DO COMERCIAL AO SOCIAL: Mafalda, a transformação de um produto cultural em fenômeno social e comercial e o que os artistas de Belém do Pará podem aprender com ela

May 30, 2017 | Autor: Apoena Augusto | Categoria: Marketing Research, Sociologia, Antropología cultural, Antropología, Artes Visuais
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA (PPGA)

APOENA AUGUSTO PEREIRA DE SOUZA

DO COMERCIAL AO SOCIAL: Mafalda, a transformação de um produto cultural em fenômeno social e comercial e o que os artistas de Belém do Pará podem aprender com ela

BELÉM – PA 2016

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APOENA AUGUSTO PEREIRA DE SOUZA

DO COMERCIAL AO SOCIAL: Mafalda, a transformação de um produto cultural em fenômeno social e comercial e o que os artistas de Belém do Pará podem aprender com ela

Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA da Universidade Federal do Pará como requisito para obtenção de conceito na disciplina Antropologia e História: análise de discursos e imagens – Tópicos Especiais em Antropologia, sob orientação da Prof. Dra. Jane Felipe Beltrão.

BELÉM – PA 2016

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RESUMO

O mercado de arte em Belém viveu tempos glamorosos. A fartura do período áureo da borracha criou uma cultura de colecionismo nunca mais vista na história recente da cidade. Esse tempo se foi e deixou como legado apenas a saudade de uma época onde o poder estatal trabalhava como principal incentivador do movimento artístico. Enquanto essa força se esvaía em Belém, nascia na Argentina, pelas mãos de um desenhista, um dos mais importantes produtos culturais do século XX: Mafalda, a pequena contestadora que conquistou a América Latina e o mundo com sua aparência frágil e discurso ácido. Contextualizando historicamente, esse breve estudo se propõe a analisar as relações entre Mafalda como produto cultural e comercial que se transforma em mito e as técnicas comerciais utilizadas nela que poderiam servir de base para o estímulo ao ressurgimento do mercado de produtos artísticos em Belém.

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INTRODUÇÃO

Belém do Pará é uma cidade pujante em termos culturais. Sempre foi. Mesmo o olhar mais despretensioso ao centro histórico, por exemplo, deixará passar em brancas nuvens a influência europeia na arquitetura, cujos traços precisos do italiano Antonio Landi, datados do século XIX, marcam até hoje a geografia da capital. Theodoro Braga, outro ícone e hoje o nome que batiza a importante galeria localizada no Centro Cultural Tancredo Neves, foi um pintor expoente do ciclo da borracha que viveu um dos melhores momentos da produção artística belenense, no qual a administração municipal, entendendo a arte como poderosa ferramenta de autopromoção, assumiu o papel de mecenas, incentivando não só a produção de artistas locais, mas também a vinda de artistas estrangeiros. O fim do ciclo da borracha arrefeceu, mas não ceifou a vocação artística da cidade. Mesmo num contexto financeiramente menos favorável, a administração municipal continuou atuante no estímulo à produção através dos salões – principalmente o Salão Oficial de Belas Artes, instituído em 1940 e que também tinha participação privada nas premiações - e das aquisições governamentais (SILVA, 2009). Nesse cenário, onde a temática regional era predominante, despontaram outros nomes importantes como o da pintora Antonieta Santos Feio, o fotógrafo francês Pierre Verger, o maestro Waldemar Henrique e tantos outros expoentes dos mais diversos tipos de manifestações culturais cujos legados atravessam décadas e inspiram várias gerações de artistas até os dias atuais. A Belém de hoje, por outro lado, pinta uma realidade bem distante de outrora. Mesmo com a vigência de leis federais, estaduais e municipais de incentivo à cultura como Rouanet, Semear e Tó Teixeira, onde o princípio básico está na renúncia fiscal dos impostos que seriam cobrados de empresas e pessoas físicas – o que pode ser entendido como a versão moderna do mecenato estatal – viver exclusivamente de arte em Belém se tornou um exercício hercúleo. Segundo a galerista Makiko Akao: “temos artistas bons, mas como não estamos no eixo Rio/São Paulo, é difícil atingir o mercado de arte. (...) não temos ainda uma política de escoamento dessa produção”.

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Declarações como a de Makiko, que têm eco entre muitos profissionais do meio artístico, trazem à luz a percepção de que há uma enorme escassez de compradores/colecionadores de arte em Belém, condição que torna os artistas locais absolutamente dependentes de leis de incentivo, de demandas de outros estados ou países ou, na pior das hipóteses, artistas nas horas vagas, obrigados a tratar a profissão como um hobby ou atividade complementar a uma profissão principal. E é aí que a história se cruza com o nascimento de Mafalda, cuja longeva trajetória de sucesso pode ajudar a entender como funciona a lógica de compra de produtos de arte que caem nas graças do consumo de massa sem qualquer incentivo estatal. Nascida do traço simples do desenhista Quino, a pequena e contestadora representante da classe média argentina veio ao mundo a pedido de uma agência de publicidade a qual preparava o lançamento de uma marca de eletrodomésticos. A campanha nunca chegou a ser veiculada, vetada que foi pelo periódico que a publicaria ao notar as veladas intenções mercantilistas por trás da personagem, mas o fato não impediu que surgisse ali um fenômeno cultural e comercial de proporções planetárias. Diante do exposto, surge o seguinte problema: como transformar os produtos de arte em Belém em bens tão desejáveis, assim como Mafalda, a ponto de dispensar quaisquer incentivos públicos para sua produção e venda? Para ajudar a elucidar essa questão será feita uma breve análise da bibliografia relacionada à história de Belém, Mafalda, trabalhos acadêmicos e pesquisas de mercado com artistas e comerciantes de arte com o objetivo de desvendar os caminhos para reativar o desejo de consumo por produtos de arte em Belém.

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Capítulo 1

Me ajuda que eu te ajudo - a força da arte na autopromoção estatal

Não se pode contextualizar a prática do mecenato em Belém sem citar Lauro Sodré, o governador da capital paraense do final do século XIX que, mesmo antes do intendente Antônio Lemos elevar a cidade ao status de Paris n’América com sua radical transformação arquitetônica e de infraestrutura, já acreditava nas artes como grande impulsionadora de popularidade pessoal e institucional. Foi ele o incentivador da contratação de artistas e da formação de um importante mercado de artes, pavimentando o caminho para o mecenato estatal (FIGUEIREDO, 2011). A faísca acesa por Lauro Sodré reverberou de tal forma na gestão de Antônio Lemos que, durante sua administração, foram criados o Instituto Histórico e Geográfico, uma academia de Letras e pinacotecas, iniciativas que transformaram em moda o colecionismo e o mecenato entre os enriquecidos pela bonança da borracha. Nomes como Antonio Faciola, Fernando Paes Barreto, Vicente Chermont de Miranda, Policarpo de Castro e tantos outros formaram opulentos e invejáveis acervos cujas críticas positivas ecoaram Europa afora. Como consequência natural, estabeleceu-se também uma legião de apreciadores de arte, uma elite cultural cujos representantes - profissionais liberais, educadores e intelectuais – não só discutiam e criticavam o tema como também frequentavam assiduamente com suas famílias as galerias e salões de arte (FIGUEIREDO, 2011). Esse movimento, uma clara via de mão dupla, foi de extrema importância para a figura política de Antônio Lemos. Sua forte atuação no mundo das artes lhe rendeu um incontável número de homenagens e uma aura de mito. Seu nome está eternizado no Palácio Antônio Lemos, uma bela edificação do século XIX construída para ser a sede do poder municipal que, hoje, não por acaso, abriga não só a prefeitura, mas também o Museu de Arte de Belém. A prática do mecenato estatal, entre altos e baixos (já que estava visceralmente atrelada à pujança da borracha), atravessa décadas e se mostra viva também no início da segunda metade do século XX, quando o maior conjunto de obras de arte da época pertence à Pinacoteca Municipal. Naquele contexto, não apenas as pinturas com temática urbana ou amazônica eram foco das encomendas municipais, mas também os retratos oficiais dos chefes de governo. Tudo produzido com apuro técnico capaz de inserir a criação artística da cidade num contexto

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universal, visto que muitos dos seus principais expoentes completaram seus estudos nas melhores escolas europeias. (FIGUEIREDO, 2011). Essa relação financeira íntima entre o Estado e as artes viria a sofrer um forte abalo alguns anos mais tarde com a mudança radical no contexto político do país quando, em 1964, os militares assumem o poder e cerceiam a liberdade de expressão, sendo retomada somente muitos anos depois - mais especificamente em 1991 - com a criação da Lei Rouanet, sancionada pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, que institui políticas públicas de incentivo à cultura através de renúncia fiscal sobre o imposto de renda tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, movimento seguido pelos estados e municípios através da criação de leis regionais. De fato, o mecenato estatal teve um papel fundamental não apenas na qualidade, mas também na quantidade de obras relevantes produzidas na região entre o final do século XIX e primeira metade do século XX, no entanto, aparenta ter criado uma profunda (alguns diriam até nociva) relação de dependência dos artistas para com o Estado que se estende até os dias atuais com as leis de incentivo. A cultura do colecionismo e do mecenato pelo cidadão comum, um dos grandes trunfos do governo Antônio Lemos, também se perdeu pelo tempo, reduzindo a prática regular a uns poucos e endinheirados entusiastas.

Capítulo 2. Mafalda e o sucesso social e comercial da pequena contestadora

Criada em 1962 pelo cartunista Quino para uma campanha publicitária que nunca foi ao ar, Mafalda, na verdade, só se tornou conhecida do grande público dois anos depois, em 1964, quando a revista Primera Plana fez dela sua tira cômica regular. (COSSE, 2014). O perfil contestador, que contrasta com a frágil figura infantil, rapidamente fez da personagem um fenômeno de aceitação, a ponto de leitores passarem a recortar as tiras e pregá-las em cadernos e paredes de escritórios. Mafalda criticava de forma ácida o modo de vida vigente da classe média argentina, onde o homem ainda era o provedor e a mulher a figura responsável por cuidar da casa e dos filhos. A própria mãe, por ter abandonado os estudos e os sonhos de juventude para viver em função da família, era uma vítima frequente de sua língua afiada. (COSSE, 2014).

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Apesar do sucesso crescente, publicar as tirinhas de Mafalda com regularidade não foi uma tarefa fácil para Quino. Dois periódicos falidos e um golpe militar em 1966, a chamada “Revolução Argentina”, causaram altos e baixos na produção do artista. A ditadura militar, combustível constante para as reflexões da pequena, mesmo com uma certa dose de risco para Quino, fez de Mafalda a portavoz da insatisfação popular para com o regime ditatorial, fato que, além de incrementar ainda mais sua popularidade, também causou efeitos colaterais, visto que a personagem acabou sendo utilizada de forma não autorizada por grupos extremistas em ataques terroristas. (COSSE, 2014). Some-se a acidez verbal de Mafalda e sua conexão com o público com as declarações políticas de Quino, favoráveis ao regime socialista. Some-se também o contexto político e econômico argentino e a habilidade mercadológica de seus editores e de Quino em produzir toda sorte de produtos derivados como edições especiais

para

colecionadores,

bonecos,

longa-metragem,

exposições

comemorativas e até chicletes. Some-se ainda a percepção do desenhista em parar de produzir as tirinhas enquanto a personagem ainda gozava do auge da popularidade e, finalmente, se tem o caminho favorável para a construção de um mito. Segundo Lévi-Strauss: “se os mitos têm um sentido, este não pode se ater aos elementos isolados que entram em sua composição, mas à maneira pela qual estes elementos se encontram combinados”. (STRAUSS, 2008).

Capítulo 3. Mafalda e Belém – a relação do mito com a atual produção artística na capital

Como mito, Mafalda atravessou gerações e seu legado continua a servir de referência atualmente. Os quadrinhos são utilizados nas escolas como ferramenta de ensino do espanhol; produtos como livros, revistas e material promocional ainda representam importante fonte de renda à Quino e seus parceiros comerciais. Mafalda, mesmo depois de mais de 50 anos de sua criação, está viva e servindo de exemplo aos artistas atuais de como manter a longevidade mesmo em um ambiente de altíssima competição por atenção provocada pelo avanço da tecnologia e da expansão dos recursos midiáticos.

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O contexto histórico e, particularmente, esse olhar sobre a Mafalda, nos permite vir até a Belém atual analisar o mercado das artes. Em 2014, a Boaventura Cultura e Negócios, instituto de pesquisa que reúne artistas e profissionais de marketing, realizou uma pesquisa qualitativa com alguns dos principais atores deste cenário em Belém. Participaram desse estudo profissionais de fotografia, artes plásticas, repórteres culturais, galeristas, cineastas, empresários e colecionadores. O objetivo era de mapear o mercado em Belém e entender que ações poderiam fazer com que a cidade retomasse a avidez de outrora no consumo de produtos de arte. Dentre os depoimentos, alguns se mostraram bastante lúcidos em relação ao atual momento vivido pela arte belenense. Segundo o artista plástico Jorge Eiró: “É necessária a percepção do trabalho artístico como produto por parte de todos os agentes dessa cadeia produtiva. A começar pelo artista e, a seguir, por todos os outros integrantes desse sistema. Para o colecionador, um investimento, status, objeto de distinção social. Do ponto de vista da formação/informação, a compreensão do valor estético, cultural e histórico, objeto de culto que se converte em valor econômico e financeiro. É necessário também implantar e desenvolver ações de colecionismo, o que é uma questão educativa de médio e longo prazo, uma missão civilizatória” (BOAVENTURA, 2014). Seguindo a mesma linha, o empresário Rodrigo Aguilera afirma: “Consumir arte é difícil como o vinho. Na Grand Cru Belém, por exemplo, assim que inauguramos começamos a realizar cursos de vinho, cursos introdutórios, algo como casa do saber, começamos a formar plateia. Percebemos que era preciso fazer isso e todo mês oferecemos cursos. A gente precisa trazer as pessoas e formar público.” (BOAVENTURA, 2014). Esperança Bessa, jornalista, complementa: “Eu fui repórter cultural por muitos anos, deixei a pasta por um tempo e recentemente reassumi um caderno de cultura. E pra fazer esse projeto novo eu fui fazer uma ampla pesquisa do que estava sendo feito e me assustou ver o quanto caiu, se estagnou esse mercado. São as mesmas pessoas, os mesmos colecionadores comprando dos mesmos artistas, não houve renovação. Tem alguma coisa errada nesse mercado”. (BOAVENTURA, 2014). Em todos os discursos é possível notar a concordância geral sobre a dificuldade do momento atual vivido pelo mercado das artes em Belém, mas fica notório também que as sugestões de solução passam fortemente pelo entendimento

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da arte como um produto a ser comercializado e do qual podem surgir desdobramentos. Complementarmente, no discurso do empresário Rodrigo Aguilera, surge a questão da educação para a formação de público consumidor, iniciativa que é compartilhada pela galerista Makiko Akao, da Kamara Kó, que também destaca a necessidade de “criação de um mercado de colecionadores”. Tudo sem passar pela ajuda estatal sob qualquer aspecto (DIÁRIO ONLINE, 2016) Fica claro que as proposições colocadas pelos mais diversos profissionais ao longo da pesquisa são reproduções, talvez até inconscientes, de muito do que é feito com Mafalda desde o início até hoje. Isso, por si só, justificaria um processo investigativo mais profundo sobre os aspectos comerciais da personagem e as técnicas utilizadas pelos seus editores e o próprio Quino que, por ventura, se adequariam à realidade local atual e serviriam de elementos impulsionadores do consumo de arte em Belém.

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Bibliografia

SILVA, Caroline Fernandes. O Moderno em aberto: O mundo das artes em Belém do Pará e a pintura de Antonieta Santos Feio. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense sob orientação do Prof. Dr. Paulo Knauss. Niterói, 2009. AKAO, Makiko. Makiko Akao fala sobre articulação em prol da arte. Diário Online. Belém, 28/04/2016. COSSE, Isabella. Mafalda: historia social y política. 1a Ed. 1a. reimp. – Ciudad autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Quimera Amazônica: Arte, mecenato e colecionismo em Belém do Pará. Artigo escrito como parte de uma pesquisa mais ampla sobre pintura e círculos intelectuais na Amazônia. Belém, 2011. Lévi-Strauss, Claude. Antropologia estrutural I. SP, Cosac Naify, 2008. CULTURA E NEGÓCIOS, Boaventura. Mapa do Mercado de Arte em Belém. Pesquisa qualitativa. Belém, 2014.

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