidade.» FM 78/79; «A realidade tem uma lógica e a lógica da realidade é ser, que é a lógica das lógicas, ou seja, das lógicas dirigidas para partes objectivadas da realidade.» FM 78/79; «É impossível não crer na lógica do ser. 39

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Mesmo que não queiramos acreditar nela, estamos, na prática, condenados a descrevê-la, porque haverá sempre perguntas subjacentes, porquês sucessivos.» FM 78/79; «Nós suspeitamos da ontologia porque temos medo da realidade.» FM 98/99; «A realidade tem uma certa lógica: uma tendência para ser mais e melhor, para se manifestar.» FM 82/83; «Há muitas lógicas e todas as lógicas pretendem ser ontologias, pois todas elas pretendem traduzir as relações da realidade.» FM 83/84 A intencionalidade do ser e a mediação da liberdade humana: «O sentido do ser é querer ser.» FM 83/84; «A liberdade é adjectiva; o ser é substantivo: ser livre é manter a hipótese de ser mais e melhor.» FM 83/84; «A realidade é um factor de liberdade. Na intencionalidade da realidade que quer ser mais realidade, integra-se a liberdade. A minha vontade é uma expressão da intencionalidade da realidade.» FM 83/84; «Quanto mais ampla for a realidade, mais ampla será a liberdade.» FM 86/87; «A liberdade não é arbitrariedade; a liberdade relaciona-se com a tendência a ser mais.» FM 86/87; «Toda a questão da liberdade humana tem a ver com a ontologia.» FM 98/99; «Toda a realidade busca um sentido, busca que passa por um animal capaz de dar sentido.» FM 85/86; «O homem é a oficina privilegiada de irradiação, de expressão, de comunicação do ser, pela sua capacidade de diferenciar, de estabelecer diferenças.» FM 85/86; «A nossa capacidade de valoração axiológica pertence ao ser, não apenas ao ser humano.» FM 98/99; «Nós entramos na realidade, activando-a, não representando-a, como se fosse num espelho.» FM 98/99 A radicação ontológica da vontade: «O indivíduo e a vontade não são arbitrários.» FM 85/86; «A espontaneidade da vontade supõe uma axiologia construída, não a partir de uma antropologia ou de uma psicologia, mas de uma ontologia.» FM 85/86; «A vontade não é arbitrária, é o oposto do arbitrário.» FM 98/99 A ontologia na Idade Média Há uma ontologia na Idade Média? Há… Uma filosofia dos transcendentais: «Os medievais utilizam certas tábuas de transcendentais, que dizem respeito ao ser como ser, entre as quais a seguinte está presente em quase todos os autores: a unidade, a verdade, o bem e o belo.» FM 78/79 Uma filosofia do ser dinânimo: «Os medievais concedem dinamismo ao ser, contrariamente aos gregos, para os quais o ser era o imutável.» FM 78/79; «A Idade Média tem uma noção dinâmica de ser.» FM 82/83; «A Idade Antiga preconizava a imutabilidade do ser; a Idade Média privilegia o ser, como vitalidade, energia.» FM 86/87 Uma filosofia do ser relacional: «Para os medievais, tudo é relação, mas não arbitrária: maior ou menor capacidade de relação indica maior ou menor grau de ser.» FM 85/86; «Toda a filosofia da relação supõe uma filosofia da acção.» FM 85/86 Uma filosofia do ser diferenciado: «A teologia trinitária, mais do que teologia cristã, era uma espécie de ontologia.» FM 98/99; «A ontologia do cristianismo é uma ontologia da diferença.» FM 98/99 A radicação ontológica do indivíduo: «Na Idade Média, o indivíduo é considerado, não só já em relação à espécie, mas, sobretudo, em relação ao ser. O indivíduo sobrepõe-se à espécie.» FM 78/79; «Enquanto na Idade Antiga o indivíduo é referenciado à espécie, ou é expressão da espécie, na Idade Média o indivíduo é referenciado ao ser e é expressão do ser (uma unidade mais radical).» FM 85/86; «A pessoa é a expressão máxima do ser.» FM 78/79 40

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Alguns filósofos medievais com diversas aproximações da ontologia O desejo de ser em Stº. Agostinho: «Embora não se possa falar de uma ontologia em Stº. Agostinho, pode-se falar da afirmação de um desejo de ser, de existir, em contraste com a concepção do ser como conteúdo de pensamento, como certeza de uma realidade presente no próprio pensamento, na filosofia grega. Em Stº. Agostinho, é possível contrastar o ser com o nada, enquanto os filósofos gregos apenas contrastavam o ser com o não ser, ou com o movimento. Stº. Agostinho admite quer o nada antes da Criação quer a própria aniquilação, enquanto os gregos apenas concebiam a alteração.» FM 78/79; «Em Stº. Agostinho, querer ser é amar ser» FM 78/79; «Se a dialéctica de Platão era uma dialéctica da inteligência, a dialéctica de Stº. Agostinho é uma dialéctica da vontade, entendida como vontade de ser.» FM 78/79 A primeira tentativa de uma ontologia em João Escoto (ou Eriúgena), através do plano comum da physis: «João Escoto respeita a dualidade entre criador e criatura, mas situa-os num plano único, o da physis. O próprio Deus faz parte da physis.» FM 78/79 S. Tomás de Aquino e a transformação da filosofia de Aristóteles numa ontologia: «Como Aristóteles, S. Tomás de Aquino diz que nós só conhecemos o universal, mas, ao contrário de Aristóteles, S. Tomás confere às espécies e aos géneros uma dimensão ontológica. Tudo é ser. Portanto, as espécies não estão separadas e estanques, mas entram em relação umas com as outras, de modo que uma possa ser género para outra, conforme o grau de participação no ser. A concepção platónica de participação é utilizada para determinar a relação entre as espécies. A essência é então o limite do grau de participação das espécies no ser. Só Deus não tem limite; logo, não tem essência.» FM 78/79; «A composição tomista de ser e essência privilegia o ser relativamente à essência, na medida em que esta é apenas um grau de ser, e rejeita o necessitarismo da essência, conferindo dinamismo a Deus, como causa.» FM 78/79; «Para Aristóteles, em cada espécie, há uma substância e oito acidentes susceptíveis de serem atribuídos à substância. A analogia aristotélica de atribuição é uma relação entre substância e acidentes. S. Tomás de Aquino transpõe esta analogia atributiva para a relação entre Deus e as criaturas: Deus é a substância e as criaturas são os acidentes. Mas esta analogia situa-se num plano ontológico, radicalmente diferente do plano específico em que se situava a de Aristóteles.» FM 78/79; «S. Tomás de Aquino diz o contrário do que dizem os gregos: para estes, tudo estava incluído na essência; para S. Tomás, tudo é ser e a essência apenas vem determinar o ser.» FM 98/99 O maior expoente da ontologia em João Duns Escoto: «Há injustiça na crítica de Heidegger à metafísica ocidental, especialmente por ele ter estudado Duns Escoto.» FM 98/99; «João Duns Escoto é o autor que foi mais longe em ontologia.» FM 98/99; «Para Duns Escoto, o ser é tudo o que é e é possível.» FM 98/99; «O mundo de Aristóteles era o das espécies físicas; o mundo de Duns Escoto é o mundo da história, das possibilidades, da Cidade de Deus, de Stº. Agostinho.» FM 98/99; «S. Tomás de Aquino, que chamava ser a Deus e às criaturas, debateu-se com a dificuldade de os distinguir; Duns Escoto, que chamava infinito a Deus, debateu-se com a dificuldade de aproximar Deus das criaturas, daí a teoria da univocidade do ser e a acusação de panteísmo.» FM 98/99; «Duns Escoto não chama a Deus ser, mas infinito; não está na linha de Aristóteles e de S. Tomás de Aquino, mas na de Platão (o Bem para além do ser).» FM 98/99 41

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. Ontologia e metafísica A distinção: «A ontologia procura captar a estrutura essencial de toda a realidade, não como descrição, mas como vivência ou manifestação. A metafísica vai mais longe, perguntando pela razão do próprio ser. Metafísica é ontologia insistindo na razão do ser.» FM 78/79; «A ontologia constata a estrutura comum e essencial de toda a realidade, enquanto a metafísica busca a causa fundante.» FM 82/83 Em relação com a questão da unidade do ser: «Que soluções para a questão da unidade do ser? Ou a teologia ou a metafísica ou a ontologia. A filosofia medieval desenvolveu especialmente a primeira, embora se debata com as três.» FM 98/99 Ontologia e teologia Uma relação potenciadora? «Um dos factores, que vem estimular e prejudicar simultaneamente a ontologia, é a teologia. Uma ciência teológica é uma ciência de um ente e não do ser.» FM 78/79 A necessidade teológica da ontologia: «A escolástica reconhece que, sem uma ontologia, é impossível uma teologia; é impossível pensar Deus fora da estrutura essencial da realidade.» FM 78/79 A redução da teologia natural à teologia positiva: «Há teologia natural? As premissas são sempre positivas, são sempre interpretações nossas.» FM 82/83; «A teologia não existe; existe a sociedade que a faz.» FM 83/84; «O cristianismo católico admitiu sempre uma teologia positiva.» FM 84/85; «As teologias naturais não existem. Todo o problema de Deus é um problema culturalmente vivido.» FM 86/87; «A unidade do divino é uma exigência da filosofia e não de religiões positivas, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.» FM 98/99 A interpretação da teologia negativa: «Uma vez que o não-ser tem uma abrangência muito maior do que o ser, é preciso não reduzir a filosofia às ideias que temos.» FM 98/99; «Há duas interpretações da teologia negativa: ou é uma anulação do finito ou é uma afirmação do que eu sou para afirmar que Deus não é o que eu sou.» FM 98/99; «A partir da gnosiologia de S. Tomás de Aquino, só há dois caminhos possíveis: ou a teologia e a angelogia negativas ou a analogia.» FM 98/99 A ontoteologia em questão: «A filosofia tem sido sempre uma ontoteologia.» FM 82/83; «A filosofia ocidental tem sido sempre uma ontoteologia (Heidegger): por acaso? De facto? De direito?» FM 83/84; «Toda a filosofia ocidental foi uma ontoteologia (Heidegger). É um facto! Porquê? É um facto arbitrário?» FM 85/86; «A filosofia tem sido sempre uma filosofia da relação com Deus: poderá não sê-lo? Deverá não sê-lo?» FM 82/83; «A realidade excede-nos sempre. Por isso, a filosofia deve penetrar ao máximo na realidade que experienciamos, naquilo que nos é mais imanente, e que nos levará à transcendência irrecusável.» FM 83/84 O sentido das provas da existência de Deus: «É na Idade Média que se inicia um autêntico processo de laicização. Ao contrário do homem antigo, é característica do medieval, dissociar o religioso e o profano: por que é que um monge sentiu a necessidade de provar irrefutavelmente a existência de Deus?» FM 83/84; «As provas da existência ilustram a atitude anti-fideísta dos medievais.» FM 85/86 O argumento anselmiano Antecedentes: «Sendo Stº. Anselmo de estirpe agostiniana, ele omitiu, todavia, pela excessiva atracção da dialéctica, o desenvolvimento histórico do argumento.»

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AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. FM 86/87; «Todo o argumento ontológico é de estrutura platónica e neoplatónica.» FM 86/87 Uma interpretação antropo-gnosiológica: «Deus é ser, ser é querer ser e manifesta-se através do pensar do homem. Se o homem que não pensa não é homem, o homem não pode deixar de pensar em Deus. O pensamento não pode deixar de fazer referência ao absoluto. É impossível pensar que não há Deus, porque Deus se manifesta pelo pensamento.» FM 78/79; «Para Parménides, ser e pensamento identificam-se. Para Stº. Anselmo, apesar do ser se manifestar pelo pensamento, aquele não se identifica com este. Stº. Anselmo põe o problema de Deus em termos do exercício do pensamento, e não apenas em termos de conteúdo do pensamento.» FM 78/79; «Pela própria análise do pensamento em exercício, o homem, quando pensa, só pode pensar um ser acima do qual não há outro superior, e que é Deus. Stº. Anselmo não parte do pensamento como uma premissa, mas como uma realidade, um facto inquestionável.» FM 78/79; «Todo o processo de pensamento e de vida é um processo de transcendência.» FM 83/84; «Em todas as afirmações e juízos, o homem está sempre a fazer referência a uma transcendência (a um dever ser).» FM 84/85; «Para Stº. Anselmo, o homem, através do processo dialéctico de se conhecer a si mesmo, acaba por encontrar necessariamente o outro.» FM 82/83; «A experiência anímica, espiritual, interior, que Kant rejeita, é o que está na base do argumento anselmiano. Não há a priori puro; todo o a priori está crivado de experiência.» FM 82/83; «O pensamento implica a referência a um absoluto, aquilo maior do que o qual nada se pode pensar.» FM 86/87; «Nós podemos não pensar, se não queremos; por isso, nós só pensamos aquilo que queremos. Mas, quando pensamos, não podemos deixar de pensar, mesmo aquilo que não queremos.» FM 98/99; «A prova anselmiana, mais do que uma demonstração, ou uma fundamentação, é uma prova de mostração.» FM 98/99 Uma filosofia da reciprocidade Um desenvolvimento cerqueiriano da ontologia Uma filosofia da diferença, que defende a reciprocidade (inter-dependência e complementaridade) entre os termos diferenciados, não obstante a amplitude da diferença, não obstante a transcendência. Reciprocidades cruciais Entre o homem e Deus: «O problema tanto de Deus como do homem é o problema do outro, e este é sempre um problema de transcendência. O outro existe, quando nós o descobrimos. Não existe Deus sem o outro, o homem, nem existe o homem sem o outro, Deus.» FM 82/83; «Tal como Nietzsche e Sartre, já Cícero havia formulado a alternativa entre Deus e o homem: ou Deus presciente ou o homem livre.» FM 98/99; «Só se tem o sentido do absoluto, quando se vive o relativo; perde-se o sentido do absoluto, quando se absolutiza o relativo.» FM 86/87 Entre o homem e o mundo: «A divisão do saber em trivium e quadrivium, isto é, em humanidades e ciência, não traduz a reciprocidade entre o homem e o mundo.» FM 82/83; «Não há filósofo sem mundo: não se pode pensar a não ser pensando o mundo; só se conhece, conhecendo o mundo.» FM 83/84; «O homem não pensa a não ser quando pensa o mundo.» FM 83/84; «Nós temos uma noção restrita de reflexão, que tem a ver com o modelo da luz e que reduzimos à consciência, mas os objectos da consciência supõem uma dualidade mais fundamental, que é a relação entre nós e o 43

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. mundo. Não é a relação entre duas subjectividades, ou entre duas consciências, mas é a relação entre dois mundos, porque aquilo que o homem quer ser é mundo, ou, melhor, o homem é mundo.» FM 83/84; «Não é possível pensar, sem conservar o mundo, sem transformar o mundo, sem transmitir o mundo. Sem estes três processos, será possível a ciência, mas não a filosofia.» FM 83/84; «O mundo não é uma conotação do homem, mas exige a referência ao homem.» FM 86/87 Reciprocidades processuais Entre universalização e individualização: «Nós universalizamos na medida em que individualizamos; nós individualizamos na medida em que universalizamos.» FM 82/83; «O melhor mundo é o mundo simultaneamente mais universal e mais diferenciado.» FM 83/84; «Há uma dialéctica real entre o particular e o universal. O universalismo total é um formalismo. O universal deve encontrar-se na profundidade da pessoa.» FM 83/84; «A escatologia é uma solução para a harmonização entre o individual e o universal, sem a redução do individual ao universal.» FM 85/86; «O universal tem sentido, não para reduzir ou anular o individual, mas para permitir e desenvolver o individual.» FM 85/86; «O que é primeiro, é o conjunto, não o indivíduo; este é uma construção feita a partir do conjunto.» FM 86/87; «A realidade é universal, vai evoluindo e progredindo através do individual: quanto mais individual, mais universal.» FM 86/87; «A realidade tende para o universal concreto.» FM 86/87; «Em ontologia, individual e universal são correlativos.» FM 95/96; «O ser manifesta-se através de entes singulares, uns mais do que outros, o que se pode ver na nossa vida, ainda que esta nem sempre seja traduzível, e nos textos, que quanto mais singulares mais universais são.» FM 98/99; «A realidade é una, dinâmica e diferenciada, manifestando-se por singularidades: quanto mais se aprofunda a singularidade mais se encontra a relação com as outras singularidades.» FM 98/99 Entre unificação e diferenciação: «Toda a filosofia ocidental tem sido um processo de unificação, porque o homem sente-se mal na diversidade. Mas a filosofia deve ser concomitantemente um processo de diferenciação.» FM 83/84; «As vias místicas são processos de unificação.» FM 83/84; «Nós normalmente só vivemos a unidade, ou anulando a diversidade ou vivendo na contiguidade. Só pela vontade se supera a vivência na contiguidade.» FM 83/84; «A realidade não caminha para a unidade, mas para a diferença.» FM 86/87; «Hoje, a única saída para a sobrevivência é a preservação e o desenvolvimento da diversidade.» FM 98/99; «A vida é um processo de valoração, que exige tempo e diversidade para a construção de uma unidade.» FM 98/99; «A obra é um processo de universalização, de unificação e de diferenciação.» FM 98/99; «Nós compreendemos pelas diferenças e explicamos pelas uniformidades.» FM 98/99 Entre unificação e diversificação do saber: «O saber tem sido diverso de facto. A filosofia tem vivido, em grande parte, da unificação das diversas ciências.» FM 82/83; «Platão não se preocupou com a unidade do saber, porque a tinha: a dialéctica era unificante; as ciências eram propedêuticas. Aristóteles sentiu necessidade da unidade do saber, embora não a conseguindo.» FM 82/83; «Os medievais foram muito sensíveis à diversidade do saber, mas tinham, como Platão, ponto de partida para a unidade: para este, o Bem; para aqueles, Deus, por via do cristianismo. A promoção da teologia é a promoção do factor unificante da ciência.» FM 82/83; «Na Idade Média, há dois modos de unificação do saber: Deus e o estudo da Bíblia.» FM 82/83; «Quanto à unidade do saber, a Idade Média caracteriza-se pela subordinação das ciências à teologia positiva. Os escolásticos foram, porém, acusados de racionalizar 44

AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.61-115. excessivamente a teologia cristã, pelo casamento que fizeram entre a teologia revelada e a teologia natural de Aristóteles.» FM 82/83; «Há três formas de unificação do saber: através da teologia, da lógica e da ontologia. Na epistemologia ocidental, foram quase sempre a teologia e a lógica, as ciências unificadoras.» FM 86/87 Reciprocidades experienciais Entre experiência sensível e intelectual: «A experiência sensível é indissociável da intelectual; na realidade, não se distinguem.» FM 82/83 Entre acção e contemplação: «Não há pensamento sem trabalho.» FM 82/83; «Não existe o trabalho manual ou o trabalho intelectual, existem ambos. Tão importantes para o homem, como a cabeça, são as mãos, que são o meio de relação mais directa com o mundo e estão sob directa dependência da vontade.» FM 82/83; «Por que é que a adesão aos valores intelectuais não se faz sem escrúpulos? O saber sempre trouxe uma sensação quer libertadora quer pecaminosa: os mitos de Prometeu e de Eva são constitutivos da nossa cultura.» FM 83/84; «O homem está feito naturalmente para a acção do trabalho. Antes de pecar, o homem já trabalhava. O sentido lúdico do trabalho, cultivado nos mosteiros, contrapunha-se então ao sentido do trabalho como consequência do pecado, isto é, do trabalho com dor.» FM 83/84; «Não é possível compreender filosofia sem fazer filosofia, o que não se pode fazer sem trabalhar, isto é, sem agir.» FM 83/84; «A filosofia é eminentemente prática e executiva.» FM 82/83; «Não há acção sem contemplação.» FM 98/99; «A contemplação é a relação com algo que não foi feito por nós.» FM 98/99

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