Do corpo ao gesto: a presença do analista e seus efeitos na clínica

June 14, 2017 | Autor: Luciano Mattuella | Categoria: Psychoanalysis, Psicanálise
Share Embed


Descrição do Produto

Do corpo ao gesto: a presença do analista e seus efeitos na clínica1  

" Luciano Mattuella2  

" Assim que recebi o convite para esta conferência, comecei a pesquisar sobre o assunto: o corpo do terapeuta - no meu caso, o corpo do psicanalista. Em um primeiro momento, não recordei-me de nenhuma obra que tivesse trabalhado especificamente sobre isso. Conversando com colegas, acabei me certificando da escassez de teoria produzida sobre o tema: havia um vazio de palavras. Percebi que talvez a minha própria dificuldade de encontrar material sobre o assunto pudesse ser o ponto de partida para a reflexão. De modo a colocar a minha inquietação a trabalhar, elaborei algumas perguntas: por que tanto silêncio com relação ao corpo do psicanalista? Qual a relação entre a palavra e o corpo do analista? Por que o corpo do analista ocupa este lugar tão abjeto no discurso da psicanálise? Quero dizer, então, que este texto tem a marca da especulação, é o resultado de um trabalho de pesquisa em ato, de tentativa de produção de algumas considerações derivadas da teoria e de minha própria prática clínica. Um dos colegas com quem conversei sugeriu que a dificuldade em abordar este tema talvez se devesse ao aspecto de intimidade do assunto. Quando falamos do corpo do psicanalista, falamos de algo de nosso íntimo. Intimidade, íntimo... intimidador: o deslizamento de sentido parece pertinente. Afinal, é como se este conceito interpretasse

1!

Conferência apresentada na “IV Jornada da CEIP: O Corpo na clínica”, em Santa Maria - RS, no dia 9 de novembro de 2013. 2!

Psicanalista, doutor em Filosofia (PUCRS), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).

!1

algo do íntimo do psicanalista, como se revelasse algo de estranho. Estranho exatamente seguindo a inspiração de Freud: algo que nos é tão próprio que, quando surge, nos parece estrangeiro, parece não nos pertencer - nos intimida e nos convoca a uma tomada de posição. Algo até mesmo abjeto, como disse há pouco. Acredito que estejamos todos na mesma estupefação que Freud relata na seguinte passagem:

" Viajava só, no vagão de leitos de um trem, quando, numa brusca mudança da velocidade, abriu-se a porta que dava para o toalete vizinho e apareceu-me um velho senhor de pijamas e gorro de viagem. Imaginei que tivesse errado a direção, ao deixar o gabinete que ficava entre dois compartimentos, e entrasse por engano no meu compartimento, e ergui-me para explicar-lhe isso, mas logo reconheci, perplexo, que o intruso era a minha própria imagem, refletida no espelho da porta de comunicação.3  

" A perplexidade de Freud com o reflexo de sua imagem parece fazer eco até hoje nos psicanalistas quando se trata da presença do seu corpo na situação analítica. Ora, se há estranhamento é porque há reconhecimento de algo importante. Mas a perplexidade, por mais que possa ser uma primeira forma de contato com algo - uma sideração, em outras palavras -, é da ordem da paralisia, do apaixonamento pela imagem. Proponhome aqui, encorajado por este trecho que há pouco citei, a me permitir a passagem pelos três tempos pelos quais Freud passou: 1) o tempo de estranhar a imagem: ou seja, como 3!

FREUD, Sigmund. “O Inquietante” (1919), in. Obras Completas - Volume 14: História de uma neurose

infantil (“O Homem dos Lobos”), Além do Princípio do Prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 370.

!2

se o próprio corpo não concernisse aos psicanalistas; 2) o tempo de reconhecer-se na imagem: tempo de espanto, de ver-se representado em um lugar que não se esperava e, por fim, 3) tempo da elaboração: tentativa de fazer algo com o estranhamento e, no nosso caso, elaborar algumas hipóteses sobre o corpo do analista. Creio que avançamos na teoria na medida em que não permanecemos perplexos frente ao real da clínica, mas nos aventuramos a encará-lo com um olhar curioso.

Entre o abjeto e o valioso, entre o profano e o sagrado, parece-me que é nesta tensão que se sustenta o corpo do psicanalista no contexto transferencial. Se me remeto aqui à transferência, é porque me parece que uma das condições para que ocorra uma análise é que ali haja um psicanalista de corpo presente servindo como suporte para a cena transferencial. Que o corpo do analista esteja em cena, esta é uma indicação sugerida pelo próprio Freud ao final do seu artigo “A Dinâmica da Transferência”, de 1912:

" É inegável que o controle dos fenômenos da transferência oferece as maiores dificuldades ao psicanalista, mas não se deve esquecer que justamente eles nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos amorosos ocultos e esquecidos dos pacientes, pois afinal é impossível liquidar alguém in absentia ou in effigie.4  

4!

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência. in. ___________. Obras Completas - Volume 10.

Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O Caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 146.

!3

É impossível que o paciente consiga elaborar suas questões sem que possa contar com o corpo do psicanalista como suporte para encarnar um determinado papel na cena da narrativa fantasística que dá contornos para o seu sofrimento. Segundo Freud, não há endereçamento de demanda de amor a não ser a uma instância presente e corporificada à qual o analisando remete a sua palavra. Se a neurose de transferência é, como Freud propõe, esta neurose artificial que se engendra do enlace da palavra do paciente com a presença do analista, então logo podemos perceber que há algo do analista que se decanta na transferência, em outros termos, o analista está também ele lançado no jogo transferencial. Neste sentido, seguindo à letra a citação de Freud, o corpo do psicanalista está atravessado por uma inflexão temporal bastante específica. Diz Freud que os fenômenos de transferência “nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos amorosos ocultos e esquecidos” - percebemos aí, portanto, que o corpo do analista acaba sendo animado por esta temporalidade que é tão específica do trabalho analítico: no presente, é o corpo que sustenta a cena transferencial e dá as condições para que uma análise tenha lugar; mas é também um ponto de fuga que habita, pela via da ficção, algo do passado do paciente, é como um aleph de que nos fala o escritor Jorge Luis Borges, este ponto no universo que condensa todas as histórias possíveis. Esta talvez seja, arrisco-me a dizer, a dimensão estética do corpo do psicanalista no contexto transferencial: é ele mesmo parte central na construção as ficções que auxiliam o sujeito a tomar lugar no mundo. O paradoxo que nos propõe Freud parece ser o seguinte: o psicanalista está presente em transferência precisamente enquanto ele, como indivíduo, está ausente. Uma presença de sua ausência - um vazio. Enquanto se mantém

!4

a cena transferencial, o analista não está ali como um corpo que se presentifica através de sua fantasia, mas sim como um corpo que se entrega como suporte para a atualização das fantasias do analisando. Esta elaboração me ajuda a entender uma citação de Lacan que há algum tempo era obscura para mim. No texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan escreve:

" (...) Também o analista tem que pagar: - pagar com palavras, sem dúvida, se a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação; - mas pagar também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a a análise descobriu na transferência; - e haveremos de esquecer que ele tem que pagar com o que há essencial em seu juízo mais íntimo, para intervir numa ação que vai ao cerne do ser (...): seria ele o único a ficar de fora do jogo?5  

Entendo então que o psicanalista paga com algo de simbólico, na medida em que traduz a palavra do analisando em um interpretação; paga também com algo do imaginário, uma vez que precisa silenciar em si o seu enredo fantasístico, de modo a não se precipitar através de juízos pessoais em sua fala e, por fim, o ponto que aqui parece levar adiante a elaboração, paga com algo de real, na medida em que empresta o seu corpo como suporte aos fenômenos da transferência. O que Lacan nos lembra é que

5!

LACAN, Jacques. A direção do tratamento. in. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p.

593.

!5

o analista está plenamente comprometido com o tratamento, em todas as dimensões possíveis, mas sempre na posição de suporte de algo, como lugar de endereçamento. Estas três formas pelas quais o analista paga podem ser vistas, acredito, como três condições mínimas para que uma análise tenha lugar. Quero dizer que para que o paciente possa supor um analista, é necessário que aquele que lhe escuta esteja disposto a despir-se o tanto quanto possível de seus julgamentos e balizas imaginárias, a alinharse com uma escuta do significante, uma escuta que vai para além do laço comunicacional e, especialmente, a suportar em seu corpo os enlaces amorosos e de reconhecimento que são efeitos da transferência. Sendo levadas estas três condições a sério, a função analista se instala, o analisando pode supor que aquele que o escuta sabe algo de seu inconsciente - estamos falando do início de uma análise e da instalação do Sujeito Suposto Saber. Também é importante ressaltar que o manejo transferencial supõe estas três condições trabalhando conjuntamente: um analista que ignore a dimensão real, corre o risco de transformar o trabalho em uma simples decifração sígnica, uma vez que o semsentido não está incluído; se a dimensão do pagamento imaginário for ignorada, o tratamento pode apontar para a via da sugestão; por outro lado, se o analista não levar em conta a eficácia simbólica, algo de uma montagem perversa pode se estruturar transferencialmente, como aponta Lacan em uma lição de seu Seminário sobre a relação de objeto:

" (...) é num plano, senão idêntico, ao menos análogo de relações que podemos conceber como de natureza essencialmente perversa, que devem se manifestar os resultados, no mínimo transitórios, de um

!6

certo manejo da relação analítica, quando se a centra inteiramente na relação de objeto fazendo intervir apenas o imaginário e o real, e quando se regula toda a acomodação da relação imaginária sobre um pretenso real da presença do analista.6  

" Esta seria uma relação que se esgotaria na leitura da dimensão imaginária da transferência. Por certo a transferência é, como insiste Lacan, a atualização do inconsciente na cena analítica, mas é importante perceber que esta atualização apenas se dá porque o analista está colocado discursivamente em uma posição que, por assim dizer, não é sua de direito - em outras palavras, ele está presente na cena analítica tãosomente como semblante. O que Lacan nos faz lembrar é que a neurose de transferência encontra seu suporte em alguns significantes mestres que são endereçados ao analista. Mais uma vez percebemos como o corpo do analista é recortado e contornado por uma malha simbólica que fala da singularidade daquele enlace transferencial. Ou seja, percebemos que, enquanto corpo, o analista está no jogo como suporte. Se venho insistindo na questão da cena transferencial é porque acredito que é no campo da transferência, ao envolver o corpo do analista com seus significantes mestres, que o analisando atualiza a sua realidade psíquica. Sabemos que há toda uma forma de entender a Psicanálise que acredita que o bom encaminhamento de um tratamento passa por tornar o analisando consciente da situação transferencial imaginária e do lugar em que coloca o analista em seu discurso; é uma aposta de que, ao trazer à consciência os conflitos recalcados que o fazem sofrer, o paciente terá melhor domínio sobre o seu padecimento. A transferência, neste sentido, seria mais um elemento a ser interpretado 6!

LACAN, Jacques. O seminário - Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995,

p. 86.

!7

pelo psicanalista. Não é desta forma que penso a verdadeira eficácia do nosso trabalho. Acredito que foi justamente este modo de entender o tratamento que fortaleceu a ideia de que o psicanalista nada precisa saber do seu corpo, uma vez que a dimensão real de sua presença resta obscurecida pela tessitura imaginária da fantasia. Do meu ponto de vista, carregar a interpretação pela via imaginária é uma forma de esquivar-se do pagamento que está na base de uma daqueles três condições de que falávamos anteriormente: que o psicanalista paga também com o seu corpo, não o corpo revestido pelo imaginário, mas o corpo, repito, enquanto suporte de uma escuta. Assim compreendo a seguinte afirmação de Lacan, à época do seu Seminário “De um outro ao Outro”:

" (...) devemos admitir que somente a repetição é interpretável na análise, e é isso que tomamos por transferência. Por outro lado, o fim que aponto como a captação do próprio analista na exploração do a, é exatamente isso que constitui o ininterpretável. Em suma, o ininterpretável na análise é a presença do analista.7  

" Diferentemente do que supõem certas correntes psicanalíticas superinterpretativas, a presença do analista, conceito tão caro à Lacan, é justamente o ininterpretável na análise. No momento em que o analista explicita a sua posição de semblante, a cena transferencial cai; é como se o analista colocasse em descrédito a potência da palavra do analisando, como se dissesse que tudo o que ele está endereçando perdeu-se pelo caminho. Entendo isso como uma resistência do próprio 7!

LACAN, Jacques. O seminário - Livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

2008, p. 338.

!8

analista, na medida em que este parece preocupado em mostrar que o ficcional da transferência estaria no registro do erro e da falsidade. Assim, estamos nos referindo a um problema da ética da psicanálise, afinal, Lacan propõe claramente que a própria verdade é estruturada como uma ficção: dito de outro modo, aquilo que o paciente revive em análise não se refere tão simplesmente à atualização de algo do passado, mas sim à colocação em ato de sua posição frente ao Outro, dimensão esta encarnada no analista. Se esta posição é construída por uma cadeia de significantes que vai talhando um estilo de relação com o mundo, então é razoável que se diga que a transferência reorganiza estes significantes no endereçamento ao analista - portanto, é certamente o que de mais verdadeiro pode surgir em um tratamento. Colocar esta relação no plano do “é como se eu, analista, representasse tal outra pessoa” desfaz a cena, cria um ponto de esgotamento da palavra, um silêncio que é, na verdade, resultado de uma tentativa defensiva do analista de interpretar a transferência. A posição do analista é, portanto, a de um ator que esquece ser um ator, que paga com seu corpo por este esquecimento. Nas palavra de Lacan: "Quanto ao psicanalista (...), fica apenas no lugar do ator, na medida em que o ator basta, por si só, para sustentar essa cena. (…) é esse ator que se apaga, esvaziando o objeto a (...)."8  

Mais uma vez temos aí a noção de que o analista sustenta uma cena, não a interpreta. Intepretá-la seria já abrir mão de sustentá-la. Mesmo se jogarmos com o significante, o analista não interpreta a cena como um ator interpreta um papel, pois é só a posteriori que ele vai poder pensar o que se passou na transferência, em que lugar foi suposto pelo paciente - não há roteiro pré-escrito. Durante a sessão, acredito, o 8!

LACAN, Jacques. O seminário - Livro 16: De um Outro ao outro..., 2008, p. 338.

!9

analista deve supor-se no lugar deste lugar vazio para onde são endereçados os significantes, como este corpo que é envolvido pela palavra. Do contrário, corre o risco de tomar a forma como o conteúdo, precipitando a falência da forma. Lacan é bastante específico: o analista é um ator que se apaga, é pelo seu esvaziamento, pela sua ausência que ele se presentifica. Como Lacan mesmo diz, o analista está na transferência como objeto esvaziado, como objeto a na sua faceta de objeto causa de desejo: sua presença é o que relança o sujeito em sua cadeia discursiva, animando a metonímia do desejo. Minha hipótese é a seguinte: se o analista se nega a pagar com seu corpo, se interpreta a sua presença na transferência, acaba por colocar-se fora da cena, na posição de um suposto observador privilegiado e onisciente. Mas, no fundo, ao interpretar o ininterpretável, o analista cai fora da cena como um resto que imaginariamente esgotaria a cena transferencial em uma leitura da ordem da sugestão.

Venho insistindo na noção de presença do analista porque me parece que ela dialoga de modo muito próximo com a de corpo do psicanalista. Apesar de ser um assunto tratado com mais rigor por Lacan, é importante nos voltarmos para Freud a fim de buscarmos as inspirações que levaram à elaboração da ideia de “presença do analista”. Quando Lacan lê esta questão em Freud, o faz pela via do silêncio por parte do analisando, pela interrupção de seu discurso. Este ponto é trabalhado por Freud no já citado artigo “A Dinâmica da Transferência”. Cito duas passagens deste texto que me parecem centrais neste sentido:

"

!10

(...) quando as associações livres de um paciente falham, a interrupção pode ser eliminada com a garantia de que no momento ele se acha sob o domínio de um pensamento ligado à pessoa do médico ou a algo que lhe diz respeito.9  

" Quando algo do material do complexo (do conteúdo do complexo) se presta para ser transferido para a pessoa do médico, ocorre essa transferência; ela produz a associação seguinte e se anuncia mediante sinais de resistência como uma interrupção, por exemplo.10  

Para Freud, portanto, uma das situações que provocam uma interrupção no discurso do paciente é o momento em que, porventura, o analista se presentifica de modo positivado; ou, do modo que eu entendo, é naquele momento em que em seu discurso o paciente chega perto de algo do real, situação em que o significante está em suspensão, aguardando seu lançamento na cadeia. Parece-me que este é um ponto muito delicado de um tratamento, na medida em que o analista, acredito, acaba por sustentar este real que o paciente encontra em sua fala, como o umbigo do sonho, aquele elemento do sonho que carece de representação e faz com que o sonhador acorde. É como se a palavra que fica aí em suspenso - a “associação seguinte”, como diz Freud demarcasse as bordas da cena fantasística, tornando perceptível a evidência do analista em sua presença corpórea. É esta presença que é recoberta pela resistência. Afinal, como diz Lacan, a “presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente

9!

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência..., p. 137.

10 !

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência..., p. 140.

!11

(...).”11 Em outras palavras, o corpo do analista opera a todo momento na transferência,  

por vezes mesmo encarnando o real, o vazio que está sempre suposto no discurso. Assim entendo também o silêncio do analista: não como o silêncio daquele que não tem nada a dizer, daquele que caiu fora da cena (como resto), mas, ao contrário, como o silêncio daquele que tem muito a escutar, que convida à associação livre e à responsabilidade pela posição subjetiva. O silêncio do analista encarna o silêncio do real; quando o analista silencia, ele não faz silêncio como quem cala uma fala, mas ele se faz silêncio, convidando com o seu corpo o paciente a enunciar e decifrar as letras que lhe dão um lugar frente ao Outro. Ao fazer-se silêncio (diferente de fazer silêncio), o analista acaba colocando em jogo a pergunta pelo desejo, interpelação que em geral é acompanhada do sentimento de angústia, como afirma Lacan:

" O momento em que o sujeito se interrompe, é ordinariamente o momento mais significativo da sua aproximação em direção à verdade. Apreendemos aqui a resistência no estado puro, que culmina no sentimento, frequentemente tinto de angústia, da presença do analista.12  

" Enquanto endereça seu discurso, o analisando supõe no analista alguém que sustenta a cena transferencial, a atualização do inconsciente e dos significantes mestres de sua narrativa. Ao aproximar-se de um irrepresentável, é como se o paciente acordasse, como se subitamente o analista se positivasse em sua presença, não fosse 11 !

LACAN, Jacques. O seminário - Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 121. ! 12

LACAN, Jacques. O seminário - Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 1986, p. 66.

!12

mais este lugar esvaziado. De certa forma, então, é no corpo do analista presentificado que se interrompe a malha discursiva do paciente. É neste momento em que algo paraalém da fantasia é apontado: o real inelutável que está na base da experiência da linguagem.

" Durante a escrita deste texto, deparei-me com um documentário chamado Rendez-vous chez Lacan (Encontro com Lacan), de direção de Gérard Miller. Há neste documentário um pequeno trecho, que logo citarei, que julgo ilustrar o modo muito particular como Lacan entendia os efeitos da presença do analista em análise, especialmente no que se refere à positivação do corpo do psicanalista. O trecho a que me refiro é um testemunho de uma situação da análise de Suzanne Hommel, uma paciente de Lacan. Transcrevo, portanto, a fala da Sra. Hommel: 
 Suzanne Hommel: “Sou da Alemanha e nasci em 1938. Portanto, vivi os anos da guerra com todos os horrores, as angústias, o pós-guerra, a fome, as mentiras. Sempre quis deixar a Alemanha por causa disso. E, desde o início das primeiras sessões, eu perguntei a Lacan: ‘Posso me curar desse sofrimento?’… e dizendo isso, entendi que não. Eu havia pensado que podia arrancar essa dor de mim com a análise. Não, havia uma maneira de me olhar que me fez perceber: ‘Não. Será preciso fazer isso a vida toda.’ Um dia, numa sessão, contei a Lacan um sonho que tive. Eu disse: ‘Acordo todo dia às 5h’, e acrescentei: ‘Era às 5h que a Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas.’ Nesse momento, Lacan se levantou como uma flecha de sua poltrona, veio na minha direção e me fez um carinho muito doce no rosto. Eu entendi: ‘geste à peau’, o gesto…”

!13

Entrevistador: “Ele transformou a ‘Gestapo’ em ‘geste à peau’.” Suzanne Hommel: “Em um gesto carinhoso. Um gesto extremamente carinhoso. E essa surpresa não diminuiu a dor, mas fez outra coisa. A prova, agora, 40 anos depois, é que eu ainda conto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto. É um gesto também… é um apelo à humanidade, qualquer coisa assim.”

" A Sra. Hommel fala de um Lacan que faz uso do próprio corpo em uma intervenção em transferência. Certamente, ao ouvir este testemunho, nossa primeira reação é de uma certa estranheza. Como alguém como Lacan, que sempre fez questão de marcar a eficácia da palavra e do simbólico, pôde ter feito uma intervenção desta forma? É neste ponto que eu gostaria que nos detivéssemos com calma: no que chamarei da passagem do corpo ao gesto. O ato de Lacan, no meu ponto de vista, não foi uma ação carinhosa ou que se resolvesse simplesmente em um acolhimento imaginário. Mesmo que passando pelo corpo, é um ato de eficácia simbólica, uma vez que faz este significante que tanto atormenta e toma o corpo da Sra. Hommel - o significante Gestapo - encontrar um deslizamento possível na cadeia. Mas é preciso que atentemos a algo: o ato de Lacan, por si só, não teria efeito algum não fosse a suposição da paciente de que ali havia um analista, alguém que escuta a sua palavra desde um outro lugar que não somente o da comunicação entre os pares. Percebam que é um ato essencialmente silencioso - é a Sra. Hommel que lhe dá sentido e o interpreta. Lacan mantém-se seriamente na posição de vazio: não é ele que dá sentido ao seu gesto, ele não sugere nada: a escanção significante que permite o deslizamento simbólico está do lado da paciente que, como eu disse antes, supõe um analista naquele que a escuta. A presença do analista está decantada na cena como uma manifestação inconsciente.

!14

Gostaria de avançar um pouco ao lançar uma hipótese para seguirmos pensando: quando alguém endereça seu discurso a um analista, os atos deste são lidos como gestos, colocam-se em transferência como significantes, não como signos. Não são gestos de amor, mas gestos para serem lidos pelo analisando - e, por isso mesmo, escapam à própria consciência do analista. A autoria do gesto se perde no campo do enlace transferencial. É no texto “O autor como gesto”, de Giorgio Agamben, que busco referência para sustentar esta minha posição. Diz Agamben, a respeito do gesto e da autoria:

" Se chamarmos de gesto o que continua inexpresso em cada ato de expressão, poderíamos afirmar então que (...) o autor está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central.13  

" Se a posição do analista não se resume a uma interpretação imaginária da transferência, se sua escuta vai para além da sedução das imagens, então a presentificação de seu corpo, no lugar de suporte de uma cena da qual ele também faz parte, será lida pelo analisando como um gesto enigmático, como a encarnação de um silêncio que convida à interpretação. É neste sentido que me parece valiosa a citação de Agamben: o gesto é precisamente o que resta de inexpresso em cada ato de expressão. E, mais ainda: é o gesto que instala na ação um vazio central - em nossos termos, poderíamos dizer que este vazio é o esvaziamento de um sentido a priori: ou seja, é uma insistência do real da presença do analista. Quando intervém, portanto, o analista não é

13 ! AGAMBEN,

Giorgio. “O autor como gesto”. in. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 52.

!15

autor consciente de seus atos - seus gestos são uma convocação a que o analisando assuma autoria de sua posição e de seu lugar no mundo. Não fosse a interpretação que a própria Sra. Hommel deu ao gesto de Lacan - acariciar a sua face -, este teria se perdido no registro do amor, não teria tido a eficácia simbólica que, quarenta anos depois, ainda restou como um outro contorno ao seu corpo. Quem faz a leitura da cena é a própria analisanda, pela via do significante. Percebemos aí, portanto, a importância de não nos contentarmos com uma clínica do escópico, da imagem, da sugestão: é preciso que o psicanalista tenha claro que o seu fazer está sustentado pela dimensão do impossível, de um real que o coloca a trabalhar.

!16

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.