Dízimo: Liberdade ou Servidão?

July 24, 2017 | Autor: R. Silva E Silva | Categoria: Teologia, Teologia Contemporânea, Liberdade Religiosa, Calvinismo, Dízimo, Liberdade Cristã
Share Embed


Descrição do Produto

1

DÍZIMO: LIBERDADE OU SERVIDÃO

1. Introdução A ênfase na pregação do dízimo nas igrejas reformadas e evangélicas se apresenta como um grande obstáculo e uma contradição explícita da liberdade cristã. Tal pregação e entendimento equivocado da historicidade do dízimo é responsável por uma religiosidade vazia que eleva o trivial ao status de especial. O culto cristão que tinha antes como objetivo maior a glorificação de Deus, parece mais uma casa de investimento, onde as pessoas vão investir dinheiro de seu trabalho suado e em troca alcançar bençãos (lucros). E tudo isso sob o disfarce de contribuir para a obra de Deus. Neste artigo faremos uma crítica sobre tal “doutrina” nas igrejas cristãs. E para isso utilizaremos como referência o texto de Hernandes Dias Lopes, publicado em seu site 1. Utilizamos este texto porque o mesmo foi redigido pelo autor para resolver algumas discussões no seio da igreja sobre o assunto. Um outro motivo é que esse texto é um resumo da ideia doutrinária das igrejas cristãs Reformada e Evangélica atuais a respeito dízimo.

1 LOPES, Hernandes Dias. Dízimo, uma prática bíblica a ser observada. Palavra da Verdade, Vitória/ES, fev. 2013. Disponível em . Acesso em: 27 fev. 2015.

2

2. Dízimo, uma prática bíblica a ser observada2 O que motivou Lopes a escrever este artigo são os vários comentários em redes sociais acerca da prática do dízimo. O que mais fez o reverendo lançar mão de seu computador e escrever algumas linhas foi a denúncia de pessoas em dizer que pastores ludibriam os fiéis com a defesa da prática do dízimo para se locupletarem com o auxílio da autoridade bíblica. O próprio Lopes admite que no meio cristão existem pastores que se aproveitam do dízimo para se enriquecerem, mas isso não anula a doutrina bíblica do dízimo. E em sua defesa e das igrejas reformadas – mais propriamente a igreja presbiteriana – o reverendo faz uma separação entre “nós” e “eles”, da seguinte maneira: Não subscrevemos os muitos desvios de igrejas que, laboram em erro, ao criarem mecanismos místicos, sincréticos e inescrupulosos para arrecadar dinheiro, vendendo água fluidificada, rosa ungida, toalha suada e até tijolo espiritual. Essas práticas são pagãs e nada tem a ver com ensino bíblico da mordomia dos bens. O fato, porém, de existir desvio de uns, não significa que devemos afrouxar as mãos, no sentido de ensinar tudo quanto a Bíblia fala sobre dízimos e ofertas. (LOPES, 2013)3

Lopes identifica nas igrejas neopentecostais uma banalização do dízimo. Sem dúvida os mecanismos denunciados pelo reverendo são imorais, mas acusar a imoralidade não o faz ser moral. Há tempos as igrejas reformadas e, não somente, o catolicismo, vem perdendo membros para as igrejas neopentecostais. E já existe explicitamente na internet uma reação por parte de teólogos reformados para combater o avanço neopentecostal. De maneira mais inteligente, os reformados viram que precisam atacar naquilo que fez muitos membros trocarem de igrejas e não apenas enriquecer teologicamente as suas escolas bíblicas, ou seja, serem mais pragmáticos sem deixarem de ser conservadores em se tratando de submissão bíblica (sola scriptura). Por isso a crítica de Lopes visa enfraquecer o perfil místico-pagão do neopentecostalismo, mas protegendo a pureza da prática do dízimo. Dessa forma o teólogo calvinista aponta o erro óbvio e a liturgia pagã dos cultos neopentecostais para aqueles que outrora abandonaram a igreja reformada. Com o auxílio das redes sociais sua mensagem é transportada a milhares de fiéis e assim, esses podem refletir melhor sobre a prática do dízimo e, principalmente, sobre a prática nada cristã de sua nova denominação. 2 Usamos o próprio título do artigo de Hernandes Dias Lopes neste primeiro capítulo por motivos óbvios, ou seja, este capítulo trata da visão do autor. 3 Neste capítulo o texto que nos referimos é o mesmo apresentado na nota de rodapé 1.

3 Lopes continua com sua defesa da prática do dízimo agora fundamentando-se no Antigo Testamento. Primeiro defende que a prática do dízimo antecede a Lei e apresenta o ocorrido entre Abrão e Melquisedeque (Gn 14:18-20). Argumenta aqui contra aqueles que não dizimam por entenderem que esta prática é estritamente judaica e não tem relação com o cristianismo. Em seguida apresenta a sanção do dízimo na Lei, aquela prática antiga agora se tornara uma ordenança divina (Lv 27:32). E aqui o argumento contra os não-dizimistas obviamente torna-se mais severo, pois agora é pecador todo aquele que não dizima. Em continuidade ao seu pensamento, nosso teólogo indica que toda a Bíblia ratifica o dízimo, inclusive o Novo Testamento (Mt 23:23). Lopes apela para a autoridade de Jesus e afirma que o mesmo sancionou o dízimo. E novamente seu julgamento àqueles que insistem na não observância desta ordem divina é severo, pois tornam-se ladrões de Deus. O texto do reverendo presbiteriano é um bom resumo do que pensa a maioria dos pastores reformados e evangélicos tradicionais. No próximo capítulo analisaremos os principais pontos de defesa de Lopes e colocaremos à prova a ideia reformada e tradicional do dízimo. Partiremos da questão: - As fundamentações bíblicas utilizadas por Lopes são válidas para a defesa da prática do dízimo no meio cristão? E tentaremos responder a seguinte questão: - Qual é o verdadeiro entendimento da doutrina do dízimo?

3. Uma análise crítica da ideia reformada do dízimo A nossa tentativa aqui é encontrar algum paralelo entre o dízimo da Lei e o dízimo da igreja hodierna. Pois para a maioria dos teólogos reformados e evangélicos há esse paralelo. O dízimo era uma obrigação da Lei Mosaica e tinha como objetivo “o sustento dos sacerdotes e levitas ou do rei”4 A ideia do hebreu antigo era que Deus sendo dono e criador de toda a terra nada mais justo que Lhe ofertar as primícias da colheita 5. Interessante observarmos que a prática do dízimo não seguia um padrão preestabelecido que jamais poderia ser modificado, mas em Deuteronômio 12 podemos ver algumas variantes do dízimo. Como também afirma Shulam: A Torá ordenou o povo a trazer os sacrifícios e a dar vários diferentes tipos de dízimos. Eles tinham um dízimo para os sacerdotes e levitas e também tinham que deixar algumas de suas colheitas no campo para alimentar os pobres. Os israelitas 4 BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 1977, p.407. 5 Ibidem, p.407.

4 antigos tinham diferentes tipos de doações6

Parece que em nossas igrejas hodiernas o dízimo se tornou muito mais do que a própria Lei não diz que ele seja. Aquilo que Lopes acusa no neopentecostalismo parece ressoar nas paredes reformadas e evangélicas. Aquilo que Lopes acusa de misticismo pagão nos cultos neopentecostais, parece-me que o mesmo acontece em ambiente reformado, porém com uma certa elegância erudita. Lopes tem a preocupação sincera de seguir os ensinamentos bíblicos, no entanto essa preocupação tem mais ênfase quando se trata do dízimo. Quando esse é banalizado pela liturgia neopentecostal ou quando é criticado pelos não-dizimistas, o nosso teólogo se arma com alguns versículos isolados para defender a sua pureza. Analisaremos agora o versículo usado como fundamento para a sanção do dízimo por parte de Jesus, usado por Lopes. Mt 23:23 Não é correto citar este versículo isolado para entender que Jesus sancionou o dízimo. Mateus 23 consiste nos “ais” de Jesus. Há uma sequência muito rica que apresenta o Senhor admoestando seus ouvintes. No caso em particular do versículo 23 é necessário ler os versículos seguintes. O versículo 24 é fundamental e serve de resumo enfático do versículo 23, quando Jesus diz: “Condutores cegos! Que coais um mosquito e engolis um camelo”. Lopes parece ignorar que Jesus está fazendo comparações. Ignora que Jesus está usando a própria Lei contra aqueles que dizem ser zelosos dela. Se a Lei é tão importante, por que vocês apenas praticam as coisas menores e ignoram as maiores? E no versículo utilizado pelo nosso teólogo, o dízimo é a coisa menor, a coisa simples, enquanto que coisas maiores estão sendo negligenciadas cotidianamente e nada se faz para evitá-las. Como concorda Carson: “Jesus não condena a observância escrupulosa dessas coisas [dízimos], mas insiste que o alvoroço com elas (…) é coar um mosquito enquanto engole um camelo” 7. Jesus não está sancionando o dízimo, mas revelando a falsa religiosidade farisaica. Os fariseus “Transformavam a religião em meras observâncias escrupulosas”8. Jesus está apresentando níveis hierárquicos que devem ser respeitados, da mesma forma ele fez com o Sábado. Comparar o dízimo com um mosquito em relação a um camelo não me parece a sanção do 6 SHULAM, Joseph. O dízimo e o Novo Testamento. Ministério Ensinando de Sião, Belo Horizonte/MG, fev. 2013. Disponível em: Acesso em 28 fev. 2015. 7 CARSON, D. A. O comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p.558. 8 CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado: versículo por versículo. V.1. São Paulo: Hagnos, 2002, p.548.

5 dízimo, mas que este é insignificante diante de outros temas que negligenciamos. Infelizmente, os teólogos reformados e evangélicos coam mosquitos e engolem camelos. Agem da mesma forma que os fariseus, dando mais importância às pequenas coisas e doutrinando a igreja a uma ritualística vazia de valores. No clássico comentário de São Jerônimo, no versículo em questão, Mateus expõe aos judeus que a Lei deveria ser observada da maneira que Jesus a interpretou9.

9 JERÔNIMO, SÃO. Novo comentário bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. Santo André: Academia Cristã, 2011, p.202.

6

4. Conclusão É claro que esse tema é muito mais complexo e jamais será esgotado num breve artigo. Entendemos que a compreensão correta do dízimo é muito importante para o desenvolvimento da igreja. Só em saber que Jesus o equipara com coisas insignificantes da Lei diante de coisas maiores e urgentes e contudo vemos uma ênfase ao dízimo nas igrejas hodiernas é para ficarmos, no mínimo, atentos com os contrastes teológicos. Em vez de estarmos preocupados com a prática do dízimo deveríamos estar ocupados com as práticas mais nobres da Lei e dos ensinos de nosso Senhor. Caso a preocupação do dízimo se volte para seu objetivo primordial, a saber: o sustento dos sacerdotes, das viúvas e dos órfãos, ele se torna algo importante a ser observado, caso contrário não passa de discurso malicioso para assegurar conquistas financeiras de uma liderança que dá mais valor ao “mosquito”. Conforme sinalizamos no início deste artigo, usaremos essa conclusão como uma proposta de como deveria ser o proceder das igrejas cristãs acerca do recolhimento do dízimo. Sabe-se em todo Antigo Testamento que o dízimo tinha uma única função, ou seja, uma função social. O objetivo do dízimo era suprir as necessidades dos desamparados. Esses desamparados consistiam de viúvas, órfãos e pobres em geral (aqui excetuando aqueles pobres por vadiagem). Se as igrejas cristãs insistem em cobrar o dízimo chamando de ladrões de Deus aqueles que não são fiéis dizimistas, se fundamentando nas escrituras veterotestamentárias, então que façam uso dele da mesma maneira. O sacerdote para ter direito ao seu pagamento por meio do dízimo deverá viver integralmente ao serviço divino, não podendo ter nenhum outro tipo de fonte de renda. Deverá fazer um mapeamento da igreja e catalogar as famílias pobres e suprir suas necessidades básicas. Caso isso não seja feito, a acusação do teólogo volta-se contra ele. Se o nosso teólogo recebe salário do dízimo e ainda possui algum tipo de fonte de renda está pecando. Se existem famílias com necessidade na igreja e o dízimo não é usado para saná-las, a igreja está pecando. Contudo, não elevamos “mosquitos” a “camelos”. Entendemos que a igreja cristã está fundamentada na liberdade. Não na liberdade mundana, mas na liberdade como estado de espírito, como mentalidade. Liberdade doada e não conquistada pela igreja. Liberdade cedida por Cristo. Diferente da liberdade existencialista que se apresenta como condenação, mas liberdade mesmo, liberdade real, livres da obrigação da Lei. O cristão não tem amarras doutrinárias, não tem limitações denominacionais e nem está sujeito a uma hierarquia

7 inventada pela vontade de poder humana. Sabemos que a igreja tem que cumprir seus compromissos financeiros, pois vivemos em contexto bem diferente de nossos irmãos hebreus da antiguidade. Devemos usar nossos conhecimentos e praticar a fé em Deus para desenvolvermos uma forma de coleta que não seja contrária aos ensinamentos de nosso Senhor e que não tenha em seu pano de fundo ameaças. A nossa proposta é que a igreja deva ser sustentada pelas ofertas livres dos irmãos. E não pela imposição de um mandamento que não existe e não tem paralelo com a mensagem da liberdade cristã. A igreja tem necessidades e essas necessidades devem ser sanadas pela contribuição voluntária de sua membresia discutida em assembleia e não em jornadas teológicas que tentam impor doutrinas inventadas. Enfim, o dízimo defendido pela maioria dos pastores e teólogos cristãos têm servido de embaraço para a prática da liberdade cristã. Parece-nos que a defesa exaustiva e a insistência pela observância de tal prática faz com que pastores e teólogos recaiam no erro dos judaizantes da igreja do primeiro século. Como denunciava o apóstolo dos gentios: “E [isto] por causa dos falsos irmãos que se intrometeram, e secretamente entraram a espiar a nossa liberdade, que temos em Cristo Jesus, para nos porém em servidão” (Gl 2:4). Todo cristão deve resistir a essa tentativa desastrosa e lamentável dos líderes eclesiais de recolocar a igreja em servidão e mais uma vez Paulo alerta: “Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão” (Gl 5:1). Apelamos aos cristãos que não se afastem de seu chamado: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não [useis] então da liberdade para [dar] ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor” (Gl 5:13). Antes de cair na servidão da fidelidade ao dízimo, seja fiel a Deus.

8 5. REFERÊNCIAS BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 1977. CARSON, D. A. O comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010. CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado: versículo por versículo. V.1. São Paulo: Hagnos, 2002. JERÔNIMO, SÃO. Novo comentário bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. Santo André: Academia Cristã, 2011. LOPES, Hernandes Dias. Dízimo, uma prática bíblica a ser observada. Palavra da Verdade, Vitória/ES, fev. 2013. Disponível em < http://hernandesdiaslopes.com.br/2013/02/dizimo-uma-praticabiblica-a-ser-observada/#.VPCHpvnF9j8>. Acesso

em: 27 fev. 2015.

SHULAM, Joseph. O dízimo e o Novo Testamento. Ministério Ensinando de Sião, Belo Horizonte/MG, fev. 2013. Disponível em: Acesso

.

em 28 fev. 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.