Dívida soberana: Heranças clássica e bíblica em \"Desejo Sob os Ulmeiros\", de Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

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FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DO PORTO

Pedro Miguel Meleiro Sobrado

2.º CICLO DE ESTUDOS EM ESTUDOS DE TEATRO

Dívida soberana Heranças clássica e bíblica em Desejo Sob os Ulmeiros, Ulmeiros de Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal 2014

Orientador: Professora Doutora Isabel Morujão

Classificação: Ciclo de estudos: 19 Dissertação: 20

Versão definitiva

Resumo Em 1924, Eugene O’Neill estreou Desejo Sob os Ulmeiros, folk tragedy que representou o ápex da primeira fase da sua produção dramática e outorgou ao proclamado fundador da moderna dramaturgia norte-americana uma estatura internacional. Impugnando a despótica centralidade do argumento biografista e clínico na interpretação da peça, a presente dissertação pondera as relações intertextuais que ela estabelece, por um lado, com a tragédia clássica e, por outro, com as narrativas sagradas. Mais do que um levantamento exaustivo de paralelismos, citações e ressonâncias, procura-se compreender como os arquétipos clássicos e bíblicos operam no interior do texto o’neilliano e quais as suas consequências, em termos de expressividade dramática e de sentido. Se o Hipólito de Eurípides se afigura a raiz de Desejo Sob os Ulmeiros – serve-lhe de eixo e modelo –, a simbólica bíblica manifesta-se rizomaticamente: é acentrada, plural, dinâmica. Sendo o teatro uma “arte a dois tempos” (Henri Gouhier), que reclama o devir cénico dos seus textos, a nossa reflexão é complementada pela avaliação da posteridade de Desejo Sob os Ulmeiros no teatro português, através da análise de encenações de João Lourenço (1990) e, em especial, de Nuno Cardoso (2011).

Palavras-chave: Eugene O’Neill, Desejo Sob os Ulmeiros, Drama Americano, Tragédia Clássica, Eurípides, Hipólito, Bíblia, Teatro Português, João Lourenço, Nuno Cardoso

Abstract In 1924, Eugene O’Neill premiered Desire Under the Elms, a folk tragedy that marked the high point of the first phase of his dramatical production and conferred international status on the proclaimed founding father of modern American drama. Challenging the despotic centrality of the biographical and clinical argument in the interpretation of the play, this dissertation considers its intertextual relations with classical tragedy, on the one hand, and with sacred narratives, on the other. Not just an exhaustive survey of parallels, citations and resonances, this work aims to examine how classical and biblical archetypes operate within O’Neill’s text, and how they effect its dramatic expressiveness and meaning. If Euripides’ Hippolytus seems to lie at the root of Desire Under the Elms – serving as a fulcrum and a model –, the biblical symbolism operates rhizomatically, being eccentric, plural and dynamic. Understanding theatre as an “art à deux temps” [art in two steps] (Henri Gouhier) that demands the actual staging of the text, our reflexion is supplemented by a look at how posterity has treated Desire Under the Elms in the context of Portuguese theatre. We analyse the staging of the play by João Lourenço (1990) and, particularly, by Nuno Cardoso (2011).

Keywords: Eugene O’Neill, Desire Under The Elms, American Drama, Greek Tragedy, Euripides, Hippolytus, Bible, Portuguese Theatre, João Lourenço, Nuno Cardoso

Índice

Agradecimentos………………………………………………………………………….4

Introdução………………………………………………………………………………..8

1. Uma dramaturgia na primeira pessoa………………………………………………..13

2. Herança clássica Limiar……………………………………………………………………...……21 2.1. Uma tragédia por escrever…………………………………………………23 2.2. Núpcias de morte…………………………………………………………..27 2.3. Caracteres de uma primitiva escrita………………………………………..36 2.4. The Force behind…………………………………………………………..45

3. Herança bíblica Limiar…………………………………………………………………………...55 3.1. Pedras de tropeço…………………………………………………………..58 3.2. Trinta moedas, e um prato de lentilhas…………………………………….64 3.3. Máquina de emaranhar paisagens………………………………………….71

4. Notícia de duas encenações em Portugal 4.1. Muito cuidado com o teatro………………………………………………..77 4.2. Ecos do primeiro Desejo – a encenação João Lourenço…………………...82 4.3. O som e a fúria – a encenação de Nuno Cardoso………………………….88

Conclusão……………………………………………………………………………..107

Bibliografia……………………………………………………………………………114

Anexos………………………………………………………………………………...120

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Agradecimentos

À Professora Isabel Morujão, que me demonstrou que uma orientadora pode albergar em si uma pequena multidão: professora, psicóloga, amiga, cúmplice (quase no sentido criminal!), personal trainer, sage… Não fossem o seu saber e ânimo (apetece dizer: a sua gaia ciência), a minha errática conduta académica teria conduzido a nenhures. A nossa demanda pela História de Deus de Gil Vicente deixou de ser passível de breve sumário numa dissertação de mestrado: partindo dessa pedregosa terra do demo (“terra que tenho de cardos e de pedras/ que vai desde Sintra até Torres Vedras…”), vimo-nos chegados à puritana Nova Inglaterra de O’Neill, onde God’s hard, not easy.

Ao Teatro Nacional São João – nas pessoas dos seus Administradores Francisca Carneiro Fernandes, Salvador Santos e José Matos Silva e do seu Diretor Artístico, Nuno Carinhas –, instituição onde tenho o privilégio de trabalhar e que pronta e generosamente me apoiou; à Paula Braga e ao ‘seu’ Centro de Documentação, em cujas estantes encontrei boa parte da minha biblioteca.

À Professora Alexandra Moreira da Silva, pelo desafio que me lançou para cursar este Mestrado de Estudos de Teatro, arduamente planeado com Paulo Eduardo Carvalho, e por tudo o que com ela – e ele – aprendi. À Professora Marta Várzeas, pela atenção que dedicou a um trabalho preliminar sobre a afinidade entre o Desejo o’neilliano e o Hipólito euripidiano, formulando recomendações que, pelo seu acerto, não pude senão aproveitar. Agradecimento devido também pelos posteriores esclarecimentos sobre alguns aspetos da cultura clássica.

Ao meu dedicado amigo Nuno Moreira, exemplar investigador desta Casa, no qual estas páginas encontraram o mais entusiasmado leitor a que poderiam aspirar. Ao Ricardo, que não leu, mas creu – bem-aventurado!

À Vera San Payo de Lemos, que amavelmente se dispôs a fornecer-me elementos sobre a encenação de Desejo Sob os Ulmeiros realizada por João Lourenço, e à Joana Grande, do Teatro Aberto, pelo expedito envio de artigos e imagens. Ao David Antunes, pela pronta cedência das suas traduções de Nevoeiro e Sede. Ao João Tuna, pelas fotografias que fazem a nossa memória de espectadores.

Ao Nuno Carinhas, que me inventou como ‘dramaturgista’: a sua amizade e confiança valem-me mais do que um grau académico. Ao João Luís Pereira, colega de carteira nas Edições do TNSJ, o espectador emancipado que, em boa medida, me iniciou no Teatro.

À Abigail (a minha tão assisada Abbie!), a quem gostaria de devolver o tempo de vida que este curso de mestrado, ou melhor, que a minha dispersão, indisciplina e vis inertiae criminosamente lhe subtraíram.

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Aos meus pais, Ernesto e Leonor, e aos meus irmãos, Jorge e Susana.

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Indicações de leitura

Os passos de Desejo Sob os Ulmeiros transcritos nesta dissertação provêm de uma tradução de Jorge de Sena, realizada no final da década de 1950 e disponível numa edição das Publicações Europa-América. Tendo em conta o número de citações, optamos por não incluir em rodapé qualquer nota, indicando entre parênteses retos o ato e a cena a que cada uma diz respeito e remetendo para a bibliografia final o crédito editorial. O mesmo se aplica à tradução do Hipólito, da autoria de Frederico Lourenço.

No que se refere às peças de Eugene O’Neill, nomeamos o título da tradução portuguesa mais recente ou familiar (sinalizando, na primeira menção, o título original entre parênteses retos e o ano da sua estreia); nos casos em que as peças não foram traduzidas para edição ou cena, mencionamos o título original.

A quase totalidade das citações de ensaios, biografias e obras especializadas sobre Eugene O’Neill e Desejo Sob os Ulmeiros provém de obras publicadas em língua estrangeira. Optamos por incluir esses passos numa tradução da nossa responsabilidade (exceto quando indicado), remetendo para rodapé as respetivas referências bibliográficas.

Em relação às citações bíblicas, privilegiamos, de um modo geral, a versão da Bíblia Sagrada da Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), publicada pela primeira vez em 1998. Em alguns casos, por razões estritamente literárias, citamos a tradução da Bíblia realizada, no século XVII, por João Ferreira d’Almeida, um improvável protestante português na ilha de Java.

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A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo. CAETANO VELOSO, “Pecado Original” (1978)

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Introdução

EBEN: Eu sou… o herdeiro. EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros

“A obra dramática de Eugene O’Neill é a de um herdeiro.”1 Assim inicia JeanPierre Sarrazac o ensaio que dedicou ao dramaturgo norte-americano nascido em 1888 – o mesmo ano que viu nascer Fernando Pessoa, como lembrou Jorge de Sena2 – e desaparecido em 1953. A proposição do dramaturgo e ensaísta francês considera naturalmente o pesado legado familiar de O’Neill, a sua manifesta impossibilidade em romper o vínculo parental, uma memória da infância impossível de rasurar. Mas JeanPierre Sarrazac não tem apenas em mente aquilo que tem sido explorado ad nauseam por comentadores e comentadores de comentadores: se é possível classificar Longa Jornada para a Noite [Long Day’s Journey Into Night, 1956] como a obra de um herdeiro é porque O’Neill se apropria de um legado que é tão desejado quanto a herdade – palavra que é sinónima de herança – disputada pelas personagens de Desejo Sob os Ulmeiros [Desire Under the Elms, 1924]. Referimo-nos aos grandes dramaturgos da viragem do século, de que a obra desse eterno filho é altamente devedora: Tchékhov, Ibsen, Strindberg. Particularmente, Strindberg, de quem recebe o método da confissão dramática. Nota Sarrazac: “Strindberg, cuja encenação conjugal, atravessada por uma torturante nostalgia de fusão com a mulher – ou com a mãe –, serve de modelo permanente às peças de O’Neill, funciona para o escritor americano de origem irlandesa como tutor ou pai.”3 A presente dissertação vasculha a herança de que Eugene O’Neill tomou posse – aquela porção que o legatário investiu na composição de um drama que, segundo o parecer unânime da crítica, certifica a maioridade do dramaturgo: Desejo Sob os

1

Jean-Pierre Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, in Théâtres Intimes, Paris,

Actes Sud, 1989, p. 47. 2

Vide Jorge de Sena, “O Testamento de Eugene O’Neill”, in Do Teatro em Portugal, Lisboa, Edições 70,

1989, p. 383. 3

J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 47.

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Ulmeiros.4 Este inventário crítico não visa o levantamento dos elementos da tradição teatral mencionados por Jean-Pierre Sarrazac – a avaliação do legado strindberguiano é exterior ao âmbito deste trabalho –, mas antes o estudo da apropriação, por parte de O’Neill, de uma dupla e vasta herança: clássica e bíblica, grega e judaico-cristã. Realizada, pois, no capítulo inicial, uma breve apreciação do argumento biográfico e clínico na receção crítica da peça estreada em Novembro de 1924, detemo-nos mais demoradamente, no segundo capítulo, sobre a ambição primeira do dramaturgo norteamericano (“recriar o espírito grego foi a meta que fixou para si mesmo”,5 assinalou Egil Törnqvist); o modo como tal aspiração se cumpre (ou não) em Desejo Sob os Ulmeiros; as ressonâncias dos mitos de Édipo e Medeia contidas na peça; e, muito especialmente, a homologia estrutural entre este American classic e o Hipólito de Eurípides, “o mais trágico dos poetas trágicos”, na célebre definição de Aristóteles.6 Depois de considerada a raiz trágica de Desejo, debruçar-nos-emos, no terceiro capítulo, sobre o rizoma bíblico7 que se propaga no seu enredo. Mobilizando a simbólica e a imagística das Escrituras, bem como algumas das suas narrativas (em particular, a de Jacob e Esaú), procurar-se-á expor o conflito e as personagens a uma outra luz, não para acrescentar mais um item ao já copioso rol de fontes invocadas a

4

Desse consenso cite-se, a título de exemplo, o clássico Contour in Time (1972) de Travis Bogard, autor

desaparecido em 1997 que continua hoje a ser estimado como um dos mais consistentes investigadores da obra de Eugene O’Neill: “[Desejo Sob os Ulmeiros] atinge uma perfeição de conteúdo e de forma que nenhuma peça anterior do escritor tinha alcançado. É uma obra de arte criada por um dramaturgo que, ao dominar o seu ofício e ao compreender cabalmente as implicações do tema, atinge finalmente a maioridade.” Travis Bogard, Contour in Time, in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www:
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