Do arquivo à memória colectiva: Análise de uma arte imaterial

May 24, 2017 | Autor: M. Almeida Santos | Categoria: Contemporary Art, Performance Art, New Media Art, Curatorial Studies and Practice
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Do arquivo à memória colectiva: Análise de uma arte imaterial

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Marta Almeida Santos FCSH - Universidade Nova de Lisboa Pós-Graduação em Curadoria de Arte

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resumo A arte concebida a partir do arquivo, do objecto encontrado ou da memória pessoal ou social, não é algo actual ou novo, de algum modo. Artistas como Martha Rosler, Zoe Leonard, ou até mesmo Carla Cabanas, num contexto nacional, recorrem constantemente a arquivos históricos como meio de construir um corpo de trabalho e de reinterpretar conjunturas sociais e culturais. Paralelamente, assiste-se à crescente tendência para a desmaterialização da arte, ao foco na experiência e desvalorização do objecto, fenómeno que se traduz em manifestações e projectos que, sem o recurso ao registo (e consequente organização sistemática ou metódica) audiovisual ou textual, se tornam obsoletos ou inexistentes, dado o seu carácter efémero. Formas de expressão como o happening, a performance ou até mesmo algumas expressões da internet ou new media art cairiam de outro modo no esquecimento, ou tornar-se-iam dependentes de relatos subjectivos daqueles que a presenciaram, restringindo substancialmente o acesso do público à evolução da arte. Propõe-se então a reflexão a dualidade do papel do arquivo, enquanto ponto de partida da produção artística e como extensão da mesma, como meio de a cristalizar, coleccionar e comercializar, circunscrevendo-a assim, não só no mercado, como na memória colectiva, preservando o seu lugar e papel na sociedade. Através da análise do trabalho de um conjunto de artistas, pretende-se abordar a transformação do papel do arquivo no contexto artístico, enfatizando a necessidade (ou impulso) artístico e, acima de tudo, humano, de registar e preservar, reflectindo sobre o impacto de recentes manifestações artísticas no mercado da arte.

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palavras-chave Desmaterialização da Arte; Arquivo; Internet Art; Arte Conceptual; Performance.

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introdução Iniciada pelos readymades de Marcel Duchamp, a desmaterialização da arte tornou-se mais evidente a partir de correntes artísticas que tiveram maior expressão a partir so anos 60, década em que um grupo substancial de artistas se insurge contra o mercado da arte e da visão da obra enquanto bem ou produto, independente de um conceito ou mensagem. Exaltando a ideia e a reflexão crítica, artistas como (Exemplos), optaram por centrar o seu trabalho na sua dimensão imaterial, seja ela ideológica, ontológica ou fenomenológica, sobrepondo-a à forma física que o conceito pudesse tomar e primando pela transparência de processo, isto é, pela valorização do percurso em prol do seu resultado final. Dando prioridade à performatividade, seja do espectador, do artista ou da colaboração entre ambos, em projectos de acção permanente ou pontual, este modo de pensar a arte expandiu a

sua acção e o seu modo de se manifestar ao ponto de actualmente, a arte se focar na expediência e na produção ou partilha de conhecimento, adoptando um papel crescentemente presente e interventivo na dada realidade social. O projecto artístico estende-se agora a projectos gastronómicos, sensitivos, colaborativos, a eventos e programas que desafiam todos os agentes a alterarem os seus modelos de acção, adoptando uma mais pragmática, mais humana e socialmente mais participativa. O presente artigo procura debruçar-se sobre a mencionada conjuntura da arte, no âmbito de uma forma de arte que, com o passar dos anos, tem ganho maior visibilidade e despertado grande curiosidade, não só no público e em outros artistas, como em entidades que se dedicam à promoção, exposição, preservação e comercialização da arte, como museus ou galerias. Serse-á assim analisado o impacto das acções ou do trabalho de alguns artistas contemporâneos no modo, não só como este meio opera, mas como o espectador se relaciona com a obra, como mantém e desenvolve essa relação e de que tipo de relação se trata. Deste modo, assume-se não só o artista enquanto etnólogo, como observador e estudioso da condição humana e social, ao invés de mero produtor de volumes e imagens, mas também o espectador - que se torna imprescindível - enquanto arquivista.

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1. desmaterialização da arte Em 1967, ao afirmar “a ideia por si mesma, mesmo que não tornada visual, é uma obra de arte tão válida quanto o produto terminado”1, Sol Le Witt anunciou um percurso de crescente desmaterialização da arte. Expressão cunhada por John Chandler e Lucy Lippard, no artigo co-autoral “A Desmaterialização da Arte”, publicado pela revista Art International em 1968, refere-se a manifestações artísticas tendencialmente imateriais, de cariz heterogéneo, que se compreendem formas como a arte conceptual e a arte relacional. Correntemente utilizada para descrever um tipo de arte denominado como ultra-conceptual, que dá primazia ao processo, à ideia e ao discurso, descorando muitas vezes a forma, matéria ou produto final, a desmaterialização da arte alude a diversos tipos de manifestações ou projectos de arte, que se estendem dos happenings de Allan Kaprow, a instalações como as de Dan Graham, aos “eventos” de George Brecht, e às situações construídas de Tino Sehgal, incluindo algumas formas de New Media. Embora os meios utilizados sejam variados de tal modo que a ligação entre as obras se torna ambígua, todas elas são caracterizadas pelo desprezo por meios convencionais de representação formal e pela obsolescência do objecto, uma vez que este é percepcionado como acessório sem interesse artístico ou intelectual, um produto final produzido muitas vezes por terceiros e fruto da sociedade de consumo e do capitalismo. Contudo, a noção de arte desmaterializada ou imaterial é ainda vaga, uma vez que, tal como Terry Atkinson aponta, a imaterializarão da arte implicaria a privação de materialidade, seja ela qual for, facto que nem sempre se confere. Os registos reunidos de um acto ou projecto constituem uma componente material da mesma, sendo em alguns casos, como As “Jane Edwards and Geoffrey Rush” (2005) de Aileen Campbell, considerados uma segunda obra, ou extensão do primeiro acto, performativo e presencial.

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“The idea itself, even if it is not made visual, is as much of a work of art as any finished product.” (Le Witt, 1967). Tradução livre.!

Aileen Campbell, artista cujo trabalho se foca principalmente no elemento vocal, canta a Aria (Nulla in mundo, pax sincera) de Antonio Vivaldi durante vinte minutos, enquanto salta num trampolim, numa referência a um momento do filme “Shine” (1996), realizado por Scott Hicks, em que uma personagem interpretada por Geoffrey Rush ouve a mesma composição com auscultadores, enquanto pula num trampolim. A performance foi registada em vídeo, sendo este exposto em 2006 na galeria Gimpel Fils, em Londres. De acordo com a visão da artista o vídeo é em si uma obra de arte independente da performance, uma vez que a câmara revela ângulos diferentes a que os que o espectador do acto performativo tem acesso, permitindo assim experienciá-lo de modo diferente. A série “Wedding Piece” (1993) de Alix Lambert, reflecte sobre os laços do casamento, representando a sua dimensão institucional através dos registos que comprovam o acto. Como modo de questionar a diferença entre o casamento e o matrimónio, entre a cerimónia e o compromisso, num período de seis meses a artista casou-se com três homens e uma mulher, divorciando-se deles de seguida. A sua acção materializou-se sob a forma de certificados, fotografias e outras recordações como prendas de casamento, que posteriormente expôs numa galeria. A arte imaterial, que contraria a estagnação e promove a acção como meio de expressão uma ideia ou produção de um símbolo, é tendencialmente efémera e dispensa a representação através do objecto, ou expande a sua definição. Por outro lado, Dominique Gonzalez-Foerster em “Noreturn” (2009), convida o espectador a participar na concretização da obra num “movimento de ida e volta entre a saída da arte em direcção ao real das relações sociais”2 (Ranciére, 2010: 106), não só integrando o trabalho, como tornando-se um agente activo na construção colectiva de significado. Marina Abramović convida igualmente o espectador a participar na obra, sendo que o elemento com que a artista contribui para o processo é o próprio corpo, o próprio artista. Nas obras contempladas por esta expressão, até onde se estende a obra ou projecto artístico? E onde termina? Será a obra arquitectónica (Galleria Comunale D’arte Moderna, em Bolonha, projectada por Leone Pancaldi) parte integrante na “Imponderabilia” (1977) da Marina Abramović? As fronteiras entre suporte e obra tornam-se assim ténues e passíveis de debate. Do mesmo modo, o “Self Portrait Pending” (2005) de Jill Magid representa o resultado de instruções dadas pela artista a uma empresa de diamantes, Life Gem, para o carbono dos restos mortais do seu corpo ser transformado em diamante, após a sua morte. Na sua exposição no Centre d’Arte Santa Monica, em Barcelona, apresentou o tipo de diamante em que se tornaria. Outras formas de expressão, como a Internet ou New Media Art, desafiam modelos curatoriais tradicionais pela sua inexistência física. Por habitarem um ambiente virtual, e se traduzirem mais vulgarmente em websites ou imagens em formato .jpeg, estas obras de arte democratizam o acesso à arte ao ponto de pôr em causa o valor da sua aquisição. As obras digitais de Internet ou New Media Art, embora virtuais, requerem elementos físicos enquanto suporte, como monitores, computadores ou colunas, colocando de novo - sendo que esta não é a única manifestação que faz - em causa a noção de imaterialidade ou desmaterialização da arte, enunciada por Chandler e Lippard. Fundamentalmente caracterizada pela “apropriação de conteúdos web, em simultânea celebração e crítica à Internet e à cultura digital contemporânea”3 (Olson, 2008: 274), a Internet Art rapidamente se tornou o reflexo de uma sociedade crescentemente imaterial, fragmentada e dispersa, fruto da facilidade e rapidez aos mais diversos tipos de informação ou conhecimento.

Tirando partida da mesma, através da web, o colectivo JOGGING - Brad Troemel e Lauren Christiansen - defende que “a arte não pode existir sem um público, uma vez que depende de meios para a sua existência enquanto arte. Com o actual potencial para visibilidade digital em massa, a transmissão torna-se tão importante quanto a criação. Os artistas contemporâneos online estão conscientes deste facto e procuram activamente fazer uso deste potencial. A desmaterialização não é um sufoco opressivo da arte mas uma possibilidade da mesma prosperar em discursos distintos e progressivos. A web oferece espaço infinito para expansão e ilimitada participação, em contraste com os rígidos constrangimentos do espaço e do factor financeiro”2 (Troemel e Christiansen, 2010). O resultado será uma expressão artística que revela ou crítica a experiência de navegar no meio digital é muitas vezes caótico, temporal e visualmente, resultante de uma combinação de referências culturais, estéticas e sociais horizontalmente dispostas ao alcance de qualquer pessoa com um dispositivo que possua acesso à web. Exemplos desta linguagem são os GIFs de Lorna Mills, a exposição individual de Petra Cortright “Niki_Lucy_Lola_Viola”, ou “oonce-oonce” de Michael Bell-Smith. Com imaginários distintos e muito particulares, os artistas mencionados trabalham com a imagem ou vídeo (imagem em movimento) encontrados. Descontextualizando-os e reinterpretando-os, estes elementos de autoria muitas vezes desconhecida tornam-se elementos nas composições visuais criadas. Paralelamente, a obra digitalmente criada e visualmente depurada do artista de descendência holandesa e brasileira, Rafaël Rozendaal, oscila entre as paredes do museu - onde é projectada sob a forma de paisagem, criando ambientes contemplativos, ou exibido em monitores - e os websites que cria. Uma forma de arte que espelha a realidade social actual, foi em 2009 apresentada na Bienal de Veneza, através do Pavilhão da Internet, iniciado por Miltos Manetas, artista conceptual, pintor e teórico grego que explora a representação da sociedade de informação.

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2. conservação da arte imaterial O carácter transitório da arte imaterial, que valoriza a experiência, seja ela espontânea ou interactiva, requer necessariamente a documentação das obras que nela se inscrevem. O arquivo composto pelos documentos reunidos de determinada performance, ou site-specific, pode assumir diferentes formatos, como a fotografia, vídeo, registos textuais - sinopse da exposição, críticas, artigos e publicações -, relatos do espectador e entrevistas a artistas. O catálogo da exposição “Debaixo do Vulcão” (2016) de Hugo Canoilas, no Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa, recorre a uma opção gráfica e editorial que sobrepõem a meia página - cortada verticalmente - que contém o discurso do vídeo da performance, à pagina que corresponde às imagens do mesmo, como meio de relatar o mais fielmente possível o que foi apresentado no museu.

“Art cannot exist without an audience, as it relies on media for its existence as art. With today’s burgeoning potential for digital mass viewership, transmission becomes as important as creation. Contemporary online artists are aware of this fact and seek to actively make use of its potential. Dematerialization is not an oppressive suffocation of art but a possibility for art to flourish in disparate and progressive discourses. The web offers infinite room for expansion and participation unlimited by the more severe constraints of space and finance.” (Troemel e Christiansen, 2010). Tradução livre. 2

Por outro lado, a artista e bailarina Lígia Soares conservou a peça “Romance” (2015) num livro homónimo, que relata toda a acção que tomará lugar durante a performance, num registo que se assemelha ao guião. “As entrevistas com os artistas são um modo de reunir conhecimento directamente da fonte, e o uso de entrevistas em formatos multimédia permitem a comunicação não-verbal através do exemplo ou da demonstração”3 (MacDonald 2009, 61). Estes elementos documentais tornam-se assim em testemunhos do evento e simultaneamente, fontes de partilha de conhecimento que permitem que o público tenha acesso ao conteúdo da obra, sem que tenha estado presente no momento em que esta tomou lugar. Algumas das performances de Acconti nunca tomaram lugar num espaço público ou com audiência, sendo as fotografias resultantes a única prova de que aconteceram. À semelhança, a intervenção de Peter Weibel “Polizei Lügt” (1971) foi apenas possível através do seu registo, deliberadamente fotografada de um determinado ângulo que compõe as duas palavras numa frase subversiva. Registos fotográficos destes eventos tornam-se tão icónicos como o acto em si ou como o artista, como é o caso das fotografias tiradas a Marina Abramović ou Ana Mandieta. Tratam-se de registos com qualidade fotográfica independente da obra, imagens de composições poéticas, imbuídas de significado e beleza próprias. Assiste-se então à renovação do valor do arquivo, ou por outras palavras, à documentação sistematizada de obras ou projectos artísticos. No contexto contemporâneo, o arquivo deixa de ser meramente um ponto de partida para a produção artística, que recorre a registos históricos ou pessoais como meio ou suporte de produção, como é o exemplo de artistas especializados em colagem como Martha Rosler, ou no contexto nacional, Carla Cabanas e Carla Filipe. Perante expressões de arte imaterial favorece a efemeridade e a acção, momentânea ou continuada, o arquivo afigura-se como o único modo de cristalizar, e assim provar, a existência das mesmas, inserindo-as no meio através da sua exposição, colecção e comercialização. Como se poderá então tornar um fenómeno numa obra, quando não é possível documentá-la? Tino Seghal não permite o registo visual das suas “situações construídas”, procurando evitar a transposição das mesmas para a bidimensionalidade e eventualmente substituindo o evento em si. O artista procura contrariar a representação bidimensional das artes visuais na história da arte, conservando-a de outros modos. A Sociedade de Reinterpretação de Performance (PRS) é um colectivo ocasional de artistas, activistas e investigadores que se dedicam a, como o nome indica, revive reinterpretar experiências artísticas passadas, criando novas. O trabalho do colectivo não é apenas um acto de conservação mas também de recriação de eventos e situações passadas. Contrariamente à filosofia do colectivo, Seghal preserva a singularidade das experiências que cria, indicando as galerias que se dedicam à comercialização dos direitos do seu trabalho de que não deve ocorrer, em circunstância alguma, uma transacção material, nem mesmo um certificado. O trabalho de Félix González-Torres representa um desafio à conservação, uma vez que o artista defende que a realização da obra só está completa no acto da transferência. A sua peça “Untitled (Portrait of Dad)” (1991), foi apenas considerada concretizada pelo artista quando são

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“interviews with artists are one way of gathering this knowledge directly from the source, and use of multimedia interview formats permits nonverbal communication through example or demonstration” (MacDonald 2009, 61). Tradução livre.

retirados e repostos rebuçados da pilha de 79 kg (o peso do pai de González-Torres) que se encontra no canto da galeria. O acto de desintegração e constante regeneração da peça é parte integrante da mesma. No âmbito da New Media Art, a sua conservação passa inevitavelmente pela manutenção dos seus suportes e acompanhamento do célere desenvolvimento tecnológico. Softwares em que algumas das obras foram criadas são hoje obsoletos, ou impossíveis de instalar em equipamentos mais recentes. Neste contexto, museus como o MoMA, o American Museum of the Moving Image, a Galeria 9 do Walker Art Center ou o Tate Britain, assumem um papel determinante no desenvolvimento de alternativas de conservação, sistematização de informação e curadoria de novas formas de produzir arte, não só preservando as obras como democratizando e facilitando o acesso às mesmas, através de iniciativas como “Cofres de obras de Arte Digital” em open-source - entendo arte digital como New Media e Video Art - entre outras devotadas não só À conservação deste tipo de arte, como ao desenvolvimento de um discurso crítico em torno dele e o seu enquadramento na história da arte.

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3. mercado do intangível O carácter singular e muitas vezes monumental - como é o caso das instalações de Richard Serra ou de Dan Graham, ou as apropriações do espaço de Carl Andre -, de obras que tendem para a imaterialidade ou para uma materialização ambígua e distanciamento do objecto coeso e concreto, colocam desafios inéditos à aquisição e colecção das obras de alguns artistas. São necessárias condições e espaços específicos, aos quais nem todos os coleccionadores têm acesso, para adquirir a maioria das peças de James Turrell, e dificilmente poderá ser reconstruída, ou conservada intacta a “Riverbed” (2014), uma reconstrução do leito de um rio levada a cabo no museu Louisiana, ou a “Din Blinde Passager” (2010) de Olafur Eliasson. O Acordo de Venda e Transferência dos Direitos Autorais do Artista, redigido em 1971 pelo curador Seth Siegelaub, constitui um modelo intemporal de contracto para comercialização de obras e protecção dos interesses e direitos económicos e autorais dos artistas, declarando o artista terá sempre o controlo sobre o contexto em que o seu trabalho é exposto, mesmo após a sua venda, condição vinculativa para todos os donos da obra. Assumindo o contracto como um documento gerador de valor e especulação, embora o Acordo tenha sido construído com o intuito de valorizar o trabalho do artista, atribuindo-lhe condições económicas igualitárias a qualquer outro profissional, tornou também clara a visão capitalista da produção e aquisição de arte. “Paradoxalmente, tornando visível a autoria artística e propriedade de obras de arte desmaterializada, o Contracto de Artistas, como Alexander Alberro sublinha, contribuiria involuntariamente para a circulação de Arte Conceptual como commodity.”4 (McClean, Daniel, 2016). No caso de “Untitled” (2003) de Andrea Fraser, o vínculo estabelecido entre duas entidades neste caso, entre a artista e o coleccionador - torna-se na obra em si, sendo elevado a uma dimensão física, para lá do documento. Através de Untitled, Fraser criticou o poder do mercado e do colecionismo na produção artística, associando-a à prostituição e à relação entre o homem e a mulher neste universo. Esta comissão baseou-se num encontro sexual num quarto do Hotel 4

“Paradoxically, by making visible the artistic authorship and ownership of the dematerialized artwork, the Artist’s Contract as Alexander Alberro highlights, would unwittingly contribute to the circulation of Conceptual artworks as commodities” (McClean, Daniel. 2016) Tradução livre.

Royalton, em Nova Iorque, entre a artista e o coleccionador, gravado num vídeo silencioso com uma câmara estática, que foi reproduzido numa série de cinco, sendo que o primeiro exemplar foi atribuído ao coleccionador em causa. Fraser é apenas um dos exemplos de uma crescente tendência para a inclusão do próprio artista - grande parte das vezes, do seu corpo - na própria obra, isto é, no bem transaccionável. Em outros casos, como o da peça patente na exposição From Source to Poem (2016) de Rosa Barba no CAPC musée d’art contemporain de Bordeaux, a aquisição das obras afigura-se como um acto que declara ou enfatiza a fragmentação da obra artística. Mais que uma instalação, “Hear, There, Where the Echoes Are” é uma experiência espacial que consiste na projecção sincronizada de imagens abstractas de acordo com uma sequência pontuada por uma performance sonora de Chad Taylor. Enquanto que o coleccionador ou entusiasta poderá apenas obter parte da obra, ou a uma extensão da mesma, como um vídeo, uma gravação, um livro de artista ou a documentação legal da obra - contracto, certificado e/ou declaração notarial -, o público terá acesso à mesma na sua totalidade, visitando o museu. Embora muitas das correntes artísticas já mencionadas tenham a sua génese numa reacção aos modelos tradicionais mercado da arte, acabam por se integrar no mesmo, através de modelos, muitas vezes exclusivos de comercialização. Muitas das obras de Sehgal são comercializadas em circunstâncias muito particulares, na presença de um notário, vinculando a transacção através de um contracto oral, em que são transmitidos não só os requisitos legais da compra, as restrições inerentes aos direitos de autor e ao registo fotográfico e audiovisual, as instrução de reprodução e reinterpretação da obra, bem como a formação e pagamento dos performers que irão participar em futuras apresentações. As transacção cumprida entre o artista e comprador podem em si ser considerada semelhante ao que está a ser negociado. Por outras palavras, tanto a obra como o contracto que legaliza a sua compra se tornam processos colaborativos, de carácter performativo. Rafaël Rozendaal, por seu turno, optou também por não alterar a forma (ou inexistência da mesma) do seu trabalho, procurando alternativas para o tornar comercializável, através do Contracto de Venda de Websites Artístico, contracto redigido pelo artista, cujo modelo está disponível para uso livre e gratuito. O contracto consiste na venda de obras de Internet Art através de domínios web, por valores que oscilam os 4000 e 6000 euros. Ao adquirir uma destas peças, o comprador passa a ser o proprietário legal do domínio em que a obra se encontra, sendo que o seu nome é apresentado junto ao título da obra, de cada vez que esta é visualizada. Enquanto que o artista mantém o direito de exibir o trabalho vendido em exposições e na sua página pessoal, o comprador tem o direito de expor a obra como preferir, tendo como única obrigação a renovação o domínio da página que alberga a obra. Ademais, o fenómeno de Bienalização da arte abrangeu também a arte digital desde 2014, ano da primeira edição da The Wrong, a mais extensiva bienal de New Digital Art. Um evento que compreende mais de 90 curadores, 1000 artistas, 60 pavilhões online e 40 espaços IRL de galeria, contribui, tal como todas as bienais, para a descentralização da produção artística e difusão do trabalho dos artistas, de novas abordagens e discursos.

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considerações finais Expressões de arte imaterial parecem apresentar-se como resposta não só ao mercado da arte, mas como à própria conjuntura social, como um modo de intervir criticamente na realidade, no quotidiano e no modo como é consumida a cultura.

Recorrendo a meios cada vez mais vastos e diversos, que privilegiam o processo e a experiência, maioritariamente em prol da depuração ou virtuosismo técnico, o tipo de projectos abordado são ditados de uma componente comunicativa e inter relacional particularmente presente, exprimindo o impulso para a acção e o movimento, e reivindicando a ocupação e exploração do espaço, seja ele natural, construído ou virtual. Estamos perante uma arte contaminada por diferentes campos - a dança, o teatro, o design, as ciências sociais… -, que livre e descomprometidamente intersecta, ao ponto da fronteira entre cada um dele se tornar quase imperceptível. Contrariamente a artistas que recorrem ao arquivo para produzir, reflectindo assim um fascínio nostálgico e romantizado pelo espólio, expressões artísticas que tendem para a imaterialidade rejeitam, voluntária ou involuntariamente, “a importância de tudo” (Kabakov , 2006: 33, apud Breakell, 2008). O espetador assume então um papel imprescindível nestas formas de arte, uma vez que não só é convidado a participar nelas como se torna detentor da sua memória. O relato dos espetadores, a união e transmissão das suas memórias pessoais em relação ao evento ou experiência torna-se então no único modo de, até certo ponto, objectificar esta forma de arte e consequentemente inscrevê-la no meio e na história da arte. Embora tal fenómeno constitua desafios sem precedentes para modelos curadoriais e museológicos tradicionais, representa simultaneamente uma oportunidade de desenvolvimento e expansão, não só da arte em si, como de todos os agendas envolvidos no mercado da arte, permitindo uma colaboração interdisciplinar gradualmente mais humana e um discurso crítico cada vez mais rico, não só respeitante à arte como à História, à sociedade e à condição humana.

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