Dizer sim à existência

July 12, 2017 | Autor: Margareth Rago | Categoria: Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Subjetividade
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Dizer Sim à Existência[1]






Margareth Rago





Há momentos na vida em que é importante decidir se continuamos ou
desistimos, se ficamos ou partimos. Se partimos do bairro, da cidade, do
país, da casa, do trabalho, das amizades ou do casamento, entre outras
tantas relações. Momentos de encruzilhada, difíceis, angustiantes,
dolorosos, em que pesam todas as minuciosas avaliações, os infindáveis
balanços, as desoladas comparações entre o que fizemos ou deixamos de lado.
Contudo, se decidimos ficar, convém que a opção seja clara e verdadeira,
para que se possa viver com alegria e com humor, pois rir é fundamental.
Como diz Sílvio Gallo, "a alegria é a prova dos nove".


É como alguém que diz sim à existência que vejo Foucault, alguém que
sabemos ter enfrentado momentos de muita pressão, angústia e dor, quando
recorremos à sua biografia. Alguém que desce aos infernos, confronta-se
consigo mesmo e com a morte, e opta por retornar e ficar. Doravante, a
força do sim proferido afeta e contamina toda a sua vida e pensamento.


Em seu novo livro, Foucault, sa pensée, sa personne, Veyne percebe o
amigo como um samurai magro e elegante, que usa com maestria os seus textos-
espadas. E adverte: este "guerreiro não é o 'espírito que sempre nega
tudo'. Foucault não é um desses pessimistas amargos que sonham em dinamitar
o planeta" (VEYNE, 2008, 70). Mais à frente, acrescenta: "Também estou em
condições de provar que Foucault não era o diabo, como acreditaram alguns,
e não os menos importantes", para quem tudo o que ele queria era arruinar
toda moral e toda normalidade (VEYNE, 2008, 168).


Discordando da difundida imagem de cético, Veyne entende que quando
Foucault nega a verdade, trata-se das idéias universais, das verdades
gerais, mas não de um ceticismo absoluto. "Positivista inesperado", diz
ele, jamais descarta os pequenos fatos, os pequenos acontecimentos da vida
cotidiana, como os céticos gregos, aliás. Contudo, esses acontecimentos só
podem ser percebidos por um ponto de vista e por meio de discursos; não se
trata, pois, de relativismo nem de historicismo, mas de perspectivismo. Por
exemplo, continua Veyne, para Foucault,






não se encontra em parte alguma a sexualidade em "estado
selvagem"; esta planta não se encontra senão num estado de
planta cultivada num discurso, ao mesmo tempo prisioneira
e guarda de um dispositivo em que é imanente o discurso,
este a priori histórico efêmero (....). Estou sugerindo
apenas que não se poder alguma coisa sem "ter uma idéia a
respeito"; diante de um recém-chegado, a criança diz "é um
papai", tal é o seu discurso antropológico (VEYNE,
2008,75).






Portanto, não há como pesquisar um objeto nu, um referente pré-
discursivo: "só um deus saberia o que é a loucura pré-discursiva ou a erva
em si." Citando Schaeffer, Veyne prossegue sua argumentação:






A postura epistemológica de Foucault não consistia em
reduzir o real ao discurso, mas em lembrar que, desde que
um real é enunciado, ele já está sempre discursivamente
estruturado. Nesse sentido, a afirmação da irredutível
diversidade das colocações em discurso não implicava nem
um idealismo reduzindo a realidade ao pensamento, nem um
relativismo ontológico (Apud VEYNE, 2008, 77).





Procuro, nesse texto, destacar a dimensão positiva do pensamento de
Foucault, a "vontade de potência"[2], o Sim dionisíaco, que os seus
opositores ignoraram, ao acusarem-no de irresponsável, de ter apenas
atitudes negativas e de não propor nada, como bem lembra Abraham
(2003,178). Ao contrário, encontro um Foucault que insistentemente diz sim
à vida e, valendo-me da expressão de Veyne, também parceiro nesse meu
trabalho, que "não corrompe a juventude", ou ainda, cuja atitude traduz,
segundo Abraham,





um nihilismo gerreiro, hiperativo, que impulsiona a
desmontagem das peças de um bovarismo que nos faz crer que
o conhecimento e a ação se originam em um mundo feito à
medida de nossa necessidade de um final feliz. Nem toda a
realidade é diagramada nos estúdios de Hollywood, nem nas
academias das belas almas da filosofia (ABRAHAM, 2003,
182).





Esse dizer sim, esse afirmar não é a aceitação passiva do instituído,
não é o Sim do burro de Zaratustra, para quem afirmar é carregar o peso do
mundo, é assumir a realidade tal qual ela é, já que ele é sensível apenas
àquilo que tem sobre o lombo, àquilo a que chama de real. Como diz Deleuze:
"o asno carrega inicialmente o peso dos valores cristãos; depois, quando
Deus está morto, carrega o peso dos valores humanistas, humanos – demasiado
humanos; finalmente, o peso do real, quando há não há valor algum"
(DELEUZE, 2006, 159). E adverte que, na verdade, o asno diz Não, pois "é a
todos os produtos do nihilismo que ele diz sim". É um Sim de "resposta ao
espírito de gravidade e a todas as suas solicitações" (DELEUZE, s/d, 272).
Ao contrário, o afirmar de que falamos diz respeito à criação, à dança e à
vida:


o Sim de Zaratustra é a afirmação do dançarino, o Sim do
asno é a afirmação do carregador; o Não de Zaratustra é o
da agressividade, o Não do asno é o do ressentimento
(DELEUZE, 2006, 160). Afirmar é aliviar: não carregar a
vida com o peso dos valores superiores, mas criar valores
novos que sejam os da vida, que façam a vida leve e ativa
(DELEUZE, s/d,275).



Desdobro essas reflexões em três direções, considerando o pensamento
de Foucault: a sua noção de crítica, como prática que faz viver, que dá
visibilidade a acontecimentos e a saberes silenciados; a conexão com o
passado, a reconstrução dos elos perdidos com a tradição; os modos de
existência que nos são abertos, desde que Foucault decreta a morte do
Homem, o que não acaba por isso com a Humanidade, e historiciza a
subjetividade.





- multiplicar os sinais de existência






Convido, então, a prestar atenção à maneira pela qual Foucault
poeticamente transforma e potencializa a noção de crítica, ao abri-la para
um acolhimento e comemoração do que deve ser apreciado, valorizado e
prestigiado, ao contrário da maneira pretensamente objetiva,
classificatória, arrogante e negativa, que incita a julgar e a condenar de
cima, de fora e do alto, em nome da verdade única. Diz ele,



Não posso me impedir de pensar em uma crítica que não
procurasse julgar, mas que procurasse fazer existir uma
obra, um livro, uma frase, uma idéia; ela acenderia fogos,
olharia a grama crescer, escutaria o vento e tentaria
apreender o vôo da espuma para semeá-la. Ela multiplicaria
não os julgamentos, mas os sinais de existência; ela os
provocaria, os tiraria de seu sono. Às vezes, ela os
inventaria? Tanto melhor, tanto melhor. A crítica por
sentença me faz dormir. Eu adoraria uma crítica por
lampejos imaginativos. Ela não seria soberana, mas vestida
de vermelho. Ela traria a fulguração das tempestades
possíveis (FOUCAULT, 2001, 925).


Nessa concepção, criticar é dar vida, fazer existir, ressaltar as
configurações que contornam e conformam o objeto, considerar as práticas
que o constituem, descrevê-lo em sua empiricidade, observando-o e escutando-
o, sem enquadramentos conceituais apriorísticos, ou simplesmente, sem
preconceitos. Foucault convida a libertar o acontecimento, considerando-o
em sua própria temporalidade. Assim, a história é fundamental para esse
pensamento filosófico, pois é ela que pode apreender as singularidades dos
fenômenos humanos, vividos e lembrados.


Ao contrário de explicações totalizadoras que produzem sínteses e
conceitos abstratos, esse filósofo-historiador pratica um outro modo de
conhecer o passado, munindo-se de um olhar atento para o miúdo, o pequeno,
os detalhes e, portanto, sensível às singularidades das experiências
humanas. Nesse sentido, exemplifica Veyne, ao aceitar a idéia de que o amor
é um sentimento universal definido de X maneiras, ao contrário de inventar
invariantes ao longo da História, Foucault pede que percebamos as
singularidades, as diferenças que caracterizam as experiências humanas
(VEYNE, 2008, 20). Nesta ótica, o prazer na Antiguidade, a carne no
cristianismo, a sexualidade para os modernos, o gênero para os pós-modernos
remetem a experiências muito singulares na relação amorosa-sexual. Do mesmo
modo, a democracia moderna, explica Veyne, em nada se aproxima da
democracia ateniense.


Foucault desconstrói os discursos lineares que estabelecem a
continuidade histórica e permitem legitimar o presente. "O saber", diz ele,
na esteira de Nietzsche, "não é feito para compreender, ele é feito para
cortar." Rompe com as linearidades, com as narrativas históricas que
constroem o passado como realidade objetiva e que nos fazem herdeiros
progressistas de uma grande tradição. Rompe com essa tradição, desfaz os
fios que nos amarram a ela, mostra sua fragilidade, implode conceitos,
desacredita as verdades estabelecidas, como já mostraram inúmeros estudos.


Contudo, estaríamos longe dele se por aí considerássemos o seu
ceticismo. É preciso ir além. Isto significa perceber como Foucault nos
reata a outras tradições, a partir de novas relações, que, por sua vez,
definem outras tradições possíveis, existentes em nosso repertório de
experiências. Nessa direção, a Antiguidade renova-se aos nossos olhos
libertos do confinamento imposto pelas lentes do século XIX, ao ser
indagada a partir dos conceitos da subjetivação, do cuidado de si, da
parresia e das artes da existência, entre outros. A necessidade de reler
esse passado coloca-se novamente, porém, de um novo modo, em que se marcam
claramente as grandes distâncias e as imensas diferenças entre o que somos
e o que foram os nossos antepassados. É preciso deslegitimar o presente,
desfazendo os fios da continuidade histórica, que sustentam as noções de
identidade e de natureza humana. É preciso reler o passado e construir
novas narrativas históricas.





- uma nova conexão com o passado





O tema da ruptura com a tradição foi dramaticamente aprofundado por
Hannah Arendt (1979). Comentando o aforismo de René Char, segundo o qual
"nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento" ("notre heritage
n´est précédé d´aucun testament"), diz ela:





Sem testamento, (...) ou sem tradição – que selecione e
nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se
encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não
haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e
portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas
tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo
biológico das criaturas que nele vivem. O tesouro foi
assim perdido, não mercê de circunstâncias históricas e da
adversidade da realidade, mas por nenhuma tradição ter
previsto seu aparecimento ou sua realidade; por nenhum
testamento o haver legado ao futuro (ARENDT, 1979,31).






Como mostra Duarte, os perigos iminentes dessa possível ruptura com o
passado inquietavam profundamente a filósofa alemã:






A ruptura do fio da tradição implicava o risco de um
bloqueio no acesso aos "tesouros" do passado, o que, por
sua vez, poderia implicar que não mais se pudesse
compreender o presente. (...) Um dos riscos instaurados
pela ruptura da tradição é o de que ela traz consigo o
perigo de que o passado se torne inacessível e seja,
portanto, totalmente esquecido (DUARTE, 2000, 122).






A questão é, sem dúvida, muito séria, já que, como reflete a autora,
em Origens do Totalitarismo, de 1951, os regimes totalitários construíram-
se a partir de estratégias de atomização dos indivíduos, de curtocircuito
nas experiências comunitárias, de quebra dos vínculos espontâneos
estabelecidos entre os indivíduos e os grupos sociais, assim como por um
esvaziamento da experiência coletiva, o que inclui um apagamento da
História e a perda da tradição.


E´ a destruição das redes de articulação política, como os
sindicatos, as comissões operárias, as formas espontâneas de organização de
base, tanto quanto sociais, - clubes, associações de moradores, grupos de
lazer - que se tornam focos de violenta repressão do Estado, assim como o
silenciamento dos acontecimentos e vozes consideradas ameaçadoras e
indesejáveis. O apagamento da História é fundamental para os regimes
totalitários, que se apropriam do passado para fins utilitários, produzindo
um sistema único de interpretação histórica e de construção da "verdade".


Sem laços afetivos e sociais suficientemente fortes para ancorá-los,
sem compromissos políticos que os envolvam e articulem, sem História comum,
os indivíduos ficam soltos e cada vez mais fragilizados em sua solidão;
isolados e desamparados, tornam-se vulneráveis à propaganda totalitária,
presas fáceis para o poder. Nas palavras de Arendt:



O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que
tem de acabar com a existência autônoma de qualquer
atividade que seja, mesmo que se trate de xadrez. Os
amantes do "xadrez por amor ao xadrez", adequadamente
comparados por seu exterminador aos amantes da "arte por
amor à arte", demonstram que ainda não foram totalmente
atomizados todos os elementos da sociedade, cuja
uniformidade inteiramente homogênea é a condição
fundamental para o totalitarismo.(...) Os movimentos
totalitários são organizações maciças de indivíduos
atomizados e isolados (ARENDT, 1979, 50).


Indivíduos isolados uns dos outros, incapazes de estabelecer redes de
relações solidárias, carentes da interação humana possível com o mundo na
esfera pública e privada tornam-se indiferentes e desinteressados também em
relação a si mesmos. Como afirma Duarte, ao analisar o pensamento
arendtiano: "A perda dos interesses é idêntica à perda de si, e as massas
modernas distinguem-se (...) por sua indiferença quanto a si mesmas
(selflessness), quer dizer, por sua ausência de interesses individuais"
(DUARTE, 2000, 51).

O poder totalitário distribui os indivíduos, isola-os, classifica-os e
organiza-os de modo a facilitar a dominação, como mostra tão bem Foucault,
nos anos setenta, em sua crítica ao mundo fascista. Vigiar e Punir é, nesse
sentido, um estudo profundo da formação da sociedade disciplinar, sociedade
totalitária por excelência, produtora de "corpos politicamente dóceis, mas
economicamente produtivos". Não é à toa que o livro se encerre com os
ruídos produzidos pela resistência dos fourieristas e dos anarquistas do
jornal La Phalange (FOUCAULT, 1976).


O desinteresse pela disciplina da História e, em especial, pela
História da Antiguidade não precisa ser muito explicado. A ausência de
pontes verdadeiras com o passado se evidencia na visível indiferença pelos
antigos, especialmente quando tomamos contato com essa herança revisitada
por Foucault, em que outros passados se delineiam.


É inevitável perguntar como um uso particular do passado, sobretudo
da Antiguidade greco-romana, como mostra Funari, ateve-se a dimensões que
hoje nos parecem extremamente negativas (FUNARI, 2003). Portanto, as
práticas que foram lidas pela ótica do mesmo se perderam, pois foram
eliminadas em operações teóricas e ideológicas sutis. Basta pensarmos em
como entendemos tão bem determinadas noções, enquanto outras exigem muita
reflexão, explicação e historicização. Refiro-me, por exemplo, à noção de
sujeição, oposta à de subjetivação; à de retórica, contrária à parresia; ao
culto narcisista do corpo, muito distantes das estéticas da existência
desenvolvidas pelos antigos. É inevitável perguntar a que vem a ênfase
insistente do lado do poder, da domesticação, do confinamento e da morte?


Consideremos a relação sujeição/subjetivação. A construção da
cidadania aparece, nos textos das elites modernas, como lições de
obediência e subserviência, cujos efeitos podem ser sentidos numa sociedade
que valoriza avidamente os manuais de autoajuda. Ensinados quando crianças
e adolescentes a repetir a ordem e a obedecer aos regimentos, os adultos
reclamam que se lhes apontem os rumos a serem seguidos, os scripts a serem
performatizados, as verdades a serem acreditadas, os/as líderes a serem
obedecidos. Inúmeros pensadores e políticos modernos recorreram aos antigos
para mostrar como a figura do cidadão que promoviam atendia às exigências
da natureza e da normalidade, da evolução e do progresso, pois havia sido
estabelecida desde aqueles tempos imemoriais. A título de ilustração, o
médico Renato Kehl, - introdutor da eugenia no Brasil, no final dos anos de
1910 -, preocupado com a formação do povo brasileiro, escreve A Cura da
Fealdade (1923), livro em que sugere técnicas modernas de embelezamento da
população. Referindo-se à Antiguidade grega, como mostra Pietra Diwan, ele
procurava justificar seus procedimentos como forma de reatar os vínculos
com os nobres ideais da civilização, desde suas origens e dar-lhes
continuidade (DIWAN, 2003). Dizia ele:





Imitemos os gregos dos tempos heróicos, no que eles tinham
de belo e salutar. Esforcemo-nos como eles para reabilitar
física e moralmente os atributos humanos que a degeneração
se propõe a alterar. Embelezemos a espécie humana, certos
de que a beleza pode ser criada à nossa vontade. Não é
utópica essa afirmativa (KEHL apud DIWAN, 2003, 32).


Já a subjetivação, noção que designa as práticas refletidas da
liberdade por meio das quais os indivíduos se constituem, não constava de
nosso vocabulário cotidiano até muito recentemente, e ainda coloca muitos
desafios ao entendimento. Como é que nos constituímos em relação aos
códigos morais vigentes, a partir de que referências, de que regime de
verdades, de que valores, de que crenças e de que práticas? O que
entendemos por disposições éticas? Que parte de nós entregamos, deixamos
capturar? Por quem? Por que? Em que condições?

O tema é relativamente recente e tem sido objeto de muitas reflexões
e pesquisas sociológicas, antropológicas e históricas, na atualidade,
desdobrado, em grande parte, a partir das conexões com Deleuze. Mas, vamos
lembrar, esse tema entra na agenda surpreendendo como uma grande novidade,
apenas na década de oitenta. A subjetividade não havia sido problematizada
de forma tão explícita, sobretudo além dos estudos psicológicos ou
psicanalíticos; aliás, na década anterior, os movimentos sociais lutavam
fortemente para a afirmação das identidades e não por sua desnaturalização
ou desconstrução. Pouco se falava, nessa direção, sobre a própria história
da noção de identidade, tão cara ao século XIX, como mostram Courtine e
Haroche (1988).

Em relação à retórica e à parresia, sabemos que a primeira, tão
constante em nosso vocabulário, é ensinada oficialmente nas faculdades de
Direito, formando profissionais aptos a deslocarem-se, sem hesitação, do
papel da defesa ao da acusação, dependendo do tipo de contrato oferecido.
Não está em questão a dimensão ética da verdade, mas a construção de
argumentos hábeis que permitem defender ou acusar, valendo-se das mesmas
provas e dos mesmos depoimentos. Já a parresia, o falar franco em situação
de risco, embora faça parte da mesma tradição grega e conste dos
dicionários, só nos chega muito recentemente, pelas últimas pesquisas de
Foucault, necessitando ainda de um longo trabalho de entendimento e
difusão. Pede, ao mesmo tempo, uma reavaliação do que foi feito com a
herança recebida, mas não transmitida. Retomando os ensinamentos de Arendt,
herança que não foi incorporada não se torna tradição.

Segundo Foucault, o parresiasta é aquele que tem "a coragem da
verdade", que se arrisca, que não teme correr riscos, que ousa dizer a
verdade acerca das instituições e decisões políticas diante dos poderosos,
sem temer o rei. Ao mesmo tempo, a prática parresiasta está distante da
confissão, dessa relação com a verdade que ele entende como um importante
dispositivo de controle do indivíduo e de instauração da obediência. Quanto
mais o indivíduo é incitado a exprimir o seu eu mais profundo e a revelar
as suas emoções mais íntimas, sobretudo pela confissão, tanto mais fica
submetido a essa forma de poder denominada de "governo por
individualização", que se exerce na vida cotidiana, vinculando-o à sua
identidade (GROS, 2006). Finalmente, o parresiasta também se distancia do
"militante iluminado", aquele que se sente em condições de impor ao outro o
que acredita ser a única verdade possível.
Nessa referência do cuidado de si dos antigos em que se inscrevem as
práticas parresiastas, trata-se da construção de uma "subjetividade
expressiva", segundo Nancy Luxon, em oposição ao sujeito dividido e
alienado para Marx, ou neurótico e obsessivo para Freud (LUXON, 2008, 390).
Ao contrário deste, que vai para dentro em busca dos segredos do desejo, as
práticas parresiastas de auto-formação se detêm na superfície da atividade.
Primeiro, trata-se de perceber-se a si mesmo, de prestar atenção aos
próprios movimentos e respostas, de escutar-se. Contudo, o conhecimento de
que aqui se fala não implica uma hermenêutica do sujeito, uma conversão a
si nem no estilo platônico, com base na reminiscência do que a alma
conheceu em outros tempos, nem no modelo cristão, que investe na recusa de
quem se é, na crítica aos próprios desejos, na culpabilização do prazer e
na renúncia a si, como bem mostrou Salma Muchail (MUCHAIL, 2006). Para
fornecerem um modelo de autogoverno ético, as práticas da parresia devem
ser capazes de formar sujeitos coerentes no dizer e no agir, sem que suas
relações sejam disciplinares ou de constrangimento, sem objetivação dos
indivíduos num "corpo de conhecimentos", sem que as técnicas paidéticas da
parresia se transformem em ortopedia. Foucault enfatiza as atividades que
estruturam as relações individuais com outros. Segundo ela,

Enquanto as imagens espaciais do Panóptico organizam os
corpos projetando uma ordem espacial sobre eles, a
parresia mantêm os indivíduos como são definidos pela
particularidade da elaboração e ritmo que dão às suas
práticas. As práticas da parresia educam o indivíduo para
uma "disposição à firmeza". Como atingir esse auto-domínio
que não é ortopédico? Não busca a verdade de si na
interioridade, mas examina os próprios passos para
adquirir uma firmeza de orientação. Diferentes das
tecnologias confessionais, as técnicas parresiastas
ensinam duas coisas: ensinam o indivíduo a estabelecer seu
padrão de valores e então a começar o trabalho paciente de
mover-se entre esse padrão e o mundo em que vive. Nada de
criação de um código ético universal que deva ser
internalizado como consciência, mas criação de relações
consigo e com os outros que forneçam um contexto imediato
de reconhecimento desses valores em uma comunidade (LUXON,
2008, 388).


Culto narcisista do corpo/estéticas da existência. As academias de
ginástica, spas, clínicas de estetização crescem e oferecem toda sorte de
produtos de emagrecimento, lifting, bodybuilding, fortalecimento muscular,
rejuvenescimento. Ortega e Sant´Anna têm excelentes estudos, em que mostram
como se produzem e processam as formas da bioascese contemporânea, ou da
produção das bioidentidades (ORTEGA, 2008; SANT´ANNA, 2001), modo em que a
subjetividade se encontra no próprio corpo que deve ser modelado,
transformado, adaptado.

Já as artes da existência dos antigos gregos, a cultura de si dos
romanos, que pregam um trabalho de construção de si a partir de códigos
éticos e de práticas da liberdade nos chegam num momento em que estetizar o
corpo, o meio e a própria vida está no discurso do capital e nas
propagandas da mídia, que apontam para um mundo da beleza, da perfeição e
da harmonia. No entanto, trata-se de um investimento narcisista sobre um
indivíduo que perdeu as pontes com o mundo, que desconhece a história, que
vive numa temporalidade tão individualizada que inviabiliza a comunicação e
a relação com o outro, na vida cotidiana. Muito diferente da experiência do
cuidado de si do paganismo, que, em suas diferentes modalidades, não
consiste em uma atividade solitária, não se destina a separar o indivíduo
da sociedade, mas supõe as relações sociais, pois ocorre nos marcos da vida
social e comunitária. Como explica Foucault, "o cuidado de si (...) aparece
como uma intensificação das relações sociais." Não se trata de renunciar ao
mundo e aos outros, mas de modular diferentemente a relação com os outros
pelo cuidado de si.

Muito se falou sobre a atomização do indivíduo e do empobrecimento da
experiência na contemporaneidade, temas caros a Arendt, Foucault, Sennett e
Agamben, entre outros. Vale lembrar, porém, o quanto as esquerdas tendem a
perceber o "cuidado de si" do mundo greco-romano pelas lentes
domesticadoras da direita, ignorando totalmente essa tradição. Já o capital
se enriquece e se apropria, respondendo com meios muito eficazes de
persuasão e lucro.
Em suma, Foucault, o chamado "filósofo das rupturas e da
descontinuidade", constrói novas pontes com o passado, revive e renova a
tradição, mostra-nos antigas experiências de autonomia, em nosso próprio
passado, construídas a partir de práticas da liberdade, rompidas, perdidas,
silenciadas. Aqui, lembro sua indignação e luta pelos direitos da História,
expressas em A Arqueologia do Saber:


Denunciaremos, então, a história assassinada, cada vez que
em uma análise histórica – e sobretudo se se trata do
pensamento, das idéias ou dos conhecimentos – utilizarmos
de maneira demasiado manifesta, as categorias da
descontinuidade e da diferença, as noções de limiar,
ruptura e transformação, a descrição das séries e dos
limites. Denunciaremos um atentado contra os direitos
imprescritíveis da história e contra o fundamento de toda
historicidade possível (FOUCAULT, 1986, 16).


Não é de ruptura com a tradição, de quebra entre passado e presente
que fala Foucault quando busca construir uma história genealógica, que dê
vida ao que ficou silenciado nos marcos da disputa da origem e da fundação?
Foucault não declara, também aqui, o seu imenso amor pelo mundo?





- as subjetividades: uma inovação total





Voltamos para a frase de Marx: o homem produz o homem.
Como entendê-la? Para mim, o que deve ser produzido não é
o homem tal como teria desenhado a natureza, ou tal como
sua essência o prescreve; temos de produzir alguma coisa
que ainda não existe e que não sabemos o que será
(FOUCAULT, 1994,75).






Segundo ele, produção nesse caso não signifique liberar as forças
produtivas, mas transformar o que somos e criar algo totalmente outro, uma
inovação total:





ao longo de sua história, os homens não cessaram de se
construir a si mesmos, isto é, não cessaram de deslocar
continuamente sua subjetividade, de se constituir em uma
série infinita e múltipla de subjetividades diferentes,
que não terão fim jamais e que não nos colocarão jamais
diante de algo que seria o homem. Os homens se engajam
perpetuamente num processo em que, constituindo objetos,
desloca-os ao mesmo tempo, deforma-os, transforma-os, e
transfigura-os como sujeitos. Ao falar da morte do homem,
de maneira confusa, simplificada, é isto o que eu queria
dizer; mas não cedo sobre o fundo da questão. Aí está a
incompatibilidade com a escola de Frankfurt" (FOUCAULT,
1994,75).






É impressionante constatar como, logo após a publicação dos volumes 2
e 3 da História da Sexualidade, os críticos de Foucault passaram a discutir
se estaria ocorrendo um "retorno ao sujeito" em seu pensamento. Páginas e
páginas foram escritas, acusando ou defendendo essa tese. Ao invés da
atenção às suas novas descobertas, gran de parte da crítica deslocou-se
para o que considerava a falha, o furo, a "contradição interna" do seu
pensamento. E, assim, mediante a correção das falhas, reafirmava-se o
mesmo. As imensas asas de Tânatos sobrevoavam o mundo acadêmico, enquanto
Eros caía prostrado, desalentado.


O ponto crucial desse debate parecia ficar à margem nas análises dos
críticos céticos de Foucault: a importância de estudarem-se as práticas
formadoras dos modos de ser na história das origens e das transformações
éticas (RAJCHMAN, 1989). Nesse percurso, Foucault descobria práticas da
liberdade na constituição de si, estilísticas da existência, e fortalecia-
se empiricamente para produzir novas ferramentas conceituais para enfrentar
o presente e o futuro que já se anunciava. Se o neoliberalismo trazia à
cena a flexibilização, apontando para o "homem flexível e endividado", como
diz Deleuze, Foucault acenava com a possibilidade de intervenção política
no processo de constituição do eu ético, o que era muito benvindo pelos
intelectuais libertários. Edson Passetti, por exemplo, percebeu desde cedo
um Foucault anarquista, indomável, rebelde, "vital para quem inventa
espaços, habita contraposicionamentos, utopias efetivamente realizadas, as
heteretopias" (PASSETTI, 2006,109).


Mas, vale perguntar: afinal, no campo das reflexões sobre as
transformações sociais, que lugar havia nos quadros mentais de décadas
atrás para serem tematizados tanto o cuidado de si, quanto as práticas
parresiastas do mundo Greco-romano? Difícil experiência desse pensamento
intempestivo, sempre em luta contra poderosas forças inibidoras, para
potencializar a vida, para dizer sim à existência.

Naquele momento, embora os discursos utópicos problematizassem a
formação do "homem novo", ainda não se colocara nenhuma reflexão sobre a
necessidade de uma história das práticas de conversão a si, tampouco
alguma reflexão mais pertinente sobre o que se poderia enteder por
"subjetividade revolucionária". Quando muito, falava-se indiscriminadamente
na necessidade da "auto-crítica", termo famoso no discurso das esquerdas,
que designava muito mais um movimento de disciplinarização pessoal, de
sujeição do que de autonomia ou de construção pessoal.
Aliás, em um dos seus cursos, discutindo as técnicas de si construídas
em nossa tradição e as formas imaginadas de construção de outros modos de
existência, Foucault aborda o tema da produção da "subjetividade
revolucionária". Historicizando essa experiência, perguntando por sua
emergência, sugere que é desde meados do século XIX, que o antigo tema de
um trabalho sobre si se conecta com a idéia da revolução política, da
"conversão à revolução". Em suas instigantes palavras:



Parece-me que é a partir do século XIX (...) seguramente
por volta dos anos 1830-40, e justamente em referência
aquele acontecimento fundador, histórico-mítico que foi
para o século XIX, a Revolução Francesa, que se começou.
Parece-me que, ao longo do século XIX, não se pode
compreender o que foi a prática revolucionária, não se
pode compreender o que foi o indivíduo revolucionário e o
que foi para ele a experiência da revolução se não se leva
em conta a noção do esquema fundamental da conversão à
revolução. O problema, então, estaria em examinar de que
modo se introduziu este elemento que procedia da mais
tradicional - (...) pois que remonta à Antiguidade -
tecnologia de si que é a conversão, de que modo se atrelou
ele a este domínio novo e a este campo de atividade nova
que era a política, de que modo este elemento da conversão
se ligou necessariamente, senão exclusivamente, à escolha
revolucionária, à prática revolucionária. Seria preciso
examinar também de que modo esta noção de conversão foi
pouco a pouco sendo validada – depois absorvida, depois
enxugada e enfim anulada – pela própria existência de um
partido revolucionário. E de que modo passamos do
pertencimento à revolução pelo esquema de conversão ao
pertencimento à revolução pela adesão a um partido
(FOUCAULT, 2004b, 256).

A reviravolta que Foucault efetua ao recolocar a questão da produção
da subjetividade tem sido bastante discutida e avaliada. Diante da falência
de um modo de pensar, outras portas de entrada se abriram; novos
acontecimentos puderam produzir-se, interpelando-nos política e
subjetivamente. As pontes haviam sido construídas. Uma nova aliança com o
mundo se firmava e afirmava.




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[2] "A vontade de potência, em seu mais elevado grau, sob sua forma intensa
ou intensiva não consiste em cobiçar e nem mesmo em tomar, mas em dar e em
criar. (...) é Dionísio. (...) É afirmação da diferença, jogo, prazer e
dom, criação da distância" (DELEUZE, 2006, 158).
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