Diversidades - Estudos de Vida

June 1, 2017 | Autor: M. Bolshaw | Categoria: Asperger's Syndrome, Narrativas, Contracultura
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Marcelo Bolshaw Gomes

DIVERSIDADES Estudos de Vida

2017

SUMÁRIO CONTRACULTURA 1.

Prefácio

05

2.

Os Hermeneutas: Habermas, Foucault e Morin

07

TEXTOS SOBRE AUTISMO 1.

O autismo visto pelo cinema

29

2.

Teoria cognitiva-comportamental e Síndrome de Asperger

35

3.

Eu, autista?

57 ESTUDOS SOBRE O FEMININO

1.

Cleópatra e o sagrado feminino

67

2.

Os Pergaminhos de Amphipolis

77

3.

Lost Girls - Um discurso erótico feminino?

97

Prefácio Diversidades – estudos de vida é uma coletânea de artigos e textos, que por algum motivo não foram publicados em outros livros. Apesar da diversidade, o reúne os textos mais pessoais, descrevendo minha relação com a contracultura, com o autismo e com o feminino. Os Hermeneutas é um texto que surgiu de uma banca de mestrado que participei e minha reflexão sobre como a nova geração de pesquisadores entende Habermas e o compatibilizam com Foucault, Castells e Morin – sem perceber o impasse que há bem pouco havia na formação da geração anterior de pesquisadores. O texto também é uma oportunidade de resumir minha produção mais antiga. Os textos de autoajuda sobre autismo são resultantes de minhas reflexões sobre minha condição de portador da síndrome de Asperger. Só foram publicados no blog Eu, autista? e formam o presente livro em virtude de serem importantes em minha experiência de vida. São textos que eu ‘tive’ que escrever por motivos pessoais. Não são necessariamente contribuições clínicas para o tratamento de portadores. Há ainda três textos de estudos narrativos sobre o feminino: Cleópatra e o Sagrado Feminino, Os pergaminhos de Amphipolis (sobre o seriado de TV Xena, a princesa guerreira) e Lost Girls (sobre a série de histórias em quadrinhos de Alan Moore). Esses três textos não entraram na seleção da trilogia de ebooks sobre Estudos Narrativos: Mimese e Simulação (2015), Universos Sci-Fic (2016) e Lugar Comum (2017, ainda em prelo) – por não se adequarem completamente ou terem trechos semelhantes com outros textos escolhidos. Gostaria ainda de agradecer a todos por toda ajuda que tive e por mais essa oportunidade de mostrar minhas ideias. Obrigado.

OS HERMENEUTAS: Habermas, Foucault e Morin Resumo: Este texto é um ensaio sobre minha formação hermenêutica. Tem por objetivo sistematizar o aprendizado na interpretação de vários autores que estudei. O método é a análise crítica de minhas principais ideias e o resultado é uma síntese do que aprendi e que gostaria de deixar compilado. Palavras-chave: Hermenêutica1; Habermas2; Foucault3; Morin4.

1. Introdução A abordagem Hermenêutica é uma modalidade de fenomenologia especializada na interpretação das narrativas e das formas simbólicas. Paul Ricoeur (1994; 1995; 1997) é o grande codificador filosófico da hermenêutica contemporânea, acrescentando outros enfoques e conceitos - como a perspectiva historicista de Paul Veyne, o pós-estruturalismo de Lacan e a narratologia de Greimas – à teoria da hermenêutica clássica. O método hermenêutico surgiu com a tradução da Bíblia judaica para o grego, no início do século I e por muito tempo foi associado à leitura do Velho Testamento. Por extensão, em teologia, a hermenêutica é o estudo dos diferentes sentidos das escrituras sagradas. No campo do Direito, a Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar. Além dos campos do Direito e da Teologia, há também a hermenêutica moderna do tipo filosófica: F. Schleiermacher, W. Dithey e Hans Gadamer (o primeiro a ressaltar os contextos do autor e do leitor para interpretação dos textos). No campo contemporâneo, a hermenêutica caracteriza um grupo de autores que estudam o simbólico em suas várias ramificações: a psicanálise dos sonhos e da imaginação (Freud); a crítica literária das imagens poéticas (Gaston Bachelard); no estudo dos mitos e das religiões em sociedades (Mircea Eliade); a análise das ideologias e das mensagens dos meios de comunicação (John Thompson). Aqui destacamos três: Jürgen Habermas, Michel Foucault e Edgar Morin, esse último um hermeneuta inconfesso. Há ainda uma breve contextualização das ideias desses pensadores a partir da sociologia de redes de Manuel Castells. 2. O sonho não acabou? Costuma-se chamar de ‘contracultura’ ao movimento social focado principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano, através

da mudança de atitude e do protesto político. Seu ideário combina bandeiras diversas: ecologia; vida comunitária; luta contra as guerras, conflitos e qualquer tipo de repressão; dieta vegetariana; respeito às minorias raciais e culturais; experiência com drogas e viagens psicodélicas, liberdade sexual e amorosa, anti-consumismo; aproximação das práticas religiosas orientais, principalmente do budismo; crítica radical aos meios de comunicação de massa como, por exemplo, a televisão; discordância com as formas tradicionais de autoridade política ou religiosa e com os princípios da economia de mercado – entre outras características. A revolução cultural na China; o boicote ao recrutamento para guerra do Vietnã nos EUA; a primavera de Praga na antiga Tchecoslováquia; as barricadas do desejo em Paris; a luta contra ditadura militar no Brasil e em outros países da América Latina – esses eventos tiveram em comum o fato de terem sido protagonizados por jovens, ao mesmo tempo, em escala global, sem nenhum tipo de comunicação entre eles. E deixaram como saldo a cultura rebelde do rock, a libertação parcial das mulheres e a industrialização completa da cultura pela mídia. Edgar Morin (1997) é um dos que melhor descrevem esse cenário rebelde de transformação social. Porém, no campo das ciências humanas, os grandes expoentes da contracultura foram Foucault, Deleuze e Guattari. A crítica pós-moderna desconstruiu Marx, Freud e o estruturalismo; quebrou ainda mais as formas de pensamento positivista e racionalista; e abriu novos horizontes teóricos e filosóficos. Mas a contracultura não foi apenas um evento que aconteceu em 1968. Ela continua viva até nossos dias (GOFFMAN, 2007). Nessa perspectiva, a contracultura é um espaço contrahegemônico dentro do regime de centralidade dos meios de comunicação, que se iniciou em escala global, no final dos anos 60. Um espaço de contestação e crítica dentro do sistema, que forma vanguardas estéticas e políticas, para excelência e reciclagem do próprio sistema. E esse espaço também está diretamente ligado à juventude. Ou às diferentes gerações de jovens pós anos sessenta. Um espaço que tem um papel de formação de elites. Então, a contracultura é um espaço contra hegemônico permanente dentro do regime de centralidade da mídia, voltado para formação de quadros sociais. Mas, o que é exatamente o ‘regime de centralidade da mídia’?

O pensamento marxista, quando se refere ao conjunto da sociedade, distingue a existência concreta dos homens de suas formas de consciência social. A existência concreta equivale à ‘infraestrutura econômica’ e às ‘forças produtivas’ resultantes da interface entre os homens e a natureza; e as formas de consciência social, à ‘superestrutura social’ e às relações dos homens entre si, à luta política e cultural entre as classes sociais. Como pensador dialético, Marx acredita que infraestrutura e superestrutura se condicionam mutuamente, mas, que, ‘em última instância’, são as necessidades humanas que predominam sobre seus hábitos e costumes. As mudanças sociais, nessa perspectiva, ocorrem inicialmente na infraestrutura produtiva; e, em um segundo momento, nas esferas reprodutivas das condições de produção: a superestrutura. Para defender marxismo de ataques de pensadores weberianos - que o acusam de ‘mono causal’ em sua ênfase econômica e advoga o plurideterminismo de outros fatores estruturais (religiosos, políticos, culturais) – Louis Althusser (1979) propôs uma adaptação de uma categoria lacaniana: a ‘sobre-determinação estrutural’ ou a determinação em ‘primeira instância’. Ou seja: há fatores que são determinantes aparentemente ou em um primeiro momento (como a religião); mas a determinação final continua sendo orientada pelos interesses econômicos coletivos e individuais. A ‘centralidade da mídia’ pode ser definida, nessa perspectiva, como uma sobre-determinação estrutural dos fatores ideológico e cultural produzidos artificialmente. A mídia tornou-se mediadora central das relações sociais. Assim, é possível que hoje a informação determine o preço dos produtos e até o valor acionário das empresas, sem que isto se constitua em um rompimento com a lógica da mercadoria e com o capitalismo. É o “capitalismo informacional” – proclamado por Manuel Castells (2000). Há outros modos convergentes de se definir a centralidade da mídia na modernidade. Jürgen Habermas (2003), por exemplo, acredita que a imprensa livre levou a um alargamento da esfera pública burguesa, democratizando-a. Já Stuart Hall (2003) resgata parcialmente a noção gramsciana de ‘Hegemonia’ para associá-la à de ‘Identidade Cultural’. John Thompson (1998) imagina uma democracia mediada, em que os meios de comunicação, centralizando informações econômicas e políticas, possam mediar as relações entre o estado, o mercado e as pessoas.

De uma forma ou de outra, a centralidade dos meios de comunicação institui um regime social de hipervisibilidade (de algumas pessoas, entidades e situações em detrimento de outras) e de simultaneidade de tempo-espaço (incluindo o surgimento de uma audiência não-presencial permanente). Hoje, com a implosão da cultura de massas, promovida pela segmentação e pela interatividade das redes digitais, a centralidade da mídia se tornou ainda mais complexa, se multiplicando e dividindo de diferentes modos e formas, pulverizando a visibilidade em universos culturais variados e paralelamente simultâneos. 3. Amor e ódio a Habermas Conheci as ideias de Habermas, mais precisamente o livro sobre a ampliação da esfera pública, no início dos anos 80 – conjugadas com o pensamento de Antônio Gramsci. A ampliação da esfera pública (de Habermas) equivaleria à organização da sociedade civil (de Gramsci) e a uma revolução cultural, tomar o poder através da superestrutura. Na época, a luta contra a ditadura dividia a esquerda em três grandes grupos: a extrema esquerda, formada por grupos trotskistas partidários da guerrilha urbana, defensores da revolução mundial e da adoção imediata de um governo de trabalhadores; a esquerda revolucionária, composta pela Ação Popular Marxista Leninista (APML), pelo PC do B e pelo PCBR, defensores da guerrilha rural e de uma estratégia leninista-maoísta, adepta de um governo democrático provisório e de um desenvolvimento por etapas; e, finalmente, o bloco mais conservador, contrário a luta armada, formado pelo PCB e pelo MR8, que defendiam uma frente única contra a ditadura e a formação de um governo democrático como estratégia. O ‘partidão’ (nome popular do PCB) era conhecido no movimento estudantil como ‘Unidade’ e sempre articulava chapas únicas, utilizando o argumento do consenso em torno de uma frente única contra a ditadura para abafar qualquer diferença política. As bandeiras específicas eram particularidades que podiam dividir o movimento e eram sacrificadas em nome da ampliação da esfera pública. Nesse contexto, Habermas era utilizado como fundamento teórico de uma estratégia política importada da Europa, abertamente reformista diante de outras estratégias que se pretendiam revolucionárias. E, assim, a primeira impressão foi que não passava de um marxista conservador, herdeiro de Adorno e da escola de Frankfurt, que desejava ser crítico mas continuava de forma elitista.

Porém, certa vez, fui assistir uma exposição da Teoria da Ação Comunicativa, quando essa obra ainda não havia sido traduzida, e fiquei absolutamente encantado com as noções de racionalidade instrumental (da objetividade das coisas), racionalidade estratégica (dos sujeitos individuais e coletivos) e a ação comunicacional (ou a intersubjetividade coletiva). A ação comunicativa, no entendimento que tive no momento, seria mais que racional, pois englobaria o inconsciente, o involuntário, o corpo inteiro. E essa intersubjetividade total seria, para mim, uma ampliação do racionalismo weberiano, equivalente a noção de interação, da sociologia funcionalista de Talcott Parsons (uma vez que nessa época não havia ainda internet nem comunicação interativa). Passaram-se muitos anos e o fato de que outros leitores de Habermas entendessem a sua intersubjetividade como um debate racional e não como uma interação social me causava espécie. Uma redução da ação comunicativa à racionalidade estratégica! – lamentava. Para mim, os leitores brasileiros de Habermas seguiam influenciados pela difusão inicial de suas ideias, orientada por interesses políticos partidários. Recentemente, no entanto, li a Teoria da Ação Comunicativa (2012a, 2012b). Habermas tanto é institucionalista, que enfatiza o papel da comunicação na democracia, na discussão política das racionalidades instrumentais e estratégicas; como também neocontractualista, que ressalta a formação de uma vontade política através de uma intersubjetividade cultural. A ‘democracia deliberativa’ é a cereja do livro, em que Habermas vê dois aspectos: participação consciente e interação involuntária. A noção de democracia deliberativa é a união da ação comunicativa com a racionalidade estratégica contra a razão instrumental. Nos anos 90, a noção de ‘democracia deliberativa’ estruturada em um tripé entre o Estado (o campo da igualdade jurídica), o Mercado (o campo econômico) e a Sociedade Civil (o campo das comunidades) - foi retomada por autores contemporâneos como Anthony Giddens e John Thompson, voltando ao front teórico-político. (GOMES, 2014b). Porém, essas reinterpretações foram anteriores ao advento das redes digitais! E ninguém ajuda mais a entender as ideias de ‘mudança estrutural da esfera pública’ e de ‘democracia deliberativa’ do que a internet. Na verdade, as redes tornaram Habermas um teórico descritivo e subversivo, adequado para explicar as situações vividas

agora; enquanto antes das redes digitais, na época em que escreveu seus livros, ele era um teórico prescritivo marxista conservador, que procurava apenas ampliar a democracia representativa através da comunicação massificada pela indústria cultural. (2013a) Hoje, percebe-se facilmente que as redes sociais digitais funcionam como micro espaços públicos de debate (extra racionais) e formam vontades políticas, influenciando imediatamente deliberações das instituições e do Estado. Não exatamente como imaginou Habermas e seus seguidores, uma vez que o espaço público é formado por redes segmentadas e comunidades de afeto (e não pelo diálogo racional entre o poder deliberativo e as vontades políticas da opinião pública representadas por jornais ou partidos). Curiosamente, a vida deu razão à minha interpretação parcial de Habermas. 4. A herança de Foucault Também nos anos 80, conheci o pensamento de Michel Foucault e fui possuído por ele. Era o oposto completo de Habermas. A correlação de forças é invisível, só conhecida através de seus duplos na linguagem. Há uma anulação completa do sujeito. As práticas, as estratégias discursivas, os dispositivos são impessoais, recorrências históricas intersubjetivas sem agentes, em padrões de organização aparentemente aleatórios para esconder as relações de poder direta sobre os corpos. Embora não seja reconhecida, uma importante herança do pensamento de pós-moderno é sua contribuição à cibercultura e à sociedade de redes. No Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1998, 219), Deleuze partindo dos estudos de Foucault sobre as mudanças no sistema de punição, prevê o fim do regime disciplinar e sua substituição pelo controle em rede. Foucault estuda e a passagem das sociedades de soberania (em que o poder se fundava na dramatização do suplício até a morte como exemplo) para sociedade disciplinar das instituições de confinamento. O presídio, a escola, o exército, o hospital, a fábrica nascem junto com o adestramento individualizado dos corpos (ou à ‘razão instrumental’ de Habermas organizando as instituições modernas a partir do iluminismo). O regime da disciplina é baseado no ‘Panóptico’, um olhar central supervisionando compartimentos paralelos de confinamento.

Este é tema de Vigiar e Punir (2009) e da Vontade do Saber (1982): a passagem de um sistema de punição baseado no suplício público para um sistema mais eficaz e pretensamente humanista, o encarceramento em massa. Deleuze dá continuidade ao pensamento foucaultiano, proclamando o fim das instituições de confinamento estudadas por Foucault e o aparecimento de novos dispositivos de controle 'em redes a céu aberto'. Para Deleuze, um terceiro regime, o da “moratória ilimitada”, está gerando um estatuto de responsabilidade social e estabelecendo um novo tipo de poder, ainda mais subliminar que a disciplina panóptica: o controle contínuo, simultâneo e descentralizado a partir de um sistema numérico de cifras e senhas. Neste novo regime de moratória ilimitada, formação e trabalho são ininterruptos; a escola e a empresa ficam dentro de casa; a produção de subjetividade – tida por muito tempo como secundária em relação à produção social objetiva de bens materiais – se torna a principal atividade econômica da sociedade; as redes digitais desempenhando um papel estruturante no cotidiano. Deleuze não considera a sociedade de controle globalizado através de redes melhor que as antigas sociedades disciplinares. Para ele, o importante é descobrir formas de resistência a este novo poder (GOMES, 2002a). Uma das comprovações de que as rebeliões do passado formam os dirigentes de hoje é a Cibercultura como resultante direta da Contracultura, em vários sentidos. Em primeiro lugar pelo grande número de ‘hackers e nerds’ que são filhos ou netos de ‘hippies e punks’; e/ou pela biografia de vários personagens chaves na história recente – como Steve Jobs, adepto da cultura pop que criou a Apple. Esse é apenas o lado mais evidente. A linguagem audiovisual do computador, a própria necessidade do computador pessoal como ferramenta de organização da vida civil (doméstica e profissional) e o sonho de conexão individual com o mundo de forma artística (musical, visual e poética); são elementos contraculturais dos anos 60 que possibilitaram a elaboração de uma utopia cibercultural. As ideias de Pierre Levy derivam diretamente do pensamento pós-moderno de Deleuze e de Foucault, adotando alguns de seus conceitos: dispositivo, virtual, controle (no prefixo: ‘ciber’). Levy, no entanto, desenvolve um pensamento próprio, que apresenta dois momentos teóricos cumulativos: as noções de ‘tecnologias da Inteligência’ (1993) e de ‘inteligência coletiva’ (2007).

Para Levy, há três ‘tecnologias da inteligência’: a Oralidade, a Escritura e a Telemática. A Oralidade é caracterizada pelo Mito, pela linguagem enraizada no corpo e pelo ‘eterno retorno’ de um tempo circular e cosmológico. A Escritura marca a formas de armazenamento não biológicas de informação. Com a Escrita, surgem a história e o projeto científico de organização sistemática do conhecimento. E a telemática, em que as características das duas tecnologias são mantidas e transformadas. As tecnologias não são meras etapas ou eras cronológicas, mas sim modos de interação social que se sobrepõem uns aos outros. Na oralidade, emissor e receptor partilham um contexto único: o modo de interação social ‘um-um’. Com o texto, a recepção passa ter múltiplos contextos no espaço/tempo, constituindo um modo de interação social ‘um-muitos’. Com as redes, chegamos ao modo de interação social ‘muitos-muitos’, em que todos são interlocutores. Levy sonha uma nova utopia: a tecnodemocracia participativa ou “ecologia cognitiva”, um projeto de auto-organização permanente voltado para o futuro, baseado na combinação complexa das habilidades, competências e singularidades. Para ele, o redimensionamento das desigualdades cognitivas é mais importante do que a redistribuição material das riquezas ou a reorganização das relações de força. Enquanto a cibercultura de Pierre Levy deriva diretamente da contracultura de Foucault e Deleuze, com várias continuidades de conceitos e abordagem; a sociologia de Thompson é atualmente a principal herdeira da hermenêutica de Habermas. Pierre Levy acredita que a internet e as novas formas de interatividade nos levarão ao fim da representação parlamentar, à volta da democracia participativa e do voto direto. Thompson defende a proposta da democracia deliberativa (ou de ampliação midiática da democracia representativa), em que o modelo dominante é a interação mediada não-recíproca à distância. A principal diferença entre as propostas de Thompson e Levy é a questão da legitimidade dos mecanismos de representação do poder na cultura atual. Thompson acredita na racionalização dos interesses sociais através de uma mídia democrática; Levy deseja, a partir do controle social através da informação, reorganizar as relações sociais em uma nova organização: o modo de interação ‘muitos-muitos’. Thompson não desconhece a idéia de que a Internet permite uma interação múltipla face-a-face, mas não vê este modelo como um paradigma cultural estruturante das relações sociais nas sociedades em rede e considera o retorno à democracia participativa uma ilusão 'plesbicitária' (GOMES, 2014g).

5. Meio Habermas, meio Foucault No final da vida, no entanto, Foucault, mesmo sem renegar seus estudos sobre o poder microfísico, deu um passo adiante em sua reflexão, nos últimos livros da História da Sexualidade (1984, 1985) e na Hermenêutica do Sujeito (2006), passando da explicação do ‘governo dos outros’ para a compreensão do ‘governo de si’ (e do ‘poder pastoral’). Nesse último momento, as relações de poder (em conjunto com as práticas de exploração e de produção de sentido) têm por objetivo transformar indivíduos em sujeitos, seja submetendo-os e subjugando-os a uma falsa imagem de deles próprios, seja despertando a consciência de sua real situação. Foucault chega, assim, a uma fenomenologia da própria interpretação, o “lado de dentro”, aproximando-se da tradição compreensiva da hermenêutica. Mas, já era tarde demais. Toda minha geração já tinha sido intelectualmente dilacerada pela divisão entre as ideais de Habermas e o pensamento de Foucault. Eu mesmo, entre o irredutível radicalismo pós-moderno e a sociologia crítica, sem perspectiva de escolha ou elaboração de um meio termo, adotei dois heterônimos: O Encantador de Serpentes (GOMES, 2010a), livro que organiza os textos de inspiração pósmoderna; e O Hermeneuta (GOMES, 2010b) dissertação de mestrado em ciências sociais pela UFRN. O livro/dissertação, principalmente o artigo Os três erros de Leônidas (1998), recupera o método das quatro leituras sucessivas para teoria da interpretação, estabelecendo ‘níveis’ de procedimento: descrição do objeto/signo; analogias do conteúdo simbólico; análise do contexto/paradigma; e uma síntese em que, através da comparação de contextos culturais de recepção diversos, chega-se a configurações universais, arquetípicas. Além da dissertação e de uma tese em ciências sociais sobre a visibilidade midiática na construção de Imagens Públicas, a hermenêutica me permitiu outros textos: Biografia e Subjetividade (2008), que estabelece parâmetros interpretativos para fazer uma entrevista biográfica; Teoria Narrativa e Arte Sequencial – um modelo de análise para Histórias em Quadrinhos (2015c); Uma breve história da Epistemologia (2015d) e o ebook Devaneios da Imaginação Simbólica (2016), sobre Bachelard e Eliade.

Por outro lado, o pensamento pós-moderno me levou a pensar sempre a partir ‘do aqui e agora’ e a proceder a uma crítica radical de minha própria vida cotidiana. O que levou a escrever também outro tipo de textos, mais descritivos e integrados ao momento vivido. O nome O Encantador de Serpentes veio de um sonho, em que o professor de comunicação era o encantador e seus alunos, as serpentes. Do sonho, desdobrou-se um texto mágico (científico, artístico e político) e toda uma metodologia pedagógica de ensino do trabalho jornalístico. O texto advoga a tese de que a comunicação é uma síntese contemporânea de saberes outrora irredutíveis, um campo epistemológico intermediário entre a ciência, a arte e a política. Outro adaptação significativa foi recolocar os três comportamentos biológicos grupais no poder pastoral foucaultiano 1 (GOMES, 2000, 93). Nos rebanhos mamíferos, Kurt Lewin (1989) observou três comportamentos recorrentes: se identificar com o poder (dominação), ser contra o poder (contestação) e aceitar o poder como algo fora de si (submissão). Chamamos os que se identificam com o poder são Pastores; os que são contra, Lobos; e os submissos, Ovelhas. No ensaio Em conflito - conhecimento e confrontação essa associação foi ampliada: o Pastor é o macho-alfa, gerente do capital do grupo; enquanto, o Lobo é o xamã e expressa o inconsciente grupal. Um grupo é (mais e menos que) a soma dos seus componentes. O trabalho coletivo é mais que a soma dos trabalhos individuais gerando um excedente, o resto que sobra do todo menos as partes (o Capital, que passaremos a chamar de 'Dádiva'). O grupo também é menos que a soma das suas partes e recalca as qualidades de seus componentes. A esse déficit inibido das partes através do todo, chamamos 'Dívida' (ou Inconsciente). A disputa política pelo excedente simbólico do grupo e o recalque da energia psíquica é que torna nosso vínculo social tão violento. Nossas perdas e nossos excessos são as causas de nossos conflitos. Não bastaria (para viver democraticamente sem lobos, ovelhas ou pastores) reinvestir a dádiva (o excedente do todo) para compensar a dívida (o inibido das partes)? (...) À luz das noções de Dádiva e Dívida, no entanto, observa-se que os pastores representam o capital do grupo, enquanto, os lobos expressam seu Inconsciente. (GOMES, 2013e; 2013d, 06)

1

Deleuze e Guatarri (1980) também elaboraram o termo 'espírito de matilha' em oposição ao 'espírito de rebanho' para caracterizar o comportamento de contestação e independência dos indivíduos parcialmente excluídos do condicionamento grupal.

O campo grupal é uma estrutura de socialibilidade arcaica, anterior ao ‘Indivíduo’ e à ‘Sociedade’ complexa formada por vários campos distintos. O círculo de dança e canto é seu principal suporte de comunicação, a memória social, espaço deliberativo. O grupo é, sobretudo, o espaço do jogo, da disputa regrada, de luta pelo poder simbólico. Hoje, em virtude do modelo de múltipla interação através de redes digitais, o campo grupal está voltando a ocupar um lugar de destaque na vida social. A aplicação do pensamento de Foucault ao campo grupal explica, por exemplo, o tema do buling, em uma perspectiva diferente da usual. O buling é uma configuração grupal arcaica, comumente chamada de 'bode expiatório'. E pode ser observador em vários níveis. O mais leve é o 'ajuste de conduta' quando todos do grupo debocham de um elemento em relação a algo em particular. Por exemplo: quando uma criança faz pirraça, os índios costumam caçoar dela, imitando-a. Há a intenção de combater a auto piedade. Porém, quando o indivíduo não se enquadra no comportamento do grupo começa um segundo nível de buling, em que, ao invés de forçar a inclusão da diferença pela adequação, deseja excluí-la. Chamo esse segundo nível de 'produção do transgressor'. O complexo de bode expiatório chega ao seu ápice, o terceiro estágio do buling, quando o grupo decide culpar o transgressor de todas as adversidades pelas quais os outros elementos do grupo passam e, então, o sacrificam para se purificarem de seus erros. E isso acontece muito mais corriqueiramente do que se imagina. O termo 'bode expiatório' é uma expressão alegórica oriunda de um fato literal: um bode era imolado para expiar os pecados dos participantes nos cultos a Dionísio. A tragédia como uma forma de drama evoluiu desse ritual, formado por um coral e um personagem central que era sacrificado, depois evoluiu para um espetáculo teatral com vários personagens e público. Para Aristóteles, a 'catarse' é o principal efeito de sentido das narrativas trágicas, proporcionando o alívio de sentimentos negativos do público. A tragédia, assim concebida, resultava de uma catarse da audiência, o prazer de assistir ao sofrimento dramatizado. As narrativas trágicas sempre enfatizam uma transgressão e sua punição exemplar, envolvendo um conflito entre o protagonista e algum poder de instância maior, como a lei, os deuses, o destino ou a sociedade – ou seja: a passagem do segundo para o terceiro estágio do buling.

Baudrilard (1985), em uma perspectiva sociologicamente ampliada, considera o terrorismo subproduto da cultura de massas (do espírito de rebanho). Para ele, as massas (as ovelhas), com sua inércia e letargia, é que manipulam as vanguardas sociais (os pastores) e o terrorismo é uma tentativa desesperada de visibilidade das minorias excluídas (os lobos), que, na maioria das vezes, acaba fortalecendo ainda mais o pacto social, colocando o terrorismo como bode expiatório de todos os problemas sociais. E os mass medias são a principal ferramenta de produção social do terrorismo e do desejo incendiário de desmascarar, espetacular e violentamente, a violência silenciosa da maioria e seu regime de visibilidade. Como também é a principal arma de punição simbólica contra os transgressores do consenso. As campanhas institucionais contra o buling apenas o tornam cada vez mais invisível. Não se pode abolir os mecanismos do inconsciente grupal através de campanhas publicitárias de conscientização. As campanhas institucionais ‘varrerem o lixo para debaixo do tapete’, tornando o buling ainda mais sutil, invisível e silencioso - embora as pessoas que as elaborem e participem não tenham consciência disso. 6. De volta a Habermas O livro Decifra-me ou te devorarei (GOMES, 2006a) - tese de doutorado em ciências sociais pela UFRN – aplica a metodologia hermenêutica tríplice de Thompson à Imagem Pública de Luís Inácio Lula da Silva nos programas de horário eleitoral nas eleições de 1989, 2004, 2008 e 2002. Para cada momento eleitoral: houve uma contextualização histórica; os horários eleitorais de todos os candidatos foram descritos e tiveram seu conteúdo analisado; e as pesquisas de opinião quantitativas reconstituídas e os principais artigos teóricos foram revistos – como forma de analisar a recepção dos programas. O trabalho ressalta que as três primeiras três derrotas foram necessárias para o candidato alcançar visibilidade nacional, modificando sua Imagem através de técnicas de marketing de acordo com as preferências do público para ganhar a quarta eleição.

Independente dos acontecimentos posteriores e de suas interpretações2, o livro/tese teorizou sobre o papel da visibilidade midiática em processos eleitorais, extraindo moções preciosas para pesquisa na área (GOMES, 2006b; 2006c). ‘Imagem Pública’ (ou imagem de marca) é o conceito utilizado para definir uma representação social comum aos seus agentes e à sua audiência. Diferencia-se tanto da ‘imagem semiótica’ (uma foto, por exemplo) quanto da ‘imagem cognitiva’ (a imaginação simbólica), embora guarde uma proximidade estreita com ambas. Ela tem um lado conceitual, proposto pelos agentes; um lado simbólico gestado em sua recepção; e ainda um lado midiático, produtor de visibilidade. É produto da interação entre Ator, Diretor e Público – cujo desempenho deve ser considerado diferenciadamente. Para Thompson, a mídia promoveu uma des-ideologização da política e os programas partidários se tornaram muito semelhantes (organizados a partir de pesquisas de opinião sobre as preferências do eleitor). O critério principal do voto passa então a ser ‘quem’ e não ‘o que’ – uma vez que todos dizem praticamente a mesma coisa. Houve uma personalização da política; a confiabilidade e a honestidade se tornaram pré-requisitos decisivos nas escolhas eleitorais. No livro O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia (2002), Thompson advoga a tese de que as Imagens Públicas transitam sempre entre o público e o privado. Apesar de classificar os tipos de escândalos pela transgressão-gatilho (de abuso de poder, sexuais, financeiros), Thompson chama a atenção para o fato de que o que realmente alimenta em longo prazo o escândalo midiático não é a gravidade da transgressão principal que o gerou, mas sim “transgressões de segunda ordem”: mentiras, desmentidos, ocultamentos. O que fomenta os escândalos durante mais tempo é a tentativa dos agentes de manter invisível algo que se tornou público. O escândalo é esse ‘desmascaramento’ dos agentes e de sua confiabilidade. Enquanto se diz algo publicamente; dos fundos de sua 2

Para se ter uma ideia de como o ‘escândalo do mensalão’ se tornou uma decepção gigantesca, basta se observar os mapas eleitorais. Os 30% de eleitores cativos (de maior nível de instrução e renda) nas quatro primeiras eleições de Lula, votaram contra sua reeleição, conquistada graças aos votos populares, resultantes diretos de sua política de redistribuição de renda. A tese foi defendida e publicada no ano da vitória de 2006, o que levou várias analistas a considerarem uma ‘contaminação’ com o objeto. Tal contaminação é possível em trabalhos descritivos, como também é a possível contaminação dos críticos pela sua própria decepção com a história.

vida privada emergem fatos, pessoas, situações, que contradizem o que está sendo dito. O escândalo é uma contradição entre o que é dito e o que é visto. A verdade aparece nas costas dos agentes, desmentindo-os por de trás, no fundo que os enquadra. Atualmente, as imagens públicas de massa estão implodindo em micro imagens pessoais de rede com a segmentação do consumo e com a interatividade relativa da comunicação digital. Com a segmentação, há uma pulverização dos fluxos sociais e o surgimento de ‘micro imagens públicas’: celebridades setoriais, tribais, transnacionais e até celebridades locais virtuais. Há uma democratização relativa da visibilidade. E com a interatividade, a intimidade à distância deixa de ser ‘não-recíproca’, aumenta a participação da audiência na construção da Imagem Pública. A visibilidade torna-se uma relação pessoal de micro poder. A popularidade, o carisma e o personalismo sempre existiram; porém no regime de hipervisibilidade promovido pelas mídias esses elementos assumem um caráter decisivo na vida social. A noção de Imagem Pública sintetiza várias categorias (reputação, prestigio, honra, status) que antes existiam de forma fragmentada em diferentes graus, variando segundo a cultura de cada sociedade. E com as redes digitais, essas imagens técnicas pessoais se miniaturizaram e se multiplicaram em escala infinitesimal. Em tempos de hipervisibilidade das redes 3, todos têm uma Imagem Pública, quer queiram ou não, para zelar como patrimônio pessoal. 7. De volta a Foucault Para o pensamento pós-moderno, não existe recalcamento suposto da psicanálise, a sociedade não reprime os desejos e instintos dos indivíduos; ela os estimula. Não existe interdição ou repressão sexual, o sexo é proibido e escondido apenas para ser incitado e incessantemente revelado. Também não existe um desejo oculto a ser confessado (“o segredinho sujo da psicanálise”). Os discursos não significam além do que realmente dizem. “O inconsciente não é um teatro de representação, mas sim uma usina de produção” – proclamam Deleuze e Guattari no Anti-Édipo (1972).

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Diferencie-se aqui ‘rede social’, referente à ação comum, sincrônica e descentralizada de agentes semelhantes não presenciais durante algum tempo; da noção de ‘rede digital’, que correspondem às redes intercomunicação dentro e fora da internet (incluindo sites de compartilhamento de arquivos e mensagens, como o Facebook). Muitas vezes, no entanto, essas definições se confundem. Pois, se o acontecimento é realizado por uma rede social, a representação do acontecimento pela rede digital é quem o torna visível.

Além de abertamente anti-freudiana, a filosofia virtual de Deleuze é anti-platônica e anti-hegeliana. Contra Platão porque Deleuze nega toda possibilidade de transcendência e afirmar a imanência absoluta. E contra Hegel em virtude de três conceitos que o marxismo reaproveitou: a totalidade, a causalidade e a dialética. “Mil platôs não formam uma montanha”. A diversidade das partes não formam um todo; o social não pode ser tomado em seu conjunto, sem que seus elementos sofram amputações e simplificações. Para Deleuze toda totalidade é totalitária, pois impõe um centro e uma determinada perspectiva do conjunto. Relativista e adepto da simultaneidade não-midiática de tempo-espaço, Deleuze também não crê em causalidade ou determinação estrutural. Seu mundo é feito de singularidades imprevisíveis. Todos os fatores se condicionam mutuamente sem que nenhum seja necessariamente determinante. Ele também não acredita na unidade dos contrários, como motor das transformações. Acredita sim que as mudanças lineares acontecem através de bifurcações binárias, escolhas entre 'sim' ou 'não' - formando uma 'árvore' (semelhante a um fluxograma). Em oposição a essa árvore de séries binárias, Deleuze sugere a imagem do 'rizoma', uma raiz em que todos os pontos se entrelaçam de forma desigual, fragmentada, e anárquica. Assim, não há dialética nem dialógica, mas sim polaridades binárias. Não nos interessa ressuscitar essas polêmicas, mas observar o impacto dessas ideias – principalmente a noção do ‘aqui-e-agora como único ponto de partida realmente honesto’ para pensar a vida. A crítica pós-moderna mudou definitivamente o nosso modo de pensar. E a Contracultura mudou irreversivelmente nossa forma de viver. Mas, não completamente. Estamos em uma transição entre a vida urbana-industrial e o design das redes, em um momento de resiliências individuais e coletivas em vários níveis. O desejo emergente de singularidade em um mundo ainda uniforme produz a segmentação do mercado consumidor e o controle através de interatividade. O pensamento pós-moderno ainda continua sendo bastante atual, como no caso da proibição do consumo estimulado. Deveras, o mesmo que Foucault e Deleuze disseram sobre a repressão ao sexo serve também para o consumo. Talvez com a liberação sexual da contracultura, e, mais recentemente a AIDS, o centro da correlação de forças tenha se deslocado da genitalidade para a oralidade. Na pósmodernidade, as ginásticas e as dietas desempenham um papel central

no cotidiano, as asceses e os regimes corporais se colocam novamente. Somos hipnosugestionados a consumir pelos meios de comunicação e proibidos de fazê-lo por diferentes níveis de autoridade. A noção foucaultiana de ‘modo de sujeição’ nos sugere que o poder tornou-se mais bioquímico que microfísico e que a principal estratégia atual consiste, na produção hipócrita de uma sociedade de viciados. Álcool, nicotina, cafeína, açúcar, remédios, mas, sobretudo, narrativas audiovisuais. Elas interagem diretamente com o universo alimentar formando um conjunto de necessidades e, principalmente, mantendo o indivíduo em níveis cada vez mais altos de stress emocional. Após séculos de sujeição sexual imposta pelo cristianismo e pela lógica confessional da psicanálise, os mecanismos de poder geram agora um novo controle social: a dependência química e as redes digitais fazem parte de uma única estratégia de sujeição. 8. O hermeneuta inconfesso A teoria da complexidade de Edgar Morin (1977; 1980; 1986; 1998), por exemplo, tem três operadores principais: o princípio dialógico (ou a dualidade dentro da unidade), o princípio da recursividade (ou da causalidade circular de retroalimentação múltipla) e o princípio hologramático (segundo o qual o todo também está contido em cada parte dentro do todo). Nem o universal e abstrato, nem o relativismo concreto de cada realidade local; a complexidade é o universo concreto - em suas múltiplas dimensões simultâneas: o todo é mais e menos que a soma de suas partes ao mesmo tempo. Morin é um pensador de origem marxista-hegeliana, sendo que: no lugar da totalidade, está a complexidade; ao invés de determinação estrutural, há recursividades sistêmicas (feedbacks); e, há a oposição dialógica assimilando e superando a contradição dialética, transformando conflitos destrutivos em diálogos produtivos. (2015a) Observem como Morin repensa os conceitos hegelianos da estrutura marxista (comuns também a Habermas) contrapostos com o radicalismo pós-moderno. Ironicamente, a contradição entre o racionalismo dedutivo de Hegel (que decompõe o todo em partes) e sua antítese, a simultaneidade indutivo-relativista de Deleuze, produziu um terceiro termo (a síntese, a negação da negação): o pensamento complexo.

Mas, não é só por conseguir assimilar e superar dialeticamente as hermenêuticas de Habermas e Foucault que considero Edgar Morin um hermeneuta. Morin é um dos personagens centrais da segunda metade do século XX, tanto no plano da vida como no das ideias. Sua militância política vai da resistência francesa contra o nazismo às barricadas do desejo de maio de 68. Descrever suas ideias é um desafio angustiante, porque ele está sempre absorvendo e comparando diferentes formas de interpretar. Ele próprio defende explicitamente a qualidade da incerteza e da indefinição. Não é filósofo, nem antropólogo, nem escritor. E seu pensamento é homogêneo, integral, sem fissuras ou subdivisões internas; um pensamento preocupado não apenas com a revisão epistemológica interdisciplinar do conhecimento científico mas também com sua reunificação transdisciplinar com a ética, com a arte, com a filosofia e com os saberes tradicionais. Cumpre, assim, todos os requisitos para ser chamado de hermeneuta. Os três operadores epistemológicos de sua teoria da complexidade – a dialógica, a recursividade organizacional e a hologramática – também têm uma dimensão ética: o diálogo como conflito produtivo, a adaptação como forma de vencer as dificuldades e a responsabilidade por todos os universos em que estamos inseridos. E a construção deste novo saber e de sua transmissão em uma nova pedagogia, dependem não apenas de uma reunificação epistemológica da objetiva, mas sobretudo de uma nova conduta pessoal e cultural de solidariedade e consciência em relação ao meio ambiente. 9. Castells, entre a cruz e a espada A complexidade não é utopia nem distopia, mas um conceito aberto. Um ponto de partida e de chegada para a transição entre modos de pensar e viver; uma origem e um destino para viagem na qual subitamente acordamos. Dessa viagem e desses conflitos entre a crítica pós-moderna com a tradição política e sociológica, outras abordagens apareceram, assimilando ‘o aqui-e-agora como único ponto de partida realmente honesto’ da contracultura em novos sistemas de ideias. Manuel Castells em sua trilogia A Sociedade em Rede (1999) analisa as mudanças contemporâneas em um tripé: a nova percepção de tempo-espaço em função da linguagem audiovisual e simultânea da mídia; e as novas 'relações de experiência' nas relações pessoais; e, principalmente, a nova economia-política: as relações sociais de produção se desindustrializam e passam a se organizar em redes de unidades autônomas.

Castells (1999, 413-466) homenageia McLuhan como pioneiro no entendimento das mudanças de percepção de tempo-espaço instituídas pela televisão (e multiplicadas pelo computador); mas também o relativiza, uma vez que ele leva em conta apenas um terço dos fatores de mudança social, sendo preciso ainda avaliar as transformações no mundo do trabalho e das relações de gênero. Quinze anos depois (e não por acaso os quinze anos em que a internet se desenvolveu e se estabeleceu), Castells (2013) estuda vários movimentos sociais organizados através da internet a partir de 2010 (Tunísia, Islândia, a revolução egípcia, os indignados da Espanha, o Occupy Wall Street em Nova York e os protestos de junho de 2013 no Brasil) e identifica vários aspectos em comum - o caráter espontâneo, pluralista, apartidário e heterogêneo das manifestações - formando ‘um padrão rizomático emergente’, uma ‘cultura da autonomia’. Os movimentos descritos por Castells foram populares, dirigidos por si mesmos, organizados autonomamente pela internet por ativistas sem militância, sem direção única ou coordenação centralizada, sem o controle de organizações políticas ou entidades civis, nem o apoio dos meios de comunicação tradicionais. Foram movimentos pluralistas e heterogêneos, com motivações, bandeiras e palavras de ordem as mais variadas e até contraditórias. Algumas foram contra o parlamento e os partidos, mas sem a intenção de substituí-los. O livro Redes de indignação e esperança (2013) aponta para falência da organização política das formas de representação política atuais. Comparando-se a trilogia de Castells sobre redes sociais com sua produção mais recente o papel das redes digitais nos movimentos sociais em todo mundo, pode-se imaginar que o modelo de organização em rede foi da infraestrutura produtiva à sociedade civil organizada, chegando agora à esfera pública da política. Na verdade, há uma transição gradual das superestruturas de um modelo industrial de massas para uma organização em redes sociais. Não houve, no entanto, uma revolução social, mas sim uma assimilação sistêmica das ideias e estratégias gestadas pela contracultura. E as assimilações foram parciais: as fábricas e indústrias ainda existem mesmo com a terceirização e as redes sociais; os meios de comunicação ainda imperam apesar da internet e das redes digitais; os territórios ainda são geridos por governos nacionais mesmo com a globalização do mercado e da sociedade civil. A transição social produz singularidades em todas as partes e complexidade no conjunto.

10. Conclusão Definiu-se aqui ‘contracultura’ como espaço contrahegemônico permanente dentro do regime de ‘centralidade da mídia’ voltado para formação de novas estratégias e tecnologias sociais. Em seguida, apresentou-se sumariamente as hermenêuticas de Habermas e Foucault. Estabeleceu-se assim uma contradição polarizada entre as duas formas de pensar. Depois, advogou-se que a cibercultura de Levy descende do pensamento pós-moderno; e que a sociologia de Thompson, da teoria crítica de Habermas. E que Morin e Castells oferecem diferentes soluções ao impasse. Espero ter deixado claro que não se trata apenas de uma síntese entre dois sistemas de ideias diferentes, mas sim de dois comportamentos políticos distintos. O pensamento complexo é o resultado, não apenas do conflito irreconciliável entre o pensamento científico e o pensamento pós-moderno, mas também do diálogo criativo entre a cultura das mídias e a contracultura, entre a máquina social e as singularidades. Foucault, Deleuze e Levy são teorizações da experiência da contracultura. A teoria crítica de Habermas, Thompson e outros são teorizações sobre a política, a democracia e a comunicação. E Morin, Castells e muitos dos pensadores atuais - colocando “a vida nas ideias e as ideias na vida” - produzem teorizações híbridas, singulares e complexas; própria de uma vida cheia de transições e repleta de incertezas.

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O AUTISMO VISTO PELO CINEMA Diz a lenda que, certa vez, pediram uma música a John Lenon: “Aquela que fala de amor”. Ao que respondeu o compositor: “Mas todas nossas canções falam de amor”. O mesmo acontece com o cinema, pois, quando tentamos lembrar dos filmes sobre comportamentos irracionais, pensamos que 'todos os filmes são sobre a loucura'. A loucura sempre foi um 'objeto' privilegiado do cinema. E de uma forma ambígua: ora como antagonista, ora como protagonista. Nos filmes favoráveis à racionalidade (geralmente de ação e romance), ela sempre foi o vilão e está associada à violência. A maldade é explicada como loucura e o herói é o homem racional. Nos filmes contrários à razão (frequentemente nas comédias de costumes), o louco é um anti-herói, um sábio às avessas, um artista incompreendido ou ainda uma forma satírica de crítica ao poder. Filmes sobre o drama de ser louco são mais raros e bem mais recentes. Nos últimos 40 anos, no entanto, esses dramas não só se multiplicaram como também se especializaram em diferentes tipos de psicopatologia. Há filmes dramáticos sobre artistas esquizofrênicos, sobre assassinos psicopatas, sobre jovens psicóticos e rebeldes, sobre mulheres histéricas … e há filmes específicos sobre autismo. Há uma primeira geração de filmes sobre o drama do autismo em que os portadores são representados de bastante forma caricatural, isto é, simplificada e bem distante da realidade. Rain man (1988); Forrest Gump, o contador de histórias (1994); e Código para o inferno (1998) – são três filmes que colaboraram muito para divulgar o autismo, embora de modo bem diferente de sua verdadeira realidade. Rain man, além de ter sido sucesso de público e de crítica, foi também um marco revolucionário no sentido de divulgar e promover uma compreensão pública ampliada dos sintomas do comportamento autista e da possibilidade de convivência familiar com os portadores. O filme conta a história de Charlie Babbitt (Tom Cruise), um jovem boa vida que viaja a um hospital psiquiátrico para tentar descobrir quem é o beneficiário da fortuna que seu pai deixara ao falecer. Ao chegar ao hospital, Charlie descobre que o beneficiário é Raymond (Dustin Hoffman), um irmão mais velho autista de quem nunca ouvira falar. Para garantir o dinheiro da herança, Charles se aproxima de Raymond, disposto a brigar judicialmente pela guarda legal do irmão. Os dois então viajam pelos EUA, se conhecendo melhor, aprendendo a conviver e passando por inúmeras dificuldades juntos. Aos poucos, o laço de

afeto entre os dois irmãos ganha força e o dinheiro deixa de ser importante. Levando-se em consideração o momento, o filme ensina a convivência com autismo e desmistifica o preconceito. Um segundo passo será dado com o filme Forrest Gump, dirigido por Robert Zemeckis com Tom Hanks no papel-título. O filme narra quarenta anos da história dos Estados Unidos, vistos pelos olhos de um anti-herói autista que, por obra do acaso e de um modo meio cômico, consegue participar de momentos cruciais, como a Guerra do Vietnã e Watergate. Trata-se de uma poetização do autismo, que ressalta várias capacidades reais do autista (de viver com autonomia, de realização pessoal e profissional do portador por outros meios), mas romantiza demais sua vida. Há ainda, nessa primeira geração do olhar cinematográfico sobre o autismo, o filme Código para o inferno. Nele o agente decadente do F.B.I Arthur Jeffries (Bruce Willis) tenta a todo custo defender da morte Simon Lynch (Miko Hughes), um menino de nove anos autista que código secreto e está sendo perseguido pelo governo americano. Apesar do enredo voltado para aventura e para o suspense, esse é, dos três filmes, o que apresenta mais elementos significativos (certamente é o filme que teve mais pesquisa) para compreensão do autismo, pois o desenvolvimento da trama depende da comunicação entre o agente Jeffries e o garoto Simon – o que passa para o público a real sensação de incapacidade autista. No entanto, em nenhum momento, o filme quis ou pretendeu dar uma solução definitiva a esse impasse pois sua proposta é a de mostrar o comportamento autista em um filme de aventura e não o de fazer um filme sobre as caraterísticas do autismo ou sobre as dificuldades de seus portadores. Essa mesma estratégia (de colocar portadores de forma trivial em narrativas com outros focos) pode ser observada também em outros filmes recentes como Querido John, um drama romântico que incorpora o autismo com naturalidade ao cotidiano de seus personagens em segundo plano. Filmes de autoajuda Há também um segundo tipo de filme abordando o tema do autismo, mas interessado em focar um público mais próximo do comportamento. São filmes de autoajuda ou filmes pedagógicos. Por exemplo: Meu filho, meu mundo (Son-Rise, A miracle of love) de 1979, que conta a história autobiográfica da família que fundou o método Son-rise, após se confrontar com os tratamentos behaviouristas do

autismo. Trata-se de um filme obrigatório no que diz respeito a alertar as famílias dos portadores contra os tratamentos comportamentais baseados em castigos e punições. Também incluímos nessa categoria de autoajuda filmes mais leves, como Simples como amar (The other sister, 1999), em que, após se formar em uma escola especial, a portadora Carla Tate (Juliette Lewis), apesar de ser intelectualmente limitada, não quer voltar para casa de seus pais em São Francisco, planejando morar sozinha, ter uma vida independente e se libertar da presença da supercontroladora mãe (Diane Keaton), que a vigia de forma sufocante. Este desejo de autonomia aumenta quando Carla começa a namorar Danny McMann (Giovanni Ribisi), um jovem que, como ela, também é autista e já mora sozinho. É preciso dizer que a caricatura de supermãe feita por Diane Keaton desperta gostosas risadas dos portadores de comportamento autista e a fúria indignada de suas mães. E, é claro, o filme minimiza as dificuldades. Outro filme importante de ser citado é Um certo olhar (Snow Cake, 2006). Alex (Alan Rickman) é um taciturno inglês que está no Canadá para se encontrar com a mãe de seu falecido filho. No caminho ele dá carona para Vivienne (Emily Hampshire), jovem que vai visitar a mãe. Na viagem um caminhão atinge o carro, matando Vivienne. Alex sai então à procura da mãe da jovem. Ao encontrá-la, descobre que ela (Sigourney Weaver) é autista. Linda não tem qualquer reação ao saber da tragédia, mas Alex decide ficar com ela até o funeral. É quando ele conhece Maggie (Carrie-Anne Moss), a vizinha com quem se envolve. Weaver está impecável como autista e de todos os filmes já citados, esse é o mais próximo da realidade. Filmes especiais E finalmente é preciso dizer que existem filmes especiais para pessoas especiais. E não simplesmente sobre pessoas especiais. Pode-se dizer que os primeiros filmes que tratavam o autismo de forma caricatural eram direcionados para o público não-autista, que a geração de filmes de autoajuda era voltada para consolar e orientar os pais, amigos e familiares próximos aos portadores; e que, apenas recentemente, o cinema passou a focar sua mensagem para os próprios autistas, ou melhor: para porção autista que há em todos nós. Chocolate (Thai, 2008) é um desses filmes. Zin (Ammara Siripong) é uma integrante da máfia tailandesa que foi expulsa da organização após se envolver com um membro do alto escalão da

Yakuza, Masashi (Hiroshi Abe). Ela engravida de Masashi e dá a luz a Zen (Yanin “Jeeja” Vismitananda), uma menina que nasceu com autismo, mas com uma incrível habilidade de aprender a lutar apenas com sua memória fotográfica. A primeira vista, esse breve enredo apenas contextualiza mais um filme de artes marciais, uma tragédia tailandesa, em que uma menina autista mata todo mundo e morre de apanhar no final - um terror para os pais e professores. No entanto, observando melhor se perceberá que a intenção principal do filme é demonstrar que a teimosia pode ser converter em treinamento. Atriz que faz a protagonista é realmente autista e realmente luta artes marciais sem dublê – como se pode ver nas tomadas após o final da estória. Os portadores de síndromes do espectro autista geralmente sofrem muito por não saberem se defender e ter acessos de raiva. A mensagem de Chocolate é: toda agressividade pode ser canalizada em objetivos, aprenda a se defender e não gaste energia. A Menina no País das Maravilhas (Phoebe in Wonderland, 2009) é menos violento que Chocolate mas também vê o mundo a partir de uma perspectiva autista, levando o público a pensar e a sentir como se fosse um portador. Phoebe (Elle Fanning) é uma menina rejeitada pelos seus colegas de classe, que deseja mais do que tudo participar da peça de teatro da escola, Alice no País das Maravilhas. Phoebe tem a Síndrome de Tourette e toda narrativa segue a lógica da protagonista. Aliás, outra caraterística desta terceira geração do olhar cinematográfico sobre o autismo é que os filmes se especializaram ainda mais, enquadrando as diferentes síndromes do transtorno de comportamento. A síndrome de Asperger por ser a mais conhecida do espectro autista é a que rendeu mais filmes até o momento. Loucos de Amor (Mozart and Whale, 2005) Donald Morton (Josh Hartnett) e Isabelle Sorenson (Radha Mitchell) sofrem da síndrome de Asperger, uma espécie de autismo que provoca disfunções emocionais. Donald trabalha como motorista de táxi, adora os pássaros e tem uma incomum habilidade em lidar com números. Ele gosta e precisa seguir um padrão em sua vida, para que possa levá-la de forma normal. Entretanto ao conhecer Isabelle em seu grupo de ajuda tudo muda em sua vida. O filme teve e tem uma importância significativa para muitos portadores da síndrome de Asperger, uma vez lhes dá um modelo e uma esperança de relacionamento. É que devido a dificuldade de se relacionar, a maioria dos aspies são extremamente sozinhos e imaturos, muitos nunca tiveram a oportunidade de experimentar um romance.

No entanto, nesse sentido, o melhor filme sobre Asperger já realizado é Adam (2009) dirigido por Max Mayer. Nele, rapaz solitário e programador brilhante (Hugh Dancy), portador da síndrome de Asperger, desenvolve uma romance com sua vizinha que é normal, a escritora Beth (Rose Byrne). O filme é tão fiel à realidade dos Aspergers, que muitas pessoas (no mundo todo) já se autodiagnosticaram após assisti-lo. Há também Mary and Max (2009). Uma animação sobre a amizade através de cartas entre Mary - uma solitária menina de oito anos que vive no subúrbios de Melbourne; e Max - um portador de Asperger de 44 anos que vive em Nova Iorque. O filme segue o mesmo tom sarcástico e tragicômico caraterístico dos aspies, beirando o humor negro e a melancolia, procurando dizer coisas difíceis de modo engraçado. Na verdade, é uma estória bela e triste. A atenção da mídia para o tema Asperger nos EUA hoje é bem forte: recentemente houve até um candidata aspie (Heather Kuzmichd) no reality-show America´s Next Top Model; e há atualmente vários seriados no ar (Bones, The Big Bang Theory, Criminal Minds e Regenesis) que têm personagens portadores da síndrome. No Brasil, no entanto, ainda reina a desinformação e o preconceito; há pouco espaço na mídia e esses filmes ainda não são de amplo conhecimento – daí a razão do presente texto, que sistematiza essas iniciativas e incentiva que se realizem outras.

TEORIA SOCIAL COGNITIVA E SÍNDROME DE ASPERGER Resumo: Este texto, além de se pretender um breve resumo comentado sobre os avanços e limitações das ideias do psicólogo contemporâneo Albert Bandura e dos conceitos principais da teoria de aprendizagem social e da teoria social cognitiva, trata também da evolução das teorias e tratamentos sobre autismo. A ideia é demonstrar que as novas psicologias cognitivas podem ajudar a entender e a tratar (em conjunto com outras terapias) dos transtornos de desenvolvimento do espectro autista, principalmente a Síndrome de Asperger. Palavras-chave: psicologia cognitiva – síndrome de Asperger – aprendizado social.

1. Introdução Durante os anos 90, as ideias de Bandura passaram a desempenhar um papel importante no cenário global, passando a ser ensinadas em praticamente todas as universidades de psicologia e de pedagogia do mundo. Mais que isso: milhões de pessoas, desiludidos com a psicanálise e com o behaviorismo, passaram a trabalhar terapeuticamente a partir do enfoque cognitivo comportamental proposto por Bandura e por outros pesquisadores. Passou-se do modelo terapêutico das entrevistas interpretativas para treinamentos orientados para ação. O ponto de partida de Bandura é perguntar como as pessoas exercem algum controle sobre seu comportamento? Para os adeptos do determinismo ambiental unidirecional (ou Behaviorismo) o homem é produto do meio ambiente. Por outro lado para os diferentes tipos de humanismo idealista, é o homem que cria as condições na qual se desenvolve. Ambas as perspectivas, apesar de antagônicas, acreditam na reciprocidade do aspecto oposto. Ou seja, tanto os comportamentalistas creem na capacidade do homem de mudar o ambiente, como os idealistas observam o condicionamento ambiental. O modelo de Bandura é resultado de três interfaces teóricas simultâneas: de suas críticas ao behaviorismo radical de Skinner, de seu diálogo com outros cognitivistas como Piaget e dos seus avanços clínicos e terapêuticos em relação à psicanálise e a Freud. Em relação a Skinner, Bandura introduziu a categoria de Self (não do modo esotérico como na tradição junguiana, mas como um campo da subjetividade e de interpretação afetiva dos estímulos). Em contrapartida, Bandura coloca a reflexão freudiana dentro de um contexto comportamental. E, finalmente, em relação a Piaget, Bandura repensa a ideia de aprendizado cognitivo.

Apenas a teoria da aprendizagem social insere um terceiro termo no modelo, postulando um determinismo recíproco entre os fatores ambientais, pessoais e comportamentais. Na teoria da aprendizagem social, há um sistema de controle – a agência e suas funções cognitivas - em que a auto regulação é governada pela antecipação e por auto reações afetivas.

Nosso primeiro enunciado é que o modelo triádico de condicionamento recíproco elaborado por Bandura permite definir os comportamentos autistas como aqueles que têm uma deficiência de interação direta entre comportamento e ambiente, fazendo com que se desenvolvam resiliências, ecolias, recorrências e fixações no campo cognitivo. O autista aprende a adequar seu comportamento indiretamente através de modelações secundárias ou repetições das modelações primárias do comportamento. Os comportamentos autistas se caracterizam por três fatores básicos: ausência de sociabilidade, dificuldades de comunicação e imaginação obsessiva e repetitiva. No autismo, há uma falha na interação social recíproca: frequentemente, o autista se isola como se estivesse em outro mundo; é passivo diante dos outros e tem dificuldade de estar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo; suas tentativas de interação social podem ser desastradas e inábeis. Também há dificuldades de comunicação. Alguns não falam e tem pouca linguagem não-verbal. Outros têm a fala limitada, com imitações que podem ser do que o interlocutor acabou de dizer (ecolalia imediata) ou de situações mais distantes (ecolalia remota).

É comum o uso da terceira pessoa ao invés do ‘eu’. Abreviação de frases, expressão do estritamente necessário, sendo ignorados o contato social e a ‘troca de ideias’. A linguagem apresenta alterações no discurso recíproco, na compreensão da linguagem figurada e entoação estranha, apesar do vocabulário e da gramática intactos. E, finalmente, existe imaginação limitada; repetição incessante de movimentos, rotina ou de atividades específicas; reações comportamentais drástica mediante mudanças como, por exemplo, trocar de lugar um objeto da casa; rituais pessoais; mania de perfeição; tudo deve ser simétrico e não pode ficar fora daquele lugar. Gostam de alinhar coisas, colocar e tirar objetos de uma caixa. Tem pouca espontaneidade, mimese corporal, com comportamentos estereotipados, mal copiados dos outros. Nossa hipótese é que essas duas das três características (a dificuldade de comunicação e a ausência de sociabilidade) são causadas por baixa interação ambiente-comportamento, enquanto a terceira característica, a disfunção na imaginação e na linguagem, é uma forma compensação cognitiva, que pode se desenvolver como resiliência, como no caso dos Asperger. Isto, no entanto, não significa que os fatores condicionantes ontogenéticos e filogenéticos se sobrepõem à subjetividade e ao Self. Ao contrário, no modelo de Bandura e (acreditamos) na sintomatologia do autismo, a consciência é o fator determinante. No entanto, é também o fator mais variável e flexível, se adaptando aos diferentes tipos condicionamentos. 2. Autismo e Asperger O autismo foi cientificamente descrito pela primeira vez em 1943, pelo médico austríaco Leo Kanner. Pode-se subdividir a evolução dos estudos sobre a síndrome4 autista em três etapas distintas: a fase psicogênica (ou psicanalítica) em que o autismo era entendido como uma perturbação emocional adquirida. A fase behaviorista (e vygostskyana), a partir dos anos 70, em que o autismo será visto como um transtorno orgânico-comportamental de cunho biológico e hereditário (fase da ‘descoberta’ do espectro autista5). E a fase atual, neuro-científica e cognitivista, em que fatores genéticos, ambientais e cognitivos condicionam uma anatomia cerebral diferente. Fase cujo

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‘Síndrome’ significa ‘um conjunto de sintomas dos quais se desconhecem as causas’.

O espectro autista é formado pelas seguintes síndromes: Autismo típico, Síndrome de Asperger, Síndrome de Rett, Síndrome X Frágil, Síndrome Landau-Kleffner, Síndrome de Williams e Transtorno Desintegrativo Infantil.

marco inicial é a pesquisa clínica desenvolvida por Donald Winnicott sobre o papel decisivo da subjetividade no autismo. Pode-se dizer também que a Síndrome de Asperger (SA) é o transtorno menos grave do continuum autístico6. A SA é um transtorno de múltiplas funções do psiquismo com afetação principal na área do relacionamento interpessoal e no da comunicação, embora a fala seja relativamente normal. Há ainda interesses e habilidades específicas, o pedantismo, o comportamento estereotipado e repetitivo e distúrbios motores. Os portadores são pensadores visuais, literais e inflexíveis. Orientados pela rotina e por regras, com dificuldades em se socializar, são pessoas bastante confiáveis e obsessivos por seus temas, assuntos e interesses favoritos. Nesta terceira fase de pesquisa, várias explicações científicas parciais para as causas do autismo foram elaboradas, dando ênfase aos diferentes aspectos: as teorias cognitivas (de déficit da função executiva, de déficit de coerência central e de déficit de metarepresentação), que admite os fatores ambientais e inatos, ressaltam o papel da subjetividade; a hipótese de intoxicação alimentar, que, aceita o papel do Self e da genética, enfatiza o meio ambiente; e as explicações que priorizam as diferenças anatômicas do cérebro determinadas pela hereditariedade genética. A teoria cognitiva do déficit da função executiva se baseia na constatação de comprometimento da capacidade de planejamento e execução no autismo e da semelhança entre o comportamento de indivíduos com disfunção cortical pré-frontal e aqueles com autismo: inflexibilidade, perseveração, primazia do detalhe e dificuldade de inibição de respostas. Já a teoria cognitiva de déficit da coerência central na representação é um aperfeiçoamento da teoria de disfunção executiva, que enfatiza a dificuldade de processar conceitos de totalidades abstratas e da preferência pelo processamento de imagens referentes a realidades parciais concretas. Em comum, as teorias cognitivas apresentam uma característica: a atribuição dos déficits sociais em autismo a dificuldades em modular tanto a dados sensoriais quanto a experiência perceptiva. Dessa forma, o ‘retraimento’ autista tem sido explicado em termos de um estado de excitação crônico ou flutuações 6

Para v. uma revisão bibliográfica completa sobre asperger GODOY, 2008.

nesses estados que conduzem à evitação do olhar, reações negativas e retraimento da interação social, como mecanismos para controlar o excesso de estimulação. Recuperando a noção de déficit inato na capacidade de entrar em sintonia afetiva com os outros no autismo, identificada pelas abordagens psicanalíticas, surgiram também as explicações de danos na capacidade de meta-representar (ou mais especificamente, na incapacidade de desenvolver uma mente com ‘o outro dentro de si’), como fator explicativo das síndromes do espectro autista. A segunda grande hipótese contemporânea, a de contaminação alimentar, acredita que o autismo é causado por stress oxidativo, metilação inadequada e distúrbios na sulfatação que acabam atingindo o cérebro e provocando o que chamamos de autismo. A Dra. Amy Yasko é médica holística e naturopata, trabalha nos EUA com um protocolo feito através de exames genéticos, baseado no projeto GENOMA e mais precisamente com a epigenética, a ciência que pretende esclarecer como fatores ambientais (hábitos alimentares e estresse, por exemplo) podem interferir no funcionamento dos genes. Nesta perspectiva, o comportamento autista se mantém em um tripé que envolve os sistemas imunológico, intestinal e endócrino. E as causas principais do distúrbio autista são: a) a presença de mercúrio e metais pesados acumulado no organismo e; b) a produção de morfinas pelo organismo, metabolizadas a partir do glúten e da caseína7. O protocolo se baseia em tratar o autismo através do comportamento do processo metabólico de cada indivíduo, com destaque para as dietas 7

Glúten e a caseína são transformados em peptídeos, denominados gliadinomorfina (a quebra da proteína do glúten) e caseomorfina (a quebra da proteína da caseína). Esses peptídeos são complexas cadeias longas de aminoácidos e exigem um bom funcionamento da produção enzimática para serem quebrados e absorvidos. Ambos os peptídeos agem como a morfina no corpo. Isto acontece com pessoas que tem problemas de fungos no intestino. Um grupo de fungos com crescimento desordenado, adere à parede do intestino tornando-o permeável. Substâncias que não são completamente digeridas podem entrar no fluxo sanguíneo e daí chegar até o cérebro. Vários estudos mostram que o autista tanto tem sérias deficiências de produção enzimática com pouca ou nenhuma produção da enzima DPP IV responsável pela quebra desses peptídeos, quanto o desequilíbrio da flora intestinal, provocando o intestino permeável e deixando que essas substâncias entrem na corrente sanguínea e se liguem aos receptores opiáceos no cérebro. A deficiência na sulfatação é outro fator que contribui para o intestino permeável. Os glucosaminoglucanos, polissacarídeos responsáveis por manter a integridade celular da mucosa intestinal e da barreira hematoencefálica, são dependentes de sulfatação. Sem sulfatação, os glicosaminoglucanos não podem desempenhar o seu papel de manter a integridade celular.

sem glúten e caseína, suplementação de vitamina B6, e uso de camara hiperbárica. Defendem essa hipótese organizações importantes como (Autism Research Institute), responsável pelo protocolo DAN (Defeat Autism Now). Aqui no Brasil, o DAN é representado pela ADEFA (Associação Em Defesa do Autismo) e o movimento passou a ser chamar “O autismo é tratável”. De acordo com o protocolo DAN há muitos pontos a serem analisados8. Cada caso tem uma combinação. Localizam-se os desequilíbrios no organismo através de exames específicos de sangue, urina, fezes e mineralograma; e prescreve-se uma terapia nutricional e bioquímica específica para cada caso, em conjunto com um tratamento educacional intensivo. E, finalmente, há ainda as abordagens que privilegiam o aspecto genético, secundarizando a subjetividade e o meio ambiente. Em abril de 2008, a Escola Americana de Medicina Genética (ACMG), estabeleceu procedimentos de práticas clínicas a serem seguidos por geneticistas clínicos, tanto para determinar a etiologia dos casos de desordens do espectro autista como para tratar pacientes com este diagnóstico. Este estudo confirma que atualmente existe uma rotina bem estabelecida, clinicamente disponível, com biomarcadores identificados que auxiliam os geneticistas clínicos a avaliar e tratar indivíduos, descrevendo sucintamente alguns biomarcadores reconhecidos, importantes ferramentas clínicas identificadas para avaliação médica e resposta ao tratamento monitorizado9. 8

Indicadores: níveis de IgA secretora diminuídos; doença inflamatória intestinal; deficiências nutricionais; refluxo gastresofágico; intestino permeável; acúmulo de metais pesados; trombofilia; disfunção sensorial; alterações cromossômicas; sarampo recorrente; presença de opióides; deficiência de melatonina; déficits nutricionais; alergias alimentares; autoimunidade cerebral; alteração na perfusão; alteração nos níveis de dopamina; CMIS alterado; gastrite; disbiose; nível de amônia elevado; alteração nos níveis de purina; alteração nos níveis de serotonina; alteração nos mecanismos de sulfatação; e deficiência nos níveis de ômega 3. 9

1. Biomarcadores de Pofirinas - ajuda a determinar se o mercúrio tóxico está presente e, quando ele for encontrado, monitora as alterações das quantidades de mercúrio, durante as terapias de desintoxicação (quelação); 2. Biomarcadores de Transulfatação - ajuda a determinar se a suscetibilidade bioquímica ao mercúrio está presente e, quando for encontrada, monitora a resposta do paciente durante a suplementação de terapias nutricionais, tais como: metilcobalamina (a forma metil de vitamina B12), ácido folínico, e piroxidina (vitamina B6); 3. O estresse oxidativo/biomarcadores de Inflamação - ajuda a determinar se há excesso de subprodutos de vias metabólicas e, quando forem encontrados, monitora os progressos dos pacientes durante a suplementação com antiinflamatórios, como Aldactone ® (espironolactona); 4. Biomarcadores Hormonais - ajuda a determinar se alterações hormonais estão presentes e, quando forem encontrados, monitora os progressos dos pacientes durante o tratamento indicado com drogas de

Dentre as abordagens que enfatizam as diferenças na anatomia cerebral, destaque-se a pesquisa Espelhos Quebrados – uma teoria sobre o autismo (RAMACHANDRAN e OBERMAN, 2006) afirmando que deficiência anatômica no sistema de neurônios-espelho é a causa do autismo. Os neurônios-espelhos são os responsáveis pela modelação do comportamento a partir do ambiente e sua disfunção biológica explicaria a sobrecarga cognitiva, uma vez que a função de mimese passaria a ser desenvolvida por outras partes do cérebro. Também nesse paradigma, há muitos, como Oliver Sacks (1995), que não consideram mais o autismo como uma doença e sim como uma forma diferente de sentir e de pensar o mundo, tão válida quanto qualquer outra. Embora possuir uma anatomia cerebral diferente não seja necessariamente uma patologia, para maioria, o autismo ainda é um problema sério de vida e não ‘um modo alternativo de ser’.10 Enquanto os médicos naturalistas dão uma ênfase exagerada à dieta SGSC (sem glúten e sem caseína) e a desintoxicação radical de metais pesados; os psiquiatras acreditam na prevalência genética/diferença anatômica do cérebro autista; e os clínicos, na hipótese da dissonância cognitiva; cada um, apostando em terapias específicas genéticas, farmacológicas ou psicopedagógicas. Porém os melhores resultados de tratamento são conseguidos com adoção de várias terapias em conjunto - o que decorre de uma concepção que acredita em um sistema de determinantes múltiplo e não de uma causa principal para distúrbios do espectro autista. E isso nos leva ao nosso segundo enunciado: a Teoria Social Cognitiva, em virtude do seu modelo de condicionamento recíproco entre os fatores hereditários, ambientais e cognitivos, é a filosofia ideal para a integração dos tratamentos e terapias do autismo, através da técnica de Modelação. regulação hormonal tais como Lupron ® (acetato de leuprolide) e Yaz ® (drospirenone / ethynyl estradiol); 5. Biomarcadores de disfunção mitocondrial - ajuda a determinar se houver perturbações nos percursos de produção de energia celular e, quando forem encontrados, monitora os progressos dos pacientes durante a suplementação com drogas como a Carnitor ® (L-carnitina); e 6. Biomarcadores Genéticos - ajuda a determinar se há susceptibilidade genética ou fatores causais presentes e, quando forem encontrados, fornece dicas sobre as modificações comportamentais que reduzem o impacto genético. 10

Para uma revisão bibliográfica completa sobre autismo v.: BOSA, 2000.

3. Modelação A mais importante contribuição teórica e prática de Bandura é a ideia de modeling – traduzida pelos adeptos da psicologia cognitiva para o português como modelação (enquanto a palavra shaping é traduzida como modelagem, utilizada pelos que preferem a análise comportamental). Modelação significa a adaptação/mudança por mimese criativa de comportamentos, isto é, através da imitação reinterpretada de atitudes, gestos, ideias, afetos. Para ele, todo aprendizado social se dá por modelação de comportamento. O termo ‘mimese’ foi utilizado por Platão e Aristóteles (e por vários teóricos da arte e filósofos como Paul Ricoeur) para designar o mesmo que ‘modelação’: a apreensão criativa (e muitas vezes involuntária) de condutas alheias para incorporação no próprio comportamento. Em seus primeiros trabalhos (1961-1986), referentes à teoria da aprendizagem social, Bandura estudou o papel pedagógico da imitação. Em um segundo momento (1986 até agora), ele vai aprofundar seus estudos no sentido de verificar a eficácia terapêutica da imitação, de “transmissão de condutas através de modelação”, principalmente no tratamento de fobias e dependências psicológicas. Porém, é importante citar a famosa experiência de modelação de comportamento agressivo com o ‘João Bobo’.11 Na experiência um grupo de crianças observa um filme em que adultos (dos ambos os sexos) gritavam e agrediam o boneco inflável. As crianças foram divididas e um grupo de controle não foi submetido à visualização do filme. No momento em que o ‘joão bobo’ é apresentado à criança, ela não tem quaisquer atitudes hostis com o boneco. Porém, após observar o adulto tendo comportamento agressivo com o brinquedo, a criança também passa a reproduzir o comportamento agressivo. Bandura verificou que as crianças que tinham assistido ao filme apresentavam o dobro das respostas agressivas comparativamente ao grupo de controle, inventando inclusive novas formas de agressão que não tinham sido observadas. Observou também que entre os que foram expostos à violência, os meninos foram mais vulneráveis a imitações agressivas que as meninas.

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Veja o vídeo em: http://www.youtube.com/watch?v=BTB-I-L3YIE

A modelação como terapia foi inicialmente usada por Bandura para trabalhar com herpefóbicos (pessoas com um medo neurótico de serpentes), fazendo com que eles imitem modelos de exposição a cobras, vencendo assim a fobia. Bandura observou que a modelação propicia tanto no aprendizado social como na readaptação terapêutica, três efeitos distintos de mudança de comportamento: o modelador, o interprete e o observador.12

É lugar comum dizer que os autistas, principalmente os portadores de SA, copiam comportamentos, falas, sotaque e aparência de outras pessoas. Por outro lado, uma dos sintomas mais comuns de diagnóstico autista é a incapacidade de se colocar no lugar dos outros ou ainda da capacidade de representar e/ou abstrair. Pode parecer contraditório, mas as duas assertivas são verdadeiras: tanto os portadores de Asperger são notáveis imitadores como têm dificuldades em representar. Se nossa hipótese central for correta, os autistas têm dificuldades em modelar involuntariamente, eles precisam aprender a aprender comportamentos. Os três efeitos distintos de Bandura são simultâneos, mas também podem ser vistos como etapas de desenvolvimento da técnica de modelar para síndromes autistas e o 12

Em Tempo e Narrativa (1994), o filósofo Paul Ricoeur, confrontando as ideias de Santo Agostinho com o pensamento de Aristóteles, também desenvolve uma teoria tríplice mimese ou três níveis de leitura do mundo. A mimese I é o mundo prático ainda não explorado pela atividade poética, portanto, ainda não narrado. Esse mundo já está impregnado de uma pré-narratividade que servirá de referência para o ato de construção poética (configuração), a mimese II. A mimese não se encerra no ato de configuração (o mundo do texto), mas sim na atividade de leitura, ou, como diz Ricoeur, no ato de refiguração, a mimese III. Na mimese hermenêutica, há um percurso que parte da vida vivida e ainda não narrada, passa pela configuração da trama e encontra o mundo do leitor final.

objetivo integrado de seus treinamentos cognitivos deve ser o desenvolvimento e a ampliação da capacidade de meta-representação. O treinamento através de modelação incorpora outras técnicas psicodramáticas e teatrais. Mas, vamos ao que interessa: nosso segundo enunciado é que a modelação elaborada por Bandura é o método ideal para integração dos tratamentos de distúrbios autistas. O tratamento ABA (Applied Beravior Analysis, Análise Aplicada do Comportamento) é o principal programa de ensino intensivo das habilidades necessárias para que o indivíduo diagnosticado com autismo ou transtornos invasivos do desenvolvimento possa adquirir a melhor qualidade de vida possível. As oportunidades de aprendizagem são repetidas muitas vezes, até que a criança demonstre a habilidade sem erro em diversos ambientes e situações. A principal característica do tratamento é o uso de consequências positivas ou reforçadoras (presentes, elogios, gratificação). A modelação de Bandura trabalha com três tipos de reforços positivos: o incentivo passado (tradicional ou clássico behaviorismo), o reforço prometido e o reforço vicário ou indireto, a capacidade seletiva de automotivação através da escolha do ambiente, dos modelos e dos reforços. Note-se que estes motivos têm sido tradicionalmente vistos como as ‘causas’ da aprendizagem. Bandura diz que eles não estão determinando ‘o que’ nós aprendemos, mas condicionando ‘como’ aprendemos. Claro, existem também três motivações negativas para imitar: a lembrança dos últimos castigos, as ameaças (punições prometidas) e o castigo vicário através de situações que exijam grande desempenho ou que frustrem o sujeito aprendiz, inibindo comportamentos indesejáveis. Bandura diz que a punição em suas diferentes formas, não funciona tão bem como o reforço positivo e que, de fato, há uma tendência do sistema de restrições se voltarem contra o desenvolvimento do sujeito do aprendizado. Por ‘punição’ também não se deve entender castigos corporais ou constrangimentos morais, mas sim penalidades consensuais assumidas com antecedência, ‘prendas’, atividades compensatórias realizadas por espontânea vontade. O uso positivo da culpa aliado à mudança das formas e ocasiões de autogratificação pode acelerar bastante um processo de aprendizagem por modelação. Em todo caso, a modelação de Bandura permite incrementar bastante o tratamento ABA em sua concepção tradicional.

No filme Meu filho, Meu mundo (Son-rise: a miracle of love, 1979)13, há uma cena em que os médicos behavioristas criticam os pais do menino autista protagonista por esses imitarem seu comportamento patológico, enquanto ‘o correto’ seria que apenas a criança imitasse os pais e professores. E, como filme mostra, a chave para entrar em contato emocional com a criança autista é justamente a reciprocidade da modelação, o fato dela ser uma via dupla é que permite que haja realmente comunicação. A grande relevância desta abordagem, no entanto, está em provar o papel central da afetividade na mudança do comportamento autista. E, no ABA, a imitação é unilateral e segue um modelo de interação um-um. Outra forma de tratamento autista por treinamento cognitivo muito conhecido e aplicado é o TEACCH14. Enquanto o ABA é uma terapia comportamental que tem por objetivo adaptar o portador do distúrbio ao ambiente social, o programa TEACCH, mais atual, há uma ênfase no desenvolvimento da consciência das diferenças neurocognitivas. Mudar o comportamento não é um objetivo em si mesmo. É possível combinar estratégias do TEACCH e da ABA, porém, é muito importante que eles sejam filosoficamente integrados (pela Teoria Social Cognitiva, por exemplo). Talvez os que trabalham com ABA não enfatizem tanto a autonomia, sendo às vezes difícil evitar que as crianças tornem-se dependentes de modelos. Por outro lado, trabalhar com a abordagem TEACCH pode fazer com que se concentrem demais na independência e deixem de trabalhar com imitação.

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O filme que conta a história de outra iniciativa terapêutica importante no tratamento da síndrome autista, o Programa Son-Rise®. No início dos anos 70, o casal Barry e Samahria Kaufman, ouviram dos especialistas que não havia recuperação para seu filho Raun. Foi a partir da dedicação intuitiva e amorosa, que eles desenvolveram o Son-Rise. Raun se recuperou após três anos e meio de trabalho intensivo com seus pais, continuou a se desenvolver, cursou uma universidade e agora trabalha no Autism Treatment Center of América. Desde então, milhares de crianças utilizando o programa têm se desenvolvido muito além das expectativas, algumas delas apresentado completa recuperação. No Brasil, o Son-rise está em: www.inspiradospeloautismo.com.br 14

O TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Communication Handicapped Children, Tratamento e Educação de Crianças Autistas e com Desvantagens na Comunicação) é um programa especial de educação talhado para as necessidades individuais de aprendizado da criança autista baseado no desenvolvimento do cotidiano. Baseado no fato de autistas serem frequentemente aprendizes visuais, o TEACCH traz uma clareza visual ao processo de aprendizado buscando a receptividade, a compreensão, a organização e a independência. Embora o TEACCH não foque especificamente nas habilidades sociais e comunicativas tanto quanto o ABA, ele pode ser usado junto com esse tratamento para torná-los mais efetivos.

Entre as terapias, também há várias possibilidades de combinação, porém as mais importantes são: a terapia ocupacional, a de integração sensorial e a terapia da fala ou fonoaudiológica. A integração das terapias pode ser embasada nos programas TEACCH e ABA. Também poderá utilizar o recurso PECS (Picturing Exchanging Communication System, Sistema de Comunicação pela Troca de Figuras). Eu já conhecia o potencial pedagógico e terapêutico da imitação, devido as minhas vivências com o Círculo de Repetição. Bandura, no entanto, faz uma fundamentação científica impecável, com diversas pesquisas empíricas e várias discussões específicas. O Círculo de Repetição é uma técnica que consiste em todos imitarem cada um dos participantes da roda. Tanto se pode deixar livre a ordem e o tempo de participação de cada um, de modo orgânico; como também estabelecer uma sequência (o sentido horário do círculo, por exemplo) e um tempo (mínimo e/ou máximo) de fala para cada um, mas a imitação deve ser a mais perfeita possível em termos de movimento, voz e intenção – devendo-se evitar o máximo ‘interpretar’ o outro, embora isso seja inevitável e as pessoas acabem vendo como são vistas pelos outros. Esse não é a principal função do exercício, apenas um estágio inicial. Com o tempo (uns 30 minutos), cria-se um vínculo inconsciente entre os participantes, que passam a sentir a presença de si nos outros e dos outros dentro de si, e se estabelece um jogo profundo de troca de identidades e modos de ver e pensar. O Círculo comporta diferentes aplicações pedagógicas (ensino de línguas, de música, contar estórias míticas), terapêuticas (expressão de conteúdos emocionais reprimidos, ampliação da identidade individual) e hipnóticas (viagens da imaginação – a repetição de vozes com os olhos fechados), embora a verdadeira essência desta prática esteja em seu caráter lúdico e aberto à improvisação. O círculo de repetição abre as portas para inúmeras outras técnicas de roda (biodança, danças circulares, cirandas), psicodramas, narrativas míticas e de sonhos. Porém, para promover essa integração de tratamentos e terapias através do aprendizado social por modelação de comportamento, não basta adotar a imitação como técnica principal, é preciso também ressaltar processos relevantes da mimese cognitiva: 1. Atenção. Se você vai aprender algo, você precisa estar prestando atenção. A atenção é o foco da percepção. Alguns dos fatores que influenciam a atenção têm a ver com as propriedades do modelo. Se o modelo é colorido e dramático, por exemplo, mais atenção. Se o modelo é atraente, de prestígio ou

parece ser particularmente competente, despertará mais atenção. E se o modelo está mais perto de nós, ‘chama’ mais atenção. Essas variáveis foram usadas por Bandura para mensurar os efeitos da televisão sobre as crianças. 2. Retenção. Em segundo lugar, temos de ser capazes de lembrar do que prestamos atenção. Aqui, a imaginação e a linguagem entram em jogo, reanimando a imagem ou a descrição para que possamos reproduzi-los com o nosso próprio comportamento. 3. Reprodução. Neste ponto, estamos sonhando acordados. Posso passar um dia inteiro assistindo um patinador olímpico fazer o seu trabalho e não ser capaz de reproduzir os seus saltos, porque eu não sei nada patinação. É preciso ter a capacidade de reproduzir o comportamento memorizado. Por outro lado, é através da imitação que se melhora o próprio comportamento. 4. Motivação. Além de prestar atenção, se lembrar dos comportamentos e saber reproduzi-los, nós ainda não nos modificaremos, se não formos motivados para imitar, isto é, a menos que tenhamos boas razões para fazê-lo. Como vimos, há três reforços positivos e três negativos.

“Aprender a aprender” através da observação e modelação de comportamentos, implica na capacidade auto regulação e do sujeito do aprendizado ‘ser agente’, isto é “fazer as coisas acontecerem intencionalmente” (2008, 69) em função do desenvolvimento, a adaptação e a mudança – não apenas do comportamento como também do meio ambiente que o condiciona e da consciência que o determina. 4. A noção de agência A noção de agência, mais do que se definir como uma mera mediadora dos aspectos ambientais e comportamentais, tem um papel fundamental na constituição desses fatores e é formada a partir de quatro atividades cognitivas distintas: intencionalidade, antecipação, auto reatividade e autorreflexão.

1) Intencionalidade – Além do desejo consciente de mudança e/ou adaptação do comportamento, a intenção de se modificar ao longo do tempo implica em planos e estratégias. 2) Antecipação – Porém, o planejamento para modificar seu próprio comportamento implica em traçar objetivos e prever os resultados. 3) Auto reatividade ou auto regulação como atividade cognitiva necessária à mudança de comportamento pode ser subdividida em: a) motivação, isto é: na capacidade de se manter emocional confiante na mudança através, principalmente, das crenças de auto eficácia; e b) auto regulação propriamente dita, que para Bandura se dá principalmente através da modelação (a imitação criativa de outros modelos de comportamento). 4) Autorreflexão – É a consciência, entendida como auto referência e capacidade meta cognitiva de refletir sobre si mesmo, como o principal fator interno no processo de aprendizagem social e nas mudanças adaptativas de comportamento.

Agência pode ser ainda pessoal, delegada ou coletiva; mas nunca individual para evitar a dicotomia com o social. Particularmente, também não gosto da agência coletiva. O importante, no entanto, é que a noção de agência permite pensar as possibilidades de aumentar autonomia dos comportamentos em função de seu condicionamento, alterando parte deste condicionamento. Um exemplo: para mudar a dieta (excluir o açúcar e carboidratos com glúten – o que básico para os portadores de autismo), uma pessoa deve, em primeiro lugar, compreendendo que o desejo é mais forte que a vontade, desejar viver com qualidade para vencer (ou “ficar magro e bonito”) a vontade de comer doces e massas, e não ao contrário (colocar a força de vontade contra o desejo de come-los). Mas definição correta do desejo a ser intentado, evitando-se a interpretar a restrição como uma punição corporal, não é suficiente sem uma estratégia e de um plano, envolvendo tempo, reforços, mudanças de condicionamento. A faculdade da antecipação, por sua vez, permite a redefinição constante dos objetivos possíveis e a motivação através dos resultados alcançados. A pessoa pode, no exemplo, evitar situações e lugares que propiciam o desregramento alimentar por algum tempo. A auto regulação apresenta dois aspectos. Acreditar que se é capaz de parar de mudar de hábitos é preponderante para fazê-lo. Muitos manuais de autoajuda aconselham ao uso do gerúndio (“estou mudando”) ou mesmo o artifício decisão de longo prazo (“já me decidi emagrecer e vou conseguir não importa quantas vezes precise recomeçar”). O outro aspecto é a modelação, isto é, a imitação de comportamentos de pessoas saudáveis: o exemplo de

amigos a quem admira e o apoio da família, além de diferentes tipos de reforço terapêutico, exercícios físicos, outras rotinas. O corpo aprendeu a comer bobagens por modelação e precisa aprender outros comportamentos para largar o antigo condicionamento. A autorreflexão, como sub-função do agenciamento cognitivo, consiste na compreensão do consumo excessivo de açúcar e amido (na verdade, do vício em dopamina associado à alimentação) como uma boa oportunidade para o descondicionamento da mente. A consciência agradece os ensinamentos da compulsão, pois entende seu papel no desenvolvimento. Mesmo considerando a auto reflexividade como a sub-função mais importante no processo de agenciamento cognitivo entre comportamento e ambiente, a ênfase de Bandura é na auto regulação. Processo de auto regulação (por contingência auto prescrita) OBSERVAÇÃO

JULGAMENTO

AUTO-REAÇÃO

Dimensões de Desempenho

Padrões pessoais

Auto reações avaliativas

Originalidade

Nível

Positiva

Sociabilidade

Explicidade

Negativa

Moralidade

Proximidade

Neutra

Desvio

Generalidade

Qualidade Produtividade

Eticidade Velocidade Qualidade de Monitoramento

Referências de desempenho

Regularidade

Normas padrão

Proximidade temporal

Comparação social

Reforçadoras

Acuracidade

Auto comparação

Punitivas

Feedback

Comparação coletiva

Valor da atividade e determinantes de desempenho

Auto reações tangíveis

Auto reação inexistente

O processo de auto regulação, para Bandura, começa com a auto-observação, seguida pela autojulgamento, que possibilita a auto reação. O ciclo das sub-funções da auto regulação não é automático e as etapas só ocorrem quando ativadas seletiva e voluntariamente pela consciência. Bandura prescreve uma auto-observação mental de médio e longo prazo, baseada em dois grupos de parâmetros: as dimensões de desempenho (as motivações do vício) e a qualidade de monitoramento (quantas vezes e como observamos). Esses dois parâmetros permitem estabelecer processos de autojulgamento, levando em conta nossos padrões pessoais assim como outras referências de desempenho (comparações com os outros e com o próprio desempenho em momentos diferentes). Pode-se, então, estabelecer o valor da atividade observada e seus determinantes são externos e/ou psicológicos. A partir daí, avaliam-se as auto reações emocionais de entusiasmo e frustração e prescrevem-se medidas de punição e incentivo necessárias para modificar o comportamento observado. Nesse ponto, percebemos a importância do sistema de crenças do sujeito observado/observador. E entre as crenças, Bandura destaca a importância da crença na própria eficácia como sendo a mais relevante no aprendizado social. 5. A crença na Auto eficácia Para Bandura, entre os fatores que propiciam uma auto regulação dinâmica no sentido da mudança de hábitos e comportamento está a crença na auto eficácia, resultante das expectativas de desempenho e resultado. Dito assim, parece ‘pensamento positivo’ ou outro ilusão de autoajuda, em que se desejando uma coisa, ela acontece - como no filme O Segredo. Porém, a auto eficácia é apenas o julgamento da capacidade pessoal (2008, 32) e não uma força mágica ou telepática capaz de influir nos acontecimentos. Enquanto a autoimagem (ou auto conceituação) é resultante do passado e a autoestima é enraizada na situação emocional presente, a auto eficácia é uma crença que nos remete para o futuro. “Auto eficácia é o julgamento da capacidade para organizar e executar ações necessárias para alcançar certos tipos de desempenho” (2008,101).

Vejamos então como a crença na auto eficácia se encaixa no conjunto das ideias de Bandura. Uma intensificação consciente desta modelação secundária, através de um treinamento em habilidades sociais é bastante indicada em várias situações, como por exemplo, a pessoa submissa socialmente e intolerante com os familiares. Geralmente esse comportamento (assim como outros semelhantes) é resultado de uma educação inadequada das pessoas com necessidades especiais severas e pode ser modificada através da modelação um-aum. No entanto, para portadores da Síndrome de Asperger (bem como para outros tipos de deficiência cognitiva de alta funcionalidade em que os portadores têm autonomia), a Teoria Social Cognitiva prescreve a autoterapia (Self therapy), em que a crença na auto eficácia ocupa um lugar central. Técnica que tem sido muito bem sucedida com problemas como tabagismo, distúrbios alimentares, dependência química e mudança de hábitos em geral. Pode-se subdividi-la em três procedimentos: 1. Registros das condutas. A auto-observação requer que você escreva modos de conduta, tanto antes como depois das tentativas de mudança de comportamento. Este ato inclui coisas simples como a contagem dos alimentos consumidos por dia até comportamentos mais complexos, como por exemplo, cada motivo específico de consumi-los. 2. Planejamento Ambiental. Mudar o ambiente: eliminar ou evitar as situações que levam ao vício (televisão, geladeira, crianças). Também mudar de ambiente: fazer ginástica, curtir a natureza, evitar bares ou programas associados à alimentação desregrada. 3. Autocontratos. Por último, há declaração de compromisso com o plano de mudanças, com suas recompensas e castigos. Estes contratos devem ser escritos na frente de testemunhas (para o nosso terapeuta, por exemplo) e os detalhes devem ser muito bem especificados: "Só vou para um jantar no sábado à noite se eu não comer bobagens esta semana do que a última. Senão, eu vou ficar em casa trabalhando” ou promessas semelhantes.

Nas terapias de modelagem um-a-um, outras pessoas (o terapeuta e os pais) controlam as recompensas e punições para motivar a mudança de comportamento, pois os portadores de necessidades severas não conseguem ser muito rigorosos com eles próprios. Na autoterapia, no entanto, trata-se de aumentar ainda mais a capacidade de auto regulação do agente, dando lhe o máximo de autonomia com supervisão para garantir um mínimo de frustrações e de experiências negativas. É claro que o erro faz parte do aprendizado.

Porém, no desenvolvimento da crença na auto eficácia é mais importante celebrar vitórias que reavaliar atitudes fracassadas. Outra diretriz importante é estabelecer os domínios de auto eficácia e os domínios de deficiência cognitiva e estabelecer metas para diminuição das dificuldades e otimização das capacidades. Seguindo o mesmo exemplo: um autista acredita na sua eficácia nos domínios matemáticos ou musicais, e de sua deficiência no domínio da vida afetiva e social. Pode-se dizer que o conjunto dos domínios (eficientes e deficientes) forma um círculo vicioso de causas co-recorrentes em que as situações recorrentes se repetem de forma compulsiva e involuntária. O círculo vicioso pode ser revertido através de um plano de excelência de vida, retirando e adicionando fatores de reforço, para maximizar os domínios de auto eficácia e minimizar os domínios de incapacidade. E à medida que a pessoa toma consciência desses padrões de repetição, rompe-se o círculo vicioso e há uma reorganização cognitiva e uma mudança progressiva na sua estrutura interna. Na maioria dos casos, deve-se pensar um processo gradual que comece com a condição de um paciente dependente (da família e do reforço do terapeuta) e evolua para o contexto de um agente consciente que lute para conquistar autonomia, modificando-se na medida em que muda seu ambiente. Geralmente, isso exige que as mães (e as vezes, os pais e irmãos) também entrem em processo terapêutico, treinando novos comportamentos. Há vários modos de definir as eficiências e deficiências, bem como de compreender os domínios para detalhá-los. No site ‘Coaching Asperger’ se enumeram as oito vantagens competitivas dos Asperger’s o que é bastante interessante, porém limitado ao domínio profissional. Do ponto de vista da formação escolar (e do desenvolvimento cognitivo da linguagem e da comunicação), há atualmente uma grande ênfase na utilização do computador como prótese da mente autista15 e no fato de que há grande número de portadores de SA que se tornam 15

Prótese em dois aspectos distintos. O primeiro é que a cognição visual dos autistas se assemelha com a sintaxe do computador. Enquanto a mente do autista ‘roda Windows’, a mente neurotípica se auto programa através de um sistema operacional algoritmo. Há também algumas vantagens oferecidas por computadores na educação e no tratamento do autismo: o ambiente estruturado, as respostas previsíveis, a organização visual, o auto auxílio individual.

programadores ‘naturalmente’. Mas, quando se fala de prótese mental não se trata apenas da cognição visual propiciada pela sintaxe do computador, mas sim da constituição de uma identidade ‘à distância’ via Internet, transformando indivíduos introvertidos e isolados em uma rede de seres sociais, o que é um pré-requisito não só para uma ação social efetiva em uma voz na arena pública, mas, sobretudo, para uma mudança no comportamento e na identidade autista.16 O principal desses primeiros grupos é a ANI (Autism Network International). É claro que o computador não substitui a dedicação dos professores, nem o afeto e a atenção dos pais. Ele é apenas uma ferramenta superação para tríplice deficiência do autismo (comunicação, interação social e conduta recorrente), um instrumento para desenvolvimento da auto eficácia. O importante é a mudança de atitude. É, principalmente, através da auto representação, que os autistas podem desenvolver sua autonomia e vencer o regime de dependência física e psicológica inerente a sua condição. E há ainda quatro aspectos sobre o uso do computador em educação especial que são relevantes para o seu uso com autismo: aumenta a habilidade de comunicação; melhora a cognição; ajuda nas atividades que envolvem coordenação motora; e pode também ajudar dentro da política educacional de inclusão em escolas regulares. 6. Conclusão Além de realizar um breve resumo comentado das ideias do psicólogo contemporâneo Albert Bandura, aplicou-se aqui seus principais conceitos ao tratamento do autismo de alta funcionalidade e/ou síndrome de Asperger. Com modelo triádico definiram-se os comportamentos autistas como aqueles que têm uma deficiência de interação direta entre comportamento (condicionamento ontogenético), ambiente (condicionamento filogenético) e o Self, em que se desenvolvam 16

Hoje, além dos milhares de blogs de mães e crianças autistas, que se multiplicam rapidamente na internet, há várias iniciativas interessantes estão sendo desenvolvidas nesse sentido. Mas, há também iniciativas bem práticas como a de um avô, John LeSieur, que criou um navegador especial para, seu neto autista Zackary Villeneuve: o Zac Browser. Um navegador desenvolvido especificamente para crianças autistas, cujo objetivo principal é que possam interatuar através de jogos e atividades desenvolvidos especialmente pata eles, do modo que seja mais fácil para sua compreensão e entendimento, focado na sua forma de ver o mundo (e com disposições de supervisão e controle de conteúdo pelos pais).

resiliências, ecolias, recorrências e fixações no campo cognitivo. Ressaltamos também que, na perspectiva de Bandura, o comportamento e o ambiente são fatores condicionantes, enquanto o Self, a subjetividade, a consciência são fatores determinantes do desenvolvimento cognitivo e do aprendizado social. Em seguida, com o método de aprendizagem social por modelagem através dos quatro processos (atenção, retenção, reprodução e motivação) como o ideal para integração dos tratamentos e das terapias de recuperação dos portadores de distúrbios autistas: a dieta SGSC (elaborada a partir de exames clínicos), medicação (segundo os biomarcadores genéticos) e o treinamento psicopedagógico da capacidade de representação cognitiva17. Com a noção de agência e suas propriedades cognitivas (intencionalidade, antecipação, auto reatividade e auto reflexividade), apresentou-se a proposta de auto regulação (ancorada na observação, no julgamento e na auto reação) da Teoria Social Cognitiva. Finalmente, apresentou-se a crença na auto eficácia, discutiuse as técnicas de autoterapia (o registro de condutas, o planejamento ambiental e o uso de autocontratos) no tratamento de portadores de SA, principalmente com a utilização de computadores e da internet. E, concluímos que: é através da auto representação em suas diferentes esferas (social, política e pessoal) que os autistas podem conquistar autonomia e uma vida melhor em sociedade.

17

Para um levantamento individualizado das dificuldades sociais, cognitivas e pessoais, há um teste em: http://euautista.blogspot.com/2009/06/aspie-quiz.html

BIBLIOGRAFIA BANDURA, Albert. Teoria social cognitiva: conceitos básicos. Porto Alegre: Artmed, 2008. BOSA, Cleonice. Autismo: breve revisão de diferentes abordagens. Revista de Psicologia: Reflexão e Crítica (ISSN 0102-7972) vol.13 n.1 Porto Alegre, 2000. BUCKLEY,W. A sociologia e a moderna teoria dos sistemas. São Paulo: Cultrix, 1971. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987. GODOY, Herminia Prado Síndrome de Asperger: Revisão Bibliográfica. Trabalho de Conclusão de Curso. PUC-SP, 2008. GOMES, M. B. Um Mapa, uma Bússola - Hipertexto, Complexidade e Eneagrama. Rio de Janeiro: Ed. Mileto, 2001. SACKS, Oliver. Um Antropólogo em Marte / Sete Histórias Paradoxais. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995. RAMACHANDRAN, Vilayanur & OBERMAN, Lindsay. Espelhos Quebrados – uma teoria sobre o autismo. Revista Scientific American Brasil, ANO 5 – Nº 55 12/2006. http://www.sciam.com.br/ RIBEIRO, Valéria Llacer Bastos. Breve análise da cognição da pessoa com autismo e porque o computador tem um papel preponderante na educação da pessoa com autismo. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tradução: Constança M. Cesar. 3 volumes. Campinas: Papirus, 1994.

EU, AUTISTA? 1. Na escola Alfabetizei-me através da leitura de histórias em quadrinhos e quando entrei na escola já sabia ler. Depois encontrei muita dificuldade de achar estórias gráficas que continuassem com seu aprendizado e aderi, a contragosto, aos textos escritos. Mas, sempre continuei lendo histórias em quadrinhos, apesar disto ter se tornado uma excentricidade e até uma inconveniência. Ao ficar mais velho e observador, percebi que as narrativas sequenciais através de imagens desempenhavam um papel importante na minha forma de pensar e de ver o mundo. Eu sou um pensador visual em quadrinhos, minha mente trabalha com mapas conceituais – uma característica dos portadores da Síndrome de Asperger, um tipo de autismo de alto-desempenho. Muitas pessoas dizem que o pensamento autista é diferenciado, que ‘precisamos aprender a valorizar outras formas de ver e pensar a realidade’. Mas, pouco se diz sobre o resultado das diferenças cognitivas em portadores autistas que tenham alcançado alto nível de desempenho intelectual. Como portador não diagnosticado durante 47 anos aprendi a tirar vantagem intuitivamente de minhas características e a minimizar meus déficits. Como diferenciais competitivos os portadores SA tem: o foco (a habilidade para focalizar em um objetivo em cima de períodos longos de tempo sem ficar distraído); a perspectiva complexa (de conjunto e de detalhes, capaz de descobrir conexões novas entre fatos e ideias); e o pensamento singular; a motivação interna; a imaginação tridimensional. Há também dificuldades funcionais em virtude da falta de empatia emocional e da incapacidade de firmar laços afetivos de amizade; dos surtos de ansiedade; e, sobretudo, do enorme desgaste psicológico e físico de se submeter a situações sociais (como dar aulas e fazer entrevistas), o que para outras pessoas não é, de forma alguma, estressante. Descobri também vários mitos e verdades parciais sobre o desenvolvimento cognitivo de autistas. Por exemplo: no passado pensou-se que os autistas não tinham senso de humor e que não entendiam metáforas ou ironias, compreendendo apenas o sentido literal dos discursos. Na verdade, existe um humor peculiar aos autistas (principalmente através de associações inusitadas) como também há um modo diferente de entender a linguagem. O distúrbio de compreensão

literal e a ‘cegueira emocional’ existem, mas são parciais e têm variações. Existem casos diferentes de resiliência e adaptação criativa desta restrição cognitiva. Tenho um colega asperger, também professor da UFRN, que se tornou um especialista em filosofia analítica. Também é importante dizer que a maioria dos Aspergers prefere as linguagens matemáticas e lógicas que as narrativas interpretativas. A arte e a beleza são secundarizadas pela mente autista diante da funcionalidade e do pragmatismo. Porém, em meu caso em particular, desenvolveu-se uma configuração mais complexa, em função de um conflito com uma professora de português, que me ensinou a gostar de poesia e, ao mesmo tempo, a utilizá-la, tornando-a um instrumento de crítica e publicidade de ideias. A professora era integrante de um importante grupo vocal de MPB e nos introduziu a poesia usando músicas. A poesia me pareceu então uma forma de comunicação sintética e telegráfica, capaz de transmitir o máximo através do mínimo. Para os autistas, a arte-pela-arte, a beleza estética em si, não faz muito sentido se não utilizada socialmente com algum objetivo estratégico. Sempre gostei de pensar que o jornalista é um poeta mercenário, que trafica ideias em troca do vil metal. A escola foi bastante difícil para mim, principalmente durante os recreios e com as brincadeiras sem supervisão. Ao mesmo tempo em que tive dificuldades de fazer amigos também sempre me destaquei social e intelectualmente – atitude que me ensinou a conviver com a antipatia e a hostilidade desde muito cedo. 2. O Tarô Devido a minha dificuldade de comunicação emocional, torneime um excelente jogador de Tarô. Esse foi o modo que encontrei de me relacionar intimamente com as pessoas. E o tarô, talvez seja preciso explicar, não é simplesmente um jogo de cartas, mas um jogo de identidade simbólica para leitura do inconsciente. Também é preciso dizer que o Tarô apenas coroou uma forma peculiar que desenvolvi desde criança de me comunicar diretamente com o inconsciente das pessoas, através da combinação das linguagens de verbal e visual. A alfabetização de autistas atualmente é feita por sistema chamado PECS (Picturing Exchanging Communication System), em que as palavras são substituídas por signos visuais. O tarô é semelhante, sendo que ao invés de signos visuais para o desenvolvimento da

linguagem verbal sobre a realidade objetiva, utilizam-se imagens arquetípicas para, através de uma linguagem simbólica, propiciar leituras de realidades subjetivas. A facilidade com a imaginação simbólica e a dificuldade de me comunicar diretamente de uma forma emocional me propiciaram transferir e contratransferir conteúdos psíquicos com facilidade. Minha mente mimetiza a outra mente, compreendendo-a e oferecendo à mente mimetizada uma imagem objetiva de si mesma através do meu olhar. E a síndrome me permite partilhar a vida íntima das pessoas em um contato ‘frio’ com suas cargas afetivas. Assim, devido à cegueira emocional e à imaginação visual, jogar tarô aguçou minha capacidade de transferência e de contratransferência não-analíticas de conteúdos simbólicos. É muito difícil explicar o aprendizado que as cartas proporcionam. Com o tempo, o tarô passa a funcionar como uma linguagem universal, capaz de descrever as situações por dentro. O mais relevante é o conhecimento da vida das pessoas 3. Sua excelência, o computador Quando ainda não havia a palavra ‘nerd’, eu já curtia ficção científica e jogos de tabuleiro com os amigos. Fui proprietário de um computador AT (antes do 286), que só rodava o DOS e um editor de texto chamado Wordstar, da Microsoft. Fiz curso de programação Cobol (e não aprendi). Participei de uma BBS coordenada pelo Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal antes do aparecimento da web. Anos depois, não tive vergonha compilar páginas horrorosas em HTML com o finado Netscape. Sempre fui apaixonado por computadores. Hoje sabemos que o computador desempenha um papel importante no desenvolvimento e no aprendizado dos portadores de autismo, tanto no sentido de propiciar contatos e amizades não presenciais, como principalmente pela ampliação das funções cognitivas. Uma forma interesse de explicar o funcionamento da mente autista é que ela se assemelha a um sistema operacional de imagens (como o Windows) que a máquina cerebral ‘roda’, enquanto a mente neurotípica equivale aos sistemas operacionais por comandos alfanuméricos como o DOS ou o Linux. Um funciona através de imagens; o outro, através de algoritmos. O sistema de imagens é mais pesado, mais lento (por isso, às vezes, trava), mas é muito mais complexo, apresentando interações inusitadas.

Quando comecei a dar aula, as máquinas de escrever ainda eram bastante utilizadas. As pessoas acreditavam que o computador era apenas uma nova mídia e não a convergência de todas as mídias em um único objeto. Mas, as primeiras turmas de alunos formadas pelo computador também foram muito superiores (em repertório, criatividade e habilidades técnicas) às formadas pela televisão + a escrita. Eram uma geração de alunos que pensavam com os dois lados do cérebro de forma integrada e, não mais os semi alfabetizados encantados pela linguagem audiovisual como as gerações anteriores. Com a chegada do computador ao cotidiano também começaram as mudanças na produção industrial da comunicação. A informação deixou de ser aferida pelo espaço que ocupa, mas pelo tempo que dura. O modelo de organização da mídia passou a ser a empresa de televisão (onde o dead-line era contado em segundos e não em horas) e não mais o jornal impresso. Houve diminuição e diversificação das atividades sequenciais da linha de produção. A diminuição técnica da linha de montagem exige que comunicador domine os diversos aspectos técnicos que envolvem a produção, conhecendo funções que antes eram executadas apenas por especialistas. As novas tecnologias não apenas diminuíram a especialização técnica, mas mudaram o perfil dos profissionais de comunicação de empregados em pequenos empreendedores independentes, que prestam serviços às empresas. A comunicação também terceirizou sua produção. O aparecimento da Internet acrescenta ainda a questão da interatividade e da segmentação da audiência em diferentes grupos de interesse. A publicação de páginas na web praticamente elimina todos os custos, equipamentos e técnicos necessários pelo jornalismo impresso e de TV. Esses fatores (a diminuição drástica do tempo e dos custos de produção; os equipamentos terem se tornados portáteis e baratos; e um novo perfil profissional mais ágil e melhor preparado) ainda estão alterando o mercado de comunicação. Ganhamos tempo e qualidade de vida, mas perdemos aquele aprendizado do tempo regressivo que permitia apreender o texto em tempo real e o jornalismo como estilo de vida boêmia e estressada. Em compensação, a mídia passou a estressar o público cada vez mais, a fazê-lo viver de forma regressiva. Antes apenas os jornalistas, bancários, padeiros e outras profissões trabalhavam contra o relógio. Hoje, com a mecanização, não há mais pressa nessas profissões, mas todo mundo passou a viver por metas e prazos.

4. Como descobri que sou autista? Tudo começou com minha estranha dificuldade de cumprimentar pela segunda vez pessoas que eu já havia conhecido. Como não entendia minha atitude, ora pensava que meu egocentrismo fosse orgulho, superioridade; ora, ao contrário: pensava que era vergonha, timidez, solidão mórbida. Cheguei a desconfiar de que seria uma pessoa preconceituosa sem saber, principalmente com as pessoas especiais. De toda forma sempre fui considerado uma pessoa excêntrica, autoritária e egocêntrica. Após anos de trabalho e tentativas sinceras de mudar, esse traço de caráter não só persistiu como se aguçou em relação a situações específicas. Na verdade, o egocentrismo travestia a dificuldade de troca afetiva e emocional. Eu fingia ser autoritário e excêntrico para esconder de mim mesmo meu transtorno comportamental. Meu comportamento distante e atrevido sempre foi bastante antipático. A primeira impressão quase nunca é positiva. Isto acrescido a uma postura competitiva – “metido” - geralmente é interpretada como uma afronta, como uma invasão territorial. Quem me compreende e passa dessa primeira impressão negativa, acaba gostando de mim, até que, em determinado momento, eu deliberada ou involuntariamente a machuco com verdades inconvenientes. Ocorrem transferências nãoanalíticas de conteúdos negativos e eu acabo incitando o que há de pior em cada pessoa. Além do que, eu nunca soube como fazer amigos. Sempre dei muitos e muitos presentes para conquistar-lhes a confiança e os abandonando afetivamente. Descobri Amadeus Mozart, Isaac Newton e Andy Wharol – entre outros prováveis portadores da síndrome - faziam o mesmo. Também apresento vários outros sintomas comuns à síndrome. Sempre fui um colecionador compulsivo (álbuns de figurinhas, História em Quadrinhos e Tarôs) com alguns interesses específicos. Tenho um grande gosto pelo silencio e pela solidão. E o desejo de ser invisível já me rendeu até apelidos. Tenho momentos recorrentes de mal humor e de ansiedade, em que perco o contato visual e fico monossilábico. Alfabetizei-me sozinho; tive dificuldades motoras e fonológicas, que superei tardiamente de formas criativas; apesar de um desempenho intelectual acima da média, sempre apresentei dificuldades de integração e de adaptação escolar. Quando já achava que havia algo realmente errado comigo, assisti na televisão, minha velha professora, um seriado que tinha um personagem Asperger e me identifiquei. Fui, então, ao Dr. Google e depois aos psiquiatras que

confirmaram minhas suspeitas. Aos 47 anos de idade, 25 dos quais voltados para autoconhecimento, descobri que sou autismo de alta funcionalidade, caracterizado, por um lado, pela dificuldade de sociabilidade e de expressão emocional, e por outro, por habilidades hiperdesenvolvidas. A síndrome fez de mim uma pessoa forte em vários sentidos. Porém, me levou também a um beco sem saída, a uma vida solitária e incapaz de crescimento com autonomia interdependente. Com o tempo, minhas limitações tornaram-se evidentes para mim e para todos. Como alguém tão desenvolvido no campo das ideias pode ser assim tão estúpido no campo emocional? Como alguém (que dedica tanto tempo e energia ao próprio desenvolvimento) pode apresentar tantos e tão contraditórios aspectos negativos em sua personalidade? Por que considero todos tão falsos e sinto que todos estão não apenas me enganando (o que seria uma simples paranoia), mas enganando a si mesmos? Quando “a ficha caiu” foi como se eu encontrasse a solução de um quebra-cabeça, uma imagem construída a partir de vários anos de observação através de diferentes formas de autoconhecimento. É um grande alivio e uma grande humilhação, descobrir que se é uma pessoa especial. Houve, para mim, uma inversão de perspectiva entre minha prepotência e minha impotência. Antes eu me achava diferente num sentido de superioridade e acabava sempre me frustrando comigo mesmo e me sentindo inferior. Ao compreender minha diferença como uma deficiência e as capacidades resultantes como compensações secundárias, estou me aceitando melhor e entendendo minha real potência. Aliás, houve diversos tipos de readaptação em minha autoimagem. Porém, se melhorei como pessoa, a vida profissional se tornou muito difícil. “As doenças mentais são apenas conjuntos de sintomas, que classificadas pelo olhar clínico da psicopatologia, são ‘naturalizadas’ como enfermidades. Você não leu a História da Loucura de Foucault?” – perguntaram os colegas, surpresos com minha atitude de assumir o transtorno. E de nada adiantava eu dizer que a neurociência reconstruiu a psiquiatria nos anos 90 (destruída pelos pós-modernos nas décadas anteriores) ou que minha condição neuroquímica é determinada pela anatomia cerebral. “Você está vestindo a camisa da doença, aceitando um rótulo” – alertavam, repetindo meus próprios argumentos do passado.

É claro que levei as advertências em consideração. Só cheguei aonde cheguei porque não sabia que era autista. Quando vejo os especialistas centrados na necessidade de um diagnóstico precoce, eu imagino que, ao invés de ter uma vida mais humanizada, o que ocorrerá com os autistas será a (auto) exclusão antecipada da maioria das possibilidades de desenvolvimento. E, realmente, se eu não tivesse ‘vestido a camisa’ e mantivesse minha enfermidade discretamente, minha vida profissional não teria sido tão prejudicada. Mas como trabalho com autoconhecimento e acredito que a verdade é sempre o melhor remédio. Esta combatividade de ‘vestir a camisa’ teve como contraponto negativo me entregar a um comportamento retraído, deixando de lado meus vínculos afetivos mais próximos e a ver muitos DVDs. Eu havia lutado muitos anos contra a tendência ao isolamento e à invisibilidade e resolvi me dar o direito de ser quem era. Porém, o casamento e a constituição de uma nova família acabaram me forçando ‘a vestir uma segunda camisa’ por cima do autismo. Assim, abandonei minha militância (do direito de ser quem sou) e passei a ocupar no equilíbrio funcional da nova realidade. De modo que minha vida profissional chegou a um impasse, gerado em parte pelo enquadramento social e cultural de minha condição autista e, em parte, pelas novas responsabilidades e obrigações decorrentes da vida familiar. 5. Relacionamentos James Redfield, autor da Profecia Celestina, em outro trabalho, Jogos de Competição pela Energia, aprofunda o tema dos ‘dramas de poder’, estratégias de interação para conseguir roubar a atenção e a energia do outro: a vítima (que manipula os sentimentos de solidariedade), o sedutor distante (que chama atenção pelo mistério), o interrogador (que rouba energia através das críticas) e o Intimidador (que conquista a atenção através de ameaças). O amor próprio é a grande solução para vencer os dramas de controle e a manipulação, pois só reencontrando sua própria fonte de energia se consegue não necessitar da energia alheia nem deixar que nos roubem a atenção. É claro que gentileza e generosidade também ajudam – mas em um segundo plano. Os relacionamentos são essa lapidação das almas, o exorcismo psicológico desses dramas de poder. E a parceira ideal é aquela que não se deixa dominar nem aceita dominar o outro; aquela que não perde o amor próprio nem deprecia seu parceiro.

Como minha família não sabia (ou não aceitava) que eu era autista, a questão de fazer amigos sempre foi imposta para mim, e depois assumida como uma obrigação. Assim, sempre tive amigos, principalmente entre as pessoas mais críticas e interessantes. Isso foi muito bom para mim, mas injusto e um pouco chato para meus amigos, devo confessar. Amizades verdadeiras se baseiam na troca equilibrada (e não no uso recíproco). A amizade profunda é um cuidado com os sentimentos do outro, uma dedicação mútua. Já as amizades superficiais são as baseadas no duplo uso e geram dependências emocionais e funcionais, como dirigir ou cozinhar. Demorei a descobrir a amizade verdadeira e investi muito em amizades funcionais. No caso dos portadores de Asperger, os ‘amigos funcionais’ mais frequentes são aqueles que suprem as dificuldades de comunicação e de socialização. Durante algum tempo. Esgotado o ciclo, os portadores de Asperger, despidos de qualquer afetividade, dão um pé na bunda do amigo, dizendo que foram ‘usados’ e cobrando todos os presentes e dedicação dados em troca do poder de manipular a situação. Repeti esse roteiro várias vezes em minha vida. Machuquei muitas pessoas que realmente gostavam de mim, falando verdades para dispensá-las. Embora o distúrbio não justifique meus atos, não foi deliberadamente que eu as usei em virtude da minha incapacidade de empatia afetiva. Só tomei consciência plena do que fazia através da experiência de outros portadores, que apresentavam exatamente a mesma estória que eu tanto escondia. Muitas vezes me perguntei se não era melhor não ter amigos do que tê-los por interesse e depois machucá-los friamente. Com meus relacionamentos amorosos, as coisas foram um pouco mais complicadas. Antes da contracultura, havia uma dissociação muito grande entre sexualidade e afetividade masculina. Os homens amavam suas esposas e faziam sexo com outras mulheres; e coração e sexo ocupavam lugares diferentes na sexualidade masculina. A cultura machista produz homens carentes, insatisfeitos e divididos (entre a carência afetiva e a insatisfação sexual). Sempre desejei encontrar alguém que me fizesse reunir afetividade e sexualidade, mas, condicionado pelo mundo machista, também vivi o sexo sem amor e o amor sem sexo. Aliás, o sexo casual e a paixão platônica são complementares, para quem evita o envolvimento emocional

verdadeiro. E, no caso dos portadores de Asperger, há uma grande possibilidade de criação de um círculo vicioso bastante recorrente: sonhar com alguém inalcançável e ter uma sexualidade dissociada de qualquer sentimento. Eu, no entanto, tive sorte de encontrar pessoas que se interessaram por mim; e que, pacientemente, lutaram pelo meu afeto. 6. Para os autistas tratarem suas mães Sua mãe é você. O que você chama de ‘mãe’, na verdade, é uma parte do seu Eu. Portanto, cuidado: tudo ou quase tudo que você disser sobre ela, estará falando sobre si mesmo. E, se isto é verdade para todo mundo em geral, é particularmente verdadeiro para os portadores de deficiências em especial, caso estes desejem ter autonomia e serem responsáveis por si próprios. Você é sua mãe. Para ter autonomia e ser responsável por si mesmo, é preciso assumir a própria deficiência. Sua mãe se sente culpada por ela. Você também pode querer responsabilizá-la por seu(s) problema(s). Não é fácil assumir a responsabilidade pela própria doença quando temos alguém para assumi-la. Mas, se você quiser ser alguém e se relacionar amorosamente com outros, vai ter que superar a situação co-dependência recíproca em que está envolvido. Tenha paciência. Sua mãe te controla porque te ama. Pelo menos, ela acredita nisso e você não vai ganhar nada tentando mostrar que na verdade ela não ama. Na verdade, não importa se ela o ama ou não, nem mesmo se você ama a ela ou não, mas sim se você ama a si mesmo o suficiente para ter calma com ela. Se você ficar com raiva dela e ela se sentir culpada, você vai ficar com mais raiva ainda e ela mais responsável. É preciso romper com este círculo vicioso, assumindo a responsabilidade pelo próprio sofrimento. Perdoe os erros de sua mãe. Não basta o fato de você ser deficiente, sua mãe também não é perfeita. Perdoe a vergonha que ela tem de ti. Perdoe a vergonha que ela sente dela mesmo. Perdoe os excessos de cuidado e o descaso. Pense que foi você que a colocou nesta situação (e não que foi ela que te colocou). Peça perdão a ela por ter feito dela mãe de um deficiente. Não faça isto por ela, faça por ti. Aproveite e reconheça todos os problemas, todas as dificuldades que você criou para ela (para seu pai e outros familiares). Se você for capaz dessa grandeza, se libertará dela interiormente e poderá ser feliz com alguém. E ainda se tornará amigo de sua mãe – uma proeza espiritual.

Agradeça. Senão algum dia você vai querer reclamar de alguma coisa com ela e vai perceber que sua mãe não está mais lá.

CLEÓPATRA E O SAGRADO FEMININO O presente texto investiga a história da lendária rainha do Egito através de suas principais adaptações para o cinema de ficção e de documentário. Com o objetivo de entender o personagem histórico e explicar o mito, o trabalho compara as versões com informações arqueológicas e históricas. Observa, ao final, que o mito de Cleópatra encanta tanto seus críticos que tentam encobrir e diminuir sua importância apresentando-a como uma mulher ambiciosa e sedutora, quanto seus admiradores, que não conseguem perceber seu comportamento vil, maquiavélico e dominador.

1. Introdução Cleópatra Thea Filopator (Alexandria, 69 a.C. ― 12 de agosto de 30 a.C.) foi a última rainha da dinastia de Ptolomeu, general de Alexandre da Macedônia que governou o Egito após sua morte. Cleópatra foi uma grande negociante, estrategista militar, falava seis idiomas e conhecia filosofia, literatura, astronomia e arte gregas, tendo sido instruída pela elite intelectual de sua época na biblioteca de Alexandria. Era também sacerdotisa chefe de seu próprio culto, 'filha e encarnação viva' da deusa lunar Isis. Era ainda a mulher mais rica do mundoi de sua época, conhecida por sua extravagância, luxo suntuoso e ostentação desmedidas. Antes de morrer, Ptolomeu nomeou os seus filhos, Cleópatra e Ptolomeu XIII para reinar juntos como faraós do Egito. Seguindo a tradição da sua dinastia, Cleópatra casou com o irmão de apenas 15 anos de idade. Este, porém, aconselhado por seu séquito, trai a irmã e a exila, em 49 a.C., para governar sozinho. Logo depois, Pompeu é vencido por César na Batalha de Farsália, na Tessália, e pede asilo a Ptolomeu XIII que aceita recebê-lo. No entanto, o verdadeiro plano do rei era ordenar a morte de Pompeu, julgando que sua cabeça decapitada agradaria a César. O romano, porém, ficou horrorizado com o ato bárbaro. Apesar de inimigos políticos, os romanos eram também amigos: Pompeu tinha casado com a filha de César, que morreu dando à luz um filho. César toma Alexandria e decide ficar no Egito para resolver o conflito entre Ptolomeu XIII e Cleópatra. Segundo Plutarco, em sua biografia dos Césares, Cleópatra marcou um encontro com Júlio César, a fim de lhe dar um presente, que consistia num tapete. Ao ser desenrolado, a própria rainha estava em seu interior. Cleópatra tornou-se, então, sua amante, e retomou o seu poder sobre o Egito. Por ordem de César, Cleópatra passou a reinar conjuntamente com seu irmão Ptolemeu XIV, com quem se casou seguindo a tradição grego-egípcia.

Em Junho de 47 a.C. Cleópatra deu à luz Ptolomeu XV César, o "Pequeno César" (Cesarião). Embora César tenha reconhecido a paternidade da criança, a historiografia moderna coloca em causa esta paternidade. Júlio Cézar, então, volta para Roma. O Egito manteve-se independente, mas sob a proteção de Cézar que aí deixou três legiões romanas. Um ano depois, a convite de César, Cleópatra vai para Roma, com o filho e Ptolomeu XIV, fixando residência nos jardins do Janículo, próximo a casa de Cézar e de sua terceira esposa romana, Calpúrnia Pisão. Em sua honra, César ordenou que fosse colocada uma estátua de ouro de Cleópatra no templo da deusa Venus Genetrix, antepassada de sua família. A presença de Cleópatra em Roma gerou grande descontentamento popular e o medo de seu filho se tornar herdeiro de um novo império, englobando o Egito, principal potência econômica do oriente, e a então república romana, principal força militar do ocidente. Tais medos e descontentamentos levaram ao assassinato de Cézar e ao retorno de Cleópatra ao Egito. Em seguida, segundo Eusébio de Cesareia, Cleópatra assassinou seu irmão Ptolomeu XIV e passou a reinar sozinha. Seu filho passou a ser seu co-regente. Em Roma, Marco Antônio e Otaviano, com apoio da população, entram em guerra contra Brutus e Cássio, para vingar a morte de Júlio Cézar. Em 42 a.C., Marco Antônio convida Cleópatra para a encontrá-lo em Tarso para pedir tropas contra o exército de Cássio. Passaram juntos o inverno de 42 a 41 a.C. em Alexandria. E ela ficou grávida pela segunda vez, desta vez de gêmeos: Cleópatra Selene e Alexandre Hélio. Sabendo do novo golpe do baú, Otaviano convence Marco Antônio a se casar com sua irmã, Otaviana, assim que o tribuno volta à Roma, para consolidarem sua aliança. Porém, quatro anos depois, Marco António volta novamente ao Egito e aos braços de sua rainha, passando a viver em Alexandria. Então, Cleópatra deu à luz outro filho, Ptolomeu Filadelfo. Otaviano declarou-lhes guerra em 31 antes de Cristo. Após serem derrotados, ambos cometem suicídio, tendo a rainha Cleópatra, segundo os historiadores romanos, se deixado picar por uma serpente Naja, no ano 30 a.C. Aliás, até bem pouco tempo, tudo que sabíamos sobre Cleópatra era o que foi escrito por seus inimigos romanos, que atrelaram sua história à sua sexualidade. É mais fácil admitir que ela encantava os homens pela sedução do que pela inteligência. Os escritos sobre a rainha mostram o olhar masculino sobre os sujeitos femininos,

em que a agressividade, a iniciativa e o poder de decisão são sempre atributos masculinos, nunca atribuídos às mulheres, das quais espera-se submissão. E a imagem de Cleópatra como uma mulher devassa e pouco confiável, foi construída por homens que julgavam ser intolerável o papel ativo de uma mulher na política. É uma representação masculina depreciativa do poder feminino. Novos estudos (SCHIFF, 2010; HUGHES-HALLETT, 2005) mostram que Cleópatra não era devassa, não morreu picada por uma cobra, era uma ótima estrategista... e estava longe de ser bela. Mas, já era tarde: após muitos séculos de difamação, a imagem de mulher promiscua e ardilosa da rainha do Egito já havia sido construída e consolidada no imaginário popular, gerando diversas formas de expressão. 2. A imortalidade pela arte “Dá-me o vestido; coloca-me a coroa. Eu sinto em mim a sede da imortalidade”, SHAKESPEARE, William. Antony and Cleópatra. Ato V, Cena 2.

Desde o início do cinema, Cleópatra tem servido de tema para diversos filmes, nos quais seu drama tem sido contado e interpretado das mais diversas maneiras. O cinema foi apenas mais uma das formas de imortalizá-la. Nas artes plásticas, o cenário da morte de Cleópatra inspirou diversos artistas: Reginald Arthur, Augustin Hirschvogel, Guido Cagnacci, Johann Liss, John William Waterhouse e Jean-André Rixens. Na literatura dramática, encontram-se peças de teatro de Étienne Jodelle, de William Shakespeare, de Sá de Miranda e de George Bernard Shaw. Na prosa literária, destacam-se os trabalhos de Théophile Gautier e de H. Rider Haggard18. Há também vários romances contemporâneos (FALCONER, 2004; GEORGE, 2012) e milhares de interações do mito com outras narrativas midiáticas. A história em quadrinhos de Asterix e Cleópatra, por exemplo, de René Goscinny e Albert Uderzo, retrata a rainha como uma 'patricinha': vaidosa e sedutora, mas também caprichosa e inteligente.

18

Por ano, calcula-se, os rendimentos da rainha ultrapassavam 15 mil talentos de prata. (SCHWENTZEL, 2009, p.35). Em valores atuais, sua fortuna alcançaria 96 bilhões de dólares (quase o valor do orçamento de 2013 do governo brasileiro para investimentos).

Porém, a grande maioria das narrativas midiáticas enfatiza apenas o lado negativo: o estereótipo da mulher poderosa e devoradora de homens. Desde o começo do cinema que Cleópatra tem servido como tema de filmes. O primeiro foi em 1899, dois minutos de Georges Méliès com a atriz francesa Jeanne d'Alcy no papel da rainha egípcia. Há também Marcantonio e Cleópatra (1913) de Enrico Guazzoni e Cleópatra (1917) de J. Gordon Edwards, com Theda Bara 19. Um dos primeiros filmes do cinema falado a retratar a rainha foi Cleópatra (1934), dirigido e produzido por Cecil B. DeMille e protagonizado por Claudette Colbert. Filme revolucionário em vários aspectos, principalmente pela forma inteligente que apresenta a personagem protagonista. Cleópatra é a riqueza do Egito, a quem o tribuno romano quer conquistar; por outro lado, Júlio Cézar é o poder de Roma, a quem a rainha deseja seduzir. Os diálogos entre os dois não são entre homem e mulher, mas entre dois estadistas que não faziam nenhuma distinção entre suas vidas pessoais e seus objetivos militares. Em compensação, o filme César e Cleópatra (1945) - dirigido por Gabriel Pascal e estrelado por Claude Rains e Vivien Leigh, adaptado a partir da peça homônima escrita por George Bernard Shaw em 1901 – é extremamente misógino e machista. Nele, vemos uma Cleópatra fútil e infantil, que recebe ordens da ama escrava e se torna um mero brinquedo nas mãos de Cézar, que a abandona grávida em Alexandria e volta para Roma. Essa versão não explica porque Júlio Cézar não anexou imediatamente o Egito como província romana, colocando Cleópatra novamente no trono, fazendo-lhe todas as vontades contra os interesses da república romana. O filme mais conhecido sobre a rainha do Egito é Cleópatra (1963) realizado por Joseph L. Mankiewicz, que foi protagonizado por Elizabeth Taylor, com Rex Harrison no papel de Júlio César e Richard Burton no personagem de Marco António. Mais conhecido e também mais completo, caro20 e longo (192 min). 19 20

Wikipédia, verbete Cleópatra

Cleópatra é considerado o segundo filme mais caro de todos os tempos - perdendo apenas para Avatar de James Cameron; planejado para custar 2 milhões de dólares em 1962, sua produção custou 44 milhões de dólares em valores da época. Segundo valores atualizados em 2005, o filme custou 286,4 milhões de dólares. Com o relativo fracasso comercial, quase levou à bancarrota a 20th Century Fox, produtora e financiadora do filme. (Fonte: Wikipedia)

A narrativa retoma os diálogos políticos-pessoais entre os protagonistas, mas em uma oitava mais aguda: Cleópatra era uma deusa e Cézar era considerado um deus por muitos romanos. E, muitas vezes, os diálogos de amor e poder entre eles assumem um caráter sagrado e tântrico, com ambos se considerando deuses e se apaixonando pela divindade do outro. Outro ponto interessante nessa versão é a hipótese do 'sonho de Alexandre' de formar um grande império helênico ter sido partilhado por Cleópatra, Júlio Cézar e Marco Antônio. A ideia de que os três tinham o mesmo objetivo estratégico serve para justificar as escolhas pessoais da rainha e explicar o comportamento dos dois romanos, em relação à república romana. Porém, em sua defesa apaixonada da rainha do Egito, o filme falta com a verdade histórica pelos duas vezes: mostrando uma cena em que Cleópatra prioriza a alimentação de seu povo ao envio de mantimentos aos romanos (na verdade, houve revoltas populares durante seu reinado em virtude da fome e do envio de alimentos para Roma) e justificando sua retirada durante a batalha do Ácio. Na versão de 1963, Cleópatra abandona a batalha naval pensando que seu marido estava morto; na verdade, foi ela provocou a derrota, abandonando a batalha pela metade, sendo seguida por Marco Antônio que deixou para trás toda sua frota sem comando. Outro episódio polêmico é sobre a resposta que Cleópatra deu a Otaviano, quando este negociou a cabeça de Antônio em troca da autonomia do Egito. No cinema, a rainha recusa; porém as versões históricas, inclusive as mais recentes, acreditam que ela aceitou, mandando dizer ao romano que ela havia morrido, forçando-o ao suicídio. Foi realizada uma versão da história da rainha para a televisão americana, Cleópatra (1999), com a personagem título interpretada pela atriz chilena Leonor Varela. Mais curto e ritmado que a versão de 1963, com mais cenas de ação e com enquadramentos e edição mais atuais, o filme resume a história da rainha, mantendo os mesmos elementos progressistas das versões anteriores: a inteligência e a erudição de Cleópatra, o diálogo de amor e poder entre a rainha e Cézar, o 'sonho de Alexandre' como justificativa do triangulo amoroso. Nessa versão, não há cenas inverídicas em defesa da rainha, como em seu antecessor. O filme, no entanto, torna-se muito condensado, com poucas possibilidades de atuação dramática dos atores e de exploração subjetiva dos personagens.

Justamente o oposto do filme brasileiro Cleópatra (2007) do cineasta Júlio Bressane, em que a personagem-título é interpretada pela atriz Alessandra Negrini; Miguel Falabella faz Júlio Cezar; e Bruno Garcia, Marco Antônio. O filme, feito em planos fechados em Copacabana no Rio de Janeiro, é um estudo psicológico dos personagens míticos, em que o imaginário de cada um é explorado subjetivamente, mais do que do diálogo entre eles. Cleópatra, por exemplo, no momento que antecede ao suicídio, reflete sobre o paradoxo de sua imortalidade de deusa e sua morte de rainha, concluindo que ela é a própria morte, que morre e não morre, a eterna devoradora. Trata-se de um filme de arte, às vezes um pouco monótono em relação às versões mais comerciais, mas interessante do ponto de vista dramático e psicológico. E, finalmente, aguarda-se pelo filme A Rainha do Nilo, de Ang Lee, estrelado por Angelina Jolie, com roteiro de Eric Roth, previsto para 2013 e até agora sem previsão de lançamento. O filme se baseia na biografia de Stacy Schiff (2010) e promete integrar “os dois lados” da rainha do Egito, sem diminuí-la nem idolatrá-la. O trabalho de Schiff é uma compilação jornalística do trabalho de pesquisa científica de vários arqueólogos e cientistas atuais, que fazem uma revisão dos acontecimentos narrados pelos historiadores romanos. 3. Documentários de TV Mas, será que essa poderosa governante tinha de fato uma beleza sem igual do cinema? Era mesmo uma sedutora inescrupulosa como afirmam os romanos? Ela foi realmente mordida por uma cobra? Os três documentários de TV que selecionamos tem como objetivo desvendar a verdade sobre o mito de Cleópatra, livrando-o de seu aspecto simbólico de mulher ardilosa e promíscua, através da pesquisa arqueológica e histórica. Os documentários seguem a mesma linha de raciocínio de Schiff, questionando a narrativa dos historiadores romanos que reduzem Cleópatra a uma mulher vil, sedutora e ambiciosa, entrevistando diretamente os pesquisadores responsáveis pelas novas descobertas sobre a vida da rainha. 

Arquivo Confidencial: Cleópatra (da National Geografic Channel) é baseado na entrevista de vários especialistas atuais: Mei Trow, escritor; Dr. Christofer Syneder, pesquisador de egiptologia da Marymount University; Dr. Debbie Challis, da University College London; professor Valerie Higgins da American University of Rome; entre outros. O documentário apresenta uma consistente contextualização histórica, política e econômica do Egito ptolomaico.



Egito Revelado: Cleópatra (da Discorevy Channel) é um documentário que aborda principalmente o contexto histórico do período ptolomaico e da cultura mista greco-egípcia, reconstituindo arqueologicamente não apenas seus principais monumentos arquitetônicos, como o Farol e a Biblioteca de Alexandria, mas também seu ambiente cultural cosmopolita e seu papel de centro intelectual na Antiguidade.



Cleópatra – a Rainha do Egito (também da Discorevy Channel) é mais focado na biografia de Cleópatra, recontando sua história de vida da forma mais objetiva possível. Curiosamente, o distanciamento releva momentos dramáticos que escaparam a outras narrativas históricas ou ficcionais, como o momento em que a rainha vê sua irmã e inimiga acorrentada e exposta publicamente no desfile em tributo a Cézar, representando a submissão do Egito à Roma; ou ainda quando, após dar a luz a gêmeos, foi abandonada por Marco Antônio, quando este se casou com a irmã de Otaviano, passando 4 anos fora do Egito.

Os documentários são baseados nos estudos mais recentes e apontam três temas principais em que as evidências históricas contradizem a lenda mítica construída pelos historiadores romanos: a beleza, a serpente e a mulher. Ao que parece, Cleópatra não era bela como se imaginava. Não há retratos da rainha, mas algumas moedas da época a mostram com um queixo e um nariz proeminentes, características estas herdadas da família. Para compensar os traços fortes, ela era elegante e carismática como uma deusa. Raspava a cabeça e usava perucas. Ela era muito vaidosa. Fazia tratamentos de beleza e hidratava a pele com banhos de leite e óleo de rosas - invenção atribuída a ela. Cleópatra também gostava de se maquiar, tendo inventado técnicas de escurecer os olhos (SIMPSON, 2009). Para Plutarco e Cícero, além de sua aparência suntuosa e impactante, o grande charme da rainha vinha de seu gênio astuto, de sua personalidade alegre, de sua inteligência e erudição (BRADFORD, 2002). E não de sua beleza e/ou de seus atrativos sexuais como nos fizeram pensar as narrativas contemporâneas. Outro aspecto inverídico do mito romano na lenda de Cleópatra é que ela foi morta por se deixar picar por uma serpente. Entretanto, uma pesquisa do historiador Christoph Schäfer, da Universidade de Trier, concluiu que ela tomou um veneno, um coquetel “de acônito, uma planta tóxica, cicuta e ópio" preparado por ela própria para se matar, depois de ter sido presa pelas tropas de Otaviano. A cobra, símbolo do poder dos faraós e de perigo sinuoso para os romanos, pode ter sido originada em seu enterro, em que a rainha aparecia deitada coberta em gesso pintado com um cetro de serpente em uma das mãos.

No afã de defender a rainha do Egito, no entanto, há afirmações improváveis entre os estudos recentes, como a que Cleópatra conheceu Júlio Cézar virgem. É certo que a rainha estava longe de ser uma libertina. Ela era uma sacerdotisa especializa em venenos, conhecendo bem métodos abortivos e contraceptivos. É improvável que César tenha sido seu primeiro homem e Marco Antônio, com quem viveu 11 anos, o segundo e último – como afirma Stacy Schiff. Embora não haja registros confiáveis de outros envolvimentos amorosos, a sexualidade de uma rainha-deusa é um assunto complexo, irredutível à polaridade moral entre virgindade e luxúria. Impossível considerá-la santa ou prostituta, pois essa distinção não existia no contexto da antiguidade egípcia. O importante, hoje, é perceber que, enquanto os romanos atribuíram todo poder de Cleópatra à sua sexualidade e não a sua inteligência; os estudiosos atuais pendem da direção contrária, esvaziando a relevância de sua capacidade de sedução e de sua destreza erótica. 5. Conclusão Enquanto a psicologia estuda o mito do ponto de vista subjetivo e universal; a antropologia valoriza mais a estrutura que o conteúdo dos mitos, como se eles fossem mensagens fragmentadas do passado, que, com o passar do tempo, quase perderam o sentido original. Também existem analistas que insistem no aspecto ideológico dos mitos, que eles, na verdade, legitimam e mascaram as relações de poder: Para esses, Sâo Jorge matando o dragão representa apenas o Império Romano dominando o deus dos druidas celtas. É claro que os mitos tem uma dimensão política, como também tem dimensões psicológica, astronômica, musical, culinária, matemática, entre outras. É preciso entender o mito em sua complexidade – o que é parcialmente feito pela antropologia. Digo 'parcialmente' porque a antropologia investiga o mito em uma perspectiva temporal passado-presente; enquanto a comunicação social pensa o mito em um enquadramento aberto voltado para o futuro. Por outro lado, os mitos modernos produzidos pela mídia são 'parcialmente' artificiais. Os mitos midiáticos se alimentam do simbolismo tradicional e dos complexos psicológicos universais e são recanalizá-los para o mercado de consumo. A diferença entre o mito clássico e o mito moderno é que o primeiro aconteceu no passado e o mito atual acontece agora e caminha para o futuro.

Como a mídia sempre reinventa os mitos segundo o gosto do público da época, é compreensível que o cinema tenha tomado a defesa de Cleópatra e continue valorizando mais sua inteligência que sua sensualidade. Porém, não devemos esperar que o novo filme, A Rainha do Nilo, seja realista quanto à aparência do personagem (no caso, Angelina Jolie é um modelo de beleza distante de Cleópatra) ou a sua verdadeira sexualidade. Mesmo porque a compilação de Stacy Schiff também não é, com suas preocupações sobre castidade e fidelidade conjugal, completamente dissociadas do contexto da antiguidade, mas bem presentes nos valores atuais. Ao que parece o mito de Cleópatra encanta tanto seus críticos que tentam encobrir e diminuir sua importância apresentando-a como uma mulher ambiciosa e sedutora, quanto seus admiradores, que não conseguem perceber seu comportamento vil, maquiavélico e dominador.

Bibliografia BRADFORD, Ernle. Cleópatra. Rio de Janeiro: Editora Prestígio, 2002. FALCONER, Colin. Quando éramos Deuses - A Vida de Cleópatra, a Mais Famosa Rainha do Egito. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. GEORGE, Margaret. As Memórias de Cleópatra 1, 2 e 3. “A Filha de Ísis” (1° volume), “Sob o Signo de Afrodite” (2° volume) e “O Beijo da Serpente” (3° volume). São Paulo: Geração Editorial, 2012. HUGHES-HALLETT, Lucy. Cleópatra - Histórias, Sonhos e Distorções. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005. SCHIFF, Stacy. Cleópatra: A Life. [S.l.]: Little, Brown and Company, 2010. SCHWENTZEL, Christian-georges Cleópatra - Coleção L&pm Pocket Encyclopaedia. São Paulo: L&PM, 2009. SIMPSON, Margaret. Cleópatra e Sua Víbora. São Paulo: CIA das Letras, 2009. SHAKESPEARE, William. Antônio e Cleópatra - Pocket / Bolso. São Paulo: L&PM, 2005.

OS PERGAMINHOS DE AMPHIPOLIS21 Aforismos meta narrativos sobre a saga da Princesa Guerreira22 RESUMO: O presente texto detalha e analisa a releitura meta narrativa de diferentes mitologias realizadas pelo seriado de TV Xena, a princesa Guerreira. O objetivo é identificar algumas características narrativas (os universos múltiplos, a morte, a vida sem inimigos) e compará-las com outros trabalhos contemporâneos, principalmente com a Grafic Novel Sadman, do escritor Neil Gaiman. Conclui-se que o mito das moiras, representando as estruturas narrativas do tempo, se tornou o antagonista do anti-herói pós-moderno.

# 1 A princesa guerreira Xena: Warrior Princess23 estrelou em 1995 como um spin-off da série Hércules: As Viagens Míticas, ou seja, derivou dessa série. A saga de Xena na televisão americana começou com uma participação especial de Xena em Hércules durante três episódios, The Warrior Princess, The Gauntlet e Unchained Heart. Nos dois primeiros episódios, Xena era uma vilã, mas no terceiro, ela se arrepende de seu passado e se alia a Hércules. Xena fez tanto sucesso entre o público que os produtores de Hércules resolveram gravar uma série exclusiva com a princesa guerreira. A ideia partiu dos produtores Robert Tapert e John Schulian, que em companhia do diretor Sam Raimi, assinaram um acordo com a Renaissance Pictures para 24 episódios de Xena, como teste de audiência. Desde então, a série teve um sucesso de larga escala e tem sido referida como um fenômeno cultural e um ícone pop feminista. Em um curto espaço de tempo, Xena tornou-se um sinônimo de força feminina e é frequentemente citada como uma referência em vários outros trabalhos contemporâneos: videogames, histórias em quadrinhos, em outras séries de televisão e no cinema. Enquanto a série de Hércules fracassou, durando apenas duas temporadas, Xena durou seis anos com um grande sucesso internacional, devido experimentando vários tipos de narrativa e, principalmente, pensando a si mesmo como meta narrativa. 21

Publicado na Revista temática v. 9, n. 10. João Pessoa: UFPB, 2013.

22 Para Gelli Cristina Ahimed. 23 A série foi uma série de TV norte-americana produzida na cidade neozelandesa de Auckland e seus arredores, levada ao ar originalmente entre 1995 e 2001. A série foi estrelada pelas atrizes Lucy Lawless e Renée O'Connor. É exclusivamente distribuída pela MCA-TV e no Brasil, é exibida, na sequência, do 1º ao 4º ano da série, no USA Channel.

Além do carisma das duas atrizes principais, o sucesso se deve principalmente à conjunção de dois temas aparentemente incompatíveis: homossexualismo e espiritualidade. O homossexualismo feminino é ‘sáfico’, as protagonistas não são masculinizadas, ao contrário, partilham fraternalmente e valorizam os valores femininos: elas têm filhos, parceiros heterossexuais, mas mantém a relação afetiva principal com a parceira. Embora sem cenas eróticas explícitas, há inúmeras menções verbais a relações homossexuais entre Xena, Gabrielle e outras personagens da saga. Xena é cultuada como ícone pela comunidade GLS. Há inclusive um grupo de ativistas lésbicas chamado The Marching Xenas. A homossexualidade das protagonistas é deixada ambígua propositalmente pelos escritores da série. E esse, sem dúvida, é um dos motivos do sucesso da série. Mas o grande sucesso de Xena não reside simplesmente nessa bissexualidade de preferências femininas, tão antiga e tão atual: ao contrário de Hércules, que é um herói patriarcal lutando contra a grande deusa Hera; Xena é uma heroína matriarcal contra Ares, o deus da guerra – o que é muito mais, digamos assim ... politicamente correto. Ela, na verdade, agrega e defende os valores femininos. Os comportamentos machistas e violentos são constantemente ridicularizados na série através dos personagens de Joxer (Ted Raimi, irmão do diretor Sami Raimi) e do deus da guerra Ares (Kevin Tod Smith). Um bom exemplo dessa esculhambação completa dos valores patriarcais é o episódio Here She Comes... Miss Amphipolis, em que Xena entra num concurso de beleza como Miss Amphipolis para descobrir quem dos patrocinadores quer a morte das participantes. Desmascarados os culpados, após um hilariante deboche em que as principais concorrentes desistem da competição, uma travesti ganha o concurso. # 2 O narrador e a protagonista Xena é uma personagem imaginária de uma cidade imaginária, Amphipolis, que interage com diferentes realidades históricas, reais e/ou mitológicas. Na série, sua estória foi escrita por sua amiga Gabrielle em pergaminhos que se perderam durante séculos e redescobertos na atualidade nas ruínas de sua antiga cidade natal. Apesar de toda estória ser imaginária, a narrativa sugere que a série foi baseada nos pergaminhos.

E a série de Xena e os pergaminhos de Amphipolis contam a estória de uma guerreira cruel e sanguinária que se arrepende de seu comportamento violento e desumano, se convertendo ao caminho espiritual dos guerreiros e defendendo os fracos e os oprimidos. Mas, em relação à jornada arquetípica do herói, ela é uma mulher e, ao invés da passagem do orgulho para compaixão, sua estória dramatiza a passagem dos sentimentos de vingança e rivalidade para os de justiça e companheirismo. Isto - acrescido ao fato de que as heroínas são bem mais solidárias e menos competitivas do que os heróis em geral - dá a série um tom especial. Além do conteúdo feminista, o segredo do sucesso da série está na releitura mitológica popular de diferentes formas de espiritualidade (judaísmo, paganismo, cristianismo, etc) e, principalmente, na crítica ao modelo narrativo da jornada do herói em seus elementos internos básicos: o narrador, os personagens e o cenário. Disse 'elementos internos', porque externamente há ainda o autor e o leitor, mediados pelo narrador (dentro da narrativa). O seriado de Xena quebra parcialmente com todos esses conceitos. A direção dos episódios é rotativa, sendo feita inclusive por alguns atores como Renee O'Connor e Michael Hurst (que faz o personagem de Iolaus na série de Hércules); além de que vários personagens secundários (Joxer, Gabrielle, Autolycus) são circunstancialmente colocados na posição de protagonista em episódios isolados. Há também vários expedientes criativos para descolar os personagens dos seus papeis narrativos. A atriz Lucy Lawless interpreta outros personagens além da protagonista Xena: a princesa Lea e a impagável malandra Molly – que surgem em diferentes momentos da saga; Renee O'Connor faz também Esperança, a filha diabólica de Gabrielle, e outras personagens; Joxer tem irmão gêmeo do mal e assim por diante. Vários episódios utilizam ainda o expediente da 'troca de corpos' para radicalizar mais e também 'descolar' os atores dos seus personagens. Nos episódios Intimate Stranger e Ten Little Warlords, Ares faz Xena e Callisto trocarem de corpos – fazendo com que cada uma se colocasse no lugar da outra; e levando a atriz Hudson Leick ao papel de princesa guerreira e Lucy Lawless a viver sua pior rival. Em Little Problems, Xena é colocada no corpo da menina Dafne; em Sucession, Ares une Xena e Gabrielle num único corpo. Joxer e Autolycus, (ou melhor: os atores Bruce Campbel e Ted Raimi) também interpretam - em momentos distintos e por motivos diferentes - a princesa guerreira, personagem protagonista da saga.

Porém, o mais sutil e interessante caso de troca dos personagens nos papeis narrativos durante a saga é a estória de Gabrielle. A ideia inicial dos produtores da série era de que a personagem Gabrielle morreria no segundo episódio, mas como o carisma de Renee O'Connor conquistou o público, resolveram mantê-la. Na primeira temporada, Gabrielle é coadjuvante: jovem, tagarela e inocente demonstra sua inteligência e diplomacia. No segundo ano, ela é uma meta narradora, uma poetisa que escreve a história de Xena em pergaminhos. Apesar de não lutar, prova seu valor ao lado de Xena usando astúcia. No terceiro ano, surgem atritos entre as duas heroínas e Gabrielle torna-se autossuficiente nas lutas. Finalmente, no quinto e sexto anos da série, Gabrielle é uma guerreira completa – parceira e também protagonista. É importante ressaltar que não se trata apenas de uma coadjuvante (ou parceira) que passa ao papel de co-protagonista, mas, sobretudo, a meta narradora que ocupa o lugar do herói. No episódio The Titans, Gabrielle lê um pergaminho mágico e ressuscita três titãs; em Athens City Academy of the Performing Bards, participa de um concurso de contar histórias; em The Quill is Mightier, Afrodite enfeitiça um pergaminho de Gabrielle, fazendo com que tudo que ela escreva vire realidade; The Play's the Ting, Gabrielle dirige uma peça de teatro baseado nas aventuras de Xena, refletindo metalinguisticamente o seriado, em função de conciliar o gosto do público por sexo e violência com as intenções éticas e estéticas dos artistas. A dupla formada por Don Quixote e Sancho Pança, criada por Miguel de Cervantes, é um modelo de pensar criticamente a narrativa heroica, em que o protagonista, idealista e sonhador, vive submerso no universo das estórias (da cavalaria medieval) e o coadjuvante, sua consciência crítica bem enraizada no mundo das necessidades e na realidade material. A dupla de heroínas formada por Gabrielle e Xena é a inversão deste modelo, pois enquanto a guerreira é pragmática e realista, a poetisa confunde constantemente a realidade com suas narrativas. Aliás, essa inversão das perspectivas permite não apenas que uma personagem aprenda com a outra dentro da estória, mas, sobretudo, que haja também um diálogo dinâmico e transformador entre quem escreve a estória e quem protagoniza a narrativa. Ou seja: a dupla Xena/Gabrielle é uma reinterpretação do modelo reflexivo entre autor e personagem, para pensar o papel do escritor na jornada do herói no interior da narrativa.

De uma forma geral, o produtor Sami Raidi tenta fazer com que seus personagens escrevam a própria narrativa e a própria série problematiza essa pluralidade relativa dos narradores em alguns episódios como If the Shoe Fits... em que Xena, Gabrielle, Joxer e Afrodite levam a princesa Aésia de volta para casa e contam diferentes versões da estória de Cinderela, chamada de Cirela. Além de interagir com os deuses gregos (Ares, Afrodite, Hades, etc), com Hércules e outros personagens lendários da mitologia helênica (Ulisses, Helena de Tróia, Prometeu), Xena reinterpreta narrativas de outras culturas. Em The Rheingold, o guerreiro nórdico Beowulf pede ajuda a Xena; em Giant Killer, Xena decide enfrentar seu amigo Golias pra defender os israelitas de serem mortos pelos filisteus; em Altared States, Xena salva o menino Icos (em alusão a Issac) de ser sacrificado pelo pai Anteus (nome dado a Jacó) e descobre que o mandante do crime foi um deus único24. Outra característica da série de Xena é que há também muitas homenagens, citações e adaptações de outras narrativas. O clássico ‘Sonhos de uma noite de verão’, de Shakespeare é homenageado no episódio A Comedy of Eros, em que Volúptas, filho do Cupido e Psiquê, rouba as flechas do pai e faz com que Xena se apaixone por Draco, que se apaixona por Gabrielle que se apaixona por Joxer. Ou no episódio The Furies, uma releitura da tragédia Electra de Sófocles. O episódio A Solstice Carol é uma parodia de Um Conto de Natal: Xena, Gabrielle e o fabricante de brinquedos Sinticles se juntam e se disfarçam de três Moiras para fazer o rei Sílvus não expulsar órfãos de um orfanato. Não se trata apenas de recontar outras estórias dentro da própria narrativa, Xena quer expor as estruturas da narratividade em seu liquidificador de sentido. Há episódios imitando (ou incorporando) as narrativas de terror, de investigação policial e judicial de crime, uma ópera rock, dois musicais no estilo teatral da Broadway e até de ficção científica: no episódio Been There, Done That, Xena quebra a cabeça para achar um 24 Mas, a releitura mítica mais ousada e de maior importância para a narrativa de Xena, é a da história de Eli (ou Jesus Cristo). Inicialmente Eli (Tim Omundson) é um místico essênio que as heroínas conhecem em peregrinação para Índia, que prega a filosofia da nãoviolência e do amor universal. E Gabrielle se converte a esses ideais. Ele reaparece em Devi, episódio em que a poeta tem seu corpo possuído pelo espírito da demônia Tataka, na Índia, e é exorcizada por Eli; e, em The Way, quando Xena luta contra Indrejit, o mais poderoso de todos os demônios, que raptou Gabrielle e Eli. No início da quinta temporada, em Fallen Angel, as heroínas são ressuscitadas por Eli após uma batalha entre o céu e o inferno. E, finalmente, em Motherhood, Eli aparece novamente, quando concede a Xena o poder de matar os deuses do Olimpo.

jeito de quebrar o encantamento que o Cupido fez, em um dia que está sempre se repetindo. É uma homenagem às narrativas de laço de recorrência temporal, em que o protagonista vive várias vezes o mesmo dia até descobrir o que estava acontecendo. A cada dia repetido, dependendo das opções da protagonista, vários personagens morrem. Mas, com o início do dia, todos voltam a viver sem se lembrar de nada. #3 Passeando pelo Inconsciente Coletivo E além de desconstruir o papel tradicional do narrador e dos personagens, recontando várias narrativas diferentes com seu enquadramento feminista, a saga da princesa guerreira também desconstrói a noção de cenário, isto é, do espaço-tempo em que a ação dramática se desenvolve. As estórias de Xena são fractais, isto é, cada episódio da série contém elementos do conjunto da saga vistos de um ponto específico, cada estória é cheia de detalhes e sutilezas que adiantam e explicam o que está por acontecer ou o que aconteceu em outra estória, dentro de um gigantesco quebra-cabeça temporal. Assim, no primeiro capítulo, quando Xena volta arrependida a sua aldeia natal, para pedir perdão a sua mãe depois de muitos anos de massacres e guerras, é que vamos saber como foi sua saída de Amphipolis. Ou no episódio Death Mask, Xena encontra seu irmão mais velho Toris para vingar a morte do seu irmão mais novo, Lyceus. Ou ainda em Orphan of War, Xena revê seu filho Solan, educado pelos centauros há dez. A cada novo episódio, o passado sombrio de Xena vai sendo mostrado em flashbacks. Ao mesmo tempo em que a narrativa estrutura uma história progressiva de uma guerreira em busca de redenção, ela também constrói uma história regressiva de culpa e selvageria, anterior a conversão de Xena. Essa narrativa dupla, regressiva/progressiva, leva a construção de uma linha de tempo de dois sentidos, com personagens, locais e épocas bastante contraditórios. Um bom exemplo é o episódio Past Imperfect, enquanto revive suas lembranças da época de sua gravidez até a morte de Bórias e nascimento de Solan, Xena enfrenta sua ex-serva, Satrina, que está atacando cidades no presente com as mesmas técnicas usadas por ela para destruir Corinto no passado. Na verdade, pode-se subdividir a saga completa da princesa guerreira em ciclos geo-mitológicos: romano; chinês; germânico; japonês. Xena visita esses lugares pelo menos duas vezes, na época de guerreira cruel e depois se redimindo do seu passado. No ciclo chinês, a guerreira paga sua dívida com sua mentora espiritual Lao Ma; no ciclo

germânico, Xena tem que voltar para ajustar contas com Odin, Brunilda e Grendel; no ciclo japonês, Xena morre decapitada por samurais em virtude de ter provocado um incêndio no passado. Compreenda-se assim porque Xena desperta tanta revolta dos que prezam pelo rigor histórico e gostam da verossimilhança narrativa. Xena é um personagem fictício que interage com personagens míticos e históricos muito distantes cronologicamente, como, por exemplo, com Julio Cesar e Tibério. Existem inúmeros absurdos de continuidade histórica se formos levar em conta os registros que temos de vários acontecimentos reais narrados pelo seriado. Na verdade, a proposta da série é que Xena e Gabrielle não viajam por regiões históricas da antiguidade, mas sim através de diferentes mitologias do inconsciente coletivo universal. Sua viagem sempre nos remete ao resgate do passado através da realização do presente. Também há deslocamentos no tempo no futuro. Aliás, Uberfic é o termo usado (criado pelo fã clube de Xena na Internet) para designar as estórias em que os personagens são mostrados em alguns episódios no futuro, geralmente reencarnados em outros corpos, tomando logo depois conhecimento sobre suas vidas passadas. Esse tipo recurso foi usado no episódio The Xena Scrolls, na segunda temporada: na Macedônia, em 1940, as antropólogas Melinda Pappas e Janice Covington, reencarnações de Xena e Gabrielle, procuram os pergaminhos de Amphipolis, que falam das aventuras de Xena. Em Betwen the Lines, Xena e Gabrielle são enviadas para o futuro para combater a reencarnação da feiticeira Alti. Em Deja Vu All Over Again, quando, nos tempos atuais, Harry, Anne e Matie, as reencarnações de Xena, Gabrielle e Joxer fazem terapia de regressão de vidas passadas. Xena e Gabrielle são entrevistadas, na atualidade, por um repórter de TV em You Are There25. 25 Há ainda dois episódios dedicados à atualidade: Send in the Clones, em que Xena e Gabrielle são clonadas por três fãs obcecados pela série; e Soul Possession, apresenta uma solução budista (troca de corpos) para os conflitos kármicos dos três principais personagens da série: o espírito de Xena reencarnou no corpo do ator Ted Raimi e o espírito do paspalhão Joxer no corpo da atriz Lucy Lawless. Assim, a união entre as almas gêmeas de Xena e Gabrielle se tornaria ‘heterossexual’ – o que desagradou a muitos fãs. Nesses episódios, os artistas levam a sátira crítica de si mesmo na série às suas últimas consequências. A questão da importância dada pelos fãs clubes a questão do homossexualismo das protagonistas é problematizada no interior da série. Além do público, os produtores também são meta narrados: há uma cena hilária com os irmãos Raimi sobre a possibilidade de realizar - a partir dos pergaminhos perdidos de Xena (encontrados pelas reencarnações trocadas dos antigos heróis) – um seriado criativo de baixo custo para TV americana “com locações e elenco da Nova Zelândia”.

Além dessa construção simultânea da narrativa no tempo (no passado, no presente e no futuro), Xena e Gabrielle também viajam, na sua revisão transcultural das mitologias, em outras dimensões do espaço-tempo: em Dreamworker, Gabrielle é raptada pelos sacerdotes de Morpheus e Xena entra no mundo de sonhos para resgatá-la; em The Bitter Suite, depois de mortas, Xena e Gabrielle vão para o reino Ilúsia onde fazem as pazes; em Paradise Found, Xena e Gabrielle caem num buraco e chegam em um paraíso, mas é governado por Aidem, um bruxo que se alimenta da bondade alheia. Entre os ciclos regressivos envolvendo viagens aos mundos espirituais, os episódios que contam a estória da feiticeira siberiana Alti (Claire Stansfield) ocupam um lugar especial. Gabrielle morre (pela primeira vez) no final da terceira temporada da série. No primeiro episódio do 4ºano, Adventures in the Sin Trade, para fazer um último contato com ela, Xena resolve ir para o lugar “em que as amazonas vão quando morrem”, mas descobre que Alti, sua antiga aliada e uma poderosa xamã, aprisionou as almas das antigas amazonas em uma espécie de ‘limbo’. Xena, então, recorda de seu acordo com Alti e de sua traição à rainha amazona Cyane. Xena, mais uma vez, resgata sua dívida com o passado, libertando Gabrielle e as amazonas, mas irá despertar a irá da feiticeira, que irá persegui-la daí em diante, durante todo seriado, em várias locais e épocas. Portanto, a descontinuidade narrativa dos episódios da saga problematiza não apenas uma revisão feminista de várias mitologias tradicionais, mas, sobretudo, contar uma estória que fosse auto meta narrativa, seja através da relação autor/ator representada pela dupla de protagonistas, seja através de cenas de metalinguagem e da explicitação dos vários aspectos geralmente invisíveis nas séries de TV, como o papel dos produtores, o sucesso da série, o homossexualismo dos personagens, os fãs clubes, etc. #4 O amor romântico Atualmente, graças em parte à ação combinada das mídias, existe uma fusão de gêneros narrativos. Os filmes mais recentes, principalmente os baseados na linguagem dos mangás e animês japoneses, são simultaneamente de terror, ficção científica, romance, suspense, humor e principalmente: hoje a maioria das estórias que conhecemos, na mídia e fora dela, tem como protagonista um casal que luta pelo seu amor contra as mais diferentes situações. E mesmo as narrativas que não são abertamente ‘de amor’, mas ‘de aventura, terror ou suspense’, têm algum ingrediente romântico no enredo.

No entanto, no livro Amor: do mito ao mercado (LÁZARO, 1996) fica claro que o amor romântico, tal qual nos o conhecemos, é uma construção histórica bastante recente. A Antiguidade clássica rejeita a paixão amorosa e critica os indivíduos livres que são escravizados por suas paixões. No Banquete de Platão, o verdadeiro Eros resulta do controle do desejo, o amor filosófico ritualizado pela virtude é um o caminho para reconduzir o homem à plenitude cósmica. A relação erótica é um método de conhecimento da verdade. Só a verdade satisfaz o desejo e o amor é um meio para a alma unir o sensível e o inteligível. O cristianismo, principalmente com São Paulo, distanciará ainda mais o amor da terra. A noção de “amor ágape” - amor desinteressado e doador, afastado da sensualidade e da paixão - passará a ocupar um lugar central na moral e na ética do Ocidente. Na idade média, no entanto, como aponta Lázaro, esse amor espiritualizado reencarnará nas mulheres (ou na mulher-símbolo, no singular, objeto de desejo inalcançável) no ideal do amor cortês. O amor trovadoresco formou um sistema de regras de conduta para fundamentar a organização familiar e, ao mesmo tempo, aprofundar a subjetivação dos indivíduos. Por um lado, este novo amor realça os valores cavalheirescos (a coragem, o serviço, a submissão e o controle do desejo) e, por outro lado, oferece à juventude um desejo espiritualizado, uma reverência quase religiosa que o amante sente ao menor pensamento da mulher a que ama; o uso da delicadeza, a sofisticação da conduta amorosa, um sentimento elevado. O século XII é marcado por uma grande mudança em vários aspectos da Idade Média, a partir daí observa-se um movimento intrincado e complexo de aproximação entre casamento e amor, que se desenvolverá através do período medieval até sua plena ascensão na Idade Moderna. O casamento era uma instituição que visava apenas à estabilidade da sociedade, servindo apenas para a reprodução e união de riquezas, dando continuidade à estrutura feudal. A partir do momento em que o amor cortês aparece associado ao casamento, a reprodução e a união de riquezas passam a um segundo plano, com a afetividade individual dos amantes ameaçando toda essa estrutura. E, neste contexto histórico, surgiram as estórias de amor recíproco trágico, as primeiras narrativas sobre o amor apaixonado entre homens e mulheres: Abelardo e Heloísa, Romeu e Julieta e Tristão e Isolda; a estória mais antiga e pode ter dado origem às outras, posteriores. De origem medieval, a lenda foi contada e recontada em muitas diferentes versões ao longo dos séculos. Na lenda de Tristão e Isolda o amor pelo

amante (a afetividade) é colocado acima do amor pelo marido (e pelos laços sociais) pela primeira vez26. Tristão, cavaleiro a serviço de seu tio, o rei Marc da Cornualha, viaja à Irlanda para trazer a bela princesa Isolda (ou Iseu) para se casar com seu tio. Durante a viagem de volta à Grã-Bretanha, os dois se apaixonam perdidamente. Após várias tentativas de separação, no final da estória, Tristão morre e Isolda, ao achá-lo morto, também. No século XV, a narrativa passou a ser parte das estórias sobre o rei Arthur e nos séculos XVIII e XIX, o rei Marc foi substituído por um vilão, que tenta impedir o amor do casal apaixonado, e o desfecho final deixando de ser trágico com a união dos amantes. Aos poucos, as narrativas de amor romântico foram se fundindo com as narrativas de aventuras mitológicas e, mais recentemente, com outros gêneros narrativos (terror, humor, ficção científica, drama, etc). Esse processo levou a uma padronização dos triângulos amorosos nas narrativas midiáticas contemporâneas, em que o elemento feminino se tornou um presente para o herói vitorioso no final da estória. No caso de Xena e Gabrielle, essa 'edipização' das narrativas é bastante criticada. Não há triângulo amoroso, seja com Ares (o deus da guerra), seja entre outras mulheres que surgem na narrativa. E o que realmente importa não é se elas são lésbicas ou não, mas sim a quebra deste paradigma narrativo de casamento no final da Jornada do Herói patriarcal. Aliás, não importa se o amor é platônico ou não, não importa se elas se beijam ou se reencarnam com o sexo trocado; o importante é que elas se amam e que “qualquer forma de amor vale a pena” – eis a mensagem essencial do seriado. #5 O neobarroco A integração de diferentes formas de ver e a representação da realidade em mosaico de universos, com uma variedade de espaçostempo descontínuos de diferentes durações e variadas intensidades em um único quadro simultâneo, além de caracterizar o movimento estético do neobarroco também podem ser identificados nos campos da física quântica, da biologia do conhecimento e de sínteses 26 Em outra ocasião (GOMES, 2009), analisamos o filme Romance de Guel Arraes, uma releitura da estória de Tristão e Isolda. O filme não faz apenas mais uma nova leitura da lenda dos amantes medievais, ele utiliza a narrativa para um exercício de Metateatro em relação à linguagem teatral no palco, na TV, no cinema e da vida pessoal dos atores.

epistemológicas contemporâneas importantes como a teoria da complexidade. Visto como um sistema de interpretação do mundo, a estética neobarroca tem uma perspectiva que vê a realidade como uma sobreposição de universos em camadas (e não o universo como uma síntese das realidades) - o que lhe permite assimilar e integrar em sua forma de representar, outras formas de ver como uma de suas camadas, absorvendo hermeneuticamente em si todas as críticas e oposições. O romance gráfico Sandman, o mestre dos sonhos, de Neil Gaiman27, por exemplo, tem vários aspectos em comum com o seriado de TV Xena, que podem ser vistos como parâmetros que caracterizam o neobarroco: a multiplicidade dos universos, a ausência de um antagonista evidente, a morte como personagem e, principalmente, a luta do protagonista com as estruturas narrativas do tempo. A saga de Sandman começa quando o bruxo Roderick Burgness tenta invocar e aprisionar a Morte em ritual mágico para conquistar a imortalidade, e captura seu irmão mais moço, o Sonho, provocando o desencantamento do universo. Várias estórias paralelas são narradas simultaneamente. Muitos planos universos relativos em um único plano de imanência absoluta. Como “um cozinheiro demente fazendo um bolo de casamento”, diz clive Barken (GAIMAN, 2006a, p.7) “construindo camada por camada e escondendo todo tipo de sabores doces e azedos na mistura”. E nessa mistura, entram várias doses de humor e de terror; de referências filosóficas, literárias e mitológicas; de citações do cinema, da música pop e do próprio universo das histórias em quadrinhos. As estórias de Sandman também são fractais, isto é, cada parte série de estórias contém o conjunto da saga visto de um ponto específico, cada estória é cheia de detalhes e sutilezas que adiantam e explicam o que está por acontecer ou o que aconteceu em outra estória, dentro de um gigantesco quebra-cabeça temporal. 27 Neil Gaiman, para quem não conhece , é um dos mais importantes escritores contemporâneos, com vários livros (O guia do mochileiro das galáxias, Deuses Americanos, Os filhos de Anasi, Fragile Things, entre outros), filmes (Stardust, A lenda de Beowulf) e principalmente histórias em quadrinhos, ou melhor, grafic novels: Violent Cases, Orquídea Negra, Os livros da magia, A Paixão de Arlequim, A última tentação, 1602, Eternos e a mega série Sandman, sua obra prima, formada por quase uma centena de estórias, organizadas em dez arcos narrativos, contando a epopeia trágica de Morpheus, o mestre dos sonhos.

Ou como diz Frank Mc Connell, em Entes Queridos: As primeiras histórias de Sandman, aproximadamente, por mais brilhantes que fossem, pareciam irregulares: obras de gênio, mas carentes de um centro definido, sem direção definida. Até que, a partir de Vidas Breves, a coisa toda passou a ganhar velocidade e forma impressionantes: os desvios e digressões das primeiras histórias começam a se unir num único e atordoante movimento final: não é inadequado fazer comparações com a estrutura de uma sinfonia. (2008, p. 09)

Há muitas intercessões pontuais em comum entre as sagas do Mestre dos Sonhos e da Princesa Guerreira: personagens históricos e mitológicos em comum às duas epopeias, como Augusto César e Odin; estórias que ambos recontam dentro de sua narrativa, como Sonhos de uma noite de verão de Shakespeare, entre outras; e lugares em comum que tanto Xena como Sandman visitaram em sua jornada de releitura mítica. No inferno, o Mestre dos Sonhos já esteve várias vezes. No início da saga, Sandman vai até o inferno para resgatar seu Elmo, que havia sido roubado pelo bruxo que o tinha aprisionado. Em seguida, ele volta ao inferno para resgatar um antigo amor condenado ao sofrimento eterno; mas, o inferno está vazio. Ou quase: encontra lúcifer colocando os últimos demônios para fora e fechando todas as portas. Lúcifer, então, pede a Morpheus que fique com a chave do inferno. Com inferno fechado, os demônios passam a vagar pelas outras dimensões e os mortos voltam para terra, causando um grande transtorno. Também no coração do sonhar, o palácio do mestre dos sonhos, chegam delegações de diferentes dimensões e reivindicam a posse do inferno. Morpheus entrega então a chave do Inferno aos arcanjos Duma e Remiel. O inferno sob nova administração de passa por profundas mudanças. Acabaram os tormentos sem sentido, as dores sem propósito. O sofrimento não é para punir, mas para corrigir. Algo semelhante transcorre com Xena. Ela mata Mefistófelis e, para impedir os mortos vaguem pela terra, se torna ‘Rainha do Inferno’ (The Haunting of Amphipolis) e, em seguida em Heart of Darkness, seduz o arcanjo Lúcifer, fazendo ele cometer os sete pecados capitais para que ele assuma o posto de ‘Rei do Inferno’ no lugar dela. Xena também problematiza a mudança do regime moral da culpa do Inferno cristão (na série existem outros infernos, como o Tártaro governado por Hades) para um regime mais corretivo e pedagógico.

Além de pôr múltiplos universos em uma única narrativa e frisar a mudança no regime de sofrimento, há inúmeras intercessões temáticas entre as estórias de Sandman e Xena. Duas, no entanto, nos chamam mais a atenção: a conversão dos antagonistas em ajudantes e o modo como a morte é representada. #6 A morte como personagem e como transformação Nas lendas tradicionais, o herói desafia seu destino e, após várias provas e aventuras, conquista a imortalidade. Mas, em no seriado de Xena e na série de Sandman, os protagonistas preferem morrer sem medo. Callisto morre cinco vezes, Gabrielle, três vezes; e Xena, quatro – sem contar as diferentes reencarnações. No episódio Death in Chains, O rei Sísifos aprisiona Celeste, a deusa-morte, tirando a morte da humanidade. E Xena libertar a morte, fazendo com que a humanidade retorne à sua condição efêmera. É que na vida atual, que essas estórias pós-modernas representam, é preciso sempre ‘estar no limite’. A morte como risco permanente é uma nova forma de produção de sentido existencial. Como uma presença constante, antes experiência exclusiva de poucos místicos, se tornou agora, através da mídia, um modo de sujeição das massas na cultura contemporânea. E a vida se tornou fragmentada em vários micro-mortes simuladas, em vários choques existenciais do corpo em risco, em vários momentos finais antecipados de um único tempo irreversível. E as narrativas atuais apenas reproduzem essa realidade. Na saga do Mestre dos Sonhos, a Morte também é um personagem, é a irmã mais velha do Sonho. Ambos são perpétuos e tem outros irmãos: Destino, Desejo, Destruição, Delírio e Desespero. Os perpétuos não são deuses, mas aspectos da alma humana. Gaiman faz não apenas uma revisão mitológica (vários deuses de diferentes panteões visitam suas estórias), mas procede a uma atualização filosófica e teológica de nossos símbolos, colocando-os dentro e abaixo dessas entidades imanentes ao viver humano. A perpétua Morte, devido ao seu apelo e carisma inegáveis, ganhou suas próprias séries estórias28. A questão da ética da não-violência também é uma constante nas duas sagas. Em Xena, ela se coloca nos episódios Crusader e The 28 Morte – a festa, roteirizado e desenhado por Jill Thompson na linguagem dos Mangás. (Conrad Editora, 2004); Morte – o preço da vida, (Ed. Globo, 1994); e Morte – o grande momento da vida, Ed. Abril, 1992. Os dois últimos foram relançados pela Vertigo em 2006, em um único livro de luxo dentro da coleção completa de Sandman.

Convert, quando as heroínas encontram Najara, uma guerreira que diz lutar para o bem, mas na verdade é uma fanática religiosa, matando os que não querem seguir o (seu) caminho da luz. O encontro com a guerreira fanática serviu para definição de que, apesar de seguirem juntas, as heroínas trilham caminhos espirituais diferentes: Xena segue o Caminho do Guerreiro, orientada por Krisna; Gabrielle segue o Caminho do Amor, pregado por Eli. Eis aqui um ponto importante: o amor entre mulheres que seguem caminhos diferentes e se respeitam (seja este amor sexual ou não) é que é o grande tema e diferencial da série Xena em relação às estórias de guerreiros. A fraternidade e amor entre homens seguem outros parâmetros (é regrado e competitivo) e as mulheres geralmente não possuem histórias que transcendam a rivalidade feminina e que estabeleça parâmetros de comportamento solidário com perspectivas diferentes. Xena é uma guerreira que é inimiga de si mesma: os outros são adversários que podem se converter em aliados, são obstáculos para o seu desenvolvimento militar e espiritual. É claro que protagonista tem inimigos irreconciliáveis que representaram o mal absoluto (como a feiticeira Alti; o deus Dahak; Esperança, a filha de Gabrielle), mas, durante todo seriado, a princesa guerreira luta para converter seus adversários em aliados, uma vez que ela mesma era uma ‘convertida’. Isto é particularmente visível nos episódios que contam com a participação da guerreira Callisto (Hudson Leick). Em seus tempos de vilã, Xena saqueou e destruiu a cidade de Cirra, matando a família de uma menina chamada Callisto, que, nutrindo um ódio mortal pela princesa guerreira, passou a vida toda buscando se vingar. A vida toda, não. As várias vidas, pois Xena a mata várias vezes e ela sempre retorna, cada vez mais cruel. Porém, no episódio Fallen Angel, no início da quinta temporada, Callisto se redimi e se torna um anjo celestial depois que Xena a salva do inferno. E nos capítulos seguintes, o anjo Callisto reencarna como Eva, filha de Xena (não se sabe se com Lúcifer ou com o arcanjo Miguel). Eva foi criada por Augusto César adotando o nome de Lívia e se tornando uma guerreira romana sanguinária, sendo novamente convertida por Eli ao cristianismo e que tendo um papel importante no crepúsculo dos deuses gregos no final da série. Talvez a inversão dos papeis de protagonista e antagonista, transformando vilões do passado em heróis do presente, seja uma

características das narrativas mais recentes, que desejam representar um mundo mais complexo feito por pessoas reais, que não são inteiramente 'boas', nem 'más'. No universo das antigas narrativas, existiam heróis e vilões. Agora, as narrativas pós-modernas desejam mostrar que os conflitos são, na sua maioria, mal entendidos, ruídos, jogos projetivos entre o eu e o outro, dualidades neobarrocas do mesmo mosaico. Em Sandman, Desejo e Lúcifer são adversários de Sonho, mas agem como protagonistas de suas histórias e não inimigos a serem destruídos ou vencidos. Como reviravolta narrativa, a desconstrução dos antagonistas é visível no arco Um Jogo de Você (GAIMAN, 2006b). Um jogo de você é um jogo de identidade construída pelo outro. Essa é a ideia chave que perpassa todo trabalho de uma forma sutil e obsessiva, com todos os personagens. O antagonista deste arco narrativo é o Cuco dos Sonhos. O cuco é um pássaro que coloca seus ovos em ninhos de outras espécies, fazendo com seus filhotes se alimentem dos filhotes de seus hospedeiros. Na estória, há um (ovo de) cuco no sonho de Barbie e agora ele cresceu, se tornou sua sósia, e quer invadir outros sonhos para colocar seus ovos. Boa parte da estória trata da luta entre Barbie e o Cuco, ou entre o eu e o outro. Morpheus não considera o Cuco um vilão, apenas um ser que agiu segundo sua natureza. O mal encarnado no antagonista é interpretado como uma necessidade de sobrevivência do Outro (do Cuco). Já com Thessaly, a bruxa que tentava ajudar Barbie contra a criatura, o Mestre dos Sonhos fica bastante chateado, pois ela, ao invocar a lua para penetrar no sonho da menina, coloca em risco todo ordenamento entre a realidade e o sonhar. Thessaly, ou melhor, as três bruxas29 (uma jovem, outra de meia-idade e uma idosa) - as Moiras, representando o passado, o presente e o futuro - passam a desempenhar o papel de antagonistas do herói na saga do mestre dos sonhos. As três Moiras representam a existência inflexível do tempo acima e além da morte e do destino – quase fora da narrativa. Na narrativa, Destino e Morte são perpétuos, irmãos do Sonho, protagonista da estória. E os perpétuos não são deuses, mas aspectos da alma humana. As três bruxas surgem várias vezes nas estórias de Sandman na forma de oráculo para diferentes personagens e, no penúltimo arco, Entes Queridos (2008) se colocam acima dos perpétuos e representam 29 As três bruxas apareceram nos quadrinhos da DC comics nos anos 70 na revista de terror The Witching Hour e foram reciclados por Gaiman.

o despertar da consciência do tempo no sonhar. A partir deste ponto da narrativa, elas surgem como as verdadeiras antagonistas de Morpheus. Neste arco, várias das estórias iniciadas paralelamente convergem e se resolvem na grande narrativa da saga. Vários dos sub vilões ressurgem como instrumentos das Moiras. Eis, então, as características neobarrocas das estórias de Xena e de Sandman: a realidade vista como multiplicidade virtual dentro de um único plano de imanência, o mal entendido como um ruído subjetivo que pode ser revertido pela compreensão do outro e, principalmente, como veremos a seguir, a tríplice estrutura do tempo – as moiras - como antagonista principal da narrativa. #7 As moiras, estruturas narrativas do tempo O fundamental é que Xena é uma meta narrativa, um conjunto de narrativas dentro de narrativa aberta a interferências. Nas Mil e Uma Noites, as estórias se contem umas às outras, mas estão contidas pela ‘história real’ de Princesa Sherazadi. Em Sandman, há uma narrativa “sinfônica”, com uma sucessão de desfechos de várias narrativas iniciais. Na estória de Xena, a narrativa é ainda mais circular. Seus episódios são descontínuos e podem ser colocados em qualquer ordem, fazendo com que a narrativa geral se mantenha. Não há começo, não há clímax, não há desfecho da narrativa. É a total desconstrução da jornada do herói patriarcal e de seus modelos. Porém, a grande semelhança entre Xena e Sandman está no papel desempenhado pelas Três Moiras, que representam o passado, o presente e o futuro. As origens do mito, no entanto, diferem um pouco destas versões atuais. Em Macbeth, Shakespeare faz uma sobreposição entre dois fragmentos simbólicos distintos da mitologia grega, associando simultaneamente as três bruxas profetisas da sua estória às Moiras e à deusa Hecate. E Gaiman e os roteiristas de Xena compraram essa sobreposição dos dois mitos sem saber de sua diferença. As moiras são, na mitologia grega, as três irmãs que determinam o destino tanto dos deuses quanto dos seres humanos: Cloto (que significa ‘fiar’) que segura o fuso e tece o fio da vida; Láquesis (ou ‘sortear’) que puxa e enrola o fio tecido; Átropos (‘afastar’) que corta o fio da vida. O tear é a Roda da Fortuna: as voltas da roda posicionam os fios ora no topo, ora no fundo, explicando assim os períodos de azar ou sorte de todos. Elas não podem ser manipuladas e nada se pode fazer

para detê-las ou ganhar-lhes o favor. Já a deusa Hecate é uma divindade tríplice lunar (representa a lua nova, a minguante e a crescente), filha dos titãs Perses e Astéria, irmã dos gêmeos Ártemis (a lua cheia) e Apolo (o sol). Acreditava-se que, nas noites de lua nova, ela aparecia com sua horrível matilha de cachorros fantasmas diante dos viajantes nas encruzilhadas. Deusa da magia e da noite, Hecate era representada com um corpo e três cabeças, usando uma tiara com o crescente lunar, com tochas nas mãos e serpentes enroladas em seu pescoço. Os marinheiros consideravam-na sua padroeira e lhe rogavam boas viagens. Hecate reinava sobre três domínios: lunar, infernal e marinho. Os dois mitos, o das Moiras e da tríplice Hecate, chegaram aos nossos dias associados. E esse novo mito composto emerge como o antagonista estrutural do herói narrativo, o protagonista que luta contra as estruturas narrativas do tempo. E, através, dessas estruturas vislumbramos o sagrado na narrativa. A narrativa pós-moderna procura um narrador participante da própria narrativa. E as moiras são as únicas podem, acima dos deuses e de outras entidades, estar dentro e fora da narrativa, confrontando um protagonista que transforma seus inimigos em aliados e tem a morte como companheira. As moiras também representam as diferentes dimensões de ‘efeito de sentido’ que as narrativas têm sobre seus leitores. As narrativas têm uma dimensão emocional (causam alegria, medo, raiva, amor) que funciona a partir da noção de pertencimento territorial, da ampliação e/ou reafirmação da identidade étnica. Essa dimensão corresponde à bruxa do presente. Também têm uma dimensão psicológica em que nossa mente associa e compara as estórias simbólicas à nossa história biográfica, representando a bruxa do passado. E as narrativas possuem ainda uma dimensão sagrada em que nosso espírito sonha seus destinos – é a bruxa do futuro. Além das emoções e das tradições, essa é a dimensão sagrada das narrativas que, através da imaginação individual, nos faz sonhar e reavaliar a vida. Para Bystrina, a arte é “uma mensagem que comunica a si mesma, que tem por referência principal sua própria estrutura”. (1995, 24) Baseado nisso, pode-se dizer que as moiras representam os três níveis inter-relacionados de codificação da linguagem: a) a mídia primária (processos vitais de câmbio informacional); b) a mídia secundária (um sistema institucional de cognição coletiva); c) a mídia terciária (a “segunda realidade” para perpetuar sonhos para futuras

gerações). As três Moiras representam a existência inflexível do tempo acima e além da morte e do destino – quase fora da narrativa. E, essa tripla estrutura – a memória, a percepção e a imaginação - é o antagonista que enquadra o anti-herói pós-moderno (protagonista/narrador) em sua trágica narrativa. As moiras são as Tecelãs da Intriga (GOMES, 2012). # 8 Heroína transmidiática Outro aspecto pioneiro, importante para ressaltar do seriado da princesa guerreira é seu caráter transmidiático. O termo ‘narrativa transmidiática’ foi elaborado por Henry Jenkins (2008), levando em conta três elementos: a) a participação da audiência na narrativa; b) a sugestão de que o universo ficcional é uma realidade; c) a presença dos principais personagens da narrativa em diferentes suportes. Segundo Jenkins, desde meados dos anos 90 já é possível identificar produções de narrativas transmidiáticas na indústria de entretenimento norte-americana. Geralmente, a história é introduzida por uma mídia (um filme, por exemplo) e incrementada através de outras (séries de TV, sites com diversas funções, blogs, games, quadrinhos, animações, romances), ampliando seu desenvolvimento narrativo e expandindo seu universo, permitindo não apenas a criação de novos conflitos, novas estórias e personagens, como também novas maneiras de se consumir e interagir com esse universo com a participação interativa do público através de blogs, sites, etc. Matrix (franquia que, além da trilogia do cinema, inclui também animações, estórias em quadrinhos); A bruxa de Blair (vídeo imitando uma gravação caseira associada a documentários falsos de modo a construir um universo ficcional aparentemente verdadeiro); e Lost, que utilizou vários recursos: mini vídeos para celular com estórias rápidas que não passam na TV, perfis dos personagens na internet, podcasts (arquivos de áudio) semanais discutindo os episódios e entrevistando os atores, diretores, produtores e roteiristas da série, a lostpédia (uma enciclopédia wiki criada por fãs), e um site falso da empresa aérea Oceanic Airlines, supostamente responsável pelo desaparecimento dos personagens após um acidente. Assim, não se trata apenas da narrativa literária adaptada em outros suportes ou de enfatizar seus personagens (como na TV), mas sim de criar e gerir um universo de várias estórias em que diversos personagens interagem segundo as regras próprias do universo, através de livros, filmes, quadrinhos, programas de TV, sites de internet, games.

E seriado Xena, a princesa guerreira, foi um dos pioneiros nessa tendência de transmidiatização atual, principalmente no que diz respeito a produção de outras estórias do universo narrativo por fãs em outras mídias: quadrinhos, literatura, figurino, performances, fãs clubes, etc. Também é importante ressaltar que essa transmidiatização foi espontânea e inesperada, em virtude do conteúdo da narrativa e não do planejamento da utilização de recursos tecnológicos interativos. #9 A Jornada do anti-herói Se nos perguntarmos se Xena atende aos esquemas narrativos das jornadas do herói ou da heroína, chegaremos facilmente a resposta que não. O contrário: Xena é carnavalização feminista desses esquemas, que devora tudo em sua festa: outras estórias, personagens reais e fictícios, universos mitológicos, gêneros literários ... Como protagonista, Xena pode ser classificada como uma 'anti-heroína', embora sem vulnerabilidade cômica característica da maioria dos anti-heróis. Ela se assemelha aos protagonistas trágicos, porque desafia os deuses (e o mundo masculino), sofrendo um destino de sofrimento e expiação. Talvez como todas as mulheres. Por outro lado, Xena conquista o objetivo de todos os heróis épicos, encontra a imortalidade do amor verdadeiro. E um amor em que o par romântico, não é um mero objeto de desejo, mas sim outra protagonista.

REFERÊNCIAS BAITELLO JR., N. A serpente, a maçã e o holograma – esboços para uma teoria da mídia. São Paulo: Editora Paulus, 2010. BARTHES, Roland; GREIMAS, A. J.; ECO, Umberto; e outros. Análise Estrutural da Narrativa. Petrópolis: Vozes, 2008. BYSTRINA, I. Tópicos de Semiótica da Cultura. São Paulo: PUC/SP, 1995. CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995. _________ O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990. GOMES, Marcelo Bolshaw. Fundamentos de Metateatro. Lisboa: Biblioteca Online de Ciências da Comunicação (BOCC), 2009.< http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-gomesmetateatro.pdf > _______Comunicação e Hermenêutica – apontamentos para uma teoria narrativa da mídia. Revista Comunicação Midiática, v.7, n.2, p.26-46, maio/ago. 2012. JENKINS, Henry, Cultura da Convergência, trad. de Susana Alexandria, 1ª edição. São Paulo: Editora Aleph, 2008. LÁZARO, André. Amor: do mito ao mercado. Petrópolis. RJ: Vozes, 1996. MARTINEZ, Mônica. Jornada do herói – a estrutura mítica na construção de histórias de vida em jornalismo. São Paulo: Annablume, 2008. Xena: Warrior Princess/ Xena: A Princesa Guerreira (BR). Formato: Seriado; Gênero: Drama, Ação, Aventura, Sobrenatural, Mitologia; Duração: 41-42 minutos (por episódio); Criador: Robert Tapert, John Schulian; País de origem: Estados Unidos/ Nova Zelândia; Idioma original: Inglês; Produtor(es) Sam Raimi (executivo); R. J. Stewart (desenvolvedor); Elenco: Lucy Lawless, Renée O'Connor, Ted Raimi, Kevin Tod Smith, Hudson Leick, Adrienne Wilkinson, Alexandra Tydings; Tema de abertura: Joseph LoDuca; Emissora de televisão original: USA Network; Formato de exibição: NTSC; 480i (SDTV); Transmissão original: 4 de setembro de 1995 - 18 de junho de 2001; № de temporadas: 06; № de episódios: 134.

Lost Girls – Um discurso erótico feminino?30 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo estudar a possibilidade de um discurso erótico feminino, através da análise interpretativa da História em Quadrinhos Lost Girls (2007), escrita por Alan Moore e ilustrada por Melinda Gebbie. Através da metodologia hermenêutica narrativa, o texto discute ainda o conceito de erotismo em Bataille e Pasolini, a representação do feminino no universo das HQs e faz uma análise discursiva e semiótica dos elementos simbólicos da narrativa. PALAVRAS-CHAVE: Erotismo; Análise do discurso; Histórias em Quadrinhos.

1. Um objeto erótico! Desenhada por Melinda Gebbie (atual esposa do roteirista Alan Moore) em um estilo Art Noveau romântico, a série Lost Girls (2007) conta o inusitado encontro de três conhecidas personagens femininas – Wendy (Potter), de Peter Pan; Alice (Lady Fairchild), de Alice no País das Maravilhas; e Dorothy (Srta. Gale), de O Mágico de Oz - todas adultas, mas com idades diferentes, em um hotel austríaco, no início da 1ª Guerra Mundial. Lá, elas confessam entre si as suas preferências e vivências sexuais em uma história cheia de cenas fortes com pedofilia e fetichismo. O lançamento da obra nos Estados Unidos foi alvo dos críticos mais radicais e moralistas por causa do conteúdo sexual da história, envolvendo personagens de livros infantis e até mesmo alguns lojistas recusaram-se a revendê-la. Os três livros de luxo (a narrativa não foi publicada em forma de revistas) formam um objeto erótico em si - que, além de ter a mesma utilidade da literatura do gênero, - tem também personagens complexos, desenhos artísticos, texto filosófico em que dialoga com as ideias de Lacan (1966) e Bataille (1988). O próprio Moore, no documentário The Mindscape of Alan Moore (2005), afirma que não há distinção entre erotismo e pornografia e que sua intenção com Lost Girls foi escrever uma narrativa erótica-pornográfica inteligente em que o aspecto sexual fosse acompanhado de elementos de outros gêneros narrativos. Porém, a arte de Melinda Gebbies distanciou muito Lost Girls dos quadrinhos pornográficos clássicos - como Guido Crepax (2007) e Milo Manara (2004, 2006, 2008) – e acrescentou vários elementos simbólicos do universo erótico feminino.

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Publicado por Nona Arte: Revista Brasileira de Pesquisas em Histórias em Quadrinhos. v.3, n.1 p.35-58, 2014.

Em Lost Girls, tudo é simétrico e regular (cada volume tem dez capítulos e cada capítulo tem oito páginas). A regularidade formal, no entanto, apenas enquadra o transbordamento erótico, um crescimento gradativo da obscenidade, em que novos elementos pervertidos e depravados são inseridos progressivamente, sem pressa, obedecendo a um ritmo lento e fatal, a uma cadência calma e inevitável. Como no Bolero de Ravel, ou melhor, como na Sagração da Primavera de Stravinsky, explicitamente homenageada no capítulo X. No primeiro volume da série, Meninas Crescidas, as protagonistas se conhecem no hotel: Lady Alice Fairchild, aristocrata inglesa, escritora, rica, lésbica e viciada em ópio; Srta. Dorothy Gale, jovem norte-americana, criada em uma fazenda no interior do Kansas; e a Sra. Wendy Potter, dona de casa, acompanhada de seu marido, um enfadonho engenheiro naval. Após vários jogos de sedução, as protagonistas contam, para se excitar mutuamente, como foram suas primeiras experiências sexuais. O primeiro livro chega ao ápice com o balé de Stravinsky. Nos livros seguintes, as narrativas sobre o passado das protagonistas continuam e se alternam – seguindo o mesmo padrão crescente e gradativo. Após ser molestada por um amigo de seu pai (o coelho), Alice vai para um orfanato feminino, onde forma um harém (O Jardim de Flores Vivas) e é escolhida para adoção pela Sra. Redman (a rainha de copas), que a vicia em ópio e a prostitui de diferentes modos. Alice, cansada da rotina de orgias e drogas, rebela-se contra a rainha e é internada em uma clínica psiquiátrica. Dorothy conta suas aventuras rurais com os empregados da fazenda do Kansas: o espantalho, com o qual aprende a usar os homens (capítulo XIV); o leão covarde (capítulo XVIII), a quem ensina a ter confiança com as mulheres; e o homem de lata (capítulo XXIV), que a acorrenta e a faz masturbar um jumento enquanto faz sexo anal. Dorothy confessa ainda que transava com o próprio pai biológico, tendo sido expulsa da fazenda pela madrasta. Wendy narra sua experiência sexual (e dos seus dois irmãos) com Peter, um garoto de rua; os ciúmes e a conquista da incestuosa irmã, Annabel; o medo e o fascínio exercido pelo capitão gancho, um odioso voyeur que prostituía e estuprava as crianças pobres do parque. 2. Um discurso erótico?

Existe um discurso erótico? Ou o verdadeiro erotismo não se deixa aprisionar pela linguagem? Qual a diferença entre erotismo e pornografia? E, se há realmente um discurso erótico, ou melhor: se existem diferentes discursos eróticos segundo o lugar e a época, como caracterizá-los? Será possível distinguir o discurso erótico feminino do masculino? Erotismo deriva do nome de Eros, o deus grego do amor, Cupido para os romanos, associado à paixão e ao desejo intenso. Pornografia também deriva do grego pórne, “prostituta”; grafé, representação. Ela é representação, por quaisquer meios, de cenas ou objetos obscenos destinados a serem apresentados a um público e também expor práticas sexuais diversas, com o fim de instigar a libido do observador. Quase sempre a pornografia assume um caráter comercial, seja para os próprios modelos, seja para os empresários do setor. Enquanto o erotismo, em si, existe sem ser comercializado e geralmente é gratuito, em vários sentidos. Portanto, não se trata de bom gosto, da pornografia ser grosseira e vulgar em oposição à estética erótica, requintada e sutil: é a indústria cultural que prostitui o erotismo transformando-o em pornografia. Desta primeira constatação nascem duas posições extremadas que evitamos: a primeira consiste em acreditar que não existe um discurso erótico puro: tudo que é enunciado é (ou pode ser) pornográfico. A segunda posição é de que não existe distinção possível entre os discursos erótico e pornográfico, uma vez que a comercialização do discurso é uma questão externa à linguagem. Ambas se equivalem, pois negam a autonomia discursiva do ato erótico, colocando-o em uma posição transcendente. Pode parecer que esse valor extralinguístico deseja supervalorizar o Erotismo, mas, na verdade, trata apenas de escondê-lo e de silenciá-lo. O que define o erotismo em si é “a transgressão de um interdito” (BATAILLE, 1988). O fruto proibido é sempre o mais desejado e o segredo erótico é ocultar a sexualidade e simultaneamente sugerir seu revelar sensual. É um duplo movimento de esconder sensações e descobrir emoções e sentimentos – que não existe nos atos obscenos, no caráter apelativo e vulgar do pornográfico. O erotismo é um aspecto da subjetividade do ser humano oposta à sexualidade animal livre de restrições ou interdições. O homem, no processo histórico de construção da máquina social, foi simultaneamente reprimindo a

sexualidade e a consciência da própria morte, dando origem ao erotismo. Somos seres descontínuos, na medida em que somos individuais, diferentes e sós. E essa diferença jamais pode ser completamente suprimida; apesar de todos os esforços de comunicação, há um abismo descontínuo entre Eu e o Outro. Somos descontínuos, vivemos e morremos sozinhos, mas trazemos em nós o que Bataille chama de “nostalgia da continuidade perdida”. No entanto, ao mesmo tempo em que busca a experiência da continuidade, o homem também a teme, pois ela é a morte – o aniquilamento da individualidade descontínua. Baseado nessa relação dialética entre a repressão sexual e o medo da morte, Bataille dá ao erotismo e à violência uma dimensão espiritual, como uma forma de ser além de si mesmo e transcendendo a descontinuidade: (...) o Erotismo dos corpos, o Erotismo dos corações e, finalmente, o Erotismo sagrado. Falarei dessas três formas a fim de deixar bem claro que nelas o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. (BATAILLE, 1988, 56)

Para compreender Bataille em sua totalidade é preciso partir de sua ideia de uma ‘economia de consumo’ primitiva (oposta às concepções econômicas tradicionais baseadas na primazia da produção) e na adesão à tese central de Um Ensaio sobre a Dádiva (MAUSS, 2008) o presentear e sua retribuição estão na origem das relações dos homens entre si e com o Divino. Em alguns momentos, a noção de ‘Erótico’ de Bataille lembra a de ‘Mana’ de Mauss; isto é: de energia pessoal que fica impregnada em objetos e lugares e a de ‘áurea do objeto artístico’ antes da reprodutividade técnica de Benjamim (1994). Nesta perspectiva, a uniformização industrial não apenas dessacralizou a arte, libertando-a de sua função religiosa, ele também ‘deserotizou’ os corpos e seus objetos, privando-os de suas energias singulares originais. Antes da contracultura, o corpo e o erotismo eram focos de resistência ao poder, mas a sociedade de consumo os prostituiu (ou transformou-os em mercadorias). O sexo não é mais um escândalo, sua interdição não é mais tabu e, portanto, sua transgressão não é mais uma libertação – como desejava Pasolini.

Pier Paolo Pasolini (2000), em seu cinema-poesia, acreditava poder retratar uma sexualidade de tradição clássica homoerótica, que remonta aos poetas latinos e gregos da antiguidade, para subverter “as convenções morais da burguesia”; valorizava a liberdade sexual e a sensualidade sem culpa de um mundo popular, burlesco, não subjugado pelo puritanismo burguês. Ironicamente, o eros virou thanatus e, a partir dos anos 70, o cinema de Pasolini estimulou a produção de filmes pornográficos e sua própria obra foi vista de forma pornográfica. O erotismo revolucionário do cineasta foi absorvido pelo sistema. Na perspectiva de Pasolini, aonde o fascismo histórico fracassou em realizar, o poder conjugado do mercado e das mídias opera docemente (na servidão voluntária) através da domesticação do erotismo: um verdadeiro “genocídio cultural”, no qual o povo desaparece em uma massa indiferenciada de consumidores submissos e alienados (PASOLINI, 183, p. 53-58). Mas será que o erotismo (como expressão da sexualidade livre) foi completamente domesticado pela mídia (e pela produção em escala industrial de imagens obscenas)? Ou será que o Eros libidinoso ainda vaza pelas brechas do sistema pornográfico? Em nossa perspectiva, o erotismo foi, é e será discursivo, não apenas por motivos comerciais, mas sobretudo por motivos sexuais. O erótico se inscreve na linguagem para nos excitar. Por outro lado, o discurso erótico é semi silencioso e quase invisível, avesso às palavras e à representação visual. Há até quem advogue que é a representação visual que torna o erotismo pornográfico. E no que diz respeito a representação visual (legítima ou não) do erótico e, principalmente, às histórias pornográficas em quadrinhos, há um universo inteiro a ser pesquisado. A proposta de Lost Girls, no entanto, é muito mais complexa, bastante recente e deriva do universo fantástico feminino dos contos de fadas em um contexto contemporâneo; principalmente no sentido de fusão de gêneros narrativos, com momentos trágicos, cômicos, filosóficos – combinados à narrativa erótica. E um tema de discussão constante em Lost Girls é justamente sobre a questão do poder das mulheres de contarem a própria história, em que elas sejam narradoras e protagonistas de seus desafios específicos. A possibilidade de um discurso erótico tipicamente feminino depende da capacidade das mulheres se tornarem sujeitas históricas de suas narrativas biográficas.

3. A erótica da heroína ou a heroína erótica? A psicóloga Maureen Murdock (1990) ficou bastante decepcionada quando questionou Joseph Campbell (1995) sobre que aspectos a Jornada da Heroína incorporava da Jornada do Herói. Em toda tradição mitológica, a mulher é. Tudo o que ela tem que fazer é conscientizar-se que está no lugar onde as pessoas estão tentando chegar. Quando uma mulher percebe esta característica maravilhosa, ela não fica confusa com a noção de ser um pseudo macho (MURDOCK, 1990, p. 02)

A ‘Jornada do Herói’ como processo iniciático é uma viagem eminentemente masculina, refletindo um contexto cultural patriarcal. ‘Iniciação’ é um rito de passagem, em que um jovem torna-se membro adulto de uma determinada comunidade. Nas lendas, os heróis são sempre homens, enfrentando situações masculinas: lutando pela justiça e pela verdade. As mulheres, nessas estórias, correspondem ao Sagrado Feminino ou ‘anima narrativa’, isto é, à representação projetada dos valores femininos do narrador (mediação entre autor e leitor) no interior da narrativa. Com isso, elas, ou são meras coadjuvantes, sequestradas pelo dragão e resgatadas para o casamento alquímico final; e/ou então se associam com o mal e seus vilões, dificultando a vida do herói. Há também estórias em que a mulher é a protagonista em um universo com valores masculinos, como a estória de Joana D’Arc, por exemplo. Por isso, contar uma estória iniciática (uma jornada heroica) em que a mulher e os valores femininos sejam os protagonistas e o aspecto cognitivo masculino seja minimizado sempre é um desafio nas próprias estórias. Murdock não entendeu a resposta de Campbell, considerando-a machista, no sentido, de excluir as mulheres da jornada iniciática do autoconhecimento. Ou seja: as meninas não jogam esse jogo simbólico narrativo da transformação espiritual através de aventuras heroicas. O episódio motivou a psicóloga na pesquisa de uma jornada mística feminina, com características próprias. Murdock pensa que o foco do desenvolvimento espiritual feminino é o de curar a divisão interna entre a mulher e sua natureza feminina. E elaborou uma estrutura circular de dez etapas, representando o processo de desenvolvimento espiritual feminino.

A JORNADA DA HEROÍNA Formação do feminino; Identificação com masculino e reunião de aliados; Caminho das provações; Encontrando o sucesso; Despertando os sentimentos de morte espiritual; Iniciação e descida à deusa; Apelo urgente para se reconectar com o feminino; Curando a divisão entre mãe e filha; Curando o masculino ferido; Integração do masculino e feminino.

A pesquisadora Mônica Martinez (2008, 138-143) interpretou a resposta de Campbell de modo diferente. Para ela, o que Campbell (que estudou várias lendas de mitos com protagonistas femininos) quis dizer foi que a mulher não deve se masculinizar para trilhar a jornada iniciática de um ponto de vista externo. Segundo Martinez, ‘a mulher já é’, significa que a narrativa feminina é mais interior que exterior, lugar em que os homens estão. Foi, digamos assim, um infeliz galanteio antifeminista: As mulheres são; os homens estão. Martinez quer adaptar a Jornada do Herói de Campbell às questões específicas da mulher (mais profundas e complexas que as masculinas); Murdock prefere formular o próprio processo de desenvolvimento feminino: a Jornada da Heroína. As representações femininas dentro do universo das histórias em quadrinhos, um universo tipicamente masculino, sempre foi algo fora da realidade das mulheres. Elas eram namoradas, secretárias, amigas dos heróis; sequestradas pelo vilão e salvas pelo protagonista. Em 1941, no entanto, surge a Mulher-Maravilha de William Marston na revista All Star Comics n. 8, a primeira heroína a protagonizar a própria história com sucesso comercial. A personagem, no entanto, forjada no período da segunda grande guerra, tinha um traje sensual estilizado a partir da bandeira dos EUA, com acessórios alusivos a práticas sadomasoquistas, como os braceletes indestrutíveis, forjados a partir dos grilhões que mantinham as amazonas escravas; e o laço mágico obriga a vítima a obedecer às suas ordens. Segundo Silva (2011, p. 9) embora a personagem tenha se proposto a defender uma visão progressista sobre a mulher (que deixa ser uma vítima do vilão e um prêmio do herói), ela também reflete a ideologia de vínculo entre mulher e a perversão sexual. O mesmo padrão sexy patriótico da Mulher Maravilha inspirou várias superheroínas, mas, a partir dos anos 60, novas personagens femininas, com

outras características, começaram a aparecer nas histórias em quadrinhos. Elektra (1986), de Frank Miller, por exemplo. Porém, mesmo quebrando estereótipos e chegando mais próximo de uma protagonista feminina semelhante à realidade, essas novas personagens não passaram de novas representações masculinas da mulher moderna (BARCELLOS, p. 7; SIQUEIRA, p. 195-196). Porém, foi necessária a chegada da arte sequencial japonesa (Mangás e Animês) ao ocidente para que as estórias de personagens femininas se tornassem realmente narrativas femininas, em que finalmente o público feminino possa se reconhecer tanto em ‘jornadas de heroínas’ (estórias juvenis de aventura31), como também nos quadrinhos eróticos, os ‘Hentai’. Por outro lado, a chegada dos mangás ao cenário dos quadrinhos também corresponde ao aparecimento de um novo público feminino globalizado interessado em consumir narrativas que consolidem sua identidade. 4. Lost Girls Observou-se aqui que as representações femininas nas histórias em quadrinhos não são criação de mulheres, mas sim projeções masculinas da mulher. E se as mulheres não se reconhecem nesses personagens estereotipados em relação ao universo das aventuras de super-heróis, muito menos se identificam quando se trata de quadrinhos eróticos, em que elas são geralmente representadas de formas submissas. Ressaltou-se inclusive a interpretação de que toda representação visual do erotismo pode ser considerada pornográfica e vulgar por ser demasiadamente explícita. A própria história Lost Girls, sob esse ponto de vista, é uma transgressão moral e artística. Uma das principais características femininas da narrativa é a circularidade discursiva. O discurso masculino (erótico ou não) tende a ser linear: começo, meio e fim. Ou pior, a escritura masculina se assemelha ao seu orgasmo: “um eterno introduzir com finais abruptos”. Em contraponto, a escritura feminina e seu orgasmo não se baseiam na lógica do ‘acumula, acumula e gasta’, mas no fluxo ininterrupto e progressivo do consumo. Em outras palavras: o discurso não enfatiza nem começo nem fim da narrativa, é um discurso circular ou elíptico que se inicia onde encerra sua enunciação. Em Lost Girls, a narrativa começa e termina 31

Como os animes Nausicaä do Vale do Vento (1984); e a Princesa Mononoke (Mononoke Hime, 1997), ambos de Hayao Miyazaki, produzido pelo Studio Ghibli.

com o espelho de Alice. A moldura do espelho enquadra os Capítulos I e XXX, sugerindo que toda a narrativa é contada indiretamente pelos reflexos do Espelho. E há diversas menções a essa dupla representação em vários momentos da narrativa. Na sexta página do primeiro capítulo, por exemplo, quando Monsieur Rougeur comenta a qualidade da literatura erótica de Lady Fairchild, sob o codinome de Hippolyte: - De fato, como perito em tal literatura, posso dizer que nas suas nobres mãos, a ficção o próprio espelho da realidade ... onde memoráveis personagens idealizadas refletem nossas verdadeiras personalidades. - Humm, estou lisonjeada, Monsieur Rougeur” – responde Alice – “embora não aprove sua concepção de ficção. Eu prefiro a concepção de Platão ... o ideal é a questão; o mundo além do espelho da ficção, esse é o mundo real ... e somos apenas a mais tênue das reflexões que empalidece sob o vidro.

O Espelho está presente também no final, no capítulo XXX (O espelho), quando as três protagonistas finalmente vão fugir do hotel antes da chegada dos soldados e Alice decide deixar o seu espelho. Compara-se o espelho à imaginação, que aprisiona e liberta, que será destruída pela violência dos homens. “Minha querida, coisas bonitas e originais podem ser destruídas. A beleza e a imaginação, não. Elas florescem até em tempos de guerra. Quanto ao meu espelho ... Eu outrora pensava que parte de mim estava presa nele, mas agora nós a resgatamos. Hoje ele é apenas uma estimada antiguidade. Deixe-me dizer adeus. Depois vamos embora.” (e beija o espelho)

De fato, os soldados alemães invadem o hotel e destroem o espelho de Alice e a narrativa (a imaginação) continua por mais três páginas completas sem o enquadramento da moldura, dando a entender que os autores preferiram não terminar a estória com ato de violência, mas sim com sua crítica dentro do enredo principal. A violência destrói apenas a representação duplicada. Também há tripla representação ou dupla representação interna à narrativa através da presença de um livro branco de contos eróticos escrito anonimamente por Monsieur Rougeur (e assinado por diferentes autores, cujo estilo pretende imitar) do qual há um exemplar em cada quarto. Aliás, essa é uma das características clássicas do discurso erótico, a presença de breves estórias eróticas no interior da narrativa principal com o objetivo de excitar seus personagens, e, consequentemente, excitar os leitores finais em uma dupla pedagogia

sexual. Nas histórias em quadrinhos, cuja linguagem permite o desenvolvimento de duas ou mais narrativas em paralelo ao mesmo tempo, esse recurso é particularmente possível. E Moore o explora bastante. As lembranças confessadas das três protagonistas formam narrativas paralelas que desempenham então o mesmo papel das estórias eróticas do livro branco: excitá-las (e excitar-nos também) em suas orgias, cada vez mais obscenas e transgressoras. No Capítulo III, Sombras Ausentes, enquanto Sra. Wendy Potter lê um conto – Vênus e Tannahauser – em que os personagens se masturbam com velas, gerando desejos inconfessáveis e fantasias visíveis através das sombras. Ou ainda, no Capítulo XXII, em que Monsieur Rougeur lê um conto erótico em que uma família completa (pai, mãe, filho e filha) faz sexo entre si, embalando uma verdadeira orgia entre os hospedes devassos do hotel. Ele, inclusive, enfatiza de que o livro trata de incestos imaginários, cuja função é apenas excitar seus leitores. Além do livro branco, que aparece em vários outros capítulos, outro recurso erótico narrativo é o do contraponto entre texto e imagem, entre a voz que seduz e a imaginação seduzida. No Capítulo IV, Papoula, enquanto Alice seduz Dorothy e a inicia no ópio em um quarto, Wendy e o marido escutam o acontecido no quarto vizinho. E no seguinte, Da noite à alvorada, descobrimos o aconteceu na imaginação e na realidade de Wendy no outro quarto. Outra característica feminina de Lost Girls é o estilo Art Nouveau da ilustradora, uma “tolice caprichosa”, definida pelo Sr. Potter na própria narrativa, oposta ao figurativo da perspectiva realista, surge também de forma decorativa, nos detalhes ilustrativos e no acabamento refinado. O erotismo masculino é misógino e sádico. Se ‘poder’ é “a capacidade de impor sua vontade aos outros”. Pode-se dizer que há o poder de coação, em que a vontade é imposta através da força; o poder de persuasão, em que há o convencimento racional (incluindo aí a chantagem e o aliciamento por dinheiro e drogas); e o poder da sedução, em que o desejo domina o outro, submetendo-o. No erotismo patriarcal, há um forte apelo pela submissão pela força; no erotismo feminino, é a sedução que força os sujeitos desejantes a realizarem a vontade do dominador. Mesmo quando há violência e submissão, elas são alegóricas e teatrais. “Você gosta que eu o obrigue” – sussurra o Capitão Rolf Bauer (amante de Dorothy) para (Sr.) Potter (marido de Wendy), enquanto força gentilmente a penetração anal, no capítulo XIII, em que eles bebem e transam, inspirados por um conto do livro branco sobre o caso de Dorian Gray com Lord Henry Wooton.

E, no capítulo XXIII, em que as três protagonistas torturam Monsieur Rougeur para que ele confesse a autoria dos contos do livro branco; tal violência é apenas uma encenação delicada da verdadeira submissão sexual imposta contra vontade. A operação, em que o prazer torturante substitui a dor física, se repete para fazer Dorothy confessar que transava com o pai, no capítulo XXVIII, O homem atrás da cortina. Assim, é ao poder da sedução feminina que o erotismo de Lost Girls rende sua homenagem. E o que observamos é a excitação através da corrupção da inocência, do sentimento de vergonha, da lenta decomposição das resistências morais. No Capítulo XII, Sacudindo e despertando, Alice não apenas seduz, mas também corrompe moralmente Wendy com suas joias, fazendo-a viver os sete pecados capitais descritos no livro branco. Alice também prostitui e vicia seus amantes, principalmente através do ópio e do láudano, minando-lhes o amor próprio e a dignidade. O papel excitante da inocência pode ser visto em vários momentos e níveis do texto: os personagens saírem de fábulas infantis, nas primeiras experiências sexuais contadas pelas protagonistas, na sedução dos parceiros, mas, principalmente de forma perversa com o Sr. Potter e com o marido da rainha-madrasta (Sra. Redman) nas memórias de Alice, que são sucessivamente traídos e enganados com grande prazer. O mito de que a homossexualidade sáfica, a relação entre mulheres nãomasculinizadas, é uma relação a três, incluindo ainda, além das amantes principais, um ‘voyeur invisível’ – um homem a quem as mulheres querem ferir e/ou excitar? Não, e afinadas aos protestos femininos a essa fantasia machista, há duas passagens em que a narrativa repreende veementemente o voyeurismo não autorizado. O primeiro, no capítulo VI, Rainhas Unidas, onde Wendy observa Alice e Dorothy fazendo sexo oral recíproco a céu aberto. E o outro, no capítulo XXVII, quando a própria Wendy vence o próprio medo da violência, engolindo o Capitão Gancho (o voyeur assustador que prostituía as crianças pobres do parque) pela vagina como se fosse um crocodilo, quando esse ia lhe estuprar: “Eu ... eu mostrei minha boceta despida e perguntei se não achava que ela era muito cabeluda e muito velha para ele? Se meios seios não eram demais para alguém que preferia peitinhos achatados e bocetinhas lisinhas? Alguém que tinha pavor de mulheres adultas, e que pensava que seria subjugado e engolido por elas? Eu remexi meus quadris, abrindo minha vagina peluda com meus dedos, urrando para ele. ‘Crianças não

sabem que você inadequado. Você pode fingir que ainda é jovem, como elas, e que o relógio não está fazendo tic-tac. É por isso que você fode as crianças e tinge seu cabelo. Você tem medo de mulheres. E medo de envelhecer.’”

Contudo, além do texto e dos esquemas de gênero e dos modelos de transgressão e contra transgressão sexual, há, na narrativa de Moore, momentos de erotismo puro e inexplicável, ‘silêncios visuais’, como no capítulo XX, Zás-trás, em que uma orgia das protagonistas se entrelaça à viagem de ópio, combinando o êxtase poético do texto aos delírios visuais da narrativa. Ou no capítulo VII (O tornado?), o primeiro orgasmo de Dorothy, durante um ciclone em sua fazenda em Kansas. 5. Conclusão Ressaltaram-se aqui vários elementos discursivos eróticos femininos na narrativa de Lost Girls: a simetria matemática da arte, a circularidade narrativa, a múltipla representação (uma estória dentro de outras), a sedução e a submissão voluntária como formas de poder, a inocência como fator erótico, o ritmo narrativo constante, gradativo e crescente, sempre encerrada por apoteoses de êxtase. Tais elementos apontam para intenção não declarada de produzir um erotismo mais refinado, estético e... feminino. Porém, o mais importante é o deslocamento do foco narrativo das representações masculinas do feminino, tanto nas protagonistas da ação narrativa como também na narração da estória. Pasolini, no início dos anos 70, renegou seus filmes eróticos, afirmando que eles foram apropriados erroneamente pela indústria cultural, que os classificava como pornográficos. Diante da absorção conservadora das mídias na cultura de massas, que transformou o erotismo em pornografia, Pasolini, trocou a representação idealizada do sexo clássico por uma visão denunciadora de sua violência. É quando Pasolini filmará sua obra mais radical: Saló ou os 120 dias de Sodoma (1975), superando qualquer coisa que tenha sido feita antes dele em termos de transgressão estética e moral32. 32

“Alegoria sinistra do fetichismo da sociedade de consumo”, Saló teve seu equivalente e clímax com o assassinato de Pasolini, no mesmo ano de 1975, e contribuiu para fazer do cineasta uma verdadeira lenda negra - transpondo o mito para cotidiano em imagens como em seus filmes, a do anjo do mal, a do herege perseguido, a do último grande artista maldito, sempre colocando em crise e subvertendo as concepções de mundo dominantes, sempre dando visibilidade ao não-dito das representações convencionais, sempre fazer surgir aquilo que foi repelido do consenso social e cultural - sem nada ceder, jamais, sobre a sua singularidade.

Baseado na obra do Marquês de Sade, 120 dias de Sodoma ou escola de libertinagem (2008), o filme conta a história de quatro homens que compram meninos e meninas para, enquanto esperam a queda iminente do regime fascista que os sustentam na pequena república de Saló, praticam o que de pior um ser humano pode fazer com outro. Em um suntuoso castelo, cercadas de seguranças armados e empregados, prostitutas contam séries de estórias eróticas que são encenadas pelos jovens escravos sexuais para o deleite dos quatro senhores: há o ciclo de manias, o de merda, o do sangue... Porém, mais do que as torturas físicas o que chama atenção são as humilhações psicológicas, os constrangimentos morais, o sofrimento de serem vítimas inocentes e indefesas, objetos de crueldade por simples prazer e diversão. Pasolini promove uma inversão notável da intenção do texto original: coloca o sujeito-narrador na situação de vítima e não na de agressor. O filme não nos incita à violência (como normalmente fazem os filmes violentos da cultura de massas), mas sim aos sentimentos de vergonha e culpa. Vários paralelos podem ser traçados em uma analogia entre Lost Girls e Saló. Ambos trabalhos abordam a questão do sexo e da violência, dentro de um intervalo de tempo transitório. Porém, enquanto Sade/Pasolini estabelecem um período de tempo limitado e decrescente de suspensão do afeto para livre prática da violência; Moore estabelece uma duração do prazer antes da guerra. O sexo é colocado como uma resposta feminina à violência do mundo masculino, antes da invasão militar. O paralelo mais importante, no entanto, é que assim como Pasolini reinterpretou o Marques de Sade de modo masoquista, deslocando o foco narrativo do agressor para a vítima – é possível observar no trabalho de Moore/Gebbies, um deslocamento do agente sexual ativo para protagonistas passivas. O que nos excita nas estórias não é apenas o que elas fazem, mas também o que é feito com elas. As protagonistas são senhoras da ação e prisioneiras do seu contexto e do seu passado, ao mesmo tempo. Trata-se, portanto, de uma nova forma de representação do feminino em narrativas gráficas. 6. O autor O mais importante roteirista de histórias em quadrinhos da atualidade – tanto em quantidade como em qualidade e diversidade33 – é mesmo Alan Moore, o bruxo de Northampton. 33

Para conhecer toda produção de Alan Moore, acesse o site de fã clube no exterior: .

Profissionalmente, não é um exagero dizer que Moore inventou sua própria história, trabalhando nas duas grandes editoras – DC Comics e Marvel Comics – e brigando com ambas por um sistema mais justo de reconhecimento e de remuneração de direitos autorais. Moore escreveu histórias sofisticadas tanto para heróis tradicionais e criados por outros autores (Batman34, Superman35, Monstro do Pântano36, entre outros37) como também criando narrativas novas com seus próprios personagens. Aliás, como também criando suas próprias histórias com personagens de outras narrativas, oriundos da literatura, como é o caso da Liga Extraordinária. No final do século XIX a rainha Vitória nomeia, para combater um perigoso inimigo, um gênio do crime que deseja conquistar o planeta uma legião de grandes nomes da época: Allan Quatermain (As Minas do Rei Salomão, de H. Rider Hagard), Mina Harker (Drácula, de Bram Stoker), Henry Jekyll e Edward Hyde (O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson), Rodney Skinner (O Homem Invisível, de H.G. Wells), Capitão Nemo (20.000 Léguas Submarinas, de Júlio Verne), Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde), Tom Sawyer (As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain) e professor James Moriarty (Memórias de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle). Mas, a adaptação da história para o cinema (NORRINGTON, 2003) foi um fracasso de crítica e de público. Motivo: os detalhes de 34

Batman foi criado por Bob Kane. Moore escreveu duas estórias importantes do homem morcego: Barro mortal, desenho John Byrne, na Batman Annual 11, jul/1987 (MOORE et al., 2006, 232); e a A piada mortal, desenho de Brian Bolland, em Batman: The killing Joke, jul/1998 (MOORE et al, 2006, 256). 35

Superman foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster. Moore escreveu: Para o homem que tem tudo, desenhos de Dave Gibbons, na Superman anual 11, jan/1985 (2006, 9); A Linha da Selva, com desenhos de Rick Veitch, na DC Comics Presents, n. 85 Set/1985 (MOORE et al., 2006, 128); e O que aconteceu com o homem de aço? desenhos Curt Swan & Murphy Anderson na Superman 423 e 583, em set/1986 (MOORE et al, 2006, 164). 36

Monstro do Pântano foi criado por Len Wein e Berni Wrightson. Moore assumiu a série em 1984, na edição #20 e, em oito números, transformou um estrondoso fracasso em um retumbante sucesso (MOORE, 2007). 37

Para o Arqueiro Verde, Moore escreve uma estória dupla: Olimpíadas Noturnas, desenhos de Klaus Janson, na Detctive Comics, # 549/550, abril-mai/1985 (MOORE et al., 2006, 51). Para o Lanterna Verde, as mais importantes são: Mogo não comparece às reuniões, desenhos de Dave Gibbons, na Green Lantern #188, mai/1985 (MOORE et al, 2006, 66); Tigres, desenhos Kevin O’Neill, na Tales of the green Lantern corps, Annual 2, dez/1986 (MOORE et al, 2006, 152); Na noite mais densa, desenhos Billy Willinghan, na Tales of the green Lantern corps, Annual 3, mai/1987 (MOORE et al, 2006, 226).

época, as citações de outras narrativas, a disposição gráfico-visual da narrativa como um todo se perderam no tempo contínuo e linear da sétima arte. O próprio Moore detesta, declaradamente, a ideia de adaptarem suas obras para o cinema e nunca se envolveu em nenhuma das produções (DEZ, 2005). O mesmo aconteceu com a adaptação de From Hell (Do Inferno, 2005a) para o cinema (HUGLES, 2001), com participações de Johnny Depp, Heather Graham e Ian Holm. From Hell é um romance gráfico escrito por Alan Moore e ilustrado por Eddie Campbell que especula sobre a identidade e as motivações de Jack o Estripador. Apesar de ser confessadamente um trabalho ficcional, Moore faz uma rigorosa investigação sobre todas as fontes do caso, não só para garantir plausibilidade e verossimilhança da narrativa, mas como uma forma de pesquisa e revisão das interpretações anteriores. From Hell apresenta mais de 40 páginas de informações e referências, indicando quais partes são baseadas na imaginação de Moore e quais são tiradas de fontes específicas. As opiniões de Moore sobre as informações referenciais também são listadas. Além disso, a verdadeira aula sobre a história e a arquitetura de Londres – bem como sobre a época e os costumes em que o Estripador fez suas vítimas. A obra é densa, cheia de camadas e imensamente detalhada; a edição em coletânea tem aproximadamente 572 páginas - que foram severamente amputadas pela versão cinematográfica. E, mesmo assim, o filme ficou monótono, sendo elogiado pela crítica, ignorado pelo público. Depois foi a vez de Constantine, uma adaptação do personagem das histórias em quadrinhos John Constantine38, protagonista da revista Hellblazer, para o cinema (LAWRENCE, 2005). Embora possa ser considerado um sucesso de bilheteria, é muito criticado pelos fãs dos quadrinhos pela falta de fidelidade ao original. No filme, John Constantine (Keanu Reeves) é um ocultista e exorcista, que ajuda Angela Dodson (Rachel Weisz), uma policial cética, a investigar o misterioso suicídio de sua irmã gêmea, Isabel. O filme é inspirado numa história antiga de Hellblazer, Hábitos perigosos (1995), em que Constantine descobre que têm câncer de pulmão e já em estado

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John Constantine foi criado por Alan Moore, como um mero figurante da revista Monstro do Pântano, mas se popularizou rapidamente. Arrogante, negligente e enganador, o personagem foi inventado por Moore para satisfazer o pedido dos então desenhistas da revista, Steve Bissette e John Totleben de ter um personagem parecido com o cantor Sting nas histórias.

terminal. O mago então tenta bolar um plano para escapar da morte, lidando com demônios legais e anjos malvados. Mais recentemente, também houve adaptações para cinema de dois dos principais trabalhos: V de Vingança (2006a), com roteiro dos Irmãos Wachowski, da trilogia Matrix (MC TEIGUE, 2005); e Watchmen (2005), dirigido por Zack Snyder (2009). V de Vingança (versão em português para V for Vendetta) é uma série desenhada por David Lloyd em preto e branco em 1983 e relançada em cores em 1988. A história, que se passa em um distópico futuro de 1997 no Reino Unido, conta a história de Ivi, salva da morte por um vigilante mascarado, conhecido apenas por ‘V’. À medida que Ivi descobre a verdade sobre o misterioso V, ela descobre também algumas verdades sobre si própria e assim emerge uma inesperada aliada no plano para trazer liberdade e justiça a uma sociedade marcada pela crueldade e corrupção. Lançada em 1985, Watchmen tornou-se um extraordinário sucesso e é considerado um marco na evolução dos quadrinhos, introduzindo temas e linguagens antes utilizadas apenas por quadrinhos alternativos. O sucesso crítico e de público que a série teve ajudou a popularizar o formato conhecido como Graphic Novel, até então pouco explorado pelo mercado. Na trama de Watchmen, situada nos EUA de 1985, existem super heróis mascarados reais. O país estaria em vias de declarar uma guerra nuclear contra a União Soviética. A estória envolve os episódios vividos por um grupo de super-heróis no passado e no presente e o misterioso assassinato de um deles. Watchmen retrata os super-heróis como indivíduos verossímeis, que enfrentam problemas éticos e psicológicos, lutando contra neuroses e defeitos. E com vários problemas de relacionamento entre eles. Pode-se dizer que Moore entrou assim na 3ª geração de grupos de heróis: primeiro na Liga da Justiça, ele dá profundidade psicológica e narrativas sofisticadas aos super-heróis tradicionais; com a Liga Extraordinária, amplia ainda mais a façanha, elegendo sua própria legião de heróis literários; com Watchmen, no entanto, Moore desconstrói a própria noção de super-herói e de grupo de super-heróis. Nos últimos anos, Moore está trabalhando em várias séries, retomando alguns projetos inacabados (A Liga Extraordinária II e III e Supremo39) bem como começando outros (As Aventuras de Tom 39

Uma releitura satírica dos 50 anos de estórias de Superman, com várias homenagens críticas, citações e analogias aos seus principais desenhistas e roteiristas. Desenhado por Chris Sprouse, Rick Veitch e outros, publicado por Image Comics/Awesome Entertainment,

Strong40 e Promethea41). Mas certamente o projeto mais incomum deste novo período de Moore é a série Lost Girls.

em 2003. A Editora Devir lançou os quatro fascículos (A Era de Ouro, A Era de Prata, A Era de Cobre e A Era Moderna) em português. (MOORE, 2008) 40

No mesmo estilo de homenagem satírica de Supreme, Tom Strong conta as aventuras de um science hero, inspirados nas histórias em quadrinhos pulps das décadas de 1920/1930. Incluindo também as séries derivadas da saga principal, há pelo menos dez volumes, desenhados por Chris Sprouse, Steve Moore, Art Adams e outros; publicados pela DC Comics/Wildstorm/ABC, entre 1999 e 2006. Em português, os dois principais (Um Século de Aventuras e No final dos tempos) foram publicados pela Devir (2006) e Pixel (2008). 41

A estudante Sophie Bangs, investigando o mito de Promethea, uma espécie de heroína mística que se manifestou em diversas mulheres, acaba por se tornar a nova encarnação dessa guerreira mitológica. Desenhado por J.H. Williams III e outros, 1999-2005, 5 volumes, pela DC Comics/Wildstorm/ABC. (MOORE, 1999).

REFERÊNCIAS BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Antígona, 1988. BARCELLOS, Janice Primo. O feminino nas histórias em quadrinhos parte 1: A mulher pelos olhos dos homens. Revista Agaque. Volume 2, número 4. São Paulo: USP, novembro de 2000. Disponível em: Último acesso em: 10/07/2016. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 165 – 196. CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/ Pensamento, 1995. CREPAX, Guido. Valentina. Dois volumes. São Paulo, editora Conrad, 2007. DEZ, VYLENZ. The Mindscape of Alan Moore (2005) 80 min - Documentary | Biography 21 August 2005 (Denmark); Directors: Dez Vylenz, Moritz Winkler Writers: Dez Vylenz, Moritz Winkler; Stars: Glenn Doherty, Florian Fischer, Alan Moore. Produced by: George Arton, Dez Vylenz, Gert Winkler, Moritz Winkler. ENNIS, Garth; SIMPSON, William; PENNINGTON, Mark; et alli. Hellblazer: hábitos perigosos. Hellblazer # 41, publicado originalmente pela DC Comics, 1991. São Paulo: Vertigo, 1995. HUGHE, Alber e Allen. From Hell. Estados Unidos 2001 • cor • 122 min Produção; Direção: Albert Hughes; Allen Hughes; Roteiro Adaptação: Terry Hayes, Rafael Yglesias; Graphic Novel: Alan Moore, Eddie Campbell. Elenco original: Johnny Depp, Heather Graham, Ian Holm; Género: Suspense, Idioma original; Inglês. LACAN, J. Le stade du miroir comme formateur da la fonction du Je. In: Écrits. Paris: Seuil, 1966. LAWRENCE, Francis. Constantine. Estados Unidos Alemanha 2005 • cor • 121 min Produção: Lorenzo di Bonaventura, Akiva Goldsman, Benjamin Melniker, Lauren Shuler Donner, Erwin Stoff, Michael E. Uslan. Roteiro: Kevin Brodbin, Frank A. Cappello; argumento: Kevin Brodbin. Baseado na história de Alan Moore, Garth Ennis, Jamie Delano. Elenco original: Keanu Reeves, Rachel Weisz, Djimon Hounson. Género Aventura, Horror e Fantasia; Idioma original: Inglês. MANARA, Milo; JODOROWSKY, Alejandro. Borgia. São Paulo: Editora: Conrad, 2004, 2006 e 2008. Três volumes, MAUSS, Marcel. Um Ensaio sobre a Dádiva. São Paulo: Edições 70, 2008. MARTINEZ, Mônica. Jornada do herói – a estrutura mítica na construção de histórias de vida em jornalismo. São Paulo: Annablume, 2008. MC TEIGUE, James. V de Vingança (V for Vendetta) Reino Unido • Estados Unidos, Alemanha; 2005 • cor • 132 min; Produção, Direção: James McTeigue; Produção: Joel Silver, Larry Wachowski, Andy Wachowski, Grant Hill; Roteiro Andy e Larry Wachowski; Criação original: Alan Moore, David Lloyd; Elenco original: Natalie Portman, Hugo Weaving, Stephen Rea, John Hurt; Gênero: ação thriller; Idioma original: inglês. MILLER, Frank; SIENKIEWICZ, Bill. Elektra assassina. São Paulo: Editora: Panini Brasil, 1986.

MOORE, Alan; GIBBON, Dave. Watchmen. (Watchmen,1995) São Paulo: Via Lettera Editora, 2005. 4v. ______; CAMPBELL, Eddie. Do inferno (From Hell, 1989/1999). 3. ed. São Paulo: Via Lettera Editora, 2005a. 4v. ______ et al. Grandes clássicos DC n. 09 – Alan Moore. (Coletânea de estórias, diversos desenhistas). São Paulo: Panini Comics, Outubro de 2006. ______; LLOYD, D. V de Vingança. São Paulo: Panini Comics, 2006a. ______; BISSETE, Steve; TOTLEBEN, John. A saga do monstro do Pântano (The saga of the swamp thing, 1984). Rio de Janeiro: Pixel Media, 2007. ______; GEBBIE, Melinda. Lost Girls. São Paulo: Top Self Produtions & Devir Livraria, 2007a. 3v. ______; SPROUSE, Chris; VEITCH, Rick. et alli. Supremo. Publicado originalmente por Image Comics/Awesome Entertainment, em 2003. São Paulo: Editora Devir, 2008. 4 vol. _____; SPROUSE, Chris; MOORE, Steve; ADAM, Art; et alli. Tom Strong. Publicado originalmente pela DC Comics/Wildstorm/ABC, entre 1999 e 2006. Em português, apenas dois principais foram publicados: Um Século de Aventuras. São Paulo: Devir, 2006; e No final dos tempos. Rio de Janeiro: Pixel, 2008. _____; WILLIAMS, J. H., III. Promethea. America’s Best Comics. (32 ver., 1999-2005) 1999. MURDOCK, Maureen. The Heroine’s Journey: woman’s quest for wholeness. New York, Shambala, 1990. MIYAZAKI, Hasao. Nausicaä do Vale do Vento. Produzido pelo Studio Ghibli, 1984. ______A Princesa Mononoke (Mononoke Hime), produzido pelo Studio Ghibli, 1997. NORRINGTON, Steve. A liga dos cavaleiros extraordinários (The League of Extraordinary Gentlemen”) (2003 – 106m). Baseado na história de Alan Moore e Kevin O’Neill. Roteiro: James Dale Robinson. Elenco: Sean Connery, Naseeruddin Shah, Peta Wilson, Tony Curran, Stuart Townsend, Shane West. SADE, Marques de. 120 dias de sodoma ou escola de libertinagem. Tradução: Alain François. São Paulo: Iluminara, 2008. SILVA, Alexander Meireles da. História em Quadrinhos e a perversão feminina: a MulherMaravilha como Estudo. Universidade Federal de Goias: II Simpósio Nacional Gênero e Interdisciplinaridades, 29 a 31 de março de 2011 SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira; VIEIRA, Marcos Fábio. De comportadas a sedutoras: representações da mulher nos quadrinhos. São Paulo: Revista Comunicação, mídia e consumo, vol. 5, n. 13, p.179 – 197, jul. 2008. Disponível em: Último acesso em: 10/07/2016. SNYDER. Zack. Watchmen Estados Unidos 2009 • cor • 162 min Produção: Direção Zack Snyder; Roteiro Filme: Roberto Orci, Alex Kurtzman, Alex Tse, David Hayter. Obra original: Alan Moore (nãocreditado) e Dave Gibbons; Elenco original: Patrick Wilson, Jackie Earle Haley, Billy Crudup, Jeffrey Dean Morgan, Malin Åkerman, Matthew Goode; Género Ação, drama, ficção científica; Idioma original: inglês.

Marcelo Bolshaw Gomes é jornalista, doutor em ciências sociais e professor de sociologia da comunicação na graduação de jornalismo, publicidade e rádio/TV e de metodologia científica em pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. Escreveu vários livros, entre os quais: Um mapa, uma bússola (2000); Espiritualidade Contemporânea (2001); Decifra-me ou te devorarei (UFRN, 2006); O Hermeneuta – uma introdução ao estudo de Si (UFRN, 2010), O Encantador de Serpentes (inédito); Mimese e Simulação (UFPB, 2015) Devaneios da Investigação Simbólica (UFRN, 2016); Universos Sci-Fic (UFPB, 2016) e Lugar Comum (no prelo, 2017).

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