DIVERSIDADE SEXUAL: diálogos e práticas na Universidade [Educação e Cidadania nº 12 (2010)]

June 6, 2017 | Autor: Lawrence Estivalet | Categoria: Género, Educação, gênero e diversidade sexual, Diversidade Sexual
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Educação e Cidadania nº 12 (2010)

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DIVERSIDADE SEXUAL: DIÁLOGOS E PRÁTICAS NA UNIVERSIDADE Denise Marcos Busoletti, Joice do Prado Alves, Lawrence Estivalet de Mello1 Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão acerca da vivência realizada pelo Programa “Fronteiras da Diversidade: extensão, inclusão e formação crítica para a cidadania”, vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, a qual sediou o evento específico intitulado “Fronteiras da Diversidade: Diversidade Sexual e Gênero”. Ao tematizar a discussão sobre sexualidade e gênero na sociedade atual, deu-se a abordagem sobre limites e pré-conceitos que cercam questões como: sexualidade, inclusão social e direitos humanos, dentre outros associados a essa temática. A proposta conceitual e metodológica buscou aproximação com base, particularmente, nas ideias de: Michel Foucault, Juan Marsiaj e Boaventura de Souza Santos, assim como na própria práxis. A “mostra-debate”, que teve participação da comunidade, tratou de aspectos que a complexidade do tema exige, sendo este texto parte integrante do conjunto de reflexões, conclusões e de perspectivas constituídas a partir do evento. Palavras-chave: Universidade; Diversidade; Sexualidade. Abstract: The objective that this article is introduce and reflect about an experience realized through of Program “Boundaries of the Diversity: extension, inclusion and critical training to the citizenship”, bound to College of Education at Federal University of Pelotas, through of discussion of one specific event called “Boundaries of the Diversity: sexual diversity and gender which thematized the discussions about sexuality and gender in contemporary society. such activity approached and discussed the limit and preconceptions which surrounding issues such as: sexuality, social inclusion, human rights, and others. The conceptual proposal and methodologic sought an approach between the theory and the praxis, through of “showdebate” which sought approach together the community the complexity of the issue requires. This text is part of the group that this reflections, conclusions and perspectives. Keywords: University; Diversity, Sexuality.

ENTRE AS FRONTEIRAS DA DIVERSIDADE SEXUAL Ao longo das últimas décadas, as discussões que envolvem as relações homossexuais no Brasil e no mundo vêm ganhando cada vez mais espaço em debates que têm lugar amplamente no cenário social. Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis (LGBT) vêm sendo inseridos no foco da discussão acerca da normatização social, a qual, nos rastros do desenvolvimento tecnológico e midiático, torna-se um aspecto cada vez mais complexo em razão da temática tratada. O rompimento com a dualidade de gêneros passa a ser, visivelmente, cada vez mais explícito: as reações contra a quebra da lógica feminino/masculino também. A oposição à realidade do preconceito e da violência impõe-se de forma marcante, com a formação dos movimentos LGBT e com o debate claro sobre a diversidade sexual. Na 1

UFPEL – Universidade Federal de Pelotas

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tentativa de desconstruir os preconceitos, que cercam a temática tratada, de forma recorrente, o grupo Programa “Fronteiras da Diversidade: extensão, inclusão e formação e para cidadania”2 buscou, primeiramente iniciar discussões internas as quais levaram à promoção de uma amostra-debate, sendo expostas e discutidas diversas posições sobre as formas de fazer frente ao que é suscitado pelo debate em questão. O Programa Fronteiras da Diversidade realizou, no dia 26 de maio de 2012, um primeiro evento, intitulado “Diversidade Sexual e Gênero”, em que o objetivo foi abordar tratativas referentes à sexualidade. A atividade integra uma série de eventos mensais promovidos pelo Núcleo de Arte Linguagem e Subjetividade (NALS)3 da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), tendo em vista o propósito abordar e discutir temas complexos, que na maioria das vezes estão cercados por visões estereotipadas. A homossexualidade, enquanto identidade social é fato relativamente recente na História, tornando-se uma tarefa bastante delicada analisar as questões referentes a gênero e o que tange às relações distintas das impostas pelos modelos de sexualidade hegemônicos. Por outro lado, há conhecimento de que as relações entre pessoas do mesmo sexo, enquanto prática sexual, essas existem há muitos séculos, e embora tenham transcorrido diversos períodos históricos, trata-se assim de práticas conhecidas, as quais datam da Grécia Antiga. As relações homossexuais, apesar de suas particularidades, já compunham as discussões das sociedades há muito tempo. Considera-se que as polêmicas geradas em torno da questão têm início com a incorporação da culpa, que passa a permear as relações sexuais, e mesmo a própria noção de sexualidade, tanto hétero quanto homossexual, a partir do desenvolvimento do cristianismo. Fruto das doutrinas cristãs, que vigoraram a partir do século IV d.C., quando o cristianismo é adotado como religião oficial do Império Romano, a culpa e o sentimento de pecado passam a ser atrelados às novas concepções de casamento, situação em que o sexo deveria ser praticado apenas para fins reprodutivos. Em face disso, as questões relacionadas a tal condição irão permear os discursos sobre a família, sobre sexo propriamente dito e até mesmo sobre o papel da mulher e do homem na sociedade. 2

O Programa Fronteiras da Diversidade: extensão, inclusão e formação crítica para a cidadania foi contemplado com recursos públicos pelo Edital nº 4 do PROGRAMA DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, PROEXT 2011 – MEC/SESu para o exercício 2012. Possui como proposta central a formação de agentes culturais para a construção de um fórum de extensão permanente na Universidade Federal de Pelotas . 3 O Núcleo de Arte Linguagem e Subjetividade (NALS) é um projeto de extensão, vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, que atua desde 2008.

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[...] as relações sexuais ligam-se tradicionalmente às noções de culpa e pecado, de abstinência e controle dos desejos, considerados, de uma maneira ou de outra, ligados às forças do demônio. A noção de pecado original é muito importante, pois se associa à queda do homem do Paraíso, à descoberta da nudez e, portanto, da sexualidade. [...] A internalização da culpa associada ao sexo fez com que, ainda que o comportamento fosse muito diverso, o sentimento de culpa fosse muito forte. (FUNARI, 2002, p. 52) Ao se pensar a respeito dessas relações, é necessário levar em conta que o tema remete a uma reflexão sobre o que para a maioria das sociedades humanas, principalmente por meio do filtro religioso ocidental, irá predominar a partir das construções culturais e sociais do começo da Idade Média. Nesse contexto, as relações carnais e afetivas entre duas pessoas deveriam limitar-se à existência de apenas dois gêneros sexuais, claramente definidos: feminino e masculino. Pedro Paulo Funari (2002), ao analisar a sexualidade na Grécia Antiga, evidencia que no decorrer da evolução científica o estudo do sexo atingiu a esfera do comum, desincorporando – em certa medida – a noção de culpa. Observa-se, contudo, que ainda restam traços normativos nas análises que tocam ao estudo científico envolvendo a temática. Isso porque, atentando para o recorte ideológico da ciência, no que diz respeito à prática em debate, é possível perceber que a pesquisa historicamente desenvolvida sobre a homossexualidade foi constituída de maneira essencialista e discriminatória. Houvesse traço neutro nessas pesquisas, também teria sido pesquisada historicamente a origem da heterossexualidade. Caberia ser indagado, a partir disso, que "desvios psicológicos ou genéticos" teriam levado à sua ocorrência ou, de maneira menos essencialista e mais problematizadora no tocante às violências, seria indagada a razão pela qual as pesquisas encontram-se voltadas ao porquê da existência da homofobia.

EXPERIMENTANDO A DIVERSIDADE E A DIFERENÇA Por intermédio de amplas discussões internas, o grupo de graduandos e mestrandos que compõem o Programa Fronteiras da Diversidade buscou, com as vivências propiciadas pelo evento em pauta, desconstruir a noção dual que as práticas sociais criaram, analisando as nuances que envolvem tanto as visões ligadas à moral religiosa quanto ao discurso científico. Munidos de bibliografias complementares, e ainda mediante a realização de 6

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oficinas de sensibilização, a questão foi abordada sob vários ângulos, na tentativa de os próprios integrantes virem a eliminar visões pré-concebidas, ao colocarem-se no lugar daqueles que sofrem discriminações e preconceitos. Concorda-se com o que afirma Daniel Borrillo em sua análise:

Quer se trate de uma escolha de vida sexual, quer se trate de uma característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade deve ser considerada tão legítima quanto a heterossexualidade. De fato, ela não é mais que a simples manifestação do pluralismo sexual, uma variante constante e regular da sexualidade humana. Na condição de atos consentidos entre adultos, os comportamentos homoeróticos devem ser protegidos como qualquer outra manifestação da vida privada. (BORRILLO, 2009, p. 16) Portanto, ao serem desconstruídas noções mais rígidas, tanto social quanto academicamente, tornou-se possível ultrapassar caminhos até aqui considerados como certos ou errados. O trajeto percorrido, entre os limites daquilo que é aceito em termos sociais, trouxe importantes contribuições e permitiu elaborar conclusões acerca do complexo processo que a discussão implica. A busca estabelecida voltou-se ao desenvolvimento de uma observação por meio de dinâmica problematizadora a qual respeitou diferentes etapas, sendo a primeira delas desenvolvida para sensibilizar os participantes.

OFICINAS INTERNAS DE SENSIBILIZAÇÃO

As oficinas internas de sensibilização trouxeram ao grupo a oportunidade de os integrantes se travestirem, cada qual em relação ao seu sexo oposto – o que ocorreu de forma deliberadamente exagerada –, na tentativa de quebrar preconceitos internos e de assim romper os muros dos papéis sociais desempenhados individualmente pelos participantes. O travestimento permitiu a abordagem mais amiúde da problemática proposta; posteriormente, o mesmo expediente ensejou uma compreensão do contexto envolvido, o que representou mais do que uma tentativa de provocar choque social: o tema, assim, pôde ser compreendido enquanto forma de construção de identidade. O exercício trouxe

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resultados interessantes posto que os seus participantes foram estimulados a incorporar os respectivos figurinos, exteriorizando-os durante uma sessão de fotos. Foi possível, desse modo, a quem participou da oficina de Sensibilização – Travestimento, ter a chance de se colocar de fato no lugar do outro. Nesse sentido, ao experimentar o lugar do “outro”, eles puderam experienciar noções de diversidade relacionadas à diferença propriamente dita, devido ao fato de terem reconhecido, em ambas as posturas, caminhos para tratar sobre a questão da proximidade.

Figura 1. Oficina de Sensibilização – Travestimento Fotografia de Patrícia Lindoso Acervo NALS

O evento À abertura do evento foi oferecida a opção de ser apresentada a peça “O Cárcere da Alma Feminina”, baseada no “Poema Gay” de Glória Horta - trabalho com texto escrito e dirigido por alunos do curso de Teatro da UFPel e também por integrantes do Programa Fronteiras da Diversidade. A peça parte da focalização da figura de Paulo, menino que desde a infância já demonstrava a sua vontade de ter nascido menina. A delicadeza e os profundos sentimentos do garoto mesclam-se à vergonha e ao desejo de libertação e incredulidade, aspectos que ficam completamente expostos nas cenas iniciais, especialmente quando o menino abraça o vestido da sua irmã, colocando-o e permanecendo assim a se admirar diante de um espelho, enquanto a sua mãe, que ao observar a totalidade da cena cai em um choro desesperador. 8

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Anos mais tarde, Paulo – agora Thabata – conta a sua história, as suas lutas e as dores pessoais, mencionando aquilo que ainda é uma presença constante em sua vida: o preconceito. A aceitação final da parte da sua mãe, traduzida por um longo abraço, demonstrou que mesmo dentro das mais complexas relações familiares e sociais é possível, ainda, caminhar em busca da compreensão de que há diferenças entre os seres humanos, e que essas devem ser respeitadas. A própria atriz que representou a personagem principal, durante o debate ocorrido após a peça, afirmou que estava representando a história da sua vida pessoal. Na fala realizada por ela, assim como na de outras pessoas da plateia, era perceptível a opinião de que transexuais, mesmo após a cirurgia de troca de sexo, ainda são discriminadas devido ao seu sexo de nascimento. “Ser transexual não significa ser feliz”. A fala da atriz foi reafirmada por outras transexuais ali presentes, ao tornarem explícito que muitas vezes o “aprisionamento da alma feminina” prossegue, mesmo que a essa alma já corresponda outro sentimento.

Figura 2. Peça “O Cárcere da Alma Feminina” Fotografia de Gilberto Carvalho. Acervo NALS

Não só a peça em si, mas o próprio debate ocorrido posteriormente, com a participação de figuras ativas dos movimentos LGBT de Pelotas e Porto Alegre, trouxe 9

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elucidações válidas, em meio à exposição de diversos pontos de vista, que contribuíram para a formação de novas ideias e abordagens. Os desdobramentos acerca do debate passam a ser tratados a seguir.

O DEBATE

Reforçou-se o entendimento de que os movimentos gays, lésbicos e transgêneros, ao surgirem, constituem-se a partir da necessidade de tornar pública e visível a existência de tais grupos, da tentativa de combater preconceitos e formas de exclusão que muitas vezes são associadas aos discursos médicos, legais e religiosos. (LOPES, 2004) Como mostra disso, Michel Foucault em sua História da sexualidade (1985), evidencia o interesse no estudo das questões envolvendo a homossexualidade e a heterossexualidade, temática que ganha cada vez mais destaque ao compor o cenário de construção do sujeito moderno.

Durante o conturbado período de abertura política no final dos anos de 1970, caracterizado, entre outros, pelo processo de ressurreição da sociedade civil, vários movimentos sociais vieram à tona. Estes movimentos apresentavam uma grande variedade de reivindicações, desde questões políticas e materiais mais tradicionais a questões até então ignoradas ou marginalizadas da esfera política, como sexualidade e, de certa maneira, comportamento, gênero e raça. Dentre os diversos grupos mobilizados, gays e lésbicas se tornaram gradualmente visíveis na esfera pública. (MARSIAJ, 2003, p. 135)

Com a fala de Roger Raupp Rios, Juiz Federal em Porto Alegre, com ampla experiência profissional em questões envolvendo homossexualidade e gênero, assim como de Célio Golin, militante da ONG Nuances, grupo articulado em torno da proposta de uma livre expressão sexual – o mais antigo do Rio Grande do Sul –, foi analisado o papel social dos gays, dado serem vistos enquanto aqueles que representam todas as vergonhas sociais. Com esse enfoque, tornou-se bastante claro, apesar de atualmente serem perceptíveis inúmeras pequenas vitórias nesse campo, que a sociedade ainda caminha a passos lentos para a aceitação da realidade aqui tratada. Como descreve Borrillo:

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Crime abominável, amor pecaminoso, tendência perversa, prática infame, paixão abjeta, pecado contra a natureza, vício de Sodoma: tantas designações que durante séculos serviram para qualificar o desejo e as relações sexuais ou afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Relegado ao papel de marginal ou excêntrico, o homossexual é tido pela norma social como bizarro, estranho ou disparatado. (BORRILLO, 2009, p. 16)

Também foi abordada pelo mesmo militante a posição dos homossexuais “discretos”, relativamente aceitos na sociedade, já que não infringem regra social alguma porque não chocam, sendo dessa forma diferentes dos homens efeminados, dos travestis ou das lésbicas masculinizadas, que expõem publicamente como são. Essa posição incorpora tudo o que é proibido, ultrapassando as barreiras do feminino/masculino, pois caminha entre limites fronteiriços que cercam as questões de gênero e de diversidade sexual. Juan Marsiaj (2003) realiza uma importante análise das relações homossexuais e da condição econômica em que esses sujeitos se encontram, mostrando, em decorrência que há relações e influências a serem analisadas. A ideia tratada pelo autor é que não se deve incidir no uso de clichês do senso comum, no sentido de se afirmar, por exemplo, que os mais pobres são, por consequência, os mais efeminados. Entretanto, é necessário observar que a questão a respeito do poder aquisitivo, o qual quanto maior for – pessoal e/ou familiar, – melhor parece tornar possível uma discrição da expressão sexual do indivíduo, o que inclusive é justificado muitas vezes devido à pressão da própria família ao manter tal condição em segredo. Em uma polêmica defesa, Célio Golin buscou mostrar que os gays, lésbicas e transexuais devem romper com a lógica do “gay discreto”, desnudando socialmente tudo aquilo que a sociedade procura esconder. Restou claro, devido a essa posição, que impedir os indivíduos de quebrarem a lógica de representação do feminino/masculino é uma forma de mascarar a realidade atual, o que concorre para perpetuar noções conservadoras. Esse ponto de vista contrapõe-se ao daqueles que desejam enquadrarem-se socialmente, deixando de ser párias sociais, diferentes e marginalizados. A posição foi defendida pela atriz Márcia Monks, afirmando que o desejo de muitas transexuais é apenas o de serem reconhecidas, por exemplo, na sua condição de mulheres comuns. A

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fala de um policial homossexual, que se encontrava na plateia, também veio a corroborar essa perspectiva. Ele deixou bastante claro as dificuldades, mesmo hoje encontradas por homossexuais assumidos, quanto a virem a ser aprovados em concursos para ingresso em determinadas carreiras no país.

Figura 3. Debate Fotografia de Gilberto Carvalho. Acervo NALS

Observou-se, por meio dos debates desenvolvidos, que há uma dualidade definida indicando que o universo gay tanto pode encontrar-se normalizado no mundo heterossexual, quanto em franca oposição a esse mundo, sendo tal dualidade motivo de discussão em meio às próprias comunidades homossexuais. Pensar sobre a questão daquele que se traveste também se apresenta como um importante tópico de discussão na atualidade, tendo em conta que a busca por espaço para a aceitação homossexual é cada vez maior. Segundo afirmou Célio Golin, travestir-se ultrapassa um mero desejo social de aproximação com o feminino, já que faz parte da condição humana daquele que o faz. É uma tentativa de mergulhar na própria alma, alcançando uma experiência única de autoconhecimento. Essa concepção fica ainda mais clara em decorrência da fala de Denílson Lopes:

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[...] o travesti não é uma simples construção intelectual, que coloca o artifício como uma categoria central dessa sociedade de imagens, em que identidades performativas são constituídas, bem antes das atuais discussões sobre corpo e tecnologia. Não se trata aqui de falar de um outro, estigmatizado e/ou espetacularizado, mas do travestimento, como algo que atravessa nossos desejos e emoções, nossas incertezas e nosso lugar no mundo. [...] Sua busca pelo feminino não é outra coisa senão a busca da androginia, da ambiguidade. A identidade como devir. (LOPES, 2002, p. 68)

Deve-se notar, assim, que existe uma clara diferenciação entre “travestis” e “transexuais”, na medida em que os/as primeiros/as estão situados em uma espécie de fronteira entre o masculino e o feminino, mantendo os órgãos genitais com os quais essas pessoas nasceram, atuando ao mesmo tempo sexualmente dentro de padrões sociais que os encaminham tanto para o gênero coincidente ao seu sexo, quanto para o gênero diferente do sexo com qual nasceu. Já na categoria seguinte (transexuais), como sugeriu adequadamente o nome da peça escolhida para a abertura do evento, encontra-se envolvida a noção subjetiva de “aprisionamento” da alma feminina (ou masculina) em um corpo não compatível com desejos e sentimentos interiores. O diagnóstico polêmico do Transtorno de Identidade de Gênero confere aos “travestis” e “transexuais” a sensação de desconforto, ou mesmo de sufocamento que é gerada por não haver a identificação entre a personalidade e o corpo do indivíduo. A principal consequência disso converge para a operação de transgenitalização, que procura reverter a sensação de aprisionamento e de infelicidade que cerca determinadas pessoas que possuem tais características. Entrementes, como abordado tanto na fala da atriz da peça apresentada, como na de outras transexuais, a cirurgia nem sempre consegue trazer a felicidade máxima àquele/a que a realiza, uma vez que deixa no sujeito traços que marcam profundamente o indivíduo. Dentre os entendimentos resultantes sobre preconceito e discriminação, viu-se que ambos englobam o conjunto das demais discussões, na medida em que expõem perfeitamente tanto os medos quanto a constante perseguição sofrida por aquele que se assume diferente diante das normas sociais. O ódio contra o outro, ao atingir distintos níveis de violência, passa a ganhar um destaque completamente novo, tendo a homofobia, assim, recebido outros enfoques no que tange à discussão relacionada à homossexualidade:

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A homofobia é a atitude de hostilidade para com os homossexuais. O termo parece ter sido utilizado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1971, mas foi somente no final dos anos 1990 que ele começou a figurar nos dicionários europeus. Embora seu primeiro elemento seja a rejeição irracional ou mesmo o ódio em relação a gays e lésbicas, a homofobia não pode ser reduzida a isso. Assim como a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, ela é uma manifestação arbitrária que consiste em qualificar o outro como contrário, inferior ou anormal. Devido a sua diferença, esse outro é posto fora do universo comum dos humanos. (BORRILLO, 2009, p. 15) Em sua forma mais simples, a homofobia afeta não somente os indivíduos envolvidos, quanto os seus amigos e parentes. Conforme as falas das mães que acompanhavam a peça, e a subsequente discussão, percebeu-se que o seu principal medo e inquietação – revelados constantemente – diz respeito à segurança dos filhos. Sob essa perspectiva, ficou evidente a imperiosa necessidade de superação do preconceito nas próprias famílias. Esse foi outro aspecto presente nas falas traduzindo o medo e o preconceito social percebidos como postura que facilmente resultam em manifestações de violência. Esse aspecto é abordado na próxima seção.

A VIOLÊNCIA CONTRA HOMOSSEXUAIS

A violência contra homossexuais não é uma realidade tão distante quanto se gostaria supor. Uma pesquisa recém-realizada pelo National Coalition of Anti-Violence Programs, nos Estados Unidos e publicada pelo jornal Folha de São Paulo, mostrou que houve aumento nos índices de homicídio contra homossexuais e transexuais, membros do movimento LGBT e, também, contra portadores do vírus da AIDS. O relatório da pesquisa mostra que as comunidades gays, de forma desproporcional, foram as mais afetadas pela “indiferença, atitudes hostis, má conduta e violência” por parte dos policiais da cidade de Nova York. Todavia, não é necessário recorrer às amostras internacionais com esses dados para saber que no Brasil a realidade da homofobia existe e persiste. Todos os dias é possível ler matérias, e de forma recorrente acessar às múltiplas veiculações da mídia no que diz respeito a casos de violência(s) cometidas(s) contra homossexuais – em especial contra homens. 14

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Observa-se, como demonstra Borrillo, que há a vigência de uma hierarquização sexual e racial: o homem heterossexual branco é aquele que ocupa o status mais elevado, seguido por todos os demais: isso configura uma espécie de pirâmide social às avessas. A diferença entre homo/hétero não é apenas constatada, servindo na prática, sobretudo, para ordenar um regime de sexualidades em que somente os comportamentos heterossexuais são qualificados como modelo social. (BORRILLO, 2009, p 17) Conforme observado anteriormente, a exposição pública da comunidade gay passa a ser quase insuportável para aqueles grupos que defendem que as estruturas sociais jamais devem ser modificadas. Se a homossexualidade era parcialmente aceita na esfera privada, os movimentos gays trouxeram em seu lastro a repressão pública a esses grupos. A homofobia, devido às suas dimensões sociais, psicológicas e econômicas, tornou-se a grande inimiga contra a qual o movimento da diversidade sexual se coloca. Na ocasião da mostra-debate, realizada como parte do evento, fizeram-se presentes diversos grupos do movimento LGBT de Pelotas, a convite do Projeto Fronteiras da Diversidade, que ao compartilharem as suas experiências enriqueceram o debate da complexidade e até mesmo o trato de divergências internas do movimento. Para acompanhar o combate à homofobia cotidiana em Pelotas, para além da realização dessa mostra-debate, e, tendo em vista a consecução da troca de conhecimentos típica de cursos e eventos de Extensão, foi decidida, a partir do Projeto, a criação de uma Frente de Trabalho de Gênero e Diversidade Sexual voltada ao acompanhamento diário das ações dos grupos LGBT dessa cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A FRONTEIRA COMO UM LOCAL NECESSÁRIO

Boaventura de Souza Santos mostra que a metáfora da fronteira pode auxiliar a compreender o modelo de uma subjetividade emergente, crítica e emancipatória (SANTOS, 2005), características particulares de uma sociedade em “transição paradigmática”, que necessita pensar sobre novos conceitos em relação aos quais as fronteiras se alinham. Adere-se ao que McLaren (1999) demonstrou, na direção de se evitar impor o “próprio reflexo nos olhos dos outros”, nada obstante, respeitadas as diferenças inerentes a cada um. A sociedade contemporânea possui características singulares no tocante à sua constituição. Desenvolvida no contexto das grandes Guerras Mundiais, da Guerra Fria e 15

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do aperfeiçoamento dos meios de comunicação em massa, situa-se em um lugar dúbio, em que o indivíduo está cercado por tentativas de massificação (GIROUX, 1995). Pensar na formulação de um debate de pedagogias da fronteira e estimular a experiência da diversidade, significa refletir sobre o próprio sujeito que nela se constitui, abrindo novas trilhas para os caminhos do conhecimento. A busca relacionada a essas breves considerações, acerca de uma temática certamente ampla e plenamente discutível, como é a diversidade sexual, permitiu mostrar como transcorreu a tentativa de desconstrução das noções rígidas que cercam essa abordagem, sob a visão do grupo que compõe o Programa Fronteiras da Diversidade. Repensar os conceitos que envolvem as comunidades gays, lésbicas e transexuais motivou a busca, na prática, do desenvolvimento de conhecimentos teóricos absorvidos em decorrência das discussões acadêmicas aqui apresentadas. Como fruto desse trabalho foi possível ter a satisfação de ver reconhecido – particularmente na fala de todos aqueles que estiveram presentes ao evento – a tentativa de rompimento dos muros, que no mais das vezes impossibilitam o caminhar fronteiriço, prática tão necessária nestes tempos, muitas vezes tão marcadamente delimitada. A quebra de preconceitos sempre ocorreu de maneira árdua e lentamente ao longo da História. Entretanto, a realização de ações diretas, como a empreendida, poderá, mediante o acompanhamento cotidiano e a troca de conhecimentos com a comunidade externa, por meio da realização de trabalhos de extensão e pesquisa, vir a constituir uma contribuição prestada por diferentes agentes produtores de conhecimento: nesse sentido, a tentativa é a de abrir novos caminhos para a articulação de diálogos mais amplos, cada vez mais necessários.

REFERÊNCIAS BHABHA, Homi K. O Local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. BORRILLO, Daniel. Homofobia. In: Homofobia e Educação: um desafio ao silêncio. LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Débora (org.). Brasília: Ed UnB, 2009.

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BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand,1999. FOLHA DE SÃO PAULO. Disponível em Acessado em: 24/06/2012. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2002. GIROUX, H. Border crossing. Nova York e Londres, Routledge, 1992. _____ . A Disneização da cultura infantil. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.) Territórios Contestados. Petrópolis: Vozes, 1995a. p. 49-78. LOPES, Denílson. Desafios dos Estudos Gays, Lésbicos e Transgêneros. Revista Comunicação Mídia e Consumo. São Paulo, vol. 1, n 1, 2004. ______. E eu não sou um travesti também? In: O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. MARSIAJ, Juan P. P. Gays ricos e bichas pobres: desenvolvimento, desigualdade socieconomia e homossexualidade no Brasil. Cadernos AEL. Campinas, v.10, n.18/19, 2003. MCLAREN, P. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 1999. PROGRAMA FRONTEIRAS DA DIVERSIDADE: extensão, inclusão e formação crítica para a cidadania. SANTOS, B. Globalização: fatalidade ou utopia? Porto: Edições Afrontamento, 2001.

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