Dize-me quem és e te direi com quem andas: anotações sobre identidade nacional e relações internacionais

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dossiê A descrição do sociólogo polonês é colorida, mas não exagerada. Na história dos homens, poucos fenômenos são mais frequentes do que as disputas em torno da afirmação, da alteração ou da destruição de identidades individuais ou coletivas. Especificamente na arena das relações entre Estados, o comportamento de cada ator é, em boa medida, moldado pela imagem que ele tem de si mesmo. Por identidade, aqui, não se entende a imagem institucional (ou regime político) do próprio Estado, tampouco a identificação de seu povo com uma suposta “civilização” de matriz

o êxodo rural, que solaparam os laços culturais tradicionais (KAPUSCINSKI, 2008). As novas identidades, de base urbana, tendem a ser híbridas. Importa, assim, compreender como identidades são forjadas. E há no mínimo quatro vias, não-excludentes, de construção identitária: por assimilação, por contraste, por rejeição e por diferença (MARTINS, 2007). A identidade por assimilação, que equivale à aculturação e é a mais frequente das quatro possibilidades, costuma

Dize-me quem és e te direi com quem andas Anotações sobre identidade nacional e relações internacionais Thomaz Alexandre Mayer Napoleão

confessional. Não acreditamos que a chave para compreender a política externa de um Estado esteja na presença ou na ausência de democracia, ou no pertencimento ou não ao Ocidente ou ao mundo islâmico por exemplo. Não obstante, a seguir trataremos do conceito – muito citado e pouco compreendido – de identidade nacional, e de suas repercussões externas.

Identidades e instabilidades “Sempre que se ouvir essa palavra [identidade], pode-se estar certo de que está havendo uma batalha”, escreve Zygmunt Bauman. “O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega (...) Talvez possa ser conscientemente descartada (e comumente o é, por filósofos em busca de elegância lógica), mas não pode ser eliminada do pensamento, muito menos afastada da experiência humana.” (BAUMAN, 2005)

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Estudar identidades é analisar os efeitos reais de narrativas fictícias. Afinal, para os acadêmicos contemporâneos, praticamente há consenso em torno do caráter artificial (imaginado, construído e por vezes imposto) das nações, como Anderson, Gellner, Hobsbawm e muitos outros ressaltaram. As concepções essencialistas ou racialistas da cultura caíram na obsolescência há décadas. Fato menos óbvio, mas igualmente importante, é que as identidades nacionais são instáveis e convivem com outras formas de particularismo, sejam supranacionais – religião, língua, etnia – ou locais, como a especificidade de cada clã, dialeto ou família. São, no máximo, estabilizações provisórias (SUNY, 1998). Ademais, como observou o mais influente dos jornalistas-viajantes do século XX, o processo de formação de identidades, que já não era simples no passado, tornou-se mais complexo com a migração e com

resultar de processo gradual e contínuo. Já a identidade por contraste, que também é geralmente pacífica, consiste no reforço sistemático das diversidades culturais para valorizá-las. A identidade por rejeição, por sua vez, é conflituosa e decorre de um claro sentimento de superioridade (ou inferioridade) simbólica. Por fim, a identidade por diferença, que pode conduzir a qualquer uma das outras três formas, é a simples consciência contemplativa de si e do outro. Tais mecanismos, e em particular a via da definição da identidade pela rejeição, abrem espaço para o que Bertrand Badie chamaria “empreendedores identitários”, spin doctors prontos a manipular lealdades e particularismos para atingir objetivos específicos, inclusive em matéria de política externa. Slobodan Milosevic, que nos anos 1980 e 1990 instrumentalizou o dormente nacionalismo sérvio para avançar sua agenda geopolítica nos Bálcãs, parece ser o exemplo mais acabado.

Identidade na Teoria das RI: o construtivismo e seus problemas A preocupação com a influência da identidade sobre o comportamento externo dos Estados é prioritária para os teóricos construtivistas das Relações Internacionais (RI). Para essa vertente acadêmica, a política internacional é um processo infinito de interação e de construção social. Os interesses e

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dossiê objetivos dos atores são definidos intersubjetivamente; não correspondem a simples cálculos racionais de maximização de poder, mas levam em conta fatores como normas, ideologias, identidades, discursos e ideias. É impossível reduzir as complexidades desse processo a simples equações matemáticas de ganhos absolutos ou relativos de poder (HOPF, 1998). Em última análise, no construtivismo não há sistema internacional; há uma cultura internacional, que pode ser de rivalidade, competição ou cooperação. Ao contrário de boa parte das correntes realistas e neorrealistas, hegemônicas na disciplina entre as décadas de 1940 e 1980, o construtivismo considera que política interna e ação exterior estão intimamente relacionadas na lógica decisória de um Estado, e descrê da noção de interesses nacionais permanentes e imutáveis. O artigo geralmente citado como manifesto fundador do construtivismo em RI já assinalava que identidades são a base dos interesses (WENDT, 1992). Essa premissa tem sido levada às últimas consequências, sobretudo no mundo anglo-saxônico, por pesquisadores desejosos de analisar o impacto de praticamente todas as formas imagináveis de identidade – inclusive temas pouco convencionais em RI, como gênero, etnia e orientação sexual. Mesmo no âmbito político strictu sensu, o construtivismo estabelece importante distinção entre as identidades do Estado, que dizem respeito aos padrões de seu comportamento internacional – histórico de cooperação ou de conflito, engajamento em alianças, blocos regionais, etc. – e as identidades nacionais, que derivam da sociologia e da psicologia e sempre envolvem processos políticos e culturais domésticos. Dessas duas categorias, as identidades do Estado recebem atenção muito maior do construtivismo em RI. Não são, todavia, suficientes per se. Em virtude da indispensável legitimidade que o discurso nacional fornece ao Estado, e da necessidade individual de pertencer a coletivos dotados de sentido e propósito, Estado e nação são simbolicamente interdependentes. Em outras palavras, identidades de Estado não são funcionais se não forem acompanhadas por identidades nacionais compatíveis (ASHLEY, 2002). A condução de estudos de caso acerca da influência das identidades e das percepções dos atores sobre suas decisões individuais e coletivas – frequente na agenda de pesquisa do construtivismo em RI – enfrenta, no entanto, sérias dificuldades. O construtivismo é ontologicamente agnóstico; costuma silenciar sobre a questão da intencionalidade e adota, deliberadamente, uma perspectiva multi-

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causal que confunde as análises objetivas sobre dinâmicas, processos e comportamentos dos atores das Relações Internacionais (HOPF, 1998). Outro desafio aos pesquisadores da área está no caráter necessariamente intangível e incomensurável das identidades. Esse fator quase inviabiliza a busca por evidências empíricas que, normalmente, é demanda central da pesquisa científica – a menos que se adote uma metodologia pós-moderna ou pós-estruturalista, como alguns construtivistas, embora não todos, decidiram fazer. Sem ignorar os problemas citados supra, é possível analisar dois casos concretos que esclarecerão o raciocínio construtivista na matéria.

Dois fronts da batalha identitária: Rússia e Turquia Talvez o mais eloquente exemplo do papel mobilizador da identidade nas Relações Internacionais seja o ancestral dilema em torno do caráter nacional russo. A discussão remonta a meados do século XIX, esfriou durante a vigência do comunismo, mas ressurgiu com força após a queda da União Soviética, quando a Rússia, pela primeira vez em meio milênio, deixou de ser império para se tornar algo parecido com um Estado nacional. De um lado, situam-se os chamados ocidentalistas, inspirados por Alexander Herzen e outros nomes da intelligentsia dezenovesca, que consideram a Rússia parte da Europa e desejam transformá-la em um país “normal” aos moldes ocidentais – isto é, liberal-democrático na organização social e cooperativo em política externa, adepto dos regimes internacionais de direitos humanos e livre comércio (BARANOVSKY, 2000). A tendência oposta é representada pelo movimento eurasianista, cujas raízes remontam ao pan-eslavismo (ou eslavofilia) do século XIX e, mais tarde, ao pensamento de russos brancos e émigrés como Nikolay Trubetskoy (LARUELLE, 2008). Para os adeptos dessa corrente, que flerta com o messianismo e tem como porta-voz atual o geopolítico Alexander Dugin, a Rússia é portadora de um destino excepcional, não se obriga a respeitar padrões liberais impostos pelo Ocidente e tem a vocação para liderar a Eurásia por meio de um império benigno (DUGIN, 2007). O corolário do eurasianismo é uma política exterior russa mais incisiva e expansionista. Relativamente raro na história russa, o ocidentalismo prosperou por aproximadamente uma década, do “novo pensamento” em política externa de Gorbachev ao

Especificamente na arena das relações entre Estados, o comportamento de cada ator é, em boa medida, moldado pela imagem que ele tem de si mesmo.

idealismo dos primeiros anos de Yeltsin. Recém-saída da Guerra Fria, Moscou parecia acreditar que o capitalismo liberal traria prosperidade automática, e para tanto adotou medidas radicalmente liberalizantes, como privatizações aceleradas e a supressão quase instantânea do controle de preços. Paralelamente, no plano externo, a Rússia adotou medidas francamente simpáticas à hegemonia americana que então se desenhava: decidiu filiar-se ao G-7, assinou numerosos tratados de desarmamento e avalizou a liderança americana na Guerra do Golfo. A atmosfera identitária russa mudou drasticamente nos últimos anos do século. Frustrada com a débâcle econômica advinda das reformas liberais, que culminou com o colapso financeiro de 1998, impaciente com a crônica instabilidade da democracia local – o país teve cinco Primeiros-Ministros entre 1998 e 1999 – e irritada com a aparente indiferença do Ocidente quanto às opiniões e interesses globais do Kremlin, a sociedade russa passou a privilegiar discursos abertamente nacionalistas. De súbito, sentindo-se rejeitada pela Europa a que julgava pertencer, a Rússia passou a repensar seu papel no mundo. A consequência inevitável foi a ascensão do pensamento eurasianista, que se fez acompanhar por medidas de fortalecimento interno do Estado – como o lançamento da Segunda Guerra da Chechênia e a criação de oito megadistritos federais, que reduziram o poder dos governos provinciais – e de maior assertividade externa, a exemplo da oposição explícita à Guerra do Kosovo e da resistência às ondas sucessivas de expansão da OTAN. Passado o interlúdio de cooperação com Washington sob o signo da “guerra ao terror”, após o 11 de setembro de 2001, Moscou voltou a divergir do Ocidente em uma longa série de temas cruciais, das bases americanas na Ásia Central às “revoluções coloridas” na ex-URSS; do escudo antimísseis planejado pelos EUA na Europa Oriental à reação militar russa à ofensiva georgiana na Ossétia do Sul, entre outras crises. Pode-se atribuir o renovado ativismo da política externa russa às escolhas estratégicas de seu ex-Presidente e atual Premier, Vladimir Putin, ou à expansão econômica deri-

vada da alta dos preços do petróleo, mas há outros fatores envolvidos. A menor identificação da Rússia com os destinos da Europa é, com toda probabilidade, um deles. Moscou hoje advoga e acredita em um mundo pós-ocidental – multipolar e equilibrado, mas em boa medida também um mundo eurasiano (TSYGANKOV, 2010). Debate análogo transcorre na margem oposta do Mar Negro. País bicontinental como a Rússia, a Turquia também padece de indefinições quanto à sua identidade nacional, o que visivelmente influencia a condução de sua política externa, em uma perspectiva construtivista das RI (BOZDAGLIOGLU, 2003). Nascida do espólio do Império Otomano, a moderna Turquia é a expressão geopolítica do ideário de um homem singular, Mustafa Kemal Atatürk. O kemalismo, que até recentemente dominou todas as esferas da vida política nacional, consiste no esforço de tornar moderna e laica – embora não necessariamente democrática – a sociedade turca. Em termos de ação exterior, o kemalismo prega uma aproximação sistemática do Ocidente, uma postura cautelosa quanto à Rússia e um relativo alheamento em relação ao Oriente Médio – um distanciamento facilitado por uma entente tácita com Israel. Com pequenas variações de tom, essas diretrizes nortearam as primeiras três gerações de diplomacia turca pós-Atatürk. A partir dos anos 1980, o kemalismo se desgastou por uma série de fatores, a exemplo da deterioração da questão curda, da crescente impopularidade dos estamentos militares na Turquia, da retomada do sentimento islamista e do impasse em torno da candidatura turca à União Europeia. Para Ancara, manter-se distante dos vizinhos médio-orientais deixou de ser opção viável. Ao mesmo tempo, a independência dos Estados pós-soviéticos da Ásia Central, vários dos quais integram a família étnico-linguística da turcofonia, abriu novas perspectivas para a diplomacia da Turquia na Ásia. Com a ascensão ao poder do partido islâmico moderado AKP, em 2003, as condições estavam maduras para a adoção de um

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dossiê novo modelo de política externa: o neo-otomanismo (TASPINAR, 2008). O neo-otomanismo consiste na percepção de que a Turquia, por ser herdeira de longa tradição cultural, potência emergente e geopoliticamente seminal, não é – nem deve ser – réplica política da Europa ou de seus vizinhos muçulmanos. Ou seja, não é um país oriental, mas tampouco pertence exclusivamente ao Ocidente. Pode e deve influir sobre todos os processos em seu entorno estratégico. Contrariamente ao que sugere a cartografia reducionista de Huntington, a Turquia moderna não se considera simples apêndice da “civilização” islâmica, mas sim o berço de uma matriz cultural autônoma e influente. O corolário dessa confiante identidade neo-otomana é uma política externa multivetorial, que aponta para o Oriente Médio e para a Ásia Central sem se esquecer do foco tradicional do kemalismo, a Europa. O atual Primeiro-Ministro, Recep Erdogan, não hesitou em abandonar posições tradicionais da diplomacia kemalista, como a intransigência quanto ao status do Chipre do Norte, a relativa indiferença perante a causa palestina e a aceitação quase automática da maioria das estratégias dos EUA para o Oriente Médio. O protagonismo turco na criação da Aliança das Civilizações simboliza o papel que a Turquia pretende desempenhar em um mundo de tolerância cultural, mas também de equilíbrio geoestratégico. A Declaração de Teerã, firmada em 17 de maio de 2010, não foi apenas o ápice do envolvimento do Brasil com a questão nuclear iraniana.1 Foi, também, a consagração da política externa neo-otomana do AKP. A hipótese construtivista do vínculo entre identidade da nação e comportamento internacional do Estado, em ambos os casos analisados, é reforçada por um fato curioso: a reorientação da política externa foi orquestrada, em grande medida, por acadêmicos alçados ao posto de Ministros do Exterior. Mais do que meros “empreendedores identitários”, o russo Yevgeny Primakov (Chanceler entre 1996 e 1998, depois Primeiro-Ministro) e o turco Ahmet Davutoglu (Chanceler desde 2009, antes Assessor do Premier) são figuras de proa de dois pensamentos em política externa que decorrem de percepções identitárias – respectivamente, eurasianismo russo e neo-otomanismo turco.

E o Brasil? Potência emergente como Turquia e Rússia, embora ao contrário delas não seja herdeiro de imperialismo algum, o Brasil também faz escolhas em política externa que decorrem de uma percepção específica – consciente ou não – de sua própria identidade. Ressalte-se que identidade não se confunde com paradigma; são duas categorias distintas, ainda que correlatas. Seria impreciso rotular os tradicionais princípios da política externa brasileira – como o pacifismo, o universalismo, a busca de autonomia e a defesa do multilateralismo – de traços da identidade nacional que orienta o comportamento exterior do Estado brasileiro. Elencar os parâmetros centrais da identidade nacional brasileira fugiria – e muito – ao escopo deste artigo. Podemos, todavia, esboçar dois elementos principais da autoimagem brasileira perante o mundo, a saber, o pertencimento à América do Sul e a identificação com o mundo em desenvolvimento. O primeiro elemento identitário que influencia a política externa brasileira é a inserção na América do Sul, não apenas no sentido geográfico mas sobretudo ideático. O apoio instrumental ao processo de integração, que na última década converteu-se em ativismo regional, expressa a proeminência da América do Sul no horizonte externo do Brasil desde o fim da Guerra Fria (SPEKTOR, 2010). Ademais, a recusa em aderir plenamente à OCDE e o protagonismo na formação de agrupamentos Sul-Sul (BRIC, IBAS, BASIC, G-20C, ASPA e ASA, entre outros) simbolizam uma segunda opção identitária brasileira: afirmar-se país em desenvolvimento, que se considera system-affecting State em termos político-estratégicos e grande mercado emergente no plano econômico-comercial (SOARES DE LIMA, 2005). Como todas as demais, as identidades brasileiras são fluidas e mutáveis. Os movimentos diplomáticos dos últimos anos (CALC e em breve CELAC, aproximação com CARICOM, liderança na MINUSTAH e na reconstrução haitiana) parecem sinalizar expansão gradual para a América Latina da identidade do Brasil, até então, sul-americana. Para tristeza dos teóricos construtivistas, o perfil identitário do Brasil não possui nome e não motiva grandes debates domésticos – provavelmente porque o dilema

Acordo político tripartite (Brasil-Turquia-Irã) que prevê a troca de 1.200 kg de urânio fracamente enriquecido (LEU) iraniano por 120 kg de urânio enriquecido a 20%, no prazo de um ano. O combustível abastecerá o Reator Nuclear de Teerã (TRR). Trata-se de tentativa de construir confiança entre as partes envolvidas na questão nuclear iraniana, dispensando a necessidade de sanções e medidas de força.

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nacional é muito menos complexo em sociedades sem passado de centralização imperial e fragmentação territorial. Não obstante, assim como nos casos do eurasianismo russo e do neo-otomanismo turco, a percepção nacional do Brasil decorre de escolhas políticas claras e autônomas, que não eram inevitáveis e não foram impostas por atores externos.

Um término sem conclusão Mesmo quando se deleita em debates supostamente sofisticados ou supremamente tediosos – como a dicotomia insolúvel entre o protagonismo da estrutura (ou sistema) e a primazia do agente (ou processo), ou a disputa metodológica entre individualismo behaviorista e cognitivismo reflexivista –, o construtivismo nunca perde de vista um fato básico: as teorias das Relações Internacionais estão, antes e acima de tudo, subordinadas à observação empírica. Por isso mesmo, são teorias sempre incompletas. Para compreender o que realmente está em jogo, deve-se ver além da “fumaça e do calor da epistemologia” (WENDT, 1992). Logo, não pode haver conclusões definitivas para nosso artigo. O construtivismo não levaria esse nome se não estivesse em construção. Dois elementos, todavia, ficam claros ao final de nossa rápida análise das consequências da evolução identitária na Rússia, na Turquia e de certa forma no Brasil. O primeiro diz respeito à imprevisibilidade das percepções e das identidades. Como uma lavoura de soja, o comportamento externo de um Estado pode aparentar se-

guir métodos e padrões racionais, mas na realidade depende também de fatores incertos. Nesse processo de colheita de resultados diplomáticos, a identidade desempenha papel semelhante ao do clima: sabemos que ela é determinante, percebemos que está em constante mudança por motivos principalmente antropogênicos e subsidiariamente geográficos, mas somos incapazes de prevê-la ou enquadrá-la. O segundo elemento é a lembrança de que cultura é política; portanto, identidade é política. A afirmação é menos trivial do que parece. Como todo campo de ação política, a definição das identidades depende de escolhas livres, ainda que nem sempre racionais. Identidades, como os outros fatores caros ao construtivismo – normas, ideias, discursos e ideologias – não são forjadas de modo exógeno, mas nascem da constante interação entre Estados, no plano externo, e entre atores sociais na esfera doméstica. Acreditar em causalidades automáticas é perigoso para estudiosos e praticantes das Relações Internacionais. Deve-se evitar a sedutora armadilha da “ilusão identitária” (BAYART, 1996), decorrente da crença fatalista de que a cultura tudo determinaria. Em síntese, é preciso estudar a cultura sem cair no culturalismo raso. A batalha das identidades descrita por Zygmunt Bauman é bastante real e afeta as dinâmicas das Relações Internacionais. Mas é um choque entre vontades, não entre destinos. E o desfecho do embate é desconhecido.

Para saber mais:

ASHLEY, Mark. “Narratives of National Identity and International Conflict: When Does Identity Pose a Threat?”. APSA Annual Meeting, 2002. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BAYART, Jean-François. L’illusion identitaire. Paris: Fayard, 1996. BARANOVSKY. “Russia: a part of Europe or apart from Europe?” in International Affairs, v.76, n. 3, 2000, pp. 443-458. BOZDAGLIOGLU, Yucel. Turkish Foreign Policy and Turkish Identity. Londres: Routledge, 2003. HOPF, Ted. “The Promise of Constructivism in International Relations Theory” in International Security, v. 23, n. 1, 1998, pp. 171-200. LARUELLE, Marlène. Russian Eurasianism: An Ideology of Empire. Washington: Woodrow Wilson Center Press, 2008. MARTINS, Estevão de Rezende. Cultura e Poder. São Paulo: Saraiva, 2007. SUNY, Ronald Grigor. “Provisional Stabilities: The Politics of Identities in Post-Soviet Eurasia”. Institute of East and West Studies, 1998. TASPINAR, Ömer. “Turkey’s Middle East Policies: Between Neo-Ottomanism and Kemalism” in Carnegie Papers, n. 10, 2008. TSYGANKOV, Andrei. Russia’s Foreign Policy: Change and Continuity in National Identity. Lanham: Rowman and Littlefield, 2010. WENDT, Alexander. “Anarchy is what States make of it” in International Organization, v.46, n.2, 1992, pp. 391-425.

[ Thomaz Alexandre Mayer Napoleão (turma 2009-2011) é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em Comunicação Social e Jornalismo pela Universidade de São Paulo e mestre em Relações Internacionais e Segurança Internacional pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), França, e pelo Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO), Rússia. ]

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