Divergências e convergências: retratos de um cristianismo plural a partir de João 1.1-14

May 29, 2017 | Autor: F. Bagli Siqueira | Categoria: Identidade, Cristianismo Primitivo, Pluralidade, Conflitos, Comunidade Joanina, João 1.1-14
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FELIPE BAGLI SIQUEIRA

DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS Retratos de um cristianismo plural a partir de João 1.1-14

Relatório Final de Projeto de Pesquisa encaminhado à FAPESP, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, do Curso de Teologia da Faculdade de Teologia — Universidade Metodista de São Paulo.

São Bernardo do Campo — novembro de 2013

DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS: Retratos de um cristianismo plural a partir de João 1.1-14

Relatório Final de Projeto de Pesquisa encaminhado à FAPESP, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, do Curso de Teologia da Faculdade de Teologia — Universidade Metodista de São Paulo.

Nº. Processo: 2013/03369-5 Vigência: 01/05/2013 a 31/10/2013

_________________________ Felipe Bagli Siqueira Bolsista

_________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia Orientador

“Quando as águas se esparramam demais, não são profundas”. John Wesley

RESUMO

Este projeto aborda o tema da valorização da diversidade dentro do cristianismo e tem como objetivo discutir a temática da pluralidade cristã a partir do Prólogo Joanino, um texto marcado pela superação da intolerância e sectarismo. Tendo como título Divergências e convergências – retratos de um cristianismo plural a partir de João 1.1-14, buscaremos na proposta de fé de uma comunidade do cristianismo primitivo um paradigma de convivência. Tal análise tem como referencial o estudo exegético e hermenêutico da perícope de João 1.1-14, além da pesquisa bibliográfica, buscando elementos fundamentais para a valorização da pluralidade em nossos dias. O projeto é desenvolvido em três importantes ênfases: a reconstrução do cotidiano da comunidade joanina; abordagem exegética da perícope de João 1.1-14; proposta de um novo paradigma de convivência para a superação do cristianismo intolerante e sectário de nossos dias. Além disso, temos como objeto principal responder a seguinte questão: como essa discussão pode lançar pistas para a valorização da pluralidade dentro do cristianismo de hoje? Palavras-chave: Cristianismos Primitivos – Evangelho de João – Diversidade – Identidade – Conflitos – Pluralidade.

SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................... 7 Capítulo 1 A Comunidade Joanina ............................................................................................. 9 1.1. Teoria Literária ................................................................................................................ 9 1.1.1. Primeira Fase (antes de 70) .................................................................................... 11 1.1.2. Segunda Fase (ano 80-90) ...................................................................................... 13 1.1.3. Terceira Fase (100-110) ......................................................................................... 15 1.1.4. A perícope de João 1.1-14 ...................................................................................... 16 1.2. Os conflitos na Comunidade Joanina ............................................................................ 16 1.2.1. Conflitos que geram unidade .................................................................................. 17 1.2.1.1. Os seguidores de João Batista ......................................................................... 17 1.2.1.2. Os samaritanos ................................................................................................. 22 1.2.2. Conflito de ruptura ................................................................................................. 29 1.2.2.1. As correntes gnósticas ..................................................................................... 29 1.3. Projeção para o próximo capítulo .................................................................................. 36 Capítulo 2 A perícope de João 1.1-14 ...................................................................................... 37 2.1. Delimitação da perícope ................................................................................................ 37 2.2. Tradução ........................................................................................................................ 38 2.2.1. O texto grego da perícope de João 1.1-14 .............................................................. 38 2.2.2. Tradução formal da perícope .................................................................................. 39 2.3. Análise Linguístico-Sintática ........................................................................................ 40 2.3.1. Repetitividade ......................................................................................................... 41 2.3.2. Ênfases a partir dos verbos ..................................................................................... 42 2.4. Análise Semântica ......................................................................................................... 43 2.5. Análise Literária ............................................................................................................ 46

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2.5.1. Estrutura da perícope .............................................................................................. 46 2.5.2. Diagramação da perícope ....................................................................................... 47 2.5.3. Integridade e Coesão .............................................................................................. 48 2.5.3.1. Uma análise rápida .......................................................................................... 50 2.6. Análise da Redação ....................................................................................................... 51 2.6.1. O uso de Fontes ...................................................................................................... 52 2.6.2. O contexto da Perícope ........................................................................................... 55 2.7. Análise das Formas ........................................................................................................ 56 2.8. Análise da Tradição ....................................................................................................... 57 2.9. Projeção para o próximo capítulo .................................................................................. 58 Capítulo 3 Pluralidade e Unidade: desafios joaninos ............................................................. 59 3.1. Marco Identitário Joanino: Pluralidade e Unidade ....................................................... 60 3.1.1. Diversidade teológica e mnemônica na perícope: Pluralidade .............................. 60 3.1.1.1. Releitura da memória de João Batista ............................................................. 60 3.1.1.2. Teologia do Deserto: a perspectiva samaritana .............................................. 61 3.1.1.3. Teologia da Encarnação: anti-gnóstica ........................................................... 64 3.1.2. Harmonização do redator: Unidade ........................................................................ 70 3.1.2.1. Um elemento harmonizador em nossa perícope: a luz – φῶς ......................... 70 3.1.2.2. Teologia da Encarnação X Teologia do Deserto ............................................. 73 3.1.2.3. Teologia do Deserto X Memória de João Batista ............................................ 74 3.1.2.4. Memória de João Batista X Teologia da Encarnação ...................................... 75 Considerações Finais ................................................................................................................ 77 Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 79

INTRODUÇÃO

Diferente do senso comum, o cristianismo primitivo constitui-se de um movimento plural. Diversos são os pensamentos e influências na base desse movimento tão importante para a sociedade e a desconsideração dessa realidade, tem tornado o cristianismo um grande catalisador de preconceito e exclusão. Isso, sem dúvida, vai de encontro às intenções dessa religião, que certamente, tem a vida abundante como seu maior objetivo. Diante disso, o principal objetivo dessa pesquisa consiste na valorização da pluralidade dentro do cristianismo, buscando no cotidiano de uma comunidade cristã do primeiro século indícios de diversidade. Portanto, nosso foco concentra-se na comunidade joanina pós-cisma (ano 100-110 d.C.) e em sua capacidade de superação de conflitos como marco identitário. O Prólogo Joanino (Jo 1.1-14) é produto dessa fase da comunidade joanina e é marcado por um intenso esforço do autor em manter a unidade do grupo. Notamos isso ao identificarmos as fontes literárias utilizadas pela comunidade em sua redação final. A perícope, que num primeiro momento representava um hino cristológico utilizado nas celebrações comunitárias, nessa fase da comunidade joanina foi retrabalhada a partir do discurso de vários grupos que permaneceram no período pós-cisma, tornando-se uma marca da diversidade do movimento cristão primitivo. Percebemos então, que uma das principais características do cristianismo do primeiro século é a pluralidade e o Quarto Evangelho (=QE)1, constitui-se na história da própria comunidade joanina, ou seja, uma comunidade de identidade plural.

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Ao longo desse trabalho usaremos esta sigla QE para referirmo-nos ao Evangelho de João.

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Ao longo do trabalho demonstraremos que o redator do QE utiliza de estratégias literárias no Prólogo, fazendo desse texto um testemunho da identidade plural da comunidade. Por trás da perícope de João 1.1-14 transparece a realidade histórica da comunidade no período pós-cisma, que busca forças para a superação das dissensões internas e, ainda, fortalecer a identidade diante de tantas polêmicas em torno da comunidade. Portanto: O capítulo I tem como objeto a comunidade joanina. Como percebemos, a comunidade nasce e desenvolve-se em meio a conflitos, que, certamente, foram determinantes para forjar a identidade plural do grupo. Sendo assim, nossa intenção é elaborar uma teoria literária sobre a formação do QE, que, também, representa a formação da própria comunidade. Num segundo momento, faremos um mapeamento dos principais conflitos enfrentados que, ainda na terceira fase de redação, continuam sendo foco de atenção dos joaninos. No capítulo II, o interesse é compreender o impacto que a perícope de João 1.1-14 trouxe sobre a comunidade joanina pós-cisma. Uma vez conhecido o cotidiano e a teoria literária do QE, nos interessa aprofundar melhor o texto produzido a partir dessa realidade e período histórico. Então, a partir de uma abordagem exegética, veremos que essa perícope é indício da identidade plural da comunidade, que no período pós-cisma, tem como objetivo o fortalecimento da fé e a superação das dissensões internas. No capítulo III, apresentaremos o foco principal de nosso trabalho: o marco identitário joanino. A partir dos indícios levantados do cotidiano da comunidade e ainda de nossa perícope, percebemos que a pluralidade e a unidade, constituem-se nas marcas principais da identidade joanina. Para isso, faremos uma mapeamento da diversidade teológica e mnemônica da perícope, atentando-nos, ainda, à harmonização do redator entre essas tradições presentes no texto.

CAPÍTULO 1 A COMUNIDADE JOANINA

Neste primeiro capítulo, nosso objeto é a Comunidade Joanina. A partir de uma abordagem histórica, percorreremos uma trajetória que nos ajudará a conhecer melhor a história da comunidade e a redação do Evangelho de João. Nosso maior interesse aqui, é aprofundar o conhecimento sobre o ambiente no qual surgiu esse evangelho, reconstruindo o cotidiano dessa comunidade primitiva. Faremos uma investigação nas origens desse grupo a partir dos conflitos vividos pelos joaninos nos primórdios da comunidade. A partir do diálogo entre diversos pesquisadores do Quarto Evangelho, buscaremos compreender a comunidade joanina – uma comunidade com sua identidade forjada em meio aos conflitos. Posteriormente, mapearemos os principais conflitos enfrentados pela comunidade joanina. Como sabemos, o ponto de partida desse trabalho é a perícope de João 1.1-14, porém, percebemos a necessidade de compreender a obra joanina num todo. A partir da investigação dos principais conflitos vivenciados pela comunidade joanina, faremos uma projeção para o próximo capítulo, levando em conta que as narrativas contidas neste evangelho, num primeiro instante, surgiram como resposta aos conflitos vividos dentro da comunidade.

1.1. Teoria Literária Pode-se dizer que o redator do QE utiliza tradições e fontes comuns aos evangelhos Sinóticos, contudo, como afirma Nascimento, não se pode afirmar dependência literária entre

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os documentos. Segundo o autor, o texto foi “produzido”, isto é, elaborado em várias etapas; usou-se de material variado e existente na época e no lugar onde o autor ou os autores viveram; o que nos faz concluir que o QE não foi composição de um único autor que escrevia suas recordações e reflexões.2 Segundo Nascimento, a partir destes questionamentos, foram levantadas várias hipóteses para esclarecer as divergências. Teoria das mudanças, modificações acidentais e reorganização dos textos (Wikenhauser, Boismard); teoria das fontes múltiplas (Macgregor, Morton, Bultmann); teoria das redações múltiplas (E. Schwarz, Wellhausen, W. Wilkens, Parker). Para o autor, as discussões antes de Bultmann giravam, sobretudo, em torno da paternidade e da origem do QE e o processo de descobrimento das origens e das fontes do QE tiveram enormes avanços. Nascimento escreve: Chegou-se à conclusão que o texto que temos hoje deve ser fruto de um longo e complexo processo redacional. Tudo começou por volta do ano 50 com relatos de Jesus narrados e interpretados como sinais. Com o tempo foram sendo modificados com acréscimos e enxertos.3

Para uma abordagem consistente do QE, percebe-se a necessidade de apoio em uma teoria literária. Portanto, como elemento norteador em nossa abordagem, adotaremos uma teoria literária acerca do QE apresentada pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia 4, dialogando constantemente com outros importantes pesquisadores. Adotaremos uma teoria literária em três etapas de redação: primeira fase (antes de 70); segunda fase (80-90); e terceira fase (100-110). A história da comunidade joanina é marcada por diversos conflitos, internos e externos, e a partir de uma análise das etapas de redação se torna possível identificar alguns desses conflitos e, de certa forma, reconstruir não só a imagem de Jesus de Nazaré, como também a própria história da comunidade.5

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NASCIMENTO, Carlos Josué Costa do. Do conflito de Jesus com os judeus à revelação da verdade que liberta em João 8.31-59. 2010. 330 fl. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2010. p. 25. Idem. Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia é Diretor da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP – e professor da disciplina Introdução ao Novo Testamento. Atualmente desenvolve em seu grupo de pesquisa – Expressões Minoritárias do Cristianismo da Galiléia e Egito – uma pesquisa no QE, e tem adotado uma Teoria Literária própria para abordagem do evangelho. Como orientação, utilizaremos esta teoria literária. Sobre isso, Brown afirma: “[...] através da análise das fontes, os evangelhos nos revelam algo sobre a história pré-evangélica dos pontos de vista cristológicos do evangelista. Indiretamente, eles também revelam algo sobre a história da comunidade, antes, no começo do século, especialmente se as fontes usadas pelo evangelista fazem parte da herança da comunidade”. >> Cf. BROWN, Raymond Edward. A comunidade do discípulo amado [tradução: Euclides Carneiro da Silva]. São Paulo: Paulus, 1999. p. 15.

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Portanto, em diálogo com alguns pesquisadores e seguindo as hipóteses acerca da teoria literária do QE apresentada pelo Prof. Paulo Roberto Garcia, descreveremos as possíveis fases de redação do evangelho, com suas principais características e contribuições na formação e consolidação da comunidade joanina.

1.1.1. Primeira Fase (antes de 70) Esta fase é marcada basicamente pela tradição oral e por pequenas fontes literárias. Percebe-se neste momento duas memórias básicas no seio da comunidade: a Fonte dos Sinais (sete narrativas de milagres com o objetivo “escritos para que creiam que Jesus é o Cristo”; Jo 20.31)6 e os Relatos da Paixão e Ressurreição7 – conjunto de memórias populares que enfatizavam os milagres de Jesus, que apontavam a doxa (glória) de Deus e Jesus como profeta; Jesus aparece como alguém que realiza sinais a partir da glória de Deus e aponta para a glória de Deus. Nessa primeira etapa, algumas características eram marcantes, como por exemplo: a) a comunidade cristã era identificada como uma “seita judaica”;8 b) ausência de um discurso dualista; c) e apresenta uma escatologia tradicional – possivelmente com ênfase na ressurreição futura. Sobre o lugar vivencial, esbarramos em uma problemática. Em nossa perspectiva, contrariando a tradição – que aponta para Éfeso como ambiente de redação do QE –, o texto joanino, tanto na primeira e segunda fase, é uma produção da Transjordânia. Alguns indícios são levantados na defesa dessa hipótese:

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Fonte dos Sinais (Semeia-Quelle): João narra um número selecionado de milagres realizados por Jesus, que constituem as principais seções narrativas da primeira parte do evangelho (caps. 1-12). Bultmann sugere que foram selecionados de uma coleção mais ampla de sinais atribuídos a Jesus. O indício de que tenha sido emprestado de outra fonte aparece na enumeração de 2.11 e 4.54, assim como a menção de vários sinais em 12.37 e 20.30. A última passagem afirma que Jesus realizou muitos outros sinais que não foram relatados neste evangelho. Bultmann acredita que o relato vocação dos discípulos em 1.35-49 poderia ser a introdução da Fonte dos Sinais. Esta fonte estava escrita em grego que apresenta fortes afinidades semíticas (verbo antes do sujeito, falta de partículas de conexão etc.). >> Cf. BROWN, Raymond Edward. El evangelio segun Juan (IXII): introduccion, traduccion y notas. Madrid: Ediciones Cristandad, 1979. p. 30. [tradução minha]. Sobre isso, Brown afirma: “Relatos da Paixão e Ressurreição (Passionsbericht): Embora esta fonte tenha muito em comum com o relato da paixão subjacente aos sinóticos, Bultmann insiste que o autor do QE utilizou um material distinto. O estilo desta fonte não aparece claramente definido, mas se escreveu em grego semitizado”. >> Cf. Id., Ibid., p. 31. [Tradução minha]. Sobre isso Brown escreve: “Situando-se no contexto da última compreensão de ‘seita’, pode-se afirmar que todo o movimento cristão primitivo foi sectário, porque ele se adapta às características básicas de uma seita: (1) surgiu de um movimento agrário de protesto; (2) rejeitou muitas das realidades sustentadas pela ordem estabelecida (exigências da família, das instituições religiosas, da riqueza, de teólogos intelectuais); (3) era igualitário; (4) oferecia amor especial e aceitação; (5) era uma organização voluntária; (6) exigia um compromisso total de seus membros; (7) era apocalíptico”. >> Cf. BROWN, 1999. p. 12-13.

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1) Nenhum escrito evangélico tem tanto destaque à Judeia quanto João – Jesus aparece três vezes em Jerusalém; existe pouca menção à Galileia; e o final é impreciso geograficamente; 2) Se colocarmos o QE em Éfeso, deveremos tratar “os judeus” como uma etnia. Sendo assim, teremos um evangelho anti-semita, com uma aversão odiosa sem limites para com os judeus. Isso, sem dúvida, contraria toda a proposta evangélica. Porém, se na Transjordânia, “os judeus” são identificados com as autoridades judaicas, não com a gente de Jerusalém ou da Judeia, menos ainda com a nação judaica no seu ambiente, mas simplesmente com os homens que têm poder e a influência que lhes conferem o direito de falar no lugar de todos os outros; 3) Nesta fase, os fariseus não representam uma classe de destaque, mas atuam nas regiões de periferia (Transjordânia). Jerusalém é dominada pela elite (saduceus), e o Templo (religião oficial) era uma marca de identidade, o que conferia uma identidade ao judaísmo. Sendo assim, não faz muito sentido o conflito entre a comunidade joanina e os fariseus, a não ser que este conflito seja vivenciado a partir da periferia de Jerusalém, local em que a sinagoga tem muita força e os fariseus (religião da casa – religiosidade popular) grande poder econômico;

A comunidade joanina vive ainda nesta primeira etapa o drama de transição de grupos dominantes. Como vimos acima, o Templo era uma marca de identidade ao judaísmo e garantia autenticidade ao grupo representante da religião oficial. Porém, após o ano 70, com a destruição do Templo, o judaísmo se vê mergulhado em uma grande crise, que pode ser apontada em algumas direções: 1ª) teológica: a maior marca do Templo era a capacidade de perdoar os pecados, a partir de sacrifícios. Com a queda, uma dúvida se ergue no meio do povo – “O que fazer para se alcançar o perdão dos pecados?”; 2ª) espaço afetivo-religioso: o Templo era um espaço que oferecia serviço religioso, mas também promovia a comunhão entre familiares e amigos, pois se caracterizava como o espaço do encontro. Por pelo menos três vezes ao ano, as famílias se reuniam em Jerusalém para as festividades, o que se perdeu após o ano 70; 3ª) autenticidade: após a queda do Templo, diversos grupos se colocaram como o “verdadeiro Israel”, o que proporcionou uma imensa diversidade de movimentos religiosos e briga por espaço. Portanto, no final da primeira fase, a comunidade joanina é caracterizada como um movimento no judaísmo plural, e já vivencia no seu cotidiano alguns conflitos externos que ameaçam sua sobrevivência.

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1.1.2. Segunda Fase (ano 80-90) A segunda fase se caracteriza pelos discursos de Jesus e os diálogos9, e ocorre certa mudança no pensamento escatológico. A escatologia, que anteriormente era basicamente futura, começa a dar lugar à ideia de uma escatologia iminente – Quem nele crê não é julgado o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus (3.18): crer em Jesus é ser ressurreto. Em nossa perspectiva, nesta fase, o QE ainda se mantém na Transjordânia, e apoiamonos nos conflitos com a sinagoga para essa afirmação. Com a destruição do Templo (ano 70), a sinagoga viveu uma ascensão religiosa, galgando uma posição de destaque na religiosidade. A sinagoga assume a “Ideologia do Templo”10 no imaginário religioso da época, o que sem dúvida, provocou ainda mais atritos com os cristãos primitivos. Os fariseus, representantes da sinagoga, assumem posição de destaque na sociedade, e se apoiam na Lei como piedade e alternativa na polêmica de perdão de pecados. Portanto, crer em Jesus se tornou um grande risco, visto que a fé em Jesus era uma ameaça à proposta religiosa da sinagoga – o texto de João 9 ilustra bem essa polêmica.11 O conflito com a sinagoga trouxe grandes controvérsias para o seio da comunidade, pois não se limitou à dimensão externa, ganhando aos poucos espaço no interior da comunidade. Mesmo com a decepção do rompimento, alguns da comunidade ainda insistiam em manter relações com a sinagoga, o que impulsionou a certa postura mais radical por parte da liderança em relação à imagem da sinagoga. Outro indício da localização da Transjordânia é o conflito com os seguidores de João Batista. Possivelmente, o fato de dividirem o mesmo espaço geográfico12, foi um grande catalisador para este conflito, além, é claro, das divergências teológicas acerca da figura do Cristo. Mas o conflito interno não se limita apenas às polêmicas acerca da sinagoga e a cada dia se intensifica. A comunidade, que já nessa fase possui uma característica plural em sua composição, tem ainda que lidar com a influência do pensamento gnóstico que invade o imaginário religioso da comunidade. Portanto, esta fase é marcada por uma exacerbação dos

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Por exemplo, os capítulos 3 e 4 – Nicodemos e a mulher samaritana. Sacrifício de animais como meio de perdão de pecados. Com a ascensão da sinagoga, a ideologia do Templo é transferida para este espaço. Portanto, o perdão de pecados que era realizado via sacrifício, agora, numa nova perspectiva, é realizado pela observância da Lei. Portanto, como dito acima, crer em Jesus é desafiar e criticar esta ideologia do Templo presente na sinagoga – Quem crê e confessa Jesus como Cristo é expulso da sinagoga (9.22, 35). “Estas coisas se passaram em Betânia [região da Transjordânia], do outro lado do Jordão, onde João estava batizando” (Jo 1.26). >> Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. (Grifo meu).

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conflitos internos originados de tantas ideias e posturas no mundo plural joanino. Com tantos conflitos e dissensões, percebemos um esforço do redator em valorizar a unidade do grupo. Na tentativa de combate das influências externas e na busca de unidade, percebe-se no QE o aparecimento e intensificação de uma linguagem dualista, além de uma valorização do amor entre os irmãos. Um grande reflexo desta fase é o capítulo 17, em que Jesus se coloca em oração enfatizando que a unidade interna é condição para que o mundo creia que ele [Jesus] é o enviado de Deus.13 Porém, o esforço do evangelista em manter a unidade não foi capaz de frear toda dissensão no seio da comunidade, que aumentou a cada dia, tornando-se cada vez mais uma ameaça à comunhão do grupo. O nível de tensão interna foi tanto que as relações de fraternidades se romperam, gerando uma ruptura no grupo. Portanto, no final da segunda fase, devido a tantos conflitos internos14, a comunidade joanina sofre um cisma, evento este que marcaria para sempre a vida dos cristãos do QE. Ainda na segunda fase, já no final, nasce a Primeira Epístola de João. Esta epístola, que, na verdade, consiste em um tratado teológico,15 atesta esse trauma,16 e tem a intenção de curar a dor da divisão e fortalecer a identidade17 dos que permaneceram. Como é uma resposta ao cisma e nasce em meio à dor da comunidade, esta “epístola” é muito dura, com um sectarismo aflorado, diferente da linguagem inclusivista e plural do evangelho, mas, como vimos, é socialmente justificável.

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“a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21). >> Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. (Grifo meu). Conflito alimentado principalmente pelas correntes gnósticas. Possivelmente esta obra não constitui-se em uma epístola e sim em um tratado teológico, pois não apresenta característica de carta: não possui remetente, destinatário, saudação, despedida etc. Possui por outro lado um texto de caráter bem apologético, principalmente acerca do tema “encarnação do logos”, tema decisivo no cisma. Além disso, aparece como forma de defender a fé da comunidade em meios a tantas ameaças que os cercavam. “18 Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos que é a última hora. 19 Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos” (1Jo 2.18-19) / “1 Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora. 2 Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; 3 e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo” (1Jo 4.1-3). >> Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. (Grifo meu). “7 Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece (γιηώσκω) a Deus. 8 Aquele que não ama não conhece (γιηώσκω) a Deus, pois Deus é amor” (1Jo 4.7-8). >> Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. (Grifo meu).

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1.1.3. Terceira Fase (100-110) Após o cisma, a comunidade joanina inicia uma nova etapa em sua vida. Diante de um trauma tão profundo, a terceira fase do QE é marcada pelo esforço do evangelista em curar as feridas da comunidade e reconstruir a identidade do grupo. Mesmo com a ruptura e o aparecimento de uma linguagem sectária como defesa contra as tensões externas, a comunidade joanina ainda precisava lidar com a pluralidade interna e os conflitos potencializados no interior do grupo. A comunidade joanina nesse período, mesmo com o cisma, tinha a pluralidade como característica, mantendo diversos grupos em sua composição – cristãos-judeus-palestinenses, cristãos-judeus-samaritanos, cristãos-judeus-helenizados18 e gentios convertidos. Por isso, essa fase é caracterizada por uma forte tentativa de fortalecer a identidade do grupo, visto a variedade de tendências, além, é claro, da sempre presente ameaça gnóstica. Surge então, a necessidade de um marco doutrinário do grupo, a encarnação. No auge da polêmica com “os de tendências gnósticas”, o QE reforça a fé na encarnação de Jesus, e ainda percebe-se um esforço em demonstrar a superioridade do Discípulo Amado em relação a Tomé e Maria Madalena – ícones do movimento gnóstico. Alguns textos apontam para esta fase, como o Prólogo (encarnação), o capítulo 20 (Tomé e Maria Madalena) e o capítulo 21 (reforça a autoridade do discípulo amado). Ao que tudo indica, nesta fase, o grupo muda sua posição geográfica para a Ásia Menor. Com o cisma, possivelmente um grupo foi para Edessa – que mais tarde se tornou um grande centro do movimento gnóstico – e o outro grupo para a Ásia – nesta fase não existe nenhum indício para manter o QE na Transjordânia, e é vinculado a Éfeso. Além destas características, percebe-se na terceira fase muitos outros aspectos importantes para a compreensão do QE: 1) É a fase que mais aproxima o QE dos sinóticos; 2) O QE retoma a ideia de uma escatologia futura; 3) A morte de Jesus é apresentada como evento pneumatológico. Na morte de Jesus, o Espírito é dado (verbo paradidomi) como presente e, a morte aparece como elemento salvífico; 4) A Vida do Salvador como paradigma ético (evento lava-pés);

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Esses cristãos com fortes tendências gnósticas, que se mantiveram na comunidade, porém ainda fazendo uso do discurso dos que saíram.

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5) Devido à polêmica gnóstica, surge uma ênfase no corpo de Jesus antes e após a ressurreição – o Jesus-ressurreto aparece com cicatrizes e come com os discípulos; pode ser tocado e agarrado (20.17); 6) Em meio a tantos conflitos, perseguições e rompimentos, surge no QE a ideia de uma “nova família da fé” (Jo 19.25-27);

Ainda nesta fase, por volta do ano 110 d.C., são escritas a Segunda e Terceira Epístola de João. Envolvidas com outras preocupações, essas epístolas parecem ainda preocupadas com a polêmica gnóstica, porém já numa outra perspectiva, a da pregação itinerante. Possivelmente nesta época, pregadores itinerantes com perspectivas gnósticas 19 estavam ameaçando novamente as comunidades, isso devido ao fato de muitos líderes receberem em suas casas estes pregadores. Portanto, mesmo após alguns anos do cisma, a comunidade ainda é assombrada por este “fantasma” chamado gnosticismo.

1.1.4. A perícope de João 1.1-14 Em nossa perspectiva, a perícope de João 1.1-14 é produto da terceira fase de redação do QE. Como vimos acima, essa fase é marcada pelo esforço do redator em fortalecer a identidade do grupo frente ao cisma enfrentado. Além disso, percebemos o Prólogo como uma forte ênfase na encarnação do logos [Jesus], o que coloca nossa perícope na rota de colisão com as influências gnósticas. Outro elemento importante é a marca da pluralidade que se mantém em nossa perícope, apesar de toda divergência enfrentada há pouco. Mesmo com todas as ameaças externas, o Prólogo constitui-se como uma marca de unidade diante de imensa pluralidade interna. Apesar de muitos conflitos, a comunidade se mantém em busca da unidade. Veremos isso no próximo tópico.

1.2. Os conflitos na Comunidade Joanina Nesta seção, temos a tarefa de, a partir de uma acirrada investigação, mapear os conflitos presentes em toda história e tradição joanina. Como dito acima, a comunidade nasceu e cresceu em meio aos conflitos. Por isso, conhecer e mapear os conflitos vividos por essa comunidade é reconstruir a própria história desse grupo, que de forma tão estratégica, lutou bravamente em

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Possivelmente nesta época, o gnosticismo já se constituía como movimento, e a semelhança do cristianismo, enviava pregadores e missionários com o objetivo de expandir o movimento.

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defesa de uma verdadeira fé em Jesus Cristo. Em diálogo com diversos pesquisadores do QE, constatamos diversos conflitos na história da comunidade joanina, que com um olhar atento, podem ser percebidos ao longo do QE: os seguidores de João Batista (1.35-51); os samaritanos (4.1-42); o Judaísmo de Jabneh/Jâmnia e “os judeus” (9.22, 34ss); as correntes gnósticas (1.119; 1Jo 1.1-4); membros da Comunidade de Qumran (2.23-25; dualismo); os criptocristãos – judeus cristãos dentro da sinagoga (12.42-43); as igrejas de cristãos judeus de fé inadequada (6.66-71); os cristãos das igrejas apostólicas (21.7); os galileus (4.53); e os pagãos – gentios (12.20-23). Como percebemos, inúmeros são os conflitos enfrentados por esses cristãos. Porém, por questões metodológicas e objetivas, nos ateremos apenas em alguns conflitos presentes na história da Comunidade do Discípulo Amado: os seguidores de João Batista; os samaritanos; e as correntes gnósticas.20

1.2.1. Conflitos que geram unidade Como o título sugere, faremos aqui uma descrição de dois conflitos enfrentados pela comunidade joanina sob a perspectiva da unidade. Ou seja, conflitos enfrentados e superados pelos joaninos, que ao final, no Prólogo, apresentam-se como fortes indícios de unidade diante de toda pluralidade no universo da comunidade.

1.2.1.1. Os seguidores de João Batista O QE demonstra um interesse muito grande pela figura de João Batista e por seus discípulos. Ao longo da obra encontramos diversas passagens com informações e afirmações acerca de João Batista que merecem nossa atenção: “Ele [Batista] não era a luz, mas veio para que testificasse da luz” (1.8); “Eu [Batista] não sou o Cristo” (1.20; 3.28); “Convém que ele [Jesus Cristo] cresça e que eu [Batista] diminua” (3.30); “Ele [Batista] era a lâmpada que ardia e alumiava, e vós quisestes, por algum tempo, alegrar-vos com a sua luz. Mas eu [Jesus] tenho maior testemunho do que o de João” (5.35-36a). Diferente dos sinóticos, o Evangelho de João demonstra uma preocupação considerável em esclarecer o papel de João Batista diante do ministério de Jesus. Afirma-se que João Batista era enviado de Deus, porém não era o Cristo, não era a luz. Diante dessas e outras declarações sobre João Batista ao longo da redação joanina e considerando as diferenças com os sinóticos, nos cabe alguns questionamentos: o que o Evangelho de João quer expressar com as narrativas acerca de João Batista? Qual a intenção 20

Foram escolhidos apenas esses três conflitos, por serem considerados os principais e mais significativos conflitos para o desenvolvimento desse trabalho.

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do evangelista ao incluir alguns esclarecimentos sobre o Batista? Estaria a comunidade joanina vivendo um conflito com os seguidores de João Batista? Essas e outras dúvidas têm acompanhado diversos pesquisadores na tarefa da investigação histórica da comunidade joanina. Segundo Raymond Brown, quando o QE foi escrito, a comunidade joanina estava empenhada numa disputa com os seguidores de João Batista que rejeitavam Jesus e afirmavam que seu mestre era o Messias ou pelo menos o enviado de Deus. 21 Por esta razão, o QE sai a campo para obviar a essa interpretação errônea e ao enaltecimento exagerado da figura de João Batista (1.20: “Não sou o Cristo”; 3,28: “Não sou o Cristo, mas fui enviado adiante dele” – afirmações de um tipo inexistente da tradição sinóptica). Mas o QE não envereda pelo caminho polêmico fácil de rejeitar o Batista. Pelo contrário, como afirma Brown, ele foi enviado de Deus (1.6 – terminologia usada pelo próprio Jesus), e tudo o que ele disse sobre Jesus era verdadeiro (10.41). Sobre João Batista, Brown escreve: Realmente, ele é o único no primeiro capítulo a entender Jesus pelos padrões joaninos. Com efeito, ele não usa com Jesus os títulos tradicionais da pregação cristã primitiva, como o fazem os discípulos, mas reconhece a preexistência de Jesus (1.15,30). Isto é historicamente explicável, uma vez que os primeiros cristãos joaninos vieram do movimento de João Batista, como vieram alguns dos que originaram a tradição representada nos evangelhos sinópticos.22

Para Senen Vidal, o que ele chama de “o ciclo dos três relatos sobre a relação entre João Batista e Jesus”23 (cf. 1.19-33; 1.37-49; 3.23-30), tem como centro o interesse de legitimar os grupos joaninos frente aos grupos batistas, seguidores de João Batista. Em seu pano de fundo está uma tensão, dura especialmente nos primeiros tempos, entre esses grupos ligados, desde suas origens, com muitos pontos em comum em suas concepções e práticas, especialmente na do batismo. Tornou-se então completamente necessário assinalar as diferenças entre eles. O ciclo de relatos tenta demonstrar a superioridade do grupo cristão sobre o batista, recorrendo às figuras de João e de Jesus. Segundo Vidal, assim se explica o caráter especial desses relatos com respeito a seus paralelos sinóticos, com os quais têm semelhanças, mas ao mesmo tempo, muitas diferenças. Nas palavras de Vidal:

21 22 23

BROWN, 1999, p. 30. Idem. VIDAL, Senen. Los escritos originales de la comunidad del discipulo amigo de Jesus: el evangelio y las cartas de Juan. Salamanca/Espanha: Sígueme, 1997. p. 15. Tradução minha.

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As tradições joaninas se apresentam muito mais evoluídas e muito mais interessantes. Por trás de seu tom de diálogo, se vislumbra a discussão real entre os grupos joaninos e os batistas: João mesmo, o fundador dos grupos batistas, é o porta-voz da posição cristã. Sua figura aparece no todo “cristianizada”: ele mesmo rejeita para si títulos proféticos que a tradição sinótica lhe aplica, rebaixando-se a uma simples testemunha da superioridade de Jesus.24

Para combater as fortes objeções dos batistas, Vidal argumenta que não se narra o batismo de Jesus, efetuado por João Batista, faz-se referência a ele somente como sinal de reconhecimento de Jesus por parte de João. Assinala-se expressamente a conversão de alguns discípulos de João em seguidores de Jesus, refletindo provavelmente, a realidade histórica da passagem dos membros batistas aos grupos joaninos antigos. Apresenta-se Jesus batizando, com o reconhecimento explícito por parte de João, substituindo assim o rito batista (de João) pelo cristão (de Jesus). Para Vidal, a partir desse pano de fundo, se explicam as informações geográficas sobre a atividade João Batista e Jesus (cf. 1.28; 3.23,26): “apontam a existência de grupos batistas e joaninos nas áreas ao leste e oeste da bacia do Rio Jordão”.25 Segundo Brown, João retrata os primeiros discípulos seguidores de Jesus como discípulos de João Batista, e o próprio movimento joanino pode ter tido raízes entre esses discípulos (especialmente o Discípulo Amado26). Por isso, é surpreendente encontrar no QE tão grande número de afirmações negativas referentes a João Batista: 1) Ele não é a luz (1.9); 2) “o que vem depois de mim passou adiante de mim, porque existia entes de mim” (1.15,30); 3) João Batista não é o Messias, nem Elias, nem o Profeta (1.19-24); 4) Não é o esposo (3.29); 5) Deve diminuir, enquanto Jesus deve crescer (3.30); 6) Nunca operou nenhum milagre (10.41);27

24 25 26

27

VIDAL, 1997. p. 16. (Tradução minha). Idem. O quadro joanino se tornaria mais compreensível se o Discípulo Amado, como alguns dos discípulos de João (1.35-51), tivesse sido discípulo de João Batista, talvez até o discípulo não identificado de 1.35-40 (passagem que menciona dois discípulos e só identifica um deles como André). Assim o Discípulo Amado teria antecedentes semelhantes aos de alguns dos destacados membros dos doze, considerando mesmo que a comunidade joanina na primeira fase de sua existência constava de judeus cristãos, que estavam imbuídos das perspectivas messiânicas que distinguiram os começos das comunidades que se originariam dos doze. A identificação proposta pelo Discípulo Amado com o discípulo de 1.35-40 tem sido muitas vezes debatida e rejeitada com base em que, em outra parte, quando o QE está falando do herói da comunidade, identifica-o claramente com “o Discípulo que Jesus amava” e não encontra elucidação em 1.35-40. A objeção perde sua força se temos em mente que o discípulo não identificado do capítulo 1 não era ainda o Discípulo Amado, porque no começo da história do evangelho ele não tinha entendido Jesus plenamente – evolução cristológica que irá interpor uma longa distância entre ele e os outros discípulos identificados do capítulo primeiro e o aproximaria de maneira única de Jesus. >> Cf. BROWN, 1999. p. 33. BROWN, 1999. p. 72.

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Estas afirmações, segundo Brown, servem de retrato de todo o ministério de João Batista, como aquele que dá testemunho de Jesus e o revela a Israel (1.29-34; 5.33 – não que Jesus não precisasse deste testemunho humano [5.34]). Para Brown, tudo isso pode ser entendido quando ouvimos em 3.22-26 que alguns dos discípulos de João Batista não seguiram a Jesus (contraste 1.35-37) e invejosamente se opunham ao número de pessoas que o estavam seguindo. Portanto, somos levados a suspeitar que os cristãos joaninos tinham de tratar com tais discípulos e que as negações significam uma apologética contra eles. Para Brown, nenhum evangelho sinótico tem uma atitude tão cautelosa diante de João Batista nem tantas negações e, além disso, percebe-se outra evidência dos seguidores de João Batista que não seguiram a Jesus. O autor afirma que a cena comum em Mateus (11.2-16) e Lucas (7.18-23), em que João Batista envia discípulos para perguntar se Jesus é o que deve vir, sugere dificuldades sobre Jesus entre os seguidores de João Batista. Em Atos (18.24 e 19.7), Lucas nos fala de Apolo e um grupo de doze em Éfeso (o local tradicional da composição do QE) que foram batizados somente com o batismo de João. Apolo já acreditava em Jesus, mas os outros precisavam ser instruídos. Sobre o conflito da comunidade joanina com os seguidores de João Batista, José Bortolini escreve: O Discípulo Amado fora um dos que deixaram João Batista e seguiram Jesus. Mas nem todos os discípulos do Batista fizeram essa passagem. Os que permaneceram fiéis a João Batista hostilizavam a comunidade do Discípulo Amado. O evangelho de João, desde o início, insiste que João Batista não era a luz, mas simples testemunha da luz, a fim de que todos, por meio dele aderissem a Jesus (cf. 1.6-8).28

José Bortolini afirma que já no Prólogo (1.6-9)29 do QE se percebe com nitidez a tensão entre a comunidade joanina e os seguidores de João Batista. Para o autor, nesses versículos percebemos o conflito que a comunidade do Discípulo Amado enfrentou com os seguidores de João Batista, pois estes o viam como a luz, ou seja, como a manifestação da vida de Deus. Desde o início do Evangelho de João não ficam dúvidas: “a Vida se encontra somente em Jesus”30. Suas testemunhas desaparecem quando as pessoas se encontram com Jesus e fazem a experiência da vida que ele comunica.

28 29

30

BORTOLINI, José. Como ler o evangelho de João: o caminho da vida. São Paulo: Paulus, 1994. p. 10. João 1.6-9: 6.Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. 7.Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. 8.Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz, 9.a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem. >> Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Edição revista e atualizada no Brasil. (Grifo meu). BORTOLINI, 1994. p. 20.

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Brown ainda cita que na obra pseudoclementina Reconhecimentos, livro do século terceiro, inspirado em fontes primitivas, lemos que os seguidores de João Batista afirmavam que seu mestre, e não Jesus, era o Messias. Segundo Brown, essa evidência limitada, embora não com força de prova, dá a entender que pelo menos era possível que a comunidade joanina tivesse desentendimentos com os seguidores de João Batista, não-cristãos. Para o autor, o fato de que eles eram refutados no evangelho, não com um ataque direto que lhes fosse feito, como não-crentes, mas através de uma correção prudente de seus exagerados erros a respeito da figura de João Batista, pode significar que os cristãos joaninos ainda mantinham uma certa esperança de sua conversão, esperança essa que a cena de Atos já citada poderia tornar plausível. A cena em João 3.22-26 atribui aos discípulos de João Batista não-crentes certa inveja de Jesus e uma consideração ciumenta das prerrogativas de seu mestre, mas não os retrata como odiando a Jesus do modo como “os judeus” e “o mundo” o odeiam.31 Nas palavras de Raymond Brown: Talvez suas próprias origens no momento de João Batista tornavam os cristãos joaninos menos severos com seus antigos irmãos que não preferiram as trevas à luz, mas simplesmente confundiram uma lâmpada com a luz do mundo.32

Segundo Johan Konings, o QE demonstra um interesse muito grande pela figura de João Batista e por seus discípulos. Já no Prólogo encontramos dois parênteses que explicam que João não era a “luz”, mas deu testemunho dela (1.6-8) e de sua precedência (1.15). Para Konings, a narrativa propriamente inicia-se por um elaborado testemunho de João Batista (1.19-36), resultando no encaminhamento de seus discípulos para Jesus (1.35-36). O Batista e os discípulos voltam à cena, para outro testemunho (referindo-se ao primeiro), em 3.22-30. Em 5.33-35, Jesus mesmo aponta o testemunho de João como lâmpada passageira que anunciava a luz verdadeira. Em 10.40-42 desponta ainda uma vez, discretamente, a ratificação do povo a respeito do testemunho de João Batista. Para o autor, o ritmo e tamanho das referências vão decrescendo ao longo do Evangelho, ilustrando a palavra do Batista em 3.30: “Ele deve crescer, eu, decrescer”.33 A partir desta análise, Konings propõe alguns questionamentos: O que o evangelista quer com esse testemunho do Batista? Em At 18.24-19.7 ficamos sabendo que ainda pela metade do século I existiam, na diáspora de Éfeso, discípulos de João Batista, “joanitas”. Será que João busca aproximar esses “joanitas” da comunidade cristã? Não temos certeza de que a comunidade “joanita” ainda existia no fim do

31 32 33

BROWN, 1999. p. 73. Id., Ibid., p. 73 e 74. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005. p. 45.

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século. Será que a comunidade do Batista desapareceu, e seu lugar foi assumido pela de Jesus?34

Para Konings, isso é provável: “os discípulos do Batista se mudam para Jesus (1.35-36), seu movimento deve minguar diante de Jesus (3.30), foi provisório (5.33-35), mas testemunha a favor de Jesus (10.40-42)”.35 Konings ressalta que João parece erguer o Batista em testemunha-mor de Jesus no “processo” provocado pelos “judeus”, pois podiam citá-lo contra os cristãos por ser anterior a Jesus e não ter desacatado a interpretação judaica da Lei (cf. Lc 16.16). Portanto, Konings afirma que em João, em vez de servir de testemunha para os “judeus”, o Batista depõe a favor da outra parte: foi por ocasião dele que o Cordeiro e Filho de Deus “foi manifestado a Israel” (1.19-34).36 Podemos afirmar então, após esse diálogo, que a preocupação do evangelista em esclarecer o papel de João Batista no cenário joanino teve como motivação um conflito entre a comunidade joanina e os seguidores de João Batista. Como dito acima, já na primeira fase, nas origens da comunidade, os joaninos já se viam inseridos em conflitos acirrados, disputas estas que giravam em torno da polêmica acerca de quem era o Messias, o que estava ameaçando a fé e a comunhão do grupo. Diante dessa ameaça, coube ao evangelista um enorme empenho na defesa da fé em Jesus Cristo, o que justifica algumas passagens exclusivas do Evangelho de João.

1.2.1.2. Os samaritanos Outra presença marcante e misteriosa no QE são os samaritanos. O evangelista dedica praticamente todo o capítulo quatro do Evangelho em uma narrativa dramática e bem articulada sobre a salvação do povo de Samaria. Porém, além da perícope de João 4.1-42, o tema dos samaritanos volta a aparecer somente em uma vez, em uma acusação dos judeus contra Jesus, depreciando-o ao compará-lo com um samaritano: “Porventura, não temos razão em dizer que és samaritano e tens demônio? (8.48)”, o que nos chama a atenção. Curioso ainda, é perceber a observação cuidadosa feita pelo evangelista no v. 9: “porque os judeus não se dão com os samaritanos (4.9b)”. Seria necessária esta observação se esse texto fosse direcionado apenas aos judeus e samaritanos presentes na comunidade, ou havia no seio da comunidade pagãos e gentios que não conheciam a história de Israel? A presença dessa narrativa indicaria um conflito 34 35 36

KONINGS, 2005, p. 45. Id., Ibid., p. 46. Idem.

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interno entre os judeus e samaritanos da comunidade? Ou a acolhida dos samaritanos pela comunidade acarretou complicações externas para os joaninos (visto estarem inseridos num contexto de predominância do judaísmo)? Essas e outras perguntas circulam a curiosa existência e articulação da perícope de João 4.1-42. Mas, antes de buscarmos algumas pistas para uma melhor compreensão acerca dos conflitos gerados pela presença dos samaritanos junto à comunidade joanina, se faz necessário entender um pouco melhor quem eram os samaritanos, e porque a perícope de João 4.1-42 é tão carregada de tradições antigas e é marcada por um preconceito histórico, que ao longo da narrativa, é superado por Jesus de forma surpreendente. Segundo Alberto Casalegno, em 721 a.C., com a queda do reino do Norte por obra dos reis assírios Salmanasar V e Sargão II (2Rs 17.24-41), a Samaria foi devastada, a maior parte das famílias abastadas foi massacrada e uma parte deportada; na terra permaneceu o povo humilde, em sua maioria camponeses, obrigados a casamentos mistos com os colonos assírios, mandados imigrar propositalmente para a região. Nasceu uma raça “bastarda”, que, progressivamente, se afastou da fé tradicional javista e aceitou o sincretismo religioso. Para Casalegno, quando os hebreus do reino do Sul retornaram do exílio da Babilônia, por vontade do rei persa Ciro (538 a.C.), as divergências entre os judeus ortodoxos e os samaritanos tornaram-se evidentes. Dos livros sagrados, os samaritanos só aceitaram o Pentateuco, rejeitando toda revelação restante, fixada por escrito no tempo do exílio. Casalegno afirma que os judeus, por sua vez, recusaram a ajuda dos samaritanos na reconstrução do Templo (Ed 4.15), considerando-os um povo impuro e nem os reconhecendo mais como hebreus. Nessa ocasião aconteceu um verdadeiro cisma entre os dois grupos. Em oposição ao Templo de Jerusalém, os samaritanos construíram para si mesmos um novo santuário no monte Garizim (520 a.C.), lugar já famoso na tradição (Dt 11.29; 27.12). Segundo Casalegno, referiram a esse monte os fatos mais importantes da história bíblica, afirmando que: “ele existia antes da criação; não foi tocado pelo dilúvio universal; será poupado no fim do mundo; Adão foi plasmado sobre ele; nele está escondida a arca da aliança; e de seus lados, na época messiânica jorrarão rios de água viva”. O Templo samaritano foi destruído pelo rei asmoneu João Hircano em 128 a.C., e a rivalidade e o desprezo entre os dois povos conheceu uma nova revivescência. Por isso, segundo Alberto, um hebreu não podia usar um objeto tocado por um samaritano (Jo 4.9), e só o epíteto “samaritano” dito a um judeu constituía uma gravíssima ofensa (8.48).37 Sobre esse conflito entre judeus e samaritanos, Casalegno ainda afirma: 37

CASALEGNO, Alberto. Para que contemplem a minha glória (João 17.24): Introdução à teologia do Evangelho de João. São Paulo: Loyola, 2009. p. 363 e 364. (Bíblica Loyola; v. 57).

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Os hebreus consideravam os samaritanos impuros desde o nascimento, conforme documenta o Talmude da Babilônia, afirmando que as filhas dos samaritanos “são menstruadas desde o berço” (Niddah 4.1). Acrescente-se que os samaritanos transferiram para os cristãos o ódio que nutriam pelo judeus, praticando contra eles assaltos, saques e violências, tanto que o imperador do Oriente, Zenão (430-491), proibiu o culto no Garizim e ordenou que ali fosse construído um templo – em forma octagonal – em honra a Maria, cujos fundamentos ainda hoje existem. Em 529 d.C., Justiniano dizimou o povo samaritano, do qual hoje restam poucas centenas de indivíduos.38

Sobre a passagem de Jesus por Samaria no capítulo quatro de João, Xavier Léon-Dufour entende que nesta atitude Jesus está cumprindo sua missão segundo o designo de Deus, mas, comparando o QE com os sinóticos e Atos dos Apóstolos, Xavier percebe algumas diferenças consideráveis na narrativa e estrutura joaninas. Segundo Mt 10.5, Jesus recomenda a seus discípulos que não fossem à Samaria; segundo Lucas 9.51-56, os discípulos que atravessam aquela região recebem uma acolhida um tanto hostil. Contudo, Jesus destacou um samaritano, o único entre os dez leprosos curados, que havia demonstrado gratidão; e citados como exemplo na parábola do Bom samaritano, opondo-os aos levitas do Templo (Lc 17.11-19; 10. 30-37). Historicamente, segundo Léon-Dufour, a passagem de Jesus de Nazaré por Samaria é problemática, pois conforme Atos 8.1-25, foi somente depois da ressurreição que os discípulos se atreveram a evangelizar os samaritanos. Portanto, para o autor, por todos esses motivos, deve-se enxergar no relato joanino uma antecipação da missão exercida pela igreja depois da páscoa.39 A respeito das particularidades joaninas em relação aos sinóticos, Johan Konings faz algumas observações. Segundo Konings, depois da evocação da novidade cristã no contexto do judaísmo rabínico-farisaico (representado por Nicodemos) e no contexto do “judaísmo joanita” (de João Batista), a apresentação do dom de Deus em Jesus se coloca para o contexto das comunidades samaritanas. Um novo momento (“quando Jesus soube”) abre o episódio seguinte, situado na Samaria (os vv. 1-3 são um transição). Este episódio, afirma Konings, não reflete à tradição sinótica. Possivelmente revela o interesse específico do QE pelos samaritanos, talvez por causa das primeiras comunidades cristãs fundadas ali, sobretudo se existir alguma relação entre o QE e o apóstolo João, filho de Zebedeu, que, em At 8.14-25, é mencionado como “visitador apostólico” dessas comunidades.40

38 39 40

CASALEGNO, 2009, p. 364. LÉON DUFOUR, Xavier. Lectura del Evangelio de Juan: Jn 1-4. Salamanca: Sigueme, 1989. p. 271. KONINGS, 2005. p. 124.

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Para Xavier, a viagem da Judeia para a Galileia, passando por Samaria, está relacionada com uma profecia de Isaías, segundo a qual os reinos separados (Israel e Judá) se reconciliariam algum dia. Quando Acaz, rei de Judá (734-719 a.C.), temeu à colisão siro-efraimita, Isaías anunciou que o rei justo, no qual repousaria o Espírito de Deus, reagruparia os desterrados de Israel e reuniria os dispersos de Judá (Cf. Is 11.12). Ainda relacionando este texto com a profecia de Caifás em Jo 11.51s, na perspectiva de Léon-Dufour, é válido pensar que, por trás de Samaria, João está pensando no Antigo Israel. Léon-Dufour afirma que é a partir desse horizonte que devemos abordar o capítulo quatro de João. Observa que, segundo o vs. 1, é literalmente o Senhor que num dado momento conhece o que os fariseus haviam ouvido falar sobre Jesus, como se o Senhor e Jesus fossem duas pessoas diferentes. Para Xavier, na realidade, o evangelista que inicia seu relato falando do próprio Jesus e na reação dos fariseus, quer levar ao conhecimento dos leitores o próprio Cristo ressuscitado. Mas não se trata de um conhecimento de Jesus de Nazaré a partir de uma reflexão, mas de um conhecimento divino do Senhor, confessado vivo. Portanto, Xavier afirma que, a intenção do último redator é, sem dúvida alguma, a de situar o episódio que segue à luz da páscoa.41 Sobre a passagem estratégica de Jesus por Samaria, Léon-Dufour acrescenta: Assim, parece como se, ao passar por Samaria para dirigir-se a Galileia, Jesus quisesse reconciliar simbolicamente os dois povos, os irmãos divididos desde os começos da monarquia; e esta reconciliação tem seu lugar como consequência de uma perseguição de Jesus pelos fariseus. Esta interpretação se vê confirmada por uma frase significativa; quando os discípulos oferecem a Jesus algo de comer, lhes responde: “Meu alimento é fazer a vontade d´Aquele que me enviou e realizar sua obra” (4.34).42

Raymond Brown percebe que a entrada dos samaritanos na comunidade joanina teve um grande reflexo na trajetória histórica do grupo. Isto porque é durante este período, marcado pela inclusão de samaritanos a partir do testemunho de judeus contrários ao Templo, que se desenvolve uma cristologia mais elevada no seio da comunidade. E para Brown, esta alta cristologia, nesta fase, custou a expulsão dos cristãos joaninos do Templo e das sinagogas, pois como afirma, “a batalha entre a sinagoga e a comunidade joanina era, no final das contas, uma batalha sobre cristologia”.43 Segundo Brown, a comunidade joanina, ainda em sua primeira fase (30-50) admite um segundo grupo, constituído por judeus contrários ao Templo e samaritanos convertidos. Brown, 41 42 43

LÉON DUFOUR, 1989. p. 272. Id., Ibid., p. 272. (Tradução minha). BROWN, 1999. p. 45.

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contrariando a ideia da existência de um conflito entre os cristãos joaninos primitivos de seu Grupo I44 e os cristológicos mais elevados de seu Grupo II45, percebe na cena em que Jesus reconcilia seus discípulos do capítulo primeiro (1.35-51) com os convertidos samaritanos do capítulo quatro (cf. 4.35-38), que não havia hostilidade entre os dois grupos joaninos. Antes, a aceitação do segundo grupo pela maioria do primeiro é provavelmente o que atraiu sobre toda a comunidade joanina a suspeita e a hostilidade dos chefes da sinagoga.46 Sobre isso, Brown ainda escreve: Depois da conversão dos samaritanos no capítulo quatro, o evangelho enfatiza a rejeição de Jesus por parte “dos judeus”. O Jesus joanino (que experimentou a hostilização sofrida historicamente pela comunidade joanina) diz que ele veio de Deus (8.41), e imediatamente é desafiado pelos judeus que exclamam: “Não dizíamos, com razão, que és samaritano?” (8.48). Isto sugere que a comunidade joanina era considerada pelos judeus como tendo elementos samaritanos.47

Sobre esta afirmação, Brown nos adverte que não se pode imaginar um segundo grupo composto apenas por samaritanos, como muitos pesquisadores tem feito. Para Brown, quando os samaritanos estavam sendo convertidos por Jesus (não por seus primeiros discípulos), ele afirma claramente sua identidade judaica: “A salvação vem pelos judeus” (4.22). Para Brown, ele rejeita deliberadamente um princípio distintivo da teologia samaritana, negando que Deus deva ser adorado em Garizim. Ao mesmo tempo, (4.21) assume uma atitude peculiar diante do culto judaico, predizendo que Deus também não será adorado em Jerusalém. Portanto, aceitando essas indicações, Brown pressupõe que o segundo grupo da história joanina constava de judeus com opinião formada contra o Templo, que converteram samaritanos e assimilaram alguns elementos do pensamento samaritano, inclusive uma cristologia que não era centralizada num Messias davídico. Brown ainda afirma que se descobriu em João traços semelhantes ao pensamento samaritano e que a igreja joanina incorporou membros, judeus e samaritanos, que tinham uma elevada piedade mosaica, inspirada ainda pela cristologia elevada já influente no seio da comunidade.48 44

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46 47 48

GRUPO DE ORIGEM: Na Palestina ou perto daquela região, judeus que tinham esperanças relativamente semelhantes a de seus concidadãos, inclusive os seguidores de João Batista, aceitaram a Jesus sem dificuldade como o Messias davídico, o realizador das profecias, e cuja missão era confirmada por milagres. No meio desse grupo havia um homem que tinha conhecido Jesus durante seu ministério, e que veio a tornar-se o Discípulo Amado. >> Cf. BROWN, 1999. p. 174. GRUPO SEGUNDO: Judeus de tendências contrárias ao Templo que acreditaram em Jesus e fizeram convertidos em Samaria. Eles entenderam Jesus contra uma tradição mosaica, não davídica. Ele tinha estado com Deus, tinha-o visto, e trazido sua palavra para o povo. >> BROWN, 1999. p. 174. BROWN, 1999. p. 37. Id., Ibid., p. 38. Id., Ibid., p. 39.

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Sobre a cristologia dos samaritanos, Brown ainda acrescenta que é muito improvável que um samaritano crente aclamasse Jesus como o Messias, no sentido davídico, pois toda a teologia samaritana era orientada contra as pretensões da dinastia davídica e de Jerusalém, a cidade de Davi. De fato, o termo “Messias”, é consenso geral, não aparece em escrito samaritano antes do século XVI. Com efeito, segundo Brown, os samaritanos esperavam um Taheb (aquele que volta, o restaurador), um mestre e um revelador, e pode ter sido neste sentido que os samaritanos aceitaram Jesus como o “Messias”. O autor ainda destaca que, muito forte na teologia samaritana era a ênfase em Moisés, de tal modo que às vezes o Tahed era visto como a figura de um Moisés que tinha voltado. Pensava-se que Moisés tinha visto Deus e depois desceria para revelar ao povo o que Deus tinha dito. Se Jesus foi interpretado segundo essa maneira de ver, então, a pregação joanina teria haurido de tal Moisés material que depois corrigiria: “não foi Moisés, mas Jesus que viu Deus e depois desceu à terra para falar do que ouvira (3.13,31; 5.20; 6.46; 7.16)”49. José Bortolini enxerga na passagem de Jesus em Samaria uma forte relação com parte do Prólogo (1.11-13)50, pois para o autor, o tema da rejeição do Verbo “pelos seus” e recebido “pelos de fora” toma corpo na história com a samaritana. Para Bortolini, os samaritanos tiveram um papel decisivo na formação da comunidade do Discípulo Amado. É por isso que o evangelista de João apresenta o episódio de Jesus com a samaritana, mostrando que chegou o fim do culto que discrimina e marginaliza pessoas e grupos. Bortolini observa que a samaritana não tem nome, e esse detalhe indica que ela representa todos os samaritanos, tidos pelos judeus como pessoas impuras e idólatras. Destaca ainda que a cena se passa ao redor de um poço51 (cf. Jo 4.6), no qual se acreditava que estivesse a vida (representada pela água). Segundo Bortolini, o poço era símbolo da sabedoria, o sentido da vida que todos procuram e para o povo da Bíblia, o poço era lugar de encontros que marcam para sempre a vida das pessoas. Foi junto a um poço que Isaque se apaixonou por Rebeca (Gn 24.10-27), Jacó se apaixonou por Raquel (Gn 29.114) e Moisés se encontrou com Séfora, sua futura esposa (êx 2.16-22). Portanto, para Bortolini, a samaritana é a “esposa” que Jesus procura e é por isso que o evangelho de João afirma: “Jesus

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BROWN, 1999, p. 46. João 1.11-13: “11 Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. 12 Mas, a todos quantos o receberam, deulhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; 13 os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. >> Cf. Sociedade Bíblica do Brasil. 2003; 2005. Almeida Revista e Atualizada - Com Números de Strong. Sociedade Bíblica do Brasil. Segundo José Bortolini, o poço aparece como figura da Lei e das instituições. >> Cf. BORTOLINI, 1994. p. 48.

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tinha que atravessar Samaria” (4.4); é no meio dos marginalizados (Samaria) que Jesus encontra sua “esposa”, e esta encontra o sentido de sua vida.52 Para Nascimento, um dos temas no episódio da passagem de Jesus por Samaria é o da expectativa messiânica dos samaritanos (cf. 4.25-26; 29), o que, segundo o autor, evidencia os motivos do conflito que transparecem no texto. Segundo Nascimento, estes versículos contêm uma explícita autorrevelação de Jesus, e o contexto que se dá não é a expectativa messiânica dos judeus, e sim dos samaritanos; é provável que o texto reflita o anúncio das primeiras comunidades missionárias na Samaria ou mesmo problemáticas próprias no seio da comunidade do Discípulo Amado. Nascimento supõe que esse relato seja provavelmente etiológico ou justificativo da fundação da comunidade joanina de Sicar, na qual o agente principal havia sido uma mulher, cujo labor missionário se desejou limitar mais tarde introduzindo missionários homens.53 Nascimento ainda afirma que os vv. 27ss apresentam os temas de fé e da missão. Os discípulos chegando e a mulher saindo. Eles não compreendem: pensam no alimento terreno. Jesus aproveita a incompreensão deles para fazer uma de suas mais elevadas revelações. Nascimento entende que o v. 34 nos faz conhecer mais a fundo a consciência que Jesus tinha de si mesmo e um dos pontos importantes de identidade apresentado pelo autor do texto: a filiação de Jesus se revela na obediência à vontade do Pai. E a vontade do Pai é a “missão” = a salvação se destina a todos. Concluindo este pensamento, Nascimento também afirma que: O evangelista mostra também que o encontro com Cristo se torna contagioso, se torna testemunho. Observe-se, entretanto que o autor sublinha o conceito de que lhe é caro: a fé se torna contagiosa, o encontro com as testemunhas de Cristo é somente o primeiro passo. A verdadeira fé surge quando alguém se encontra com Cristo (v. 42).54

Diante das inúmeras investigações apresentadas, percebemos a complexidade da presença dos samaritanos no seio da comunidade joanina. A partir da contribuição de Raymond Brown, entendemos que não podemos reduzir nossa perícope (4.1-42) apenas como superação de um conflito interno, mas sim como um catalisador na acirrada disputa entre as autoridades judaicas e a comunidade joanina. Portanto, pela observação feita pelo evangelista no v. 9, podemos dizer que em um nível intracomunitário, samaritanos, de fato, sofriam discriminação por parte de alguns judeus convertidos. Porém, amparados por um consenso entre os pesquisadores, compreendemos que a grande vítima de preconceito é a própria comunidade,

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BORTOLINI, 1994, p. 48. NASCIMENTO, 2010. p. 198. Id., Ibid., p. 199.

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isto porque, ao acolher samaritanos, a comunidade joanina desafia toda tradição judaica e com isso o Judaísmo que, amparados na história e em uma religiosidade sectária, ainda alimentava a discriminação religiosa e étnica contra os samaritanos. Além disso, a presença dos samaritanos trouxe grandes influências na cristologia joanina, o que atraiu a ira por parte das autoridades, o que num futuro próximo, acarretaria na expulsão dos cristãos joaninos das sinagogas.

1.2.2. Conflito de ruptura Como vimos a partir da Teoria Literária do QE, o final da segunda fase e todo o restante da história da comunidade joanina é marcado pela presença da influência gnóstica. Esta foi a responsável pela quebra da comunhão interna da comunidade, transformando-se em um catalisador para o cisma sofrido pelo grupo. Portanto, diferente dos outros dois conflitos apresentados, o embate com as correntes gnósticas constitui-se em um conflito de ruptura, causando sérios danos à comunidade joanina.

1.2.2.1. As correntes gnósticas Diferente dos demais conflitos presentes na história da formação da comunidade joanina, este se apresenta de uma maneira singular, pois se desenvolve em um ambiente intracomunitário. Há um consenso entre os pesquisadores de que o conflito entre a comunidade joanina e a influência do pensamento gnóstico tenha sido decisivo e traumático no desenrolar da história desse grupo. Após um longo período de disputas externas, a comunidade se depara agora com uma ameaça que parte do interior da comunidade, quando segundo alguns autores, como José Bortolini,55 por influência da filosofia grega,56 alguns do grupo começaram a negar aspectos fundamentais do pensamento joanino clássico e da vivência da comunidade, causando sérios abalos na comunhão joanina a ponto de provocar um cisma na comunidade. Nascimento afirma que as ideias gnósticas circulavam entre os “pensadores” e se difundiam. Para ele, não tinha sistematização nem se constituía em movimento organizado, mas havia basicamente uma visão e ideias que invadiram aos poucos as maneiras de pensar da época. Nascimento, nesta pesquisa, define gnosticismo da seguinte forma: Gnosticismo é a visão de mundo baseada na experiência de Gnose, que tem por origem etimológica o termo grego gnosis, que significa "conhecimento". Mas não um conhecimento racional, científico, 55 56

BORTOLINI, 2001, p. 28. O que conduziu para uma cristologia baseada no gnosticismo e docetismo.

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filosófico, teórico e empírico (a "episteme" dos gregos), mas de caráter intuitivo e transcendental; Sabedoria. É usada para designar um conhecimento profundo e superior do mundo e do homem, que dá sentido à vida humana, que a torna plena de significado porque permite o encontro do homem com sua essência eterna, centelha divina, maravilhosa e crística, pela via do coração. É uma realidade vivente sempre ativa, que apenas é compreendida quando experimentada e vivenciada. Assim sendo jamais pode ser assimilada de forma abstrata, intelectual e discursiva.57

Segundo Nascimento, a comunidade joanina provavelmente teve contato e recebeu influência dessa corrente filosófica, e desse pensamento gnóstico baseado no dualismo grego de espírito e matéria e na necessidade do intermediário entre a humanidade e a divindade, surgem várias teorias “teológicas”. Sendo assim, alguns grupos começam também a querer reler o evento “Jesus de Nazaré” com os conceitos próprios deste modo de pensar. Para Nascimento, é possível que a comunidade joanina quisesse expressar a mensagem evangélica num vocabulário próprio aos gnósticos, mas, se o fez, foi para reforçar diante da gnose as afirmações de fé como a criação, a redenção, que são obras do mesmo logos (Prólogo). Acrescenta ainda que a escola joanina insiste na encarnação como realidade histórica e inseparável da pessoa de Cristo, fazendo destas insistências importantes ferramentas na definição de identidade diante das teorias gnósticas a respeito de Jesus. Segundo Elaine Pagels, para a comunidade joanina, era necessário defender-se contra essas teorias. Por isso se forjavam armas teológicas e se declarava publicamente o surgimento das linhas da sucessão apostólica, visto que também a autoridade eclesiástica estava ameaçada e os próprios membros da comunidade propagavam ideias contrárias. Para Pagels, de determinados gnósticos que se opunham ao desenvolvimento da hierarquia na igreja, não devemos reduzir o gnosticismo a um movimento político erigido contra esse desenvolvimento. Os seguidores de Valentino partilhavam uma visão religiosa da natureza de Deus que consideravam incompatível com a direção emergente na Igreja Católica – e por isso resistiram

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NASCIMENTO, 2010, p. 45.

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a ela. As convicções religiosas de Irineu58, ao contrário, coincidiam com a estrutura da igreja que defendia. 59 Segundo Raymond Brown60, no período que denomina pré-evangelho, não se consegue encontrar com muita clareza uma aguda luta interna dentro da comunidade joanina, pois suas lutas eram com pessoas que estavam fora da comunidade. Isso ajuda a explicar o intenso choque e irritação, que se notam principalmente nas epístolas, quando apareceu finalmente dissensão interna. Para Brown, esse conflito interno marca o início da terceira fase da comunidade joanina (por volta do ano 100 d.C.), mais precisamente com a redação das epístolas. O resultado dessas disputas internas foi um cisma na comunidade, que fica muito claro em 1Jo 2.1961. Contrariando um pensamento comum de que a comunidade tenha tido uma influência externa, Brown deixa de lado tal suposição e explica o pensamento separatista62 completamente dentro da estrutura joanina da seguinte forma: “ambas as partes conheciam a proclamação do cristianismo que nos foi feita através do QE, mas a interpretaram diferentemente”63. Brown afirma que os separatistas criam que a existência humana de Jesus, embora real, não era significativa do ponto de vista de salvação, ou seja, o que Jesus fez na Palestina não foi verdadeiramente importante para eles, nem o fato de ter ele morrido na cruz, o que para a comunidade joanina se tornou algo inconcebível e digno de defesa. Sobre as correntes gnósticas presentes no evento cisma, Brown acrescenta: A maior parte da comunidade joanina parece ter aceitado a teologia separatista a qual, tendo-se apartado dos moderados por meio do cisma, tendeu para o verdadeiro docetismo (de um Jesus não plenamente 58

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Sabe-se muito pouco sobre a vida de Irineu. Parece que ele nasceu na Ásia Menor – provavelmente em Esmirna – em aproximadamente em 135 d.C. Ali ele conheceu Policarpo de Esmirna, apesar de ser ainda moço quando o idoso bispo terminou sua vida como mártir. Mais tarde – provavelmente por volta de 170 d.C. – ele foi para a Gália e se estabeleceu em Lião, onde havia uma comunidade cristã da qual alguns membros também eram imigrantes da Ásia Menor. Em 177 d.C., quando ela era um presbítero naquela comunidade, ele foi encarregado de levar uma carta ao bispo de Roma. Ao retornar de sua missão, foi informado que o bispo de Lião, Potino, havia sido martirizado, de forma que ele devia sucedê-lo no episcopado. Como bispo de Lião, Irineu liderou a igreja naquela cidade, evangelizou os celtas que viviam na região, defendeu seu rebanho contra as heresias e buscou a paz e a unidade da igreja. [...] Quanto à sua morte, é dito que ele morreu como um mártir, embora nenhum detalhe seja dado. Provavelmente morrera em 202 d.C., quando muitos cristãos foram mortos em Lião. (Uma das duas obras de Irineu que sobreviveu foi: A Detecção e Refutação da Falsamente Chamada Gnose.) Cf. GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão: do início até o Concílio de Calcedônia. Tradução de Paulo Arantes e Vanuza Helena Freire de Mattos. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 153-154. PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos [Tradução: Marisa Motta]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006 p. 4851. BROWN, 1999, p. 58. 1João 2.19: “Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos”. >> Cf. Sociedade Bíblica do Brasil. 2003; 2005. Almeida Revista e Atualizada - Com Números de Strong. Sociedade Bíblica do Brasil. Designação utilizada por Raymond Brown a partir da visão do autor do quarto evangelho referente ao grupo dissidente após o cisma na comunidade. BROWN, 1999, p. 111.

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humano a uma mera aparência de humanidade), para o gnosticismo (de um Jesus preexistente a crentes preexistentes que também tinham vindo das plagas celestiais), e para o montanismo (de possuir o Paráclito à encarnação do Paráclito). Eles levaram consigo o quarto evangelho, que foi aceito primeiro pelos gnósticos, que o comentaram.64

Além destas dissensões envolvidas com o tema da cristologia, Brown destaca algumas posturas tomadas pelos separatistas, que foram duramente rebatidas pelo evangelista. Dentre as principais, destacam-se: em primeiro lugar, os adversários reivindicavam uma intimidade com Deus ao ponto de as pessoas se tornarem perfeitas e sem pecado (1Jo 1.6; 1.8; 1.10; 2.4; 2.6; 2.9; 4.20 etc); em segundo, os adversários não dão muita ênfase em guardar os mandamentos (1Jo 2.3-4; 3.22-24; 5.2-3); em terceiro, os opositores são vulneráveis no que diz respeito ao amor fraterno. Johan Konings analisa a relação da comunidade joanina com a cultura daquele tempo, em especial a cultura helenista e destaca que João parece não mostrar interesse por essa realidade, parece antes distante do “mundo”. Segundo Konings, o QE não deve ser considerado como um evangelho filosófico, pois sua teologia não se dirige a uma elite filosófica, mas no sentido de ver em Jesus a manifestação de Deus. Em contraste com o pensamento das lideranças judaicas que davam muito valor ao conhecimento, especialmente ao empenho de “perscrutar as Escrituras (Lei)”, Konings argumenta que o Jesus joanino mostra que o que essas lideranças consideram conhecimento para nada serve se não acreditam nele. Para o autor, o QE enfatiza a realidade de que os cristãos conhecem a Deus somente em Jesus, pois o “conhecer”, no QE, distingue-se assim da sabedoria dos escribas judaicos e da “gnose”, que se espalhava pelo Império Romano, acabando por influenciar na dissensão interna na comunidade joanina.65 Para Konings, o gnosticismo, presente tanto no “Evangelho da Verdade”66 quanto em outros textos afins, manifesta um saber pseudocrístão prometendo aos iniciados uma vida fora deste “mundo mau”. Esse gnosticismo, que segundo o autor é uma interpretação egocêntrica do saber evangélico proposto por João, é combatido duramente pelo evangelista (cf. Jo 13.34-35; 1Jo 4.20-5.2), visto a gnose se apresentar com um caráter narcisista, fazendo do saber uma

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Id., Ibid., p. 175. KONINGS, 2005, p. 48. Trata-se de um original que surgiu no Egito no século II, pertencente a Velentim ou a um discípulo próximo que perante uma audiência reservada o sentido e conteúdo implícito do “evangelho”, entendido como a proclamação do mistério oculto, Jesus, enquanto revela o Cristo pleromático, e cumpre, assim, a obra de salvação na intimidade do gnóstico. Em tal sentido a sua colocação no NHC I a seguir ao Apócrifo de Tiago é coerente e sintomática da vontade organizadora do seu coordenador. Um dos escritos encontrados na Biblioteca de Nag-Hammadi. >> Cf. PIÑERO, Antonio et al. Evangelhos gnósticos: evangelhos, actos, cartas. [Tradução: Luís Felipe Sarmento]. 3. ed. Lisboa: Ésquilo, 2006. p. 141.

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posse e não uma fonte do serviço ao próximo, contrariando a ideia do QE do amor fraterno. Konings ainda ressalta que o evangelista utiliza o prólogo na defesa da humanidade de Jesus Cristo, valorizando a encarnação quanto à práxis salvífica. Nas palavras de Konings acerca de Jo 1.14a: Também alhures, João insiste na “vinda em carne” de Jesus (cf. 1Jo 4.2; 2Jo 7). Podemos ver nas primeiras palavras do v. 14 uma afirmação provocadora contra os que se acham bem à vontade com a supostamente intocável posse da luz trazida por Jesus. A esses fiéis que vivem com a cabeça nas nuvens, embora com os pés na lama, e que só querem saber da glória (como brilho), João apresenta o paradoxo da encarnação (desde o nascimento até a cruz), sem o qual a existência cristã não é autêntica e completa.67

José Bortolini também associa os conflitos internos na comunidade joanina com a terceira fase na história dessa comunidade. Segundo Bortolini, por volta do ano 100 d.C., os conflitos externos praticamente desapareceram ou foram colocados em segundo plano, pois o grande problema estava agora dentro da comunidade. Para o autor, estes conflitos estão intimamente ligados com a redação das epístolas, e a primeira carta de João refere-se a essa quebra de “utopia” das comunidades do Discípulo Amado: “Esses Anticristos saíram do meio de nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco. Mas era preciso que ficasse claro que nem todos eram dos nossos” (1Jo 2.19).68 O autor argumenta que os motivos que levaram à ruptura eram vários e o texto apenas citado dá a impressão de que, nessa época, tratava-se de um fato consumado, embora a carta continue falando de tentativas de desencaminhar as pessoas (1Jo 2.26; 3.7)69. Com referência à influência gnóstica na comunidade joanina, Bortolini caminha no nível cristológico, destacando que a segunda carta de João se defende contra “sedutores” e “Anticristos” que são os “que não reconhecem Jesus como Messias encarnado” (2Jo 7)70. Sobre isso, ainda afirma: Esse tema aparece com força em toda a primeira carta de João (por exemplo, 2.22-23; 4.2-3). Nega-se a afirmação central do Prólogo e de todo o Evangelho de João: “A Palavra se fez homem e habitou entre nós” (1.14a). Daí a insistência de 1 João na experiência palpável que os 67 68 69

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KONINGS, 2005, p. 80. BORTOLINI, 2001, p. 19. 1Jo 2.26; 3.7: “26Isto que vos acabo de escrever é acerca dos que vos procuram enganar”. [...] “7Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém; aquele que pratica a justiça é justo, assim como ele é justo”. >> Cf. Sociedade Bíblica do Brasil. 2003; 2005. Almeida Revista e Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil. 2Jo 7: “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo”. >> Cf. Sociedade Bíblica do Brasil. 2003; 2005. Almeida Revista e Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil.

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primeiros discípulos fizeram de Jesus (1.1-4). Não que os “Anticristos” negassem radicalmente a encarnação de Jesus de Nazaré, mas, levados pela filosofia grega (gnosticismo), segundo a qual a matéria é essencialmente má, afirmavam que a divindade jamais poderiam assumir a carne humana. O que apareceu em Jesus, portanto, segundo eles, foi uma sombra ou aparência da divindade.71

Analisando a introdução da primeira carta de João (1Jo 1.1-4)72, Bortolini faz uma aproximação com o Prólogo do QE. Segundo o autor, percebe-se por trás dessa introdução, uma tentativa de responder em nível cristológico os conflitos apresentados anteriormente, pois os “Anticristos” negavam a encarnação de Jesus. Bortolini destaca que a carta começa convocando os sentidos (audição, visão e tato) para testemunhar Jesus, ou seja, para 1 João, Jesus pôde ser escutado, visto, contemplado e tocado. Para esse autor, a introdução da carta afirma com força que a Palavra, desde sempre voltada para o Pai, historicamente encarnou-se em Jesus e se deu a conhecer à humanidade, sendo a suprema revelação do Evangelho de João e desta carta, contrariando toda lógica e possibilidade da cultura grega. Bortolini ainda acrescenta o fato de não haver dentro da comunidade joanina pessoas revestidas de poder (hierarquia), o que agravou a dissensão interna. Por isso, segundo o autor, o grupo que permaneceu fiel à proposta do Evangelho de João começou, então, a se aproximar das comunidades cristãs hierarquizadas, na tentativa de resolver, com poder da autoridade, os conflitos internos. Conclui então que, por força de autoridade, o grupo que criava confusão dentro das comunidades joaninas foi calado e afastado, “superando” assim o conflito; porém, esse grupo se incorporou de vez ao gnosticismo, fazendo uma leitura gnóstica do Evangelho de João, o que gerou uma desconfiança ainda maior das outras comunidades cristãs em relação ao quarto evangelho.73 Senen Vidal percebe que a última etapa da história da comunidade joanina (final do séc. I e início do séc. II) foi especialmente traumática para ela, pois a comunidade teve que continuar sofrendo com a hostilidade externa, que se intensificava cada vez mais (cf. Jn 15.18-16.15). Além desses sofrimentos e perigos de morte, essa situação implicava numa séria ameaça de apostasia (cf. Jn 16; 1Jo 5.14-21). E nesse tempo, segundo Vidal, a hostilidade aumentou por 71 72

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BORTOLINI, 2001, p. 28. 1Jo 1.1-4: “1 O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida 2 (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada), 3 o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós, igualmente, mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. 4 Estas coisas, pois, vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa”. >> Cf. Sociedade Bíblica do Brasil. 2003; 2005. Almeida Revista e Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil. BORTOLINI, 2001, p. 28.

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causa da oposição interna, que se explica pela intensificação de linguagem dualista e o tema do amor fraterno (cf. Jo 13.34-35), na tentativa de conservação e unidade da comunidade.74 Vidal faz questão de frisar que o cisma foi a crise mais marcante e decisiva na história da comunidade joanina. O autor entende que a “demonização” dos dissidentes opositores nos escritos de 1 e 2Jo mostram bem a veemência de polêmica e tragédia (cf. 1Jo 2.18). Segundo Vidal, tanto o grupo “ortodoxo” como o “dissidente herético” recorriam à tradição joanina, e que os indícios apontam que os dissidentes extrapolaram os limites do pensamento joanino clássico e radicalizaram ao extremo a concepção dualista e espiritualista, interpretando assim a figura de Jesus num sentido doceta75. Sendo assim, o grupo ortodoxo, incentivado pela escola joanina, teve que matizar sua concepção teológica, recuperando até certo ponto a tradição judaica antiga e aceitando assim a tradição e concepção de outras comunidades cristãs já em processo de institucionalização avançado. Nessa perspectiva, Vidal escreve: Os grupos joaninos ortodoxos ingressaram dentro da “gran iglesia”76, levando consigo seus escritos. Foi então que estes escritos adquiriram grande difusão (Jo era conhecido no Egito já na primeira metade do séc. II) e chegam a formar parte do NT. Os grupos dissidentes, ao contrário, foram se diluindo, provavelmente, nos grupos gnósticos, principalmente no gnosticismo valentiniano (o Evangelho de João era especialmente estimado dentro deste movimento).77

Segundo Vidal, todo esse contexto de divisão explica em certo nível, a linguagem e estilo sectário da primeira carta de João, típicos da escola joanina, e por outro lado, suas numerosas repetições e tensões entre os textos, derivadas de diversos contextos e intenções das instruções originais e sua sequência solta, sem uma estrutura bem trabalhada. Vidal entende que como finalidade desses escritos, se destaca a consolidação da comunhão da comunidade em torno da tradição, e no pano de fundo se descobre a situação aguda da divisão da comunidade joanina. Portanto, se esclarece a insistência no tema do amor fraterno, pois serve para reforçar a unidade do grupo que se manteve fiel, e as advertências contra as heresias dos dissidentes. 74 75

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VIDAL, 1997, p. 50. (Tradução minha). Sobre a polêmica antidocetista, Casalegno escreve: “Na época da composição do quarto Evangelho também começam a manifestar-se as correntes docetistas, que pensam que o Filho de Deus, ao vir ao mundo, tenha tomado um corpo apenas aparente. No Evangelho, os elementos polêmicos a esse respeito são poucos, enquanto são abundantes nas duas primeiras cartas joaninas, nas quais se afirma que no seio da comunidade joanina está em curso um autêntico cisma (1Jo 2.19) e se insiste na verdade de que Cristo veio “na carne” (4.2; 5.6; 2Jo 7). É uma resposta a uma falsa compreensão da identidade de Jesus que se destaca no texto o realismo, seja da encarnação (Jo 1.14), seja da morte de Jesus, dizendo que após o transpassamento da lança jorram de seu lado sangue e água (19.34-35). À luz de tal problemática também é posto em destaque que a eucaristia é realmente o corpo e o sangue de Jesus (6.49-58).”. >> Cf. CASALEGNO, 2009, p. 39. (Grifo meu). Termo utilizado por Vidal ao referir-se às comunidades hierarquizadas e inseridas num processo de institucionalização avançado. VIDAL, 1997, p. 50. Tradução minha.

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Concordando com Vidal, podemos afirmar que o conflito com as correntes gnósticas foi o mais decisivo e traumático na história da comunidade joanina. Isto talvez por ter acontecido em nível interno, o que sem dúvida, foi um grande abalo nas estruturas de comunhão do grupo. Interessante ressaltar que, a partir deste conflito, percebemos uma mudança no estilo literário do evangelista. O QE, que inicialmente nos apresenta um discurso plural, de inclusão, com um tom de abertura, dá lugar a uma linguagem sectária, bem fechada, às vezes agressiva e exclusivista, percebida claramente ao longo das epístolas. Portanto, não nos resta dúvida quanto ao trauma deixado na história joanina pelo conflito vivido com as correntes gnósticas, o que colocou à prova até a integridade do QE.

1.3. Projeção para o próximo capítulo A partir da abordagem realizada nesse capítulo, temos a oportunidade de reconstruir, de certa forma, o cotidiano da comunidade joanina. Sob a perspectiva da Teoria Literária do QE e, ainda, a partir do mapeamento dos conflitos enfrentados pela comunidade joanina, temos acesso a um importante pano de fundo, que certamente lança luz em nossa discussão. Portanto, a partir do pano de fundo, nosso próximo objeto constitui-se na própria perícope de João 1.114. Sendo assim, o próximo capítulo terá como tarefa uma abordagem exegética de nossa perícope, na finalidade de levantar as contribuições que esse texto tem a nos oferecer na valorização da pluralidade dentro do cristianismo.

CAPÍTULO 2 A PERÍCOPE DE JOÃO 1.1-14

Nesse capítulo, nosso objetivo é compreender o impacto que a perícope de João 1.1-14 trouxe sobre a comunidade joanina pós-cisma e sua relação com a realidade plural joanina desse período. Nessa perspectiva, utilizaremos como método uma abordagem exegética dessa perícope.78

2.1. Delimitação da perícope Em nossa perspectiva, a perícope de João 1.1-14 (Prólogo Joanino) forma uma unidade textual completa e autônoma, com sentido e total coerência, com início e final perfeitamente identificáveis. Algumas mudanças encontradas no texto nos dão apoio nessa opção de delimitação:

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“Os dicionários comumente definem o termo exegese como “comentário ou dissertação para esclarecimento ou minuciosa interpretação de um texto ou de uma palavra”. O termo deriva-se da palavra grega exegeses, que tanto pode significar apresentação, descrição ou narração como explicação e interpretação. Quando se fala de exegese bíblica, entende-se o termo sempre no segundo sentido aludido, ou seja, como explicação/interpretação. Exegese é, pois, o trabalho de explicação e interpretação de um ou mais textos bíblicos”. [...] “A primeira tarefa da exegese é aclarar as situações nos textos, ou seja, redescobrir o passado bíblico de tal forma que o que foi narrado nos textos se torne transparente e compreensível para nós que vivemos em outra época e em circunstâncias e cultura diferentes; a segunda tarefa, é permitir que possa ser ouvida a intenção que o texto teve em sua origem; e a terceira tarefa, é verificar em que sentido opções éticas e doutrinas podem ser respaldadas e, portanto, reafirmadas, ou devem ser revistas e relativizadas”. Cf. WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal : São Paulo: Paulus, 1998. p. 11-13.

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a) mudança de linguagem: nossa perícope é construída em um estilo literário composto de poesia e prosa – sofrendo uma quebra de coesão nos vs. 6-8 (sobre João Batista), sendo retomada logo no v. 9 – com uma característica que abre a possibilidade para um texto litúrgico ou até mesmo um hino cantado pela comunidade joanina no final do primeiro século. Porém, percebe-se no versículo 15 uma quebra definitiva na coesão do texto, pois a partir desse versículo se inaugura um estilo, a narrativa, apresentando ainda uma fala de João. O v. 16 parece retomar o estilo do prólogo, porém percebe-se a citação de alguns nomes, como de Moisés e Jesus Cristo, o que não é característico ao longo do Prólogo. O nome de João aparece no v. 6, mas, em nossa perspectiva, isso é justificável, e veremos a seguir a justificativa; b) mudança de assunto: João 1.1-14 tem como principal objetivo a realidade da encarnação do Logos. Esse assunto perpassa os vs. 1 a 14, saindo da dimensão divina (junto a Deus) e desaguando na dimensão material (carne se fez). Já no versículo 15, um novo assunto aparece, que é a realidade do testemunho de João sobre a pessoa de Jesus, identificada como o Logos. Os vs. 15 a 31 constituem um pequeno bloco textual, com três momentos distintos, cuja ênfase é o testemunho de João acerca de Jesus. c) Mudança de personagens: apesar da citação de João no v. 6, o principal personagem no Prólogo é o Logos. Toda a perícope é desenvolvida em torno da atuação do Logos, desde o princípio até a realidade da encarnação. Já o v. 15 nos apresenta um novo personagem, João. Este havia sido citado no v. 6, mas aqui é introduzido de uma maneira direta e participativa na narrativa que se inicia. Logo em seguida, no v. 19, outros personagens aparecem e a narrativa se consolida de vez.

Portanto, diante desses indícios, em nossa perspectiva, delimitamos o texto de João 1.114 como uma perícope, ou seja, uma unidade literária autônoma, que será o objeto de nossa exegese.

2.2. Tradução 2.2.1. O texto grego da perícope de João 1.1-14 1

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.

2

οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν.

39

3

πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν79. ὃ γέγονεν

4

ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν80 τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων·

5

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν.

6

Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ81, T82 ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης·

7

οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιστεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ.

8

οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός.

9

Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον.

10

ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.

11

εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον.

12

ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ

ὄνομα αὐτοῦ, 13

οἳ οὐκ83 ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ

ἐγεννήθησαν84. 14

Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν

ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας.

2.2.2. Tradução formal da perícope 1

Em princípio era o logos85, e o logos era (estava) junto a Deus, e Deus era o logos.

2

Este era (estava) em princípio junto a Deus.

3

Tudo (todas as coisas) por meio dele veio a ser86, e sem ele veio a ser coisa alguma.87 O que

tem feito 4

79 80

81 82 83 84

85

86 87

nele vida era, e a vida era a luz dos homens (seres humanos);

Em alguns manuscritos aparece em outra forma: οὐδεν P66 * D f1 pc; Clex Thd. Em alguns manuscritos aparece em outra forma: εστίν (presente do indicativo ativo de ειμί)  D it vgmss sa?; PtolIr Irlat Clpt Ormss. Em alguns manuscritos aparece em outra forma: κυριου (Senhor) D*. T ην * D* Ws syc; Irlat. Em alguns manuscritos aparece em outra forma: ουκ. Em alguns manuscritos aparece em outra forma: εγεννηθ- D* ¦ qui non et natus est b; (Tert) ¦ txt P66vid  B2 C Dc L Ws Ψ f1.13 33 syp.h (sed εγενηθ- P75 A B* Δ Θ pc). A palavra grega λόγος tem uma gama de significados e representa para nós um desafio na questão da tradução. Portanto, devido à complexidade linguística e semântica que envolve essa palavra, optamos nessa exegese por não traduzir a palavra λόγος. Sobre a importância do λόγος e todo o seu significado no meio da Comunidade Joanina, veremos ao longo da exegese. Verbo γίνομαι empregado no aoristo. Indica ênfase na ação de trazer à existência. Questão de grande polêmica é a posição desse ponto final. Algumas versões trazem a expressão ὃ γέγονεν como parte final da frase anterior e não parte inicial da frase seguinte. Discutiremos isso ao longo da exegese.

40

5

e a luz na escuridão (trevas) brilha, e a escuridão não subjugou.88

6

Veio a ser homem, enviado da parte de Deus, nome dele João89;

7

este veio para testemunho, para que testemunhasse a respeito da luz, para que todos cressem

por meio dele. 8

Não era aquele a luz, mas para que testemunhasse a respeito da luz.90

9

Era a luz verdadeira, que ilumina todo homem, vindo para o mundo.

10

Em o mundo era (estava), e o mundo por meio dele veio a ser, e o mundo 91 a ele não

conheceu92. 11

Para os seus próprios veio, e os seus próprios a ele não receberam

12

Quantos porém receberam ele, deu a eles direito (autoridade) filhos de Deus vir a ser, os que

creem em o nome dele. 13

Os quais não de sangue nem de vontade de carne nem de vontade de homem mas de Deus

foram gerados.93 14

E o logos carne veio a ser94 e acampou95 (fez a tenda) entre nós, e contemplamos a glória

dele, glória como unigênito96 da parte do Pai, pleno de graça e verdade.

2.3. Análise Linguístico-Sintática Como primeiro passo nessa etapa, temos a tarefa de constatar as amarras do texto. Para isso utilizaremos como ferramenta verificação das palavras e expressões que mais se repetem ao longo da perícope:

88

89

90

91

92

93

94

95

96

Percebe-se no v. 5 a presença de uma linguagem dualista (luz e trevas), estilo muito comum no Evangelho de João. Por que cita-se o nome de João e o nome do λόγος não é citado (v. 12)? Teria isso alguma relação com a tradição do Êxodo do nome impronunciável de Javé? Os vs. 6-8 parecem quebrar a coesão do texto. Podem ter sido inseridos posteriormente. Seriam esses versículos indícios do conflito da Comunidade Joanina com os discípulos de João Batista? Nos vs. 9 e 10 (“miolo” de nosso quiasmo), a palavra κόσμος aparece quatro vezes. Em nossa perspectiva, indica ênfase. γινώσκω: verbo característico em João – utilizado aqui no aoristo (ênfase). Estaria esse verbo, empregado aqui, relacionado com o conflito joanino com as correntes gnósticas? Em nossa perspectiva, sim. Sangue; vontade da carne; vontade de homem: seriam esses elementos indícios do conflito entre a comunidade e “os judeus” em torno da tradição: genealogia, Lei e Religião? Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο (verbo empregado no aoristo: indica ênfase na ação em se fazer carne) – esta talvez seja a maior polêmica enfrentada pela Comunidade Joanina ao longo de sua história: a encarnação do logos. ἐσκήνωσεν. Verbo σκηνόω empregado aqui no aoristo. Teria esse verbo alguma ligação com a tradição do êxodo? A tradição do Tabernáculo? Acreditamos que sim. Jesus aqui é apresentado como μονογενοῦς παρὰ πατρός, porém o v. 12 diz que todos que o receberem será feito filho de Deus: ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι. Por que Jesus é apresentado como unigênito se Deus tem mais filhos?

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2.3.1. Repetitividade Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2 οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6 Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιστεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. 9 Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον. 10 ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. 11 εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ, 13 οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν. 14 Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας. 1

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2 οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6 Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιστεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. 9 Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον. 10 ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. 11 εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ, 13 οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν. 14 Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας. 1

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2 οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6 Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιστεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. 9 Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον. 10 ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. 11 εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ, 13 οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν. 14 Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας. 1

Como percebemos, a “amarração” do Prólogo é bem complexa, pois compreende diversas palavras e expressões que são destacadas ao longo de toda a perícope. Sem contar

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ainda com a presença de algumas palavras e expressões que aparecem uma única vez, porém, são carregadas com grande expressão teológica em toda obra joanina. Por exemplo: ἔγνω, παρέλαβον, ἔλαβον, τέκνα θεοῦ, ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν etc. Portanto, notamos a complexidade das amarrações estabelecidas pelo redator, pois, essas “amarrações literárias” extrapolam o padrão das repetições, característico no grego (Koinê) para ênfase.

2.3.2. Ênfases a partir dos verbos Ao longo de toda perícope percebemos a presença de alguns verbos marcantes e determinantes em toda obra joanina. Interessante observar o tempo verbal empregado a esses verbos, atentando ainda para suas variações e combinações, pois, em nossa perspectiva, têm um caráter enfático. Em nossa perspectiva, o Prólogo tem no seu corpo uma grande intenção enfática, pois a maioria de seus verbos são empregados no tempo aoristo. A partir das repetições, dois verbos se destacam ao longo da perícope: ειμί (ser, estar) e γίνομαι (vir a ser, vir à existência). Em nossa perspectiva, esses verbos, associados a alguns outros que veremos abaixo, são determinantes em toda organização e construção teológica da perícope. O verbo ειμί (ser, estar) aparece nove vezes no texto. E curioso observar que em todas as vezes, com a mesma classificação morfológica: verbo no indicativo, imperfeito, voz não declarada, 3ª. pessoa do singular. Esse verbo aparece associado ao λόγος, na função de defender a divindade do λόγος (καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος), além de afirmar a sua pré-existência (Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος). Já o verbo γίνομαι sofre uma variação curiosa. Este aparece seis vezes no texto, sendo cinco vezes no aoristo, e uma única vez no perfeito. Isso pra nós indica uma ênfase do redator, devido ao contexto da utilização. O tempo aoristo tem uma característica enfática, portanto, o verbo γίνομαι tem a função de destacar a dependência de todas as coisas em relação ao λόγος (πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο). Porém, uma única utilização ressalta aos nossos olhos: ὃ γέγονεν [4] ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν. Aqui, o verbo aparece no perfeito. Indica que “tudo que veio a ser e continua sendo nele, possui vida”, ou seja, o que determina vida é o fato de se existir no λόγος, e não independente dele97. Outra ênfase importante acontece no versículo 14, quando se destaca a encarnação do λόγος (Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο). Alguns outros verbos também se destacam no texto:

97

Percebemos aqui um diálogo com o Gênesis – na perspectiva do pecado de Adão e Eva (o desejo de existirem por si mesmos). Veremos a seguir.

43

Έρχομαι (ἦλθεν): aparece no aoristo, e enfatiza a função de João Batista como testemunho do λόγος (οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν); e também a atitude de Jesus entrega “aos seus” (εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν). γινώσκω (ἔγνω) e παραλαμβάνω (παρέλαβον): associados à partícula οὐ enfatizam a rejeição sofrida por Jesus pelo κόσμος (mundo) e οἱ ἴδιοι (os seus). Quanto ao γινώσκω percebemos um indício de conflito com os de correntes gnósticas98. παραλαμβάνω (παρέλαβον) e λαμβάνω (ἔλαβον): ambos os verbos são traduzidos por receber, porém, o acréscimo da preposição παρα reforça o sentido do verbo, dando um caráter de receber como presente, acolher com carinho e valorização. Já o verbo λαμβάνω é um receber simples, com pouca ênfase e sem muita exigência. γεννάω (ἐγεννήθησαν): esse verbo, que aparece também no aoristo vem enfatizar que os que cressem no nome do λόγος seriam nascidos de Deus, não de sangue, vontade da carne ou vontade de homem. σκηνόω (ἐσκήνωσεν) e θεάομαι (ἐθεασάμεθα): a associação desses verbos, que são traduzidos como “fazer a tenda, acampar” e “comtemplar”, remonta a tradição do deserto, a religião do Êxodo, numa releitura do sacerdócio, com grande ênfase, pois são empregados no aoristo.

2.4. Análise Semântica A partir das informações colhidas na seção anterior, se torna necessário a reunião dessas palavras, expressões, verbos etc., na tentativa de estabelecimento campos semânticos, a fim de facilitar a compreensão mensagem do redator para seus leitores. Portanto, abaixo segue um quadro com a associação dessas palavras e expressões:

Inventário Palavras/Expressões

Campo Semântico

Ἐν ἀρχῇ πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο 1

ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο

Linguagem do Gênesis (Criação)

ζωὴ πάντα

98

Sobre o conflito com as correntes gnósticas, conferir o tópico As correntes gnósticas.

44

φῶς/ σκοτίᾳ κόσμος Λόγος λόγος σὰρξ ἐγένετο φῶς/ σκοτίᾳ φαίνει οὐκ ἔγνω ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον 2

κόσμος τέκνα θεοῦ γενέσθαι

Conflito com as correntes gnósticas

πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ αἱμάτων/ σαρκὸς/ ἀνδρὸς ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν ἀληθινόν/ἀληθείας μονογενοῦς ἄνθρωπος ἀπεσταλμένος 3

ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν

Conflitos com os seguidores de João Batista

οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ 4

ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ

Releitura de Êxodo (Projeto do deserto)

θεὸς ἦν ὁ λόγος

Como podemos perceber, encontramos pelo menos quatro campos semânticos ao longo de nossa perícope, que se tornam essenciais em nossa compreensão. Vejamos um pouco de cada um deles: 1)

Linguagem de Gênesis (Criação): encontramos alguns indícios que atestam que o Prólogo joanino dialoga com a tradição do Pentateuco, em especial com a Criação. A expressão chave dessa afirmação é Ἐν ἀρχῇ, encontrada duas vezes no versículo 1. Essa é a expressão grega que encontramos em Gn 1.1,

45

na tradução dos Setenta99. Além disso, o λόγος aparece como agente criador, deixando todas as coisas dependentes a ele, além da permanência nele ser um fator essencial para a continuidade da vida. Outra característica desse campo semântico é o dualismo presente entre luz e trevas, característico em Gn 1; 2)

Conflitos com as correntes gnósticas: evidente aqui é a presença incômoda da influência gnóstica.100 A comunidade joanina estava assombrada por esta corrente, o que desencadeou um sério conflito dentro da comunidade, por isso a comunidade se lança no desafio de combater esse problema através de um vocabulário próprio, enfatizando principalmente que Jesus era o λόγος, e ainda, o λόγος que se fez carne (λόγος σὰρξ ἐγένετο). Palavras e verbos ajudam a destacar esse conflito, pois apresentam temas importantes do gnosticismo, como luz, verdade, gnose, escuridão, mundo, filhos de Deus etc;

3)

Conflitos com os seguidores de João Batista: Semelhante ao anterior, esse campo semântico também consiste em um conflito: com os seguidores de João Batista. A comunidade joanina estava empenhada numa disputa com os seguidores de João Batista que rejeitavam Jesus e afirmavam que seu mestre era o Messias ou pelo menos o enviado de Deus. Por esta razão, o QE sai a campo para obviar a essa interpretação errônea e ao enaltecimento exagerado da figura de João Batista. Portanto, percebemos no Prólogo algumas evidências dessa defesa: João veio para testemunho e não era a luz, mas apenas para testemunhar sobre essa luz;

4)

Releitura de Êxodo (Projeto do deserto): como dissemos acima, o Prólogo dialoga com o Pentateuco, e aqui percebe-se o desenvolvimento de um campo semântico que abarca os sentidos do Êxodo, ou seja, do projeto para o povo de Deus no deserto, a partir de uma releitura. Portanto, o λόγος (Jesus) aparece como o Javé do êxodo, isso devido àlgumas evidências: o λόγος não tem nome (τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ) – em contrapartida, cita-se o nome de

99

100

Gênesis 1.1 (Septuaginta): “Ἐν ἀρχῃ̂ ἐποίησεν ὁ θεὸς τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γη̂ν [...]”. >> Cf. Septuaginta. 1979; Published in electronic form by Logos Research Systems, 1996 (electronic ed.). Deutsche Bibelgesellschaft: Stuttgart. “Gnosticismo é a visão de mundo baseada na experiência de Gnose, que tem por origem etimológica o termo grego gnosis, que significa "conhecimento". Mas não um conhecimento racional, científico, filosófico, teórico e empírico (a "episteme" dos gregos), mas de caráter intuitivo e transcendental; Sabedoria. É usada para designar um conhecimento profundo e superior do mundo e do homem, que dá sentido à vida humana, que a torna plena de significado porque permite o encontro do homem com sua essência eterna, centelha divina, maravilhosa e crística, pela via do coração. É uma realidade vivente sempre ativa, que apenas é compreendida quando experimentada e vivenciada. Assim sendo jamais pode ser assimilada de forma abstrata, intelectual e discursiva”. >> Cf. NASCIMENTO, 2010, p. 45.

46

João, pois é menor que Jesus (ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης); arma sua tenda no meio do povo, o que remonta a ideia de um Deus que caminha junto ao povo (καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν); e o tabernáculo aparece numa releitura acerca do sacerdócio – enquanto no Êxodo somente Moisés contemplava a glória de Deus, aqui isso se estende a todo que crer no nome do λόγος (καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ).

2.5. Análise Literária 2.5.1. Estrutura da perícope O Prólogo se apresenta como um grande desafio na questão de estrutura literária. Isso porque a maioria dos pesquisadores o tem estudado a partir de uma delimitação diferente, sendo 1.1-18, propondo assim um quiasmo. Como, porém, arrisquei-me em uma nova delimitação, 1.1-14, terei um grande desafio nessa questão estrutural. Em nossa perspectiva, o Prólogo se constitui de um entrelaçar de prosa e poesia, sendo em sua forma primitiva um hino cristológico utilizado nas celebrações para o fortalecimento de fé dos joaninos. Portanto, percebemos que o redator organiza a perícope em pequenos blocos literários, a partir de paralelismos culminativos101, provocando em alguns momentos, de forma intencional, quebras de coesão a partir da inserção de algumas informações, o que sem dúvida, se caracterizam como ênfase102. Propomos então uma estrutura literária subdividida em pequenos blocos, organizados em forma de paralelismo culminativo, ligando-se uns aos outros através de “ganchos” apresentados no clímax final de cada bloco. Por exemplo: 9

Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον. 10

101

102

ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.

Paralelismo culminativo: “Uma variante do paralelismo sintético (apresenta na segunda linha, uma continuação da ideia da primeira linha, acrescentando-lhe novos aspectos ou explicações) é o paralelismo gradual ou cumulativo, também denominado paralelismo culminativo ou ascendente. Este se caracteriza por desenvolver gradualmente um pensamento em linhas sucessivas, até chegar a um clímax (daí o nome “culminativo”)”. >> Cf. WEGNER, Uve. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal. São Paulo: Paulus, 2002. p. 91-92. Sobre essas quebras de coesão que se constituem como ênfases, veremos a seguir.

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Nesse caso, no primeiro bloco atinge o clímax quando menciona a vinda do λόγος para o κόσμος, abrindo um novo tema, conectando-se no próximo bloco literário, como podemos ver acima. Portanto, segue abaixo nossa a diagramação de nossa perícope a partir dessa proposta, observando e destacando as quebras de coesão proporcionadas pelo redator.

2.5.2. Diagramação da perícope 1

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.

2

οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν.3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν.

ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6

Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιςτεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός.

9

Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον.

10

ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.

11

εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ,

13

οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν.

48

14

Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας.

Estruturamos nossa perícope na forma explicada acima. Portanto,, como dito anteriormente, segue um entrelaçar de “versos”, ligados tematicamente em três a três, com algumas quebras intencionais por parte do redator, sem contar com dois acréscimos de blocos, que parece desentoar fora das características do Prólogo. Veremos isso a seguir.

2.5.3. Integridade e Coesão Segue abaixo novamente a diagramação da perícope, porém, destacando as quebras de coesão e, em nossa perspectiva, possíveis acréscimos da comunidade: 1

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.

2

οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν.3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν.

ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6

Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιςτεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός.

9

Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον.

10

ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.

49

11

εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ,

13

οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν.

14

Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας.

Como já dissemos, percebemos no texto algumas quebras, intencionais, que podem não fazer parte do texto original circulante no seio da comunidade, mas que ao ser anexado no QE, na terceira fase, sofreu algumas alterações a fim de complementar a mensagem e reforçar a catequese do grupo. Portanto, o texto que circulava na comunidade joanina seria um texto mais simples e mais organizado, como propomos abaixo: 1

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.

2

οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει,

9

Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον.

10

ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.

50

11

εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι,

13

οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν.

2.5.3.1. Uma análise rápida 1) Então, a primeira quebra de coesão do texto acontece no final do versículo 5: ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. O “gancho” do último bloco vem do verbo γίνομαι, abrindo um novo tema, sobre a luz, e em seguida, finalizando a temática do bloco. Porém, aparece outro verso, isolado e sem relação com o próximo (v. 9), sendo então, um reforço do redator para o bloco anterior.

2) a segunda quebra acontece com a inserção de um bloco inteiro (vs. 6-8) e autônomo, sem ligação direta com os outros, mas aproveitando um tema comum – a luz: 6

Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιςτεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. Aqui a memória de João Batista é evocada. Entrando a partir do tema da luz, o redator

parece ter introduzido esse relato na dimensão dos conflitos da comunidade joanina com os seguidores de João Batista. Em nossa perspectiva, esse bloco pertence a uma fonte própria de ditos obre João, inserida aqui para esclarecimento e fortalecimento de identidade do grupo.

51

3) A terceira quebra acontece no final do versículo 12: 11

εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ,

O tema segue sobre a vinda do logos ao mundo e depois para os seus, e sobre sua rejeição e aceitação, o que garante o direito de se tornar filho de Deus. Aqui inaugura uma organização diferente, não mais em três versos, mas quatro, e, no final desse bloco, o redator novamente quebra a coesão do texto inserindo um verso isolado, com caráter enfático, tornando indispensável a figura do logos. Percebemos um conflito com os de pensamentos gnósticos.

4) A quarta e última quebra acontece com a inserção do versículo 14: 14

Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας. Em nossa perspectiva, a forma primária do texto terminaria no versículo 13. Porém, no

auge do conflito com as correntes gnósticas, o redator insere esse versículo, na tentativa de reforçar a fé da comunidade, combatendo todo pensamento contrário à encarnação de Jesus, evocando e relendo a tradição do Êxodo, identificando Jesus como o logos encarnado, e ainda, como o Javé que acampa no meio do seu povo – um Deus de perto.

2.6. Análise da Redação Falar das fontes do QE é um grande desafio, visto ser um evangelho que foge de todas as características dos sinóticos. Diversos pesquisadores têm ao longo dos anos levantado diversas hipóteses sobre as fontes joaninas. Para isso, nos apoiaremos em uma teoria literária própria para essa discussão.

52

2.6.1. O uso de Fontes Segue abaixo um quadro comparativo com as possíveis fontes utilizadas na formação final do Prólogo joanino. Ressaltamos o caráter desafiador em tentar descobrir e analisar as fontes do QE:

Tradução formal 1

Em princípio era o

Primeira Fonte 1

logos, e o logos era

(estava) junto a Deus, e

(estava) junto a Deus, e

Deus era o logos.

Deus era o logos.

2

2

Batista

do redator

Este era (estava) em

princípio junto a Deus.

princípio junto a Deus.

3

3

Tudo (todas as coisas)

Fonte própria

Em princípio era o

logos, e o logos era

Este era (estava) em

Fonte sobre João

Tudo (todas as coisas)

por meio dele veio a ser,

por meio dele veio a

e sem ele veio a ser

ser, e sem ele veio a ser

coisa alguma. O que tem coisa alguma. O que feito

tem feito

4

4

nele vida era, e a vida

nele vida era, e a vida

era a luz dos homens

era a luz dos homens

(seres humanos);

(seres humanos);

5

5

e a luz na escuridão

(trevas) brilha, e a

e a luz na escuridão

e a escuridão não

(trevas) brilha.

subjugou.

escuridão não subjugou. 6

Veio a ser homem,

6

Veio a ser homem,

enviado da parte de

enviado da parte de

Deus, nome dele João;

Deus, nome dele João;

7

7

este veio para

este veio para

testemunho, para que

testemunho, para que

testemunhasse a respeito

testemunhasse a respeito

da luz, para que todos

da luz, para que todos

cressem por meio dele.

cressem por meio dele.

8

8

Não era aquele a luz,

mas para que

Não era aquele a luz,

mas para que

53

testemunhasse a respeito

testemunhasse a respeito

da luz.

da luz.

9

Era a luz verdadeira,

9

Era a luz verdadeira,

que ilumina todo

que ilumina todo

homem, vindo para o

homem, vindo para o

mundo.

mundo.

10

10

Em o mundo era

Em o mundo era

(estava), e o mundo por

(estava), e o mundo por

meio dele veio a ser, e o

meio dele veio a ser, e

mundo a ele não

o mundo a ele não

conheceu.

conheceu.

11

11

Para os seus próprios

Para os seus próprios

veio, e os seus próprios

veio, e os seus próprios

a ele não receberam

a ele não receberam.

12

12

Quantos porém

Quantos porém

receberam ele, deu a

receberam ele, deu a

eles direito (autoridade)

eles direito

filhos de Deus vir a ser,

(autoridade) filhos de

os que creem em o

Deus vir a ser.

os que creem em o nome dele.

nome dele. 13

Os quais não de

13

Os quais não de

sangue nem de vontade

sangue nem de vontade

de carne nem de

de carne nem de

vontade de homem mas

vontade de homem mas

de Deus foram gerados.

de Deus foram gerados.

14

E o logos carne veio a

14

E o logos carne

ser e acampou (fez a

veio a ser e

tenda) entre nós, e

acampou (fez a

contemplamos a glória

tenda) entre nós, e

dele, glória como

contemplamos a

unigênito da parte do

glória dele, glória

Pai, pleno de graça e

como unigênito da

verdade.

parte do Pai, pleno de graça e verdade.

54

Primeira Fonte: o que chamamos de Primeira Fonte seria o texto em sua forma mais antiga, circulante no seio da comunidade joanina, sem as quebras e inserções que entendemos que a perícope sofreu antes de sua anexação no QE. Segundo Konings, essa primeira fonte teria sido produto dos discípulos de João Batista, influenciados pelo gnosticismo judaico-iraniano. Nas palavras de Konings: O autor do QE seria um desses “joanitas”, que, por ocasião de sua passagem à comunidade cristã, teria “cristianizado” o hino. Todavia, o hino se explica perfeitamente a partir do judaísmo sapiencial e dos hinos das comunidades cristãs (p. ex., Fl 2.6-11), sem outros intermediários. O Prólogo se baseia em temas do AT: a criação, Gn 1.1-3, a missão da palavra de Deus para produzir seu fruto, Is 55.10-11, a inabitação da sabedoria em Israel, Sr 24 etc.103

Encontramos em Bultmann algumas informações importantes sobre essa fonte. O autor afirma que a originalidade da literatura joanina teria provindo, além de fontes comuns aos Sinóticos, de fontes aramaica ou siríaca, de natureza gnóstica ou proto-gnóstica; que os discursos de revelação, se não foram compostos em língua semítica, teriam sido ao menos pensados de acordo com o estilo e a poesia semítica, com paralelismo e antíteses ocupando papel primordial, em harmonia com o conteúdo dualista. Dessa fonte proviriam o prólogo, as palavras e os discursos do Jesus joanino, e também, toda a linguagem dualista que transparece no pensamento do redator e se encontra espalhada por toda a literatura joanina.104

Fonte sobre João Batista: em nossa perspectiva, existia uma fonte primitiva com relatos acerca de João Batista, e o redator teria assimilado dessa fonte um bloco literário, autônomo e esclarecedor, a fim de reforçar a identidade da comunidade em relação à controvérsia em torno da figura de João Batista.

Fonte própria do redator: já essas intervenções que aparecem no texto, têm um caráter enfático, a fim de reforçar o que já foi dito e ainda são indícios da preocupação do redator diante dos diversos conflitos enfrentados pela comunidade. Portanto, em nossa perspectiva, essa fonte consiste em uma produção própria do redator na intenção de construir e manter a identidade da comunidade.

103 104

KONINGS, 2005, p. 74. Cf. Apud. NASCIMENTO, 2010, p. 26.

55

2.6.2. O contexto da Perícope Outro desafio que encontramos em nossa perícope é a tarefa da determinação de seus contextos menor e maior. Isso porque, como vimos, o Prólogo é produto da terceira fase da comunidade joanina, sendo anexado e harmonizado no corpo do QE, já formado. Portanto, como afirma Nascimento, o Prólogo do QE é a conclusão do Evangelho (exprime a história de Jesus compreendida na fé), e ainda, constitui de qualquer modo a estrutura programática ou ideal de toda narrativa.105 Devido a essa situação e contexto redacional, em nossa perspectiva, o contexto menor do Prólogo é o próprio Prólogo. Outra observação importante acerca do Prólogo é que ele está inserido em um bloco temático, que consiste em alguns testemunhos acerca da pessoa de Jesus. Os primeiros blocos descrevem o testemunho de João Batista sobre Jesus: 1.15-18; 1.19-28; 1.29-31; 1.32-34. A segunda parte de testemunho inicia-se com João Batista também, porém, logo dois de seus discípulos seguem a Jesus, e em seguida, surge o testemunho de André à Simão sobre quem é Jesus – 1.35-42. A última parte consiste no testemunho de Filipe a Natanael, culminando na confissão de Natanael: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” – 1.43-51. Portanto, podemos concluir que o contexto maior do Prólogo é todo o capítulo um, que consiste em um bloco de testemunho acerca de quem é Jesus – levando em conta que o Prólogo também se caracteriza no testemunho de que Jesus é o logos encarnado.

105

NASCIMENTO, 2010, p. 183.

56

Prólogo: 1.1-14 1.15-18: Primeiro testemunho de João Batista

Contexto Maior

1.19-28: Segundo testemunho de João Batista

Contexto Menor

1.29-31: Terceiro testemunho de João Batista Tema de Coesão: Testemunho

1.32-34: Quarto testemunho de João Batista

O próprio Prólogo

1.35-42: Testemunho de João Batista e André 1.43-51: Testemunho de Filipe

2.7. Análise das Formas O Prólogo é, ao mesmo tempo, uma introdução ao QE, e uma síntese do conteúdo. E se apresenta em forma de um hino, como afirma Nascimento106, formando-se a partir de um entrelaçar de prosa e poesia. Segundo Konings, esse hino (o Prólogo) lembra os antigos hinos cristãos, Fl 2.5-11; Cl1.12-20; Ef 1.3-10. Percebe também algum parentesco com a abertura da Primeira Carta de João (1Jo 1.1-4) ou da Carta aos Hebreus (Hb 1). Nas palavras de Konings: Considerando que o QE nos introduz no mistério de Jesus-Messias, o prólogo seria o “hino de entrada”; ou, se compararmos o Evangelho de João com um espaço sagrado no qual somos introduzidos, o Prólogo seria o pórtico de entrada.107

Portanto, compreendemos o Prólogo como um hino cristológico, com uma reflexão sobre a preexistência de Cristo na criação a partir de sua mediação na história. Levando em conta a Teoria Literária que apresentamos, e por definir que se apresenta em forma de hino, podemos dizer que o Prólogo não possui uma fórmula de apresentação.

106 107

NASCIMENTO, 2010, p. 57. KONINGS, 2005, p. 74.

57

O Prólogo é produto da terceira fase de redação do QE, e mesmo sendo um hino, possui um caráter apologético marcante em toda a sua estrutura e desfecho, com dimensões teológicas fortíssimas. Portanto, em nossa perspectiva, o Prólogo como realidade literária, consiste em um hino cristológico (em seu estágio primitivo) que era utilizada no cotidiano das celebrações, que num determinado momento, sofre intervenção por parte do redator, e começa a ser utilizado para o ensino da comunidade, sendo posteriormente anexado no QE como prólogo. Isso determina o lugar vivencial de nossa perícope. Sobre a intencionalidade da perícope, vale destacar: a) Intenção genérica: utilizada como hino para fortalecer a fé da comunidade durante as celebrações, como forte caráter litúrgico; b) Intenção específica: utilizada no ensino, enfatizando a fé na encarnação de Jesus;

2.8. Análise da Tradição A partir da análise sincrônica, podemos identificar em nossa perícope algumas imagens que merecem destaque: a criação e o projeto do êxodo. O Prólogo é uma obra de expressão redacional, e sem dúvida trouxe um grande impacto no cotidiano e na fé dos joaninos. Isto porque, em nossa perspectiva, fundem-se aqui duas importantes tradições do povo de Israel: a tradição da Criação (Gênesis) e a tradição do Deserto (Êxodo). É claro que o Pentateuco perpassa por todo o imaginário evangélico, porém, em especial, nota-se esses dois projetos de uma forma específica e enfática. Como vimos acima, o Prólogo retoma a tradição da Criação na perspectiva de identificar o λόγος – Jesus – ao Criador de todas as coisas, reforçando ainda a dependência de todas essas coisas em relação a esse λόγος, ou seja, só existe o que permanece nele. Já a tradição do Deserto vem reforçar a ideia da encarnação desse λόγος, ou seja, evoca no seio da comunidade o imaginário de um Deus – identificado como o próprio λόγος – que vive perto do povo, que “acampa, faz a tenda” e habita no meio de seu povo. Nesse caso, duas releituras importantes: o λόγος se faz carne – ênfase na encarnação; e quem contempla a glória não é apenas um, mas todos - καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ - numa releitura do Tabernáculo.

58

2.9. Projeção para o próximo capítulo Ao longo desse capítulo, sob uma perspectiva exegética, abordamos a perícope de João 1.1-14 na tentativa de compreender o impacto desse texto na comunidade no período pós-cisma. Além de buscarmos pistas para a valorização da diversidade dentro de um movimento tão marcante como o cristianismo. Portanto, no próximo capítulo temos como tarefa o esforço de sintetizar os indícios levantados até aqui, na finalidade de lançar luz em nossa discussão. Percebemos nitidamente que o Prólogo é carregado de uma pluralidade teológica e, ainda, se apresenta como um testemunho histórico de conflitos e valorização da unidade. Mas, o que nos chama atenção é a harmonização feita pelo redator em relação à essa pluralidade. Além de reunir num único texto diversas tradições teológicas e mnemônicas, o redator realiza essa tarefa de uma forma harmoniosa, ou seja, não simplesmente reúne fragmentos de textos e memórias, mas, a partir de uma quebra de coesão intencional108, proporciona um diálogo entre essas teologias e memórias, tornando o Prólogo no texto que temos em nossas mãos. É o que veremos em nosso capítulo conclusivo.

108

Como vimos no tópico Integridade e Coesão.

CAPÍTULO 3 PLURALIDADE E UNIDADE: DESAFIOS JOANINOS

O QE deve ser lido em duas perspectivas: a da história de Jesus e a própria história da comunidade joanina. Isto porque, o texto do QE nasce em etapas109, e vai gradativamente sofrendo alterações e sendo sistematizado de forma que atue como resposta aos diversos conflitos sofridos pela comunidade ao longo da metade do primeiro século até o início do século II. Tanto em dimensão externa, como interna, a comunidade joanina teve que aprender a lidar com seus conflitos e polêmicas, que, sem dúvida alguma foram marcantes e decisivos quanto ao futuro dos cristãos joaninos. Diante de todos esses problemas, a comunidade joanina, que era formada por diferentes grupos, teve que deixar de lado as diferenças e o preconceito, em busca de unidade, a fim de se fortalecer frente aos desafios que estavam às portas. Portanto, o texto do QE se torna para nós um paradigma quanto à valorização da pluralidade, com ênfase na inclusão de pessoas “diferentes”, em troca de um “bem comunitário” maior. Sendo assim, o QE ainda ilumina nossos dias, e, desafia nossa realidade, pois a intolerância vem sendo alimentada por um cristianismo sectário e uniformizador, que, ao longo dos anos, tem sido um forte colaborador na sustentação do preconceito. Diante disso, temos nesse último capítulo a tarefa de reconstruir o discurso identitário da fé da comunidade joanina diante dos conflitos enfrentados. Faremos uma síntese dos indícios levantados nos capítulos anteriores, e ainda, a partir de uma abordagem hermenêutica, teremos

109

Sobre as etapas de redação do QE, conferir o tópico Teoria Literária.

60

na proposta de fé da comunidade joanina frente sua realidade plural, um novo paradigma para nossa realidade, o que nos coloca nas trilhas para a superação desse cristianismo intolerante e sectário de nossos dias.

3.1. Marco Identitário Joanino: Pluralidade e Unidade Diversos conflitos surgiram ao longo de toda a história dos joaninos, o que os obrigou a sempre repensarem e fortalecerem sua identidade. Portanto, o texto do QE é um produto de diversas reflexões e esforços dos redatores, e carrega por trás de cada palavra a história da própria comunidade, marcada por disputas e dissensões. O Prólogo é um produto da terceira fase da comunidade. O grupo por trás desse texto não é mais uma comunidade na Transjordânia e, sim, na Ásia, mais precisamente em Éfeso. Ao lermos o Prólogo, estamos diante de uma comunidade pós-cisma. A cisão sofrida pela comunidade tem sua origem em diversos aspectos, mas principalmente pela dissensão gnóstica no seio da comunidade. Joaninos influenciados por esses pensamentos incitaram disputas e divisões, o que abalou seriamente a unidade do grupo. Já instalada em Éfeso, a comunidade joanina tem no Prólogo um indício da tentativa de sua liderança, através de seus redatores, em reforçar a identidade desse grupo frente aos traumas, às ameaças antigas e ainda, aos novos desafios colocados frente ao pluralismo religioso do mundo mediterrâneo. Portanto, faremos abaixo um síntese dos indícios de pluralidade joanina encontrados na perícope de João 1.1-14.

3.1.1. Diversidade teológica e mnemônica na perícope: Pluralidade 3.1.1.1. Releitura da memória de João Batista O conflito com os seguidores de João Batista, tornou-se gerador de unidade. Apesar de toda a disputa entre os joaninos e “os do Batista”, o Prólogo preserva uma memória de João Batista, porém, com uma releitura de seu ministério. Possivelmente, o movimento joanino teve suas raízes entre os discípulos de João Batista, especialmente o Discípulo Amado. Apesar da adesão dos joaninos à Jesus como o Cristo, João Batista certamente continuou sendo uma referência para esses, que sem dúvida, foram alvos de grande crítica por parte dos que se mantiveram fiéis à João Batista.

61

A presença dessa memória ressignificada representa forte indício da permanência desses joaninos após o cisma sofrido pela comunidade. Como o Prólogo se apresenta como produto da última fase de redação do QE, não faria muito sentido manter essa memória frente à ausência desses joaninos específicos. Como os seguidores de João Batista o identificavam como o Cristo, coube à comunidade joanina uma prudente correção dos exageros por parte dos batistas. Portanto, o fragmento mnemônico de nossa perícope apresenta-se como uma releitura da memória de João Batista, como vemos abaixo: Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιςτεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. 6

6

Veio a ser homem, enviado da parte de Deus, nome dele era João. 7 Este veio para testemunho, Para que testemunhasse a respeito da luz, Para que todos cressem por meio dele. 8 Não era aquele a luz, mas para que testemunhasse a respeito da luz.

É nítida a releitura da comunidade joanina sobre o ministério de João Batista: Ele é uma testemunha da verdadeira luz – Jesus. O trecho dá uma forte ênfase na palavra testemunha (que aparece três vezes), e ainda, deixa claro que ele não é a luz, e que João Batista seria um instrumento para conduzir à fé na verdadeira luz. Esse fragmento certamente mantém viva a memória de João Batista, porém reforça a fé em Jesus como Cristo, a verdadeira luz.

3.1.1.2. Teologia do Deserto: a perspectiva samaritana Chamamos aqui de Teologia do Deserto, a tradição do Êxodo presente na perícope de João 1.1-14, que, em nossa perspectiva, está diretamente relacionada com a presença de samaritanos na comunidade joanina.110 Ainda na ótica dos conflitos que geram unidade, percebemos o esforço do redator em valorizar a presença dos samaritanos, mantendo a Teologia do Deserto, ou seja, a teologia vigente no norte de Israel. A teologia dos samaritanos era fundamentada na tradição de Jacó (João 4.12 – Jesus e a mulher samaritana) e, principalmente, pela tradição de (Êxodo). Muito improvável seria que os samaritanos aclamassem Jesus como Messias sob uma perspectiva davídica, pelo contrário, seria visto como um segundo Moisés111, tamanha tradição acerca desse ícone na história dos samaritanos. Algumas palavras e expressões ajudam a atestar essas afirmações:

110 111

Sobre isso, conferir o tópico Os samaritanos. BROWN, 1999, p. 39.

1) ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν

1) Acampou entre nós

2) ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ

2) Contemplamos a glória dele

3) τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ

3) Os que creem em o nome dele

4) θεὸς ἦν ὁ λόγος

4) Deus era o logos

Segundo a classificação do campo semântico proposta aqui, Jesus é o logos, e o logos é o Javé que se manifesta no Êxodo, a Moisés e a todo povo. Isso porque no Prólogo percebemos alguns indícios interessantes. O logos aparece como sendo Javé, e este, cria todas as coisas. No v. 14, esse logos se encarna, e o texto diz que ele faz sua tenda no meio de nós. O redator utiliza o verbo σκηνόω112, que traz a ideia de habitar em tendas. Isso, sem dúvida evoca à nossa mente o imaginário do tabernáculo e o projeto de um Deus que anda junto com seu povo em meios às aflições no deserto. Vale ressaltar que esse verbo se apresenta no tempo verbal aoristo, o que certamente traz um tom enfático na ação do logos em habitar em uma tenda, reforçando o imaginário do Tabernáculo no seio da comunidade joanina. Mas o redator faz uma mudança significativa em sua recuperação dessa imagem tão importante para o povo de Israel. Na tradição do deserto, Moisés era o único capaz de comtemplar a glória de Javé no deserto. Porém, na perícope, o redator, de forma muito sutil, altera esse projeto, dando um novo significado: “contemplamos a glória dele”. Como vemos abaixo: καὶ ἐθεασάμεθα113 τὴν δόξαν αὐτοῦ

E contemplamos a glória dele (v. 14b)

O redator emprega o verbo θεάομαι na 1ª pessoa do plural e, ainda, no aoristo. Isso traz uma nova dimensão na fé da comunidade joanina a partir de uma leitura radical da contemplação no Tabernáculo. A contemplação da glória de Deus, que outrora, estava disponível apenas para um sacerdote ou alguém especial, agora está à disposição para todo aquele que crer no “nome dele”, ou seja, no nome de Jesus – o logos que se fez carne. Essa conexão com a fé no nome do logos reforça uma teologia anti-gnóstica no seio da comunidade, mas isso veremos a seguir. Outra característica do deserto é o Deus que não tem nome. Muito se tem discutido acerca do nome Javé. Certamente saber o nome da divindade era algo essencial na fé de todos

112

113

Classificação morfológica do verbo σκηνόω no texto bíblico: modo indicativo, tempo aoristo, voz ativa, 3ª pessoa do singular. Forma no texto: ἐσκήνωσεν. Forma flexionada do verbo θεάομαι. Classificação morfológica no texto bíblico: modo indicativo, tempo aoristo, voz média/depoente, 1ª pessoa do plural.

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os povos e, com Israel não seria diferente. Entretanto, contrariando alguns pesquisadores, seguiremos numa ótica um pouco diferente da convencional. Para isso, buscamos apoio em Fílon de Alexandria114. Javé não representa um nome próprio, mas um referência de identificação. A ação de dar nome a alguma coisa ou alguém, representa a capacidade de dominar e/ou manipular, e ainda, representa a capacidade de dimensionar o objeto ou a pessoa a qual se dá um nome. Roland de Vaux nos ajuda nessa compreensão acerca da importância do nome: Como entre os povos primitivos, o nome em todo Oriente define a essência de uma coisa; nomeá-la é conhecê-la e, portanto, ter o poder sobre ela. Se no paraíso terrestre Deus deixa o primeiro homem nomear os animais, Gn 2.19-20, é porque assim o põe sob seu domínio, conforme o relato paralelo, Gn 1.28. Se se trata de uma pessoa, conhecer seu nome é poder prejudicá-la: daí os nomes tabu entre os primitivos, os nomes secretos entre os egípcios; ou beneficiá-la, como Moisés que Deus conhece pelo nome (Êx 33.12,17). Daí provém a importância para o fiel de conhecer o verdadeiro nome de seu Deus (Êx 3.13-15; Gn 32.30), e esse traço se encontra em todas as religiões orientais. Finalmente, como o nome define a essência, revela o caráter e o destino daquele que o tem. O nome vem a ser a expressão de uma esperança, ou um símbolo que se procura decifrar com etimologias afins.115

Portanto, podemos dizer que o Deus do deserto se apresenta como uma divindade sem nome próprio, pois é impossível de se dimensionar esse Deus e, ainda, conhecê-lo por inteiro. Não existe um nome que seja capaz de abarcar toda a essência desse Deus, portanto, o substantivo Javé apresenta-se como um referência desse Deus, ou seja, um meio para se identificar o Deus de Israel, o Deus do deserto, o “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. Isso fica muito nítido na passagem que retrata a “luta” de Jacó com Deus em Peniel (Gn 32.22-32). Jacó, em determinado momento de seu encontro, pergunta para Deus: “Qual o teu nome?” (Gn 114

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Filo, falando em conexão com Êxodo 3.14 (LXX), e influenciado pela filosofia estóica, diz que Deus é Aquele que Existe; é somente a Ele que pertence a existência por direito. Este fato, porém não se pode expressar em palavras humanas, e, assim, o nome verdadeiro de Deus nunca chega aos homens. Deus diz a Moisés: “Para mim, a quem pertence o direito exclusivo a Existência, não há mesmo nome algum que condiga com a Minha natureza” (Vit. Mos. 1, 75). Aos homens, chegou apenas o nome kyrios ho theos, “o Senhor Deus” (Mut. Nom. 11 e segs.). Os homens podem invocar a Deus somente com o nome relativo de “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó” (Abr. 51). Para Filo, em total oposição ao AT, Deus não tem nome pessoal. As palavras theos, “Deus”, e kyrios, “Senhor”, segundo Filo, meramente indicam poderes dentro de Deus: “Senhor”, o poder da soberania, e “Deus”, o poder da Graça. A opinião de Filo, de que o poder da Existência tem muitos nomes, também é estóica (Som. 2, 354). Ainda assim, devemos reverenciar até os nomes puramente relativos de Deus, que não designam Sua Existência essencial; devemos acautelar-nos contra o abuso e a blasfêmia destes nomes, e contra o emprego de nomes tremendos e terríveis (Spec. Leg. 4, 40; 2, 8: Decal. 93-94). >> Cf. BROWN, Colin; COENEN, Lothar (Orgs.). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Tradução de Gordon Chown. 2 ed. v. 2. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 1397. VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Teológica, 2002. p. 66.

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32.29). Deus, como se o ignorasse, não responde a essa pergunta. Em outro texto muito discutido, Êxodo 3.13-15 – encontro de Moisés com Javé na sarça ardente –, Moisés apresentase preocupado em saber o nome do Deus que ele representaria frente aos hebreus. Javé, mais uma vez, como se esquivasse do interesse sobre Seu nome, dá uma resposta que mais parece refletir em suas ações do que definir um nome. Em nossa perícope encontramos algo muito interessante nessa direção. Percebemos no texto um logos sem nome. Ao longo do desenvolvimento do Prólogo, menciona-se e refere-se ao logos utilizando pronomes na terceira pessoa do singular, e nunca um nome. Vejamos abaixo: 1 Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2 οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6 Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιςτεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. 9 Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον. 10 ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. 11 εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ, 13 οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν. 14 Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας. Os pronomes αὐτός e οὗτος aparecem ao longo do texto 15 vezes, sendo 11 vezes relacionados com a pessoa do lógos. É a palavra que mais aparece no texto. Levando em conta a característica literária do koinê, podemos dizer que essa repetição representa uma ênfase do redator em dirigir-se ao logos com um pronome, já que não possui um nome próprio, pois ele é o Javé do deserto. Essa perspectiva se firmará quando relacionada com a memória de João Batista.

3.1.1.3. Teologia da Encarnação: anti-gnóstica116 Outra presença marcante em nossa perícope é a tradição anti-gnóstica, a partir de uma teologia fundamentada na encarnação do logos. Como o conflito com as correntes gnósticas representa para nós uma ruptura de grande trauma, podemos afirmar que a maior finalidade do Prólogo (como produto de terceira fase de redação) é catequética, ou seja, utilizado no ensino 116

Lembrando que o Gnosticismo como movimento é posterior ao QE. As ideias gnósticas precedem o movimento. A comunidade joanina é testemunha das ideias que vão gerar o movimento.

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para enfatizar a fé na encarnação de Jesus, com isso, fortalecendo a identidade da comunidade. No século I, as ideias gnósticas circulavam na sociedade sem constituírem um movimento organizado, apenas como uma visão capaz de influenciar a maneira de pensar da época, inclusive a fé. Foi nesse contexto que a comunidade joanina sofreu influências dessas ideias e, alguns da comunidade interpretaram Jesus à maneira gnóstica. Algo inaceitável para os joaninos “ortodoxos”. Portanto, como afirma Nascimento, a comunidade joanina expressa sua fé num vocabulário próprio aos gnósticos, reforçando diante da gnose a fé no logos encarnado117. Até porque, mesmo com a saída dos “hereges”, o vocabulário e algumas ideias gnósticas permaneceram na comunidade, com um solo comum para apoio: a linguagem de Gênesis (Criação).118 A perícope de João 1.1-14 começa com a expressão Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος. Essa expressão é semelhante à primeira expressão de Gênesis, na tradução da Septuaginta: Ἐν ἀρχῃ̂ ἐποίησεν ὁ θεὸς. Levando em conta que ainda no v. 1 do Prólogo o logos é identificado como o próprio Deus (καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος), percebemos que Jesus Cristo é chamado de logos, fazendo alusão à palavra criadora de Deus (Gn 1.1-26; Sl 33.6), à sua palavra reveladora (Sl 33.4; 119.89), à sua palavra salvadora (Sl 107.20) e à sua sabedoria divina (Pv 8.22-31). Portanto, o logos, é identificado mais com a davar (Palavra criadora) do Gênesis do que com a filosofia grega. Segundo Konings, as primeiras palavras (Ἐν ἀρχῇ) já mostram o pano de fundo sobre o qual se perfila o Prólogo: o AT, mais precisamente, Gn 1.1, a criação do universo.119

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Nas palavras de Nascimento: “Enfatizamos somente como as formas gnósticas de cristianismo interagem com o QE – e o que isto nos diz sobre as origens do cristianismo sem considerar a questão sobre as origens do gnosticismo. Podemos, contudo, reconhecer o Gnosticismo pela presença de elementos tais como: o dualismo metafísico; a existência de seres intermédios entre Deus e o homem; a intervenção destes seres na produção do mal; o mundo material considerado mal; o conceito de alma como prisioneira da matéria; a necessidade de conhecimento adquirido pela revelação para libertar a alma e conduzi-la à luz; a limitação do número dos que podem chegar a esta revelação; a figura e a função do revelador que salva. O gnóstico sabe o que éramos e o que seremos; de onde viemos e para onde vamos; de onde vamos; de onde somos resgatados; o que é nascer e o que é renascer. O conhecimento está centrado no sujeito que conhece; conhecer é essencialmente conhecerse, ou seja, reconhecer o elemento divino que constitui o próprio ser, e através deste conhecimento, chegar à salvação”. >> Cf. Nascimento, 2010, p. 45. (Baseado em: PONGUTÁ, Silvestre. El Evangelio según Juan. Cartas de San Juan, p. 63-64). Sobre a Hipóstase dos Arcontes: A Hipóstase dos Arcontes (“A Realidade dos Soberanos”) é um tratado anônimo que apresenta uma interpretação esotérica do Gênesis 1-6, parcialmente na forma de um discurso de revelação entre um anjo e um interrogador. Enquanto o tratado ilustra um amplo sincretismo helenístico, os componentes mais evidentes são os judaicos, porém o fato de sua presente forma apresentar características claramente cristãs, pode-se considerar A Hipóstase dos Arcontes como um obra cristã. Sua perspectiva teológica nutre um Gnosticismo vigoroso de uma possível afiliação sethiana. O documento está datado por volta do século III E.C. e, possivelmente, seja uma tradução do grego. A Hipóstase dos Arcontes é certamente uma obra de um mestre gnóstico transmitindo um ensinamento a um público. Constitui-se de uma obra esotérica escrita por uma comunidade consciente de si e que, provavelmente, sentiu pressão de uma comunidade cristã que se defendia como ortodoxa e que via as outras como heréticas. Cf. ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag Hammadi. Tradução de Teodoro Lorent. São Paulo: Madras, 2006. p.144-145. KONINGS, 2005, p. 76.

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Outro indício importante é a presença do dualismo metafísico entre luz e trevas, muito marcante no Gênesis. Além disso, uma menção da dependência cósmica de todas as coisas (kosmos) em relação ao logos, que é Deus. Repare as palavras e expressões que se reúnem a partir dessa tradição: Ἐν ἀρχῇ

Em princípio

οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν

Este era em princípio junto a Deus

πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο

Tudo por meio dele veio a ser

καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει

E a luz na escuridão brilha

ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο

O mundo por meio dele veio a ser

ζωὴ / πάντα / φῶς-σκοτίᾳ / κόσμος

Vida / todas as coisas / luz-trevas / mundo

Sendo assim, a partir de um pano de fundo comum ao conflito – a criação –, a comunidade joanina desenvolve sua teologia anti-gnóstica, fortalecendo a identidade do grupo. Apontaremos algumas ênfases dessa teologia, que denominamos aqui como Teologia da Encarnação. Uma importante ênfase da teologia anti-gnóstica de nossa perícope circula dentro do universo da redenção (ação salvífica). Os de influência gnóstica criam que a existência de Jesus, apesar de real, não era significativa do ponto de vista salvífico. Portanto, para esses, o que Jesus realizou na Palestina não era importante, nem mesmo o fato de ter ele morrido na cruz. Além disso, esses “adversários” reivindicavam uma intimidade com Deus ao ponto de as pessoas se tornarem perfeitas e sem pecado. Com isso, a ação de Jesus começa a ser reinterpretada. Jesus passa a ser visto pelos gnósticos como o logos que veio de Deus como portador do conhecimento pleno. Porém, quando compartilhado, deixava de exercer papel central na vida das pessoas. Com isso, aquele que tivesse acesso a esse conhecimento revelado pelo logos (Jesus) tornava-se perfeito, sendo igualado a esse logos. O que tornava esse logos dispensável após sua atuação de revelador. Por isso, a ação de Jesus na cruz deixa de ser vista como evento salvífico e passa a ser desvalorizada pelos gnósticos, pois, todos agora são “filhos de Deus” por meio da gnose revelada pelo logos. A ideia de ser filiado a uma divindade, num sentido ou noutro, era extremamente difundida no mundo antigo. E essa ideia de filiação se associa com a de redenção: para os gnósticos, Jesus era dispensável. A partir do momento em que Jesus propiciava a “iluminação”, todos se tornavam iguais a ele.

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Em oposição à ideia de que Jesus era dispensável para a salvação (redenção) percebemos o esforço do redator ao longo de todo o Prólogo. Vejamos abaixo algumas ênfases nessa direção: (1.2-3) 2 οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν. Nesse primeiro trecho (1.2-3) percebemos a ênfase dado à importância do logos na criação. O redator destaca que o logos estava com Deus no princípio de tudo, antes de toda a criação e todas as coisas vieram à existência por meio desse logos. Ressalta ainda que sem ele (logos) “veio a ser” coisa alguma, ou seja, sem a ação e essência desse logos, nada teria existido. Percebemos então, uma dependência cósmica de todas as coisas em relação ao logos. Certamente um forte aspecto na fé dos joaninos. (1.3b-4a) ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν Ainda na mesma direção da dependência cósmica, esse trecho é carregado de uma forte valorização da comunhão plena com o logos. Isso porque, pela tradução, entendemos que “o que ‘tem existido’ nele vida era”, ou seja, tudo e todos que colocam a existência no logos têm a certeza da vida. Quem se arrisca em “existir” fora do logos não tem vida, isto é, morre. Percebemos, então, associado ao logos a garantia da vida. Portanto, a comunhão permanente com o logos é a exigência da vida eterna. (1.10) 10 ἐν τῷ κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι ᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. De uma forma especial, nesse trecho o autor associa uma expressão muito comum no mundo da gnose: οὐκ ἔγνω – não conheceu. Essa expressão, associada ao mundo criado pelo logos reforça a ideia da dependência cósmica de todas as coisas em relação ao logos e, ainda, de certa forma, critica o mundo de não conhecer o próprio logos que o criou. Certamente uma grande crítica aos gnósticos por não enxergarem Jesus da maneira “correta”. (1.11-12) 11 εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ, Aqui continua, de certa forma, o tema da rejeição do logos e aparece um novo tema: a filiação. O trecho se desenvolve nesse novo tema, pois rompe com a ideia da eleição e privilégio por parte dos gnósticos. Ao associar os verbos παρέλαβον e ἔλαβον, o redator reforça a ideia de que a única exigência para se tornar “filho de Deus” é a fé no nome do logos (Jesus). Portanto, a filiação com Deus está diretamente ligada à fé em Jesus.

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(1.14b) καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, E por fim, ainda na ideia da filiação, o redator arremata o tema a partir de uma expressão associada ao logos: μονογενοῦς παρὰ πατρός. Segundo o redator, o logos (Jesus) é o “monogênito do Pai”, e, essa palavra merece nossa atenção: monogênito = mono (único) + gênito (gerado) – ou seja, Jesus é o “único gerado” da parte do Pai. A princípio, a ideia é de que o Pai teria apenas um filho, contrariando a sentença do versículo 12. Porém, inserido no universo do combate à redenção gnóstica no qual estamos inseridos, podemos dizer que essa expressão associada ao logos tem uma relação direta e coerente com o versículo 12: todos que crerem no nome do logos serão gerados “filhos de Deus”, porém, o logos (Jesus) é o monogênito – único gerado. Isto é, todos podem, pela fé em Jesus, tornarem-se “filhos de Deus”, mas Jesus continua sendo diferenciado, pois ele é o monogênito da parte do Pai, portanto, nunca seremos igualados a Jesus (logos).

A partir dessa breve análise, podemos dizer que a comunidade joanina rebate a redenção gnóstica enfatizando bravamente que Jesus não é dispensável e, ainda, jamais seremos igualados a ele, pois ele é o monogênito da parte do Pai. O projeto de redenção joanino passa intrinsecamente pela comunhão plena e permanente com o logos (Jesus) e ainda, exige uma fé constante no nome de Jesus: Jesus é indispensável na ação salvífica de Deus no mundo. Mas, podemos dizer que a maior ênfase do Prólogo está no evento encarnação do logos. Afirmamos isso a partir de nossa estrutura literária organizada em paralelismos culminativos120. Como afirmamos anteriormente, o Prólogo se organiza em pequenos blocos, em paralelismos culminativos, ligando-se uns aos outros em “ganchos temáticos”, apresentando a cada final de bloco um clímax. Nessa ótica, podemos dizer que a perícope atinge seu clímax máximo no versículo 14, que é quando aparece a afirmação sobre a encarnação do logos. Vejamos abaixo: Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο121 καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας. 14

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E o logos carne veio a ser E acampou entre nós, e contemplamos a glória dele, glória como unigênito da parte do Pai, pleno de graça e verdade.

Sobre isso, conferir o tópico Análise Literária. Forma flexionada do verbo γίνομαι. Classificação morfológica no texto bíblico: modo indicativo, tempo aoristo, voz média/depoente, 1ª pessoa do singular. Certamente se apresenta aqui com forte ênfase na ação de se fazer carne.

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Ao analisarmos o bloco literário acima, percebemos a ênfase direta na encarnação do logos. Destaque para o verbo γίνομαι associado à palavra σὰρξ. Algo inadmissível na fé gnóstica. E, ainda, a glória do logos só pode ser contemplada quando esse logos se faz carne e passa a habitar entre nós. A partir da realidade histórica da encarnação, o logos é glorificado e se encontra pleno em Graça e Verdade. Outras expressões nos ajudam nessa compreensão: ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον

Vindo para o mundo

ἐν τῷ κόσμῳ ἦν

Em o mundo era (estava)

εἰς τὰ ἴδια ἦλθεν

Para os seus veio

Percebemos ainda, através dessas expressões, um forte destaque no relacionamento do logos com o kosmos, com ênfase no verbo érkomai (vir) – indicando a ação do logos em vir para esse mundo (encarnação). A comunidade joanina faz do Prólogo um grande instrumento para fortalecer a fé e a identidade do grupo. Diante de tantas dissensões e ameaças, a fé no logos encarnado se torna o principal fundamento dessa comunidade na luta pela superação do trauma gerado pelo cisma e, ainda, a marca de sua identidade plural. Ao final desse mapeamento, a partir da diversidade apresentada, poderíamos representar o Prólogo a partir da imagem abaixo:

Teologia da Encarnação

Teologia do Deserto

Memória de João Batista

João 1.1-14

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3.1.2. Harmonização do redator: Unidade Vimos acima a diversidade teológica e mnemônica que nossa perícope contempla. Porém, com já dito, o que ressalta aos nossos olhos é a capacidade de harmonização empregada pelo redator do QE em sua terceira fase. Dizemos isso, porque, além de reunir nessa perícope uma gama de tradições e memórias, o redator realiza um esforço notável e bem sucedido para exercer entre essas tradições um importante diálogo, forjando a marca identitária da comunidade: unidade na pluralidade. Mapeamos acima pelo menos três tradições marcantes no universo joanino presentes em nossa perícope: Memória de João Batista; Teologia do Deserto; e Teologia da Encarnação. Mas, o redator não simplesmente reúne fragmentos de textos acerca dessas tradições. Antes, a partir de algumas estratégias literárias, constrói uma relação de interdependência entre essas tradições na construção de todo o Prólogo, transformando-o no texto que temos hoje. Diversos são os temas teológicos presentes em nossa perícope. Entretanto, encontramos no tema da luz – φῶς – uma importância singular. Isso, porque, em nossa perspectiva, a luz exerce uma função harmonizadora ao longo do prólogo, conectando, de uma maneira significativa, todas as tradições teológicas e mnemônicas mapeadas até aqui. Claro que alguns outros fatores contribuem para essa harmonização, e isso veremos a seguir. Porém, certamente, o tema da luz aparece com maior ênfase, por isso dedicaremos algum espaço a esse elemento tão importante em nossa perícope.

3.1.2.1. Um elemento harmonizador em nossa perícope: a luz – φῶς Para discutir esse tema, nos apoiaremos em um importante pesquisador, Charles H. Dodd, com sua obra A Interpretação do Quarto Evangelho.122 Segundo o autor, o QE em diversas fórmulas une “vida” e “luz”, ou seja, esses dois conceitos parecem estar associados. Ao que tudo indica, a luz parece ser um símbolo natural para a divindade, como afirma Dodd: O culto ao sol foi certamente uma das crenças vivas do mundo antigo, e foi renovado durante o Império Romano. Para o simples observador, a luz do sol é não só a causa da vida sobre a terra, mas também, ao mesmo tempo, o meio pelo qual ficamos sabendo dos fenômenos. Platão deu a esta concepção caráter filosófico quando ele usou o sol como símbolo da Ideia do Bem, que é ao mesmo tempo a ratio essendi e a ratio cognoscendi do universo, e que ele identificou – ou de qualquer forma foi entendido como se identificasse – com o Deus supremo.123

122

123

DODD, Charles Harold. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Teológica/Paulus, 2003. p. 269282. Id., Ibid., p. 270.

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Portanto, usando o símbolo da luz foi possível dar uma ideia da relação do absoluto para com os fenômenos, de Deus para com o universo. “A luz se comunica por irradiações que são emanações de sua própria substância”. Sendo assim, como observa Dodd, Deus é a luz por cujas difusas radiações apreendemos o mundo fenomenal: “à medida que subimos na escala, somos iluminados por estas radiações superiores que são as ideias que constituem o cosmos noetos, até que afinal o místico contempla a própria Luz (que é Deus) não por uma luz qualquer emprestada, mas por ela mesma”. Como notamos, a luz é comumente associada com a vida enquanto descrição do real ou do divino. Portanto, como afirma Dodd, se a fonte da luz, pela qual conhecemos, é também a fonte da vida, então, à medida que avançamos no conhecimento rumo à visão da Luz, nós também participamos da Vida. O autor ainda observa que entre as fontes a partir das quais esta doutrina da vida e da luz como unidade era composta, devemos incluir as Escrituras hebraicas: No Antigo Testamento ambos os termos são usados com frequência para expressar aquela felicidade última ou salvação que é um dom de Deus aos homens. Neste sentido, e só neste sentido, pode-se dizer que Deus é a luz do seu povo. Os dois termos são associados no Sl 35; 36.10. [...] ambos estão falando da “ideia” eterna de luz, da qual todas as luzes empíricas são cópias transitórias. Esta luz exemplar – diz João – estava “no” Logos, e é de certa forma intercambiável com a vida (1.3-4). O Logos é o topos da vida e da luz exemplares; estas são aspectos do Logos; enquanto que, para João o Pai do qual o Logos é o Filho, é anterior a todos os arquétipos.124

Portanto, se lermos as proposições contidas no Prólogo, 1.5-10, com referência à φῶς τὸ ἀληθινόν, que é seu imediato sujeito, aprendemos que a luz exemplar brilhou nas trevas (do não-ser, da ignorância e do erro), e resistiu aos assaltos das trevas. Ela está no mundo. Ela ilumina todo homem. A maior parte da humanidade, todavia, não está consciente da presença da luz, mas aqueles que “recebem” a luz, tem aquele conhecimento de Deus que os faz filhos de Deus e participantes de sua vida. Segundo Dodd, o fato decisivo no QE é que a luz exemplar se manifestou na pessoa de Jesus. Ele é a Luz na qual vemos a luz, isto é, ele é a aletheia, realidade revelada, como é também zoe. Ele é para o homem o mediador daquele conhecimento de Deus que é a vida eterna. Então, quando João fala da luz que vem ao mundo está sempre pensando no aparecimento de Jesus na história. É enquanto encarnado que, tendo vindo ao mundo, ele se torna to phos tou kosmou. Portanto, o atributo específico da luz é que, enquanto todas as outras coisas são vistas

124

DODD, 2003, p. 272.

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e conhecidas por meio da luz, a luz é conhecida apenas por si mesma: phos photi blepetai. De fato, a afirmação de ser “luz” não poderia ser confirmada por nenhuma outra coisa, senão pelo brilhar da luz. É o conteúdo de todo o evangelho, que a obra de Cristo a si própria se comprova; suas obras são luminosas. Sobre isso, Dodd ainda afirma: Isto vem expresso no Prólogo na asserção de que no Cristo encarnado os homens viram a “glória” do Logos eterno. O clímax da série de declarações sobre a luz eterna no Prólogo é a afirmação de que o Logos, o topos tanto da vida como da luz; sarks egeneto, e o efeito disso – diz o evangelista – foi que etheasametha tem doksan autou (1.14). A associação de doksa com phos remonta ao Antigo Testamento.125

Outra importante literatura que podemos buscar apoio e diálogo, é a recente tese de doutorado de Maria Aparecida de Andrade Almeida.126 Segundo Almeida, no Prólogo, o logos preexistente, por ser ele mesmo “vida divina”, é a “luz dos homens”. Esta luz é intercambiável com a vida, portanto, luz e vida são aspectos do logos. Como Almeida observa, a luz (logos), no princípio, estava com Deus. Agora, no presente, desempenha esta função de maneira permanente: “a luz brilha nas trevas”. Portanto, o termo “brilha” descreve uma ação que se prolonga na atualidade, ou seja, o Logos faz-se carne e manifesta-se ao mundo como “luz do mundo”.127 Ainda nas palavras de Almeida: A vida é ao mesmo tempo a luz do ser humano. Não existe para a pessoa luz que não seja Jesus; ao ver a luz, o que se percebe é a vida. No QE não se descreve a luz-verdade como algo visível e reconhecível anteriormente à vida ou independente dela. Os temas da luz e da vida são conexos no QE. Assim, a Luz (Logos) no Prólogo significa a revelação de Deus trazida aos seres humanos e salvação para o mundo, pois a encarnação do Logos comunica luz ao mundo.128

Como vemos, a luz é um tema fundamental na teologia joanina, e, principalmente, em nossa perícope. Outra estratégia importante utilizada pelo redator é a quebra de coesão, que, feita de forma intencional, provoca um diálogo interessante entre essas tradições.

125 126

127 128

DODD, 2003, p. 275. ALMEIDA, Maria Aparecida de Andrade. Profeta e Luz: categorias intercambiáveis para consolidar a identidade de Jesus na literatura joanina. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2012 (Tese de Doutorado em Ciências da Religião). 299 p. ALMEIDA, 2012, p. 143. Id., Ibid., p. 144.

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Portanto, sob a perspectiva de uma harmonização das tradições mapeadas no Prólogo, propomos uma nova imagem representativa para nossa perícope:

Teologia da Encarnação

João 1.1-14

Sendo assim, a partir dessa imagem, passamos a apresentar, de forma direta, a harmonização realizada pelo redator entre as tradições presentes na perícope. Por questões metodológicas, apresentaremos os indícios de harmonização de forma sectária, de duas em duas tradições. Porém, gostaríamos de frisar que essa harmonização acontece num processo dialético e de total interdependência entre as tradições, tornando-se impossível saber onde termina e começa uma e outra. Esse processo dialético e complexo é o que faz do Prólogo essa impressionante obra literária, tornando-o a principal marca identitária da comunidade joanina.

3.1.2.2. Teologia da Encarnação X Teologia do Deserto Como ponto de partida, analisaremos primeiro o diálogo entre a Teologia da Encarnação e a Teologia do Deserto. Para isso, precisamos observar a evolução do logos ao longo de nossa perícope. O Prólogo sofre, ao longo de sua redação, algumas quebras de coesão intencionais, na busca de ênfase e diálogo, alterando sua intenção primária. A partir de uma estrutura em paralelismos culminativos, podemos dizer que o último bloco literário do texto constitui-se no clímax do Prólogo, ou seja, o versículo 14. E é justamente aí que está o ponto de contato entre essas duas tradições tão importantes para a comunidade joanina.

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Desde o versículo 1, o Prólogo vem dando testemunho acerca do logos. Esse logos é identificado como a palavra (davar) criadora e organizadora do Gênesis e desenvolve uma grande importância no imaginário joanino. Entretanto, no versículo 14, o redator, além de chegar ao clímax do texto ao afirmar que o logos se fez carne, funde duas tradições. Vejamos abaixo: Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας. 14

14

E o logos carne veio a ser, E acampou entre nós, E contemplamos a glória dele, Glória como unigênito da parte do Pai, Pleno de graça e verdade.

O redator afirma que o logos se fez carne. Em seguida, esse logos vem habitar em uma tenda no meio de nós, e com isso, a partir da fé no nome dele, podemos contemplar a sua glória como monogênito da parte do Pai. Ou seja, o logos aparece identificado como o Javé do Êxodo, pois habita em tendas e anda no meio do seu povo, o que nos permite contemplar sua glória. Portanto, nessas duas frases em destaques percebemos o diálogo dessas duas tradições. Vale ressaltar que a relação luz e vida remonta ao imaginário do Antigo Testamento, mais específico, o Êxodo.

3.1.2.3. Teologia do Deserto X Memória de João Batista O segundo diálogo também surge de um elemento muito interessante. Como vimos, um dos aspectos da Teologia do Deserto consiste na fé no Deus que não tem nome e é justamente nesse fundamento que esse segundo diálogo se desenvolve. Ao longo de toda a perícope, o logos é identificado com um pronome na terceira pessoa do singular. Porém, no versículo 6, quando abre-se um novo bloco em dedicação à memória de João Batista, destaca-se algo muito importante. Quando menciona-se o aparecimento de um homem enviado por Deus, o texto cita seu nome: João. Vejamos: Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιςτεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός.

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6

Veio a ser homem, enviado da parte de Deus, nome dele era João. 7 Este veio para testemunho, Para que testemunhasse a respeito da luz, Para que todos cressem por meio dele. 8 Não era aquele a luz, mas para que testemunhasse a respeito da luz.

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Em um universo de conflitos e controvérsias entre a comunidade joanina e os seguidores de João Batista, citar o nome de João e omitir o nome do logos, é um indício de que a comunidade joanina evoca a tradição do Deus que não tem nome para resolver a polêmica com os seguidores de João Batista. Pois, se João pode ser definido por um nome, ele é limitado, portanto, menor que o logos, que é Jesus. Por isso, João, de fato, não pode ser o Cristo.

3.1.2.4. Memória de João Batista X Teologia da Encarnação E por último, temos o diálogo entre a Memória de João Batista e a Teologia da Encarnação. Para isso, recorreremos de forma mais direta ao tema da luz, e, também, à análise da integridade e coesão da perícope. Como propomos em nossa abordagem exegética129, o texto que circulava na comunidade joanina, num primeiro momento, era mais simples e organizado. Posteriormente, foi modificado por quebras de coesão, enfatizando diversos temas, como temos visto até agora. Portanto, o diálogo entre essas duas tradições acontecem estritamente nesse contexto de quebra de integridade e coesão do texto. Isso fica nítido ao analisarmos o texto em seu estágio primitivo130:

[...] ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει,

[...] O que tem feito 4 nele vida era, E a vida era a luz dos seres humanos. 5 E a luz na escuridão brilha,

9 Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον.

9

[...]

Era a luz verdadeira, Que ilumina todo ser humano Vindo para o mundo [...]

Percebemos uma coesão textual e temática na relação desses dois blocos literários de nossa perícope. Tendo o tema da luz como fio condutor, o texto desenvolve-se de forma fluente. Porém, quando analisamos o texto em seu estágio final de redação, temos a quebra de coesão constatada:

129 130

Sobre isso, conferir o tópico Integridade e Coesão. Como propomos em nossa discussão no tópico Integridade e Coesão – página 48.

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[...] ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5 καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει,

[...] O que tem feito 4 nele vida era, E a vida era a luz dos seres humanos. 5 E a luz na escuridão brilha,

καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν.

E a escuridão a ele não subjugou.

6

Ἐγένετο ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιςτεύσωσιν δι ᾽ αὐτοῦ. 8 οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός.

6

Ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον.

9

9

Veio a ser homem, enviado da parte de Deus, nome dele era João. 7 Este veio para testemunho, Para que testemunhasse a respeito da luz, Para que todos cressem por meio dele. 8 Não era aquele a luz, mas para que testemunhasse a respeito da luz. Era a luz verdadeira, Que ilumina todo ser humano Vindo para o mundo

[...]

[...]

A quebra de coesão é nítida no texto, porém, percebemos que o redator aproveita o tema da luz para fazer a inserção da Memória de João Batista de forma que desenvolva um diálogo com a Teologia da Encarnação. Na evolução do texto, o logos aparece aqui identificado como luz. Já João Batista, após a releitura da comunidade joanina, assume o papel de testemunha dessa luz. Algumas frases nos ajudam a identificar: οὗτος ἦλθεν εἰς μαρτυρίαν

Este veio para testemunho

ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός

Para que testemunhasse a respeito da luz

οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς

Não era aquele a luz

ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός

Para que testemunhasse a respeito da luz

Portanto, tendo o tema da luz como fio condutor desses blocos literários, o redator insere a Memória de João Batista, e, com essas frases, parece criar “ganchos” que possibilitem a harmonização em nossa perícope, a partir de um diálogo com a Teologia da Encarnação: João Batista é testemunha da luz (logos).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Prólogo joanino é um desafio para a exegese. Diversas teorias são apresentadas a cada dia na tentativa de possibilitar uma compreensão mais precisa da mensagem desse texto. O caminho tomado nesse trabalho, apresenta um cristianismo plural, marcado por divergências e convergências, que, mesmo em meio a um cisma, possibilitou a busca pela unidade dos cristãos da comunidade joanina. O cristianismo primitivo tem em sua origem uma formação plural. Constituído a partir da inserção de pessoas de diferentes grupos religiosos, o cristianismo apresenta-se como um grande mosaico, marcado por assimilações, conflitos e dissensões. Em meio a esses conflitos, percebe-se sinais de abertura ao diálogo e a busca de tolerância como sinais de pertença a uma comunidade. Ao observarmos o cristianismo de hoje, encontramos uma busca insaciável pela uniformidade de pensamentos, atitudes, interpretações, estereótipos etc., o que sem dúvida, se torna um catalisador para o sectarismo e intolerância em nossa sociedade, incentivando, consciente e inconscientemente, a violência em nosso cotidiano. Portanto, ao longo dessa pesquisa, tratamos de investigar o convívio entre pessoas diferentes dentro de uma comunidade de fé como uma característica fundante, observando passos fundamentais para a superação de um pensamento sectário a partir da abordagem que a comunidade joanina faz da perícope de João 1.1-14. Em nosso primeiro capítulo, encontramos no cotidiano da comunidade joanina indícios da pluralidade no movimento cristão primitivo. Essa comunidade constituiu-se em meio a diversas disputas e dissensões e o próprio texto do QE nasce como resposta aos diversos conflitos desse grupo, que, com grande garra, lutou bravamente pela unidade. Portanto, a

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identidade dos joaninos é forjada em meio aos conflitos, constituindo um verdadeiro mosaico de pensamentos e influências. Como segundo passo, apresentamos no segundo capítulo, uma abordagem exegética da perícope de João 1.1-14 e, afirmamos que o Prólogo é indício da identidade plural da comunidade joanina. Um dos principais elementos para essa constatação fundamenta-se no estudo e análise da integridade e coesão da perícope. Percebemos que o Prólogo constitui-se em um hino primitivo que sofre algumas mudanças e quebras de coesão, intencionais, na finalidade de fortalecimento de identidade. Em nosso terceiro capítulo, encontra-se o foco de nosso trabalho. Apresentamos nesse espaço o marco identitário joanino: pluralidade e unidade. A comunidade joanina é dotada de uma capacidade única de conduzir ao diálogo elementos divergentes e, a diversidade teológica e mnemônica de nossa perícope representa claramente essa identidade plural. Entretanto, a capacidade de harmonização do redator nos surpreende. Portanto, afirmamos que o Prólogo Joanino (João 1.1-14) representa um estágio último da comunidade joanina, que após um cisma traumático tenta fortalecer sua identidade, recuperando princípios fundantes da fé cristã, sem encerrar as possibilidades do diálogo com o diferente dentro da comunidade. Certamente essa perícope lança luz à nossa intenção de valorização da pluralidade dentro do cristianismo. Percebemos que o cristianismo de hoje tem sido conduzido e tem conduzido pessoas pelo caminho da uniformização, desvalorizando a individualidade de cada um. Cada ser humano tem autenticidade para expressão da individualidade dentro dessa religião, portanto, a identidade deve ser reforçada, e não apagada. A proposta do cristianismo tem mais a ver com a criação e convívio de uma comunidade de indivíduos, do que um movimento massificante, em que pessoas perdem sua individualidade. Em suma, temos na proposta de fé de uma comunidade do primeiro século um paradigma de convivência. Um projeto em que pessoas diferentes e de perspectivas distintas da fé, têm a oportunidade de conviverem e constituírem uma verdadeira comunidade, sem perderem a individualidade. Em um mundo que nos conduz à uniformidade, a partir da opressão e ameaça, encontramos na comunidade joanina a possibilidade da construção de um cristianismo melhor, um cristianismo que valorize e respeite a pluralidade, que saiba lidar com as diferenças e que proporcione as possibilidades da existência de uma verdadeira comunidade de fé, mesmo que seja uma fé expressada em diversas perspectivas.

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