DO BENDEGÓ AOS CERÂMIOS DE MARAJÓ: A NOÇÃO DE CULTURA NACIONAL NA NARRATIVA MUSEOGRÁFICA DO MUSEU NACIONAL DA QUINTA DA BOA VISTA

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

DO BENDEGÓ AOS CERÂMIOS DE MARAJÓ: A NOÇÃO DE CULTURA NACIONAL NA NARRATIVA MUSEOGRÁFICA DO MUSEU NACIONAL DA QUINTA DA BOA VISTA Walter Francisco Figueiredo Lowande

Quem adentra atualmente no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista percorre uma narrativa que se inicia pelo meteorito de Bendegó e termina com uma série de artefatos representativos da cultura material indígena brasileira. Essa narrativa insere a cultura nacional numa escala de tempo geológica que expressa, desde as alterações introduzidas por Heloisa Alberto Torres nessa instituição, a importância da cultura nacional para a ciência universal. A partir da década de 1930, diversas narrativas competiram entre si no Brasil visando orientar um projeto de modernização nacional.1 Essas narrativas tiveram que lidar com o problema da constituição de sentido para uma cultura nacional essencial, uma vez que seria ela que indicaria os rumos de uma modernização autêntica e que forneceria a identificação necessária para se levar a cabo esse projeto de grande porte. O grupo de intelectuais constituído em torno do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista foi um dos que se propuseram a levar a cabo essa empreitada, legitimando narrativamente uma série de ações políticas e institucionais. Nessa comunicação buscaremos compreender o significado que este grupo emprestou à noção de cultura nacional. Esse significado, expresso nas coleções expostas no antigo Paço Imperial da Quinta da Boa Vista, orientou uma série de ações que os membros do Museu Nacional implementaram, ou tentaram implementar, em órgãos como o Serviço Nacional de Proteção ao Índio, o Conselho de Fiscalização de Expedições Científicas e Artísticas no Brasil e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Se durante o século XIX foi a problemática racial que interessou aos antropólogos do Museu Nacional, a partir do século XX, sobretudo em função do trabalho de Roquette-Pinto, a cultura foi se tornando, progressivamente, o objeto privilegiado desses cientistas. Ao lado da progressividade desse aspecto epistemológico, é preciso salientar que, para  Doutorando em História (IFCH/UNICAMP). Esse artigo é fruto de pesquisa realizada com o apoio institucional e financeiro do COPEDOC/IPHAN, com fomento da Fundação Darcy Ribeiro, dentro do 2º Edital de Seleção de Pesquisas – a preservação do patrimônio cultural no Brasil. 1 Sobre os problemas da constituição narrativa de sentido por intermédio das práticas historiográficas, cf. RÜSEN, 2001 e 2010.

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

os antropólogos do Museu Nacional, o estudo da cultura dos povos nunca deixou, até o fim do período que nos ocupa, de ser um ramo das ciências naturais, mais especificamente biológicas. No que tange particularmente à produção de Roquette-Pinto, é um emblema dessa transição o artigo que publicou no primeiro número da Revista do SPHAN, intitulado “Estilização”. Segundo o médico, a antropologia não é hoje mais a exclusiva apaixonada das caveiras e, sem renunciar ao minudente estudo das feições morfológicas da espécie, vai, cada vez mais em nossos dias, consagrando-se às pesquisas superiores e difíceis da fisiologia e principalmente da psícologia dos grupos humanos (ROQUETTE-PINTO, 1935: 52).

Assim, em busca da compreensão do fenômeno da estilização, Roquette-Pinto, se não abandona a paixão pelas caveiras, passa a dirigir o olhar para dentro delas, ou seja, para os aspectos psicológicos (ou melhor, psicofisiológicos) dos povos:

à medida que a psicologia étnica se torna mais precisa, uma porção de ideais, que pareciam livres construções, pensamentos individuais, vão sendo atingidas. Diante da moderna psico-fisiologia, a personalidade do artista já não é sempre indecifravel, o seu temperamento é muitas vezes elucidado com segurança, os impulsos afetivos que os guiaram são traduzidos em fórmulas acessiveis, a alma é lida nos seus quadros, porque neles o inconciente transparece. Nem por isso perde a arte o prestígio antigo e eterno. Continúa a ser o supremo encanto da vida. Nem por conhecer melhor as minúcias das flores, deixam os naturalistas de encontrar o espetáculo da beleza (ROQUETTEPINTO, 1937: 52).

Não há dúvida que as ações discursivas e administrativas de Roquette-Pinto continuaram exercendo poder na atuação do Museu Nacional mesmo depois de seu afastamento da instituição, em 1935. Foi este cientista o principal responsável pela aproximação da antropologia brasileira com a antropologia cultural norte-americana, muito antes, por exemplo, de Gilberto Freyre, principalmente no que diz respeito à figura de Franz Boas, que já havia se comunicado com Roquette-Pinto no início da década de 1910. Todavia, a atuação de Heloisa Alberto Torres é que foi determinante para os contornos tomados pelas políticas de preservação do patrimônio arqueológico e etnográfico brasileiro no 2

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período enfocado. E o modo pelo qual essa naturalista compreendia a noção de cultura possuía algumas especificidades que devemos entender melhor. Tomamos a diretora do Museu Nacional como uma espécie de porta-voz de um conjunto de ideais que é possível encontrar circulando no âmbito dessa instituição, dado o carisma e autoridade com que conduzia os rumos dessa instituição. Iremos, dessa forma, abstrair os dissensos que também compunham a vida intelectual intramuros da Quinta da Boa Vista.2 Heloisa Alberto Torres, filha do político e intelectual Alberto Torres 3 (com quem guarda várias afinidades intelectuais), nascida em 1895, ingressou no Museu Nacional em 1918, como estagiária de Roquette-Pinto. Foi selecionada num concurso em que, mesmo não contando com formação universitária, demonstrou maiores conhecimentos antropológicos que seus pares, superando nomes como Padberg Drenkpol e Raimundo Lopes nas medições antropométricas, descrevendo com desenvoltura objetos pertencentes às coleções do museu e digredindo seguramente sobre o tema que lhe foi proposto (KEULLER, 2010; RIBEIRO, 2010). Logo após se tornar professora substituta da Divisão de Antropologia do Museu Nacional, Torres iniciou as expedições e pesquisas que fariam como que fosse “alçada definitivamente à categoria dos pesquisadores” (RIBEIRO, 2010: 83). A mais conhecida de suas expedições foi, certamente, a dirigida à ilha de Marajó e seus estudos sobre a cerâmica arqueológica encontrada em seus mounds ou tesos,4 sendo que tais empreendimentos mereceram até a criação de um romance por José Bastos de Ávila, também naturalista do MN (ÁVILA, 1933).5 A essa imersão na produção cultural ameríndia somou-se o contato direto com as práticas e ideais indigenistas rondonianos, inicialmente por intermédio de Roquette-Pinto e das coleções indígenas que inundavam o Museu Nacional quando Heloisa Alberto Torres era 2 A disputa em torno da diretoria do Museu Nacional, em 1946, e suas repercussões na imprensa são a evidência mais clara da existência desses dissensos. 3 Alberto de Seixas Martins Torres (1865-1917) ocupou, dentre outros, o cargo de ministro do STF, ministro do Interior e presidente do Rio de Janeiro. Crítico do modelo liberal no qual se assentou a Primeira República, é tido como o grande precursor e sistematizador da ideologia nacionalista e autoritária que, em larga medida, foi implementada durante o Estado Novo, sobretudo no que diz respeito ao papel do Estado, por intermédio de sua intelectualidade, na identificação racional do caráter nacional e da organização, a partir desse caráter, da sociedade brasileira. Cf. SOUZA, 2005. 4 Esses dois termos referem-se a montes artificiais de terra (também conhecidos como “pacovais” quando sobrepostos por algum tipo de plantação) em que se podem encontrar artefatos arqueológicos, frutos, principalmente, de rituais funerários (segundo explicação encontrada num guia de exposição arqueológica do Museu Nacional, que pode ser localizado na Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional, Coleção Heloisa Alberto Torres, Caixa 05, envelope 08). 5 Para mais detalhes relativos a estas expedições, cf. KEULLER, 2010, e RIBEIRO, 2010.

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apenas estagiária nessa instituição, e, posteriormente, por sua atuação direta no CNPI. Não tardou para que a cultura ameríndia se tornasse alvo de sua ardorosa proteção e admiração. A produção acadêmica de Heloisa Alberto Torres é pouco extensa, uma vez que dedicou sua vida à administração de instituições e de redes sociais antropológicas. Segundo Corrêa, “costuma-se observar que ela produziu poucos textos ao longo de sua carreira: o volume e a importância de sua correspondência, no entanto, desmentem essa observação” (CORRÊA, 1997: 20). Por nosso turno, gostaríamos de chamar a atenção para outro tipo de texto que nos poderia ajudar a compreender o olhar que dirigia à cultura indígena e às relações que a mesma guardaria com o patrimônio cultural nacional: referimo-nos aos esboços de palestras e conferências que abundam na Seção de Memória e Documentação do Museu Nacional. Por intermédio desses documentos é possível afirmar, de forma sucinta, que, para Heloisa Alberto Torres, as culturas seriam complexos multideterminados que se diferenciariam por aquilo que ela costumava chamar de “grau de civilização”. Assim, distinguir-se-iam no Brasil dois grandes grupos culturais: primitivos e civilizados. Dada a inferioridade tecnológica dos grupos culturais primitivos, caberia aos grupos civilizados assegurar sua sobrevivência e seu livre desenvolvimento. Discorrendo sobre os contatos entre povos “civilizados” e “primitivos” no Brasil perante o Rotary Club do Rio de Janeiro, em 10 de janeiro de 1968, 6 Heloisa Alberto Torres diz o seguinte, referindo-se inicialmente aos índios brasileiros ao tempo do descobrimento:

Formavam êles sociedades humanas, com sistemas econômicos diferentes do nosso, do da civilização ocidental, organização familiar, forma de govêrno e religião próprias.

Em suma, eram grupos que estavam, por assim dizer, situados em etapas mais elementares de desenvolvimento, atrasados, em relação à nossa situação, de alguns milênios.

E, ainda hoje, guardam da vida um conceito completamente diverso do nosso. Apesar 6 TORRES, Heloisa Alberto. O índio e a assistência que cumpre dar-lhe: palestra da Professora Heloisa Alberto Torres – Rotary Club do Rio de Janeiro. 10 de janeiro de 1968. Documento datilografado com correções à caneta. Seção de Memória e Documentação, Coleção Heloisa Alberto Torres, caixa 05, envelope 04. As próximas citações retiradas desse documento seguem apenas com aspas e sem referências, uma vez que não há nele indicação de páginas.

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disso, no entanto, seria util recordar algumas das contribuições culturais dessas sociedades indígenas, à cultura ocidental, mais precisamente, à européia, introduzida em sua terra. E não foram pequenas, nem insignificantes. Se não, vejamos. As habitações da maioria dos grupos indígenas, eram perfeitamente adaptadas ao clima tropical, mòrmente a dormida que, como acontece até hoje, era feita em rêde. A alimentação, sóbria, era constituida de frutos nativos, caça, pesca, e de mandioca, tubérculo que, apesar de altamente tóxico, tinham conseguido transformar em alimento básico, o que é considerável, se atentarmos para o estágio de seu desenvolvimento cultural. E como o conseguiram? Através de experimentações sucessivas, pacientes e demoradas.

Não obstante o “atraso cultural” em relação aos “povos civilizados” europeus, ou à “nossa situação”, a cultura indígena apresentaria características “perfeitamente adaptadas ao clima tropical”. Percebe-se, desde já, o caráter antropogeográfico da cultura segundo a acepção de Torres. Domingues (2010) destaca esse traço “ecologista” que não escapou ao Museu Nacional, tomando como base a proposta, elaborada por Torres, de um inquérito nacional sobre as ciências sociais e antropológicas no Brasil.7 No entanto, segundo a palestrante, “obviamente, considerando o estágio cultural mais desenvolvido [Torres risca o termo “superior” no documento] em que nos encontrávamos, em breve passamos a exercer, sôbre os índios, a proteção”. Mencionando as iniciativas coloniais e imperiais, Torres afirma que a verdadeira proteção é obra leiga da República, é obra de Rondon. De Rondon e de alguns de seus amigos, militares, sem dúvida, mas que sôbre serem militares, eram positivistas.

Foi, portanto, Cândido Mariano da Silva Rondon, o criador do Serviço Nacional de Proteção aos Índios e o fêz de acordo com as normas educacionais correntes na época,

7 “De fato, o estudo da cultura relativamente ao meio geográfico, como objeto da antropologia, impunha-se nos anos 1930 e 1940. Essa prática antropológica – ou etnológica – ligava-se também à nova ciência, a ecologia, e foi chamada de antropologia ecológica, o que não foi estranho ao Museu Nacional, como se vê nos trabalhos de Luiz de Castro Faria, conforme ele mesmo salienta no projeto de pesquisa que fez para obtenção de bolsa da UNESCO, em 1951. Heloisa Alberto Torres descrevia o antropólogo como um cientista engajado nos problemas e nas questões sociais e, assim, deixava transparecer uma contradição da antropologia: o antropólogo, tal como descrito, não podia fazer ciência neutra” (DOMINGUES, 2010: 635).

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em que o paternalismo tinha fôrça predominante, mas cuja essência ainda hoje é válida podendo resumir-se nos seguintes itens: a) respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais; b) garantia à posse permanente das terras habitadas pelos índios e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes; c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contato com a sociedade nacional; d) resguardo à aculturação do índio, de forma que as mudanças sócio-econômicas se processem a favor de seu desenvolvimento.

É tão grande a dívida de Heloisa Alberto Torres em relação à Rondon no que tange à compreensão do papel do “civilizado” em relação ao indígena que é difícil entrever onde sua atuação deixa de ser também “paternalista”. Até mesmo a orientação positivista era comum: segundo Domingues, tanto Torres quanto Roquette-Pinto “se identificavam pelo forte sentimento de nacionalidade e, teoricamente, pela orientação positivista, para quem as ciências, neutras e internacionais, constituíam a solução dos problemas do país” (DOMINGUES, 2010: 629). Talvez aqui uma distinção real em relação ao protecionismo de Rondon: a ênfase no papel do cientista. Heloisa Alberto Torres introduziu no SPI a Seção de Estudos, que depois foi transferida para o CNPI: “não houve alteração da política (teoricamente falando), da filosofia de Rondon; o que o CNPI propôs foi a modificação – consoante normas científicas da educação moderna – dos métodos de aplicação dessa política”. Interessante que as novas concepções educacionais vêm da UNESCO, órgão que se ligará posteriormente ao Museu Nacional no intuito de criar o Instituto Internacional da Hileia Amazônica (IIHA) (DOMINGUES; PETIJEAN, 2001). Voltemos um instante ao positivismo de Heloisa Alberto Torres. Com base na documentação que compulsamos, só podemos afirmar que se trata, no máximo, de uma postura epistemológica, a partir da qual somente uma ciência neutra, e, portanto, internacional, poderia solucionar os problemas da nação. Isso explica não somente a aproximação de Torres com a UNESCO para o conhecimento e proteção internacional da Amazônia (algo que ainda hoje pode causar no mínimo algum receio de perda de autonomia nacional), mas também o apoio que oferecia aos cientistas nacionais em suas expedições ao país, sobretudo quando à frente do Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas e 6

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Artísticas no Brasil. Num outro manuscrito, que porta o discurso de apresentação das coleções recolhidas pelo etnógrafo Curt Nimuendaju, Torres diz o seguinte, em tom de crítica ao texto legal que criou o Conselho de Fiscalização:

Na hipotese de estarmos em otimas condições economicas e podermos manter no campo permanentemente algumas dezenas de naturalistas nacionais para coligir documentação em todos os ramos da historia natural, no seu sentido mais amplo, incluindo a antropologia, – e cumpre notar que, neste particular a urgencia em agir é premente, em face da rapidez com que vão desaparecendo as nossas populações indigenas – ainda que pudessemos, repito manter no campo, permanentemente algumas dezenas de naturalistas habeis – o que tambem nos falta em numero tão elevado – a carencia da cooperação estrangeira se faria sentir em pouco tempo.8

É preciso que fique bem claro: não é que Heloisa Alberto Torres não se preocupasse com a nação brasileira, muito pelo contrário (seria difícil se esperar isso da filha de Alberto Torres). Ela era, afinal, a mulher a quem foi confiada a direção de uma das mais importantes instituições culturais da nação, além de outras igualmente estratégicas para a defesa dos interesses nacionais (a exemplo do Conselho de Fiscalização supramencionado). Todavia, seriam os cientistas, em cuja neutralidade Torres cegamente confiava, os únicos indivíduos esclarecidos o bastante para a defesa dos interesses legítimos da nação. A ciência se afigura, portanto, como valor supremo. É só por intermédio dela que a nação poderia progredir ou se desenvolver: “em face dessa complexidade da estruturação das culturas, do seu carater eminentemente dinâmico, nenhum pais, que se tenha em conta de progressista, pode fazer taboa rasa do que tem sugerido estudo teórico dos problemas da cultura e do que, em aplicação, vem tentando realizar a Antropologia”.9 O patrimônio cultural, para Torres, era também científico. Mas o que seria a cultura para a ciência antropológica? No início de um documento que parece ser o esboço de um guia das exposições antropológicas do Museu Nacional, 8 SEMEAR, Coleção Heloisa Alberto Torres, caixa 15, envelope 109. Trata-se do Decreto nº 22.698, de 11 de maio de 1933, que, segundo Torres (nesse mesmo documento), “considerava num mesmo plano todas as excursões: as de turistas que pretendessem colecionar curiosidades, as de natureza industrial, ou scientífica”. 9 SEMEAR, Coleção Heloisa Alberto Torres, caixa 05, envelope 04. Datilografado com correções manuscritas, 7 p. Não há título nesse documento. Todavia, o seu último parágrafo não deixa dúvidas quanto a tratar-se de uma palestra, ainda que não seja possível afirmar a que público tenha sido dirigida.

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

podemos encontrar definidas a Antropologia e a Etnografia para os naturalistas daquela instituição: como ‘Ciência do Homem’, a Antropologia se propõe a estudar:

a) Como Antropologia pròpriamente dita, os problemas da descendência humana, a classificação das raças, as variedades humanas. Baseia-se na Anatomia Comparada, na Antropometria, na Craneologia e em outras ciências descritivas do corpo humano e de suas funções.

b) Como Etnologia: todos os aspetos do produto das atividades humanas ou, numa palavra, da cultura. Assenta os seus fundamentos na Etnografia, na Linguística, na Arqueologia, na Musicologia, na História das Artes Técnicas, das Artes Plásticas, etc.10

Se nesse documento a divisão dos dois ramos do conhecimento aparece de forma mais ou menos clara, não é isso que ocorre, na prática, na atuação cotidiana do Museu (que continuava trabalhando nas duas frentes disciplinares), conforme se pode depreender das falas de sua diretora. Numa outra palestra, Heloisa Alberto Torres dizia o seguinte:

uma particularidade feliz presidiu à eclosão dos ramos das ciências sociais constituidas em tempos mais recentes; já nessa época o reconhecimento crescente do entre-cruzamento de todas as trilhas humanas estabelecia as condições para que as tradicionais barreiras de isolamento se esboroassem por completo.11

Além de louvar esse entrecruzamento das ciências, Torres ainda afirma o seguinte:

embora aqui interesse somente o que hoje se chama de Antropologia Cultural ou Antropologia Social, apenas excepcionalmente a conclusão de um estudo apresentaria segurança se um aspecto biológico do problema não fosse também considerado com a atenção devida, não só na significação que porventura imprimisse aos fundamentos

10 SEMEAR, Coleção Heloisa Alberto Torres, Caixa 05, envelope 08, p. 1. 11 SEMEAR, Coleção Heloisa Alberto Torres, Caixa 05, envelope 04, p. 2.

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desse problema como na correlação eventual com fases ou aspectos específicos do mesmo.12

Em outro documento (o projeto de criação do Instituto de Antropologia do Museu Nacional),13 Heloisa Alberto Torres se pergunta: “como poderá a Cultura ignorar que tem, como substratum necessário, o Homem na diversidade de formas, aptidões e temperamentos? Como poderá o físico-antropologista desconhecer que os hábitos culturais podem influir no aspecto físico das populações que estuda?” Em seguida vem o arremate: “o desconhecimento ou esquecimento de qualquer política eugênica visando um melhor futuro para a humanidade não é possível sem o justo conhecimento das populações presentes e que êste será sempre falho sem a visão do passado, sem a noção clara da sua gênese e evolução [itálicos nossos]”. As citações aqui trazidas bastam para mostrar que a cultura humana é entendida em seus aspectos mais amplos: Heloisa Alberto Torres considera como importantes para compreender a gênese e evolução dos povos humanos a fisiologia, a bio e a antropogeografia, a psicologia, dentre outros ramos das ciências. A “eugenia”, que via de regra se confunde com “branqueamento” das populações não-brancas (ou mesmo sua extinção), em função das origens dessa corrente de pensamento no século XIX, podia significar também um desenvolvimento humano amplo. No caso dos povos indígenas, uma política eugênica, segundo a acepção empregada por Heloisa Alberto Torres, significaria a garantia de seu desenvolvimento físico e cultural de forma harmônica com seu meio natural. Era esse o significado que desde os Congressos Internacionais de Eugenia Roquette-Pinto se esforçou em emprestar ao termo. O aspecto evolutivo da cultura explica também o interesse dirigido às culturas indígenas. O que causa fascinação é seu estágio primitivo de desenvolvimento cultural: o território brasileiro abrigaria uma incomensurável riqueza científica, uma vez que o conhecimento desses diversos estágios culturais permitiria lançar luz no desenvolvimento cultural humano geral. Segundo as palavras de Heloisa Alberto Torres,

A história prolongada por uma visão dos fatos da proto história e da prehistória desenrola à observação do antropologo uma sequência tão extensa do problema da 12 Ibid. 13 SEMEAR, Coleção Heolisa Alberto Torres, Caixa 14, envelope 100.

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cultura que vão surgindo novas teorias a seu respeito teorias que se vão encaminhando para uma interpretação neo-evolucionista da cultura [itálicos nossos].

Mas, por outro lado, se a cultura é processo, mudança, desenvolvimento, isso acaba gerando uma espécie de sentimento contraditório em relação à tutela que se deseja direcionar aos índios brasileiros. Deve-se permitir o desenvolvimento autônomo dessas comunidades, mas, de forma diversa, a cultura indígena é apresentada como estacionária, a-histórica. O primitivo é aquele cujo desenvolvimento cultural cessou em tempos remotos. O Brasil seria rico cientificamente (especialmente do ponto de vista etnográfico e arqueológico) por possuir várias amostras desse povo que parou no tempo. O que interessa são os estudos estruturais amplos (como o que se iniciou, já na década de 1950, em Arraial do Cabo, RJ, sob sua supervisão). Se, numa mão, a cultura é concebida de forma evolutiva, por outro o homem quase que se dilui ecologicamente em seu meio. Espaço e tempo se conjugam de modo a indicar quem tutela e quem é tutelado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nacional, nº 1. RÜSEN, Jörn (2001). Razão histórica. Editora da Universidade de Brasília. _____ (2010). História viva. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. SOUZA, Ricardo Luiz de (2005). “Nacionalismo e autoritarismo em Alberto Torres”. In Sociologias. Porto Alegre, Ano 7, n. 13, jan./jun., p. 302-323. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/soc/n13/23565.pdf. Último acesso em 18/04/2012.

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