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June 1, 2017 | Autor: Norma Côrtes | Categoria: History of Historiography, Historiografía
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Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

por NORMA CÔRTES Historiadora. Professora Adjunta de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora de Esperança e Democracia. As idéias de Álvaro Vieira Pinto. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. ______________ LEIA + Amnésia, o tempo como construção (Resenha do filme Amnésia (título original, Memento)

Resenha José Carlos REIS. As identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim. A favor do Brasil: direita ou esquerda? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, 240p. ___________________________________________________________

Do Brasil, S.O.S. ao Brasil[1] Ensaio de história intelectual, o livro As identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim. A favor do Brasil: direita ou esquerda? é a mais recente incursão de José Carlos Reis nos debates sobre o problema da identidade e do caráter nacional. A obra se inscreve nas longevas querelas da brasilidade e renova tal tradição que modelou, temperou e constituiu o tônus da inteligência brasileira desde as primeiras horas do nativismo romântico. O lançamento também dá continuidade ao primeiro As identidades do Brasil, de Varnhagen a FHC publicado há sete anos atrás e, atualmente, já na oitava edição. No entanto, diferente dessa obra anterior, As identidades do Brasil 2 cifra-se numa provocação. Em 1999, José Carlos Reis preferiu a neutralidade do observador. Ele então sugeriu a trajetória histórica da idéia de nação brasileira e sem instilar qualquer traço evolucionista descreveu o longo percurso de mutações intelectuais por que atravessamos durante os séculos XIX e XX. Desse modo, brindou-nos com uma admirável orgia de interpretações do ser nacional, percorrendo uma linhagem inaugurada na História geral do Brasil de Adolfo Varnhagen e concluída na teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso. Agora, com a publicação de As identidades do Brasil 2, Reis altera sua abordagem e assume outra atitude autoral. Ele não apenas concentra o foco da interpretação em um único período histórico como também interpela criticamente a quatro dos mais importantes pensadores e historiadores brasileiros dos anos 1930. Com efeito, seu exame dos clássicos História da civilização brasileira (1933) de Pedro Calmon; Conceito de civilização brasileira (1936) de Affonso Arinos; Evolução do povo brasileiro (1933[2]) de Oliveira Viana; e, finalmente, de O Brasil nação: realidade e soberania brasileira publicado por Manoel Bomfim em 1931 está vazado por uma disposição julgadora que indaga: que idéias atuaram a favor do Brasil? Provocadora, essa indagação é um recurso da retórica historiográfica. Ela instala uma voz autoral saliente e ativa que incide sobre tais obras, mas simultaneamente dirige-se à atualidade do tempo presente reclamando pelo engajamento e participação do leitor. Há aqui um aspecto que merece particularmente ser festejado: As identidades do Brasil 2 foi escrito para os homens comuns e com simplicidade. Sem prejuízo à evidente erudição do autor — que atravessa por um repertório bibliográfico consistente, mobilizando as idéias de Foucault, Bahbha, Ricoeur, Koselleck ou outros que teorizaram sobre o caráter constituinte da narrativa (leia-se: linguagem & tempo) na formação da identidade —, tratase de um texto coloquial voltado para o público não especializado. Mas, além disso, tal provocação possui efeitos substantivos que ultrapassam os aspectos formais da escrita e não afetam somente à dinâmica da interlocução entre autor e leitores. Quando indaga sobre os ideais de civilização que atuaram a favor ou contra o Brasil, José Carlos Reis se enreda em problemas bastante espinhosos. Por um lado, ele confirma o caráter clássico dos livros de Pedro Calmon, Affonso Arinos, Oliveira Vianna e Manoel Bomfim (“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” — escreveu Ítalo Calvino), rendendo-lhes justas homenagens. De outro lado, porém, invade o acidentado território do julgamento histórico. E isso o conduz, por fim, às seguintes e ainda bem mais embaraçosas questões: A permanência e a vitalidade dos clássicos do pensamento brasileiro nos autorizam a julgar suas visões de sociedade no mérito dessas lições? Se sim, então, a partir de qual Brasil se enunciam tais juízos? Quer dizer, existe o Brasil profundo e verdadeiro que serve como métrica para avaliar quem está a favor ou contra ele? Aliás, exatamente, quem é ele? Ou melhor: qual das vozes, dentre todas as que apareceram nos dois volumes de As identidades do Brasil, foi capaz de capturar o seu ser? Todas essas indagações querem nos levar a reconhecer e aceitar os limites cognitivos da História (em particular, os limites da história intelectual) — sem que isso, obviamente,

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envolva renunciar à possibilidade de haver conhecimento compartilhado (i.é: não idiótico) sobre o passado. Afinal, considerando que o acesso epistemológico aos tempos passados dá-se sempre através de narrativas (ou vestígios) que necessariamente expressam perspectivas situacionais e determinadas, então, como encontrar — malgrado simpatias ou antipatias — o discurso genuíno e verdadeiro acerca da realidade histórica? Em outras palavras: existe uma fala autentica sobre o Brasil capaz de validar e corrigir todos os demais discursos? Ou não, e aquilo que efetivamente existe é uma realidade primeira contra a qual podemos aferir o grau de veracidade e verossimilhança dos discursos (tratados como representações ideológicas)? Caso seja assim, então, qual dos pensadores foi capaz de compreender e capturar a tessitura dessa realidade? E por que os seus recursos epistemológicos seriam superiores aos dos demais intérpretes do Brasil? Clique e

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[1] Refrão de Querelas do Brasil, música de Mauricio Tapajós e Aldir Blanc (1978). [2] A primeira edição é de 1923, mas JCR lida com a segunda que foi revista e alterada pelo próprio O Vianna.

Muito bem. A principal virtude de ambos os volumes de As identidades do Brasil reside na exibição de uma pluralidade discursiva acerca do ser nacional. E sua importância teórica está justamente no fato de impedir soluções fáceis para qualquer uma das indagações acima. No entanto, contraditoriamente, no segundo volume, José Carlos Reis ora é “mestre de cerimônias” dessa polifonia, ora explicita predileções intelectuais e políticas democráticas que, embora sejam compreensíveis, também são teoricamente insustentáveis. O problema é que, desgraçadamente — e a despeito do que a intelligentsia brasileira pensou em meados dos anos 1980 —, a democracia não é um valor universal (sendo possível até cometer atrocidade em nome dela). Portanto, salvo melhor juízo, não há razão suficiente para torná-la critério de aprovação ou validação das idéias. Ademais, no cânone ocidental, raríssimos foram os pensadores favoráveis aos seus princípios participativos e igualitários. Platão, por exemplo, (para mencionar apenas um dos primeiros) foi sabidamente um reacionário. E nem de longe tem sido essa a justificativa para há séculos visitarmos (ou não) os seus Diálogos. Platão não precisa ser avaliado pelos credos políticos que sustentava, mas porque nos ensinou a pensar. Sua filosofia nos deu régua e compasso, i.é, instrumentos intelectuais, que nos ensinaram a compreender, aferir, imaginar e construir as medidas do mundo (e inclusive aquelas que usamos para julgá-lo). Ora, nas devidas proporções, esse mesmo raciocínio se aplica a Pedro Calmon, Affonso Arinos, Oliveira Vianna e a Manoel Bomfim. Afinal, seus esforços de fixação e entendimento da idéia de civilização brasileira constituem, apesar das suas inclinações autoritárias ou democráticas, um repertório seminal de fórmulas teóricas, insights criativos, cálculos da ação, esquemas explicativos, visões de mundo, recursos persuasivos, possibilidades compreensivas etc. Enfim, penso que a atualidade de suas obras não se esgota em qualquer medida de proximidade com o espectro político da esquerda ou da direita, mas consiste no fato de serem mestres da inteligência brasileira. Quer dizer, junto a muito outros, eles são fontes constituintes das nossas habilidades intelectuais e competências cognitivas para definir a consistência daquilo a que chamamos de realidade brasileira. E, nesse sentido, pavimentaram nossa experiência do mundo, pois tem sido com eles e através dos tempos que há gerações estamos construindo um duradouro e inconcluso diálogo sobre o que somos nós. Polifônica, essa querela brasileira nos tem feito refletir sobre o problema da identidade sem que pudéssemos cabalmente definir o que é o Brasil e o que somos nós, os gentílicos da terra. E por fim resta lembrar da desconcertante, mas luminosa, lição de Carlos Drummond de Andrade que em 1934, nos versos finais do poema Hino Nacional, escreveu: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.

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