Do direito à chouriça: o abuso do \"reme-reme\" no pensamento jurídico
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http://www.joaolordelo.com Do Direito à chouriça: o abuso do “reme-‐reme” no pensamento jurídico João Paulo Lordelo Procurador da República Mestre em Direito (UFBA) Professor universitário.
No ano de 2012, durante as aulas do mestrado da Universidade Federal da Bahia, o prof. Fredie Didier Jr. recomendou à turma de Teoria do Processo uma obra, no mínimo, muito interessante. Trata-‐se de “Prodígios e Vertigens da Analogia: o abuso das belas-‐letras no pensamento”, de Jacques Bouverese. O livro parte do famoso caso (ou escândalo) Sokal, ocorrido nos Estados Unidos, para tratar do uso abusivo (truncado) da linguagem no meio acadêmico – e, de uma forma geral, onde haja produção de conhecimento. Não vamos falar aqui sobre as conclusões filosóficas da obra, já que não é está a intenção. Convém, isso sim, falar um pouco sobre esse tal caso Sokal, que pode nos passar uma boa lição sobre o ensino jurídico no Brasil. Resumidamente, o que ocorreu foi o seguinte: nos anos 90, o físico americano Alan Sokal publicou um “artigo” na revista Social Text (Ed. Duke University Press), conhecida por se tratar de um veículo de vanguarda. O que ninguém sabia era que Sokal, em realidade, havia enviado um verdadeiro embuste para publicação. Uma pegadinha (do malandro, por assim dizer). Sokal misturou uma série de teorias nonsense, reunindo diversas de citações inadequadas de intelectuais franceses e, numa moqueca de palavras e construções de difícil compreensão, intitulou seu artigo “Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity” (“Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”), ao estilo “pós-‐ moderno” incompreensivo. Após receber uma série de elogios por sua “erudição”, o autor revelou a fraude, publicando um artigo em seguida, explicando o experimento. É mais ou menos por aí que caminha o Direito no Brasil. Desde o primeiro semestre, os alunos são bombardeados com teorias objetivas, subjetivas e mistas (optando-‐se, quase que invariavelmente, pela teoria mista). No Direito Processual Civil, nos deparamos com um paradoxo perturbador: uma disciplina instrumental que consegue ser mais “truncada” e incompreensível que o próprio Direito que pretende realizar. É como se um arquiteto tivesse mais dificuldade para usar um lápis que para desenvolver um projeto arquitetônico. Não há razão alguma para concebermos, por exemplo, ao lado do “mérito da causa”, as chamadas “condições da ação” e os “pressupostos processuais” como categorias distintas e cheias de subdivisões. No campo do Direito Civil, por sua vez, como explicar a um leigo a diferença entre prescrição e decadência? Muitos invocarão as famosas lições de Agnelo Amorim Filho para diferenciar institutos que poderiam ser reunidos em um só, denominado “prazo”. Não faltam exemplos. Há um específico que particularmente gosto de desenvolver em sala de aula. Trata-‐se da chamada “sanção premial”, integrante da
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Teoria do Direito, mas muito comum no âmbito do Processo Civil. No art. 1.102-‐c, do CPC, que disciplina a ação monitória, consta que, caso o réu não se defenda, não precisará pagar os honorários advocatícios. Trata-‐se, segundo a doutrina, de uma “sanção premial”, ou seja, um “prêmio” em forma de sanção. Ocorre que qualquer indivíduo com um mínimo de bom-‐senso anda por aí com uma ideia clara de que “sanção” consiste numa reação a algo indesejado. Pense, então, que, ao praticar algo indesejado, você receba um prêmio, uma graça. Imagine, por exemplo, que, num dia de domingo, você resolva tirar aquela bebida que seu pai guardara na geladeira, deixando-‐ a esquentar durante o jogo do seu time do coração. Ao notar, seu pai reage com um prêmio, um agrado. A tentativa de afastar o significado dos institutos jurídicos do que as pessoas em geral compreendem dos significantes é, em última análise, uma tentativa de encastelar o Direito, de dificultar a sua compreensão. Uma prática perversa que tenta valorizar um campo do conhecimento a partir do seu grau de enrolação. Muitos países costumam regular temas “relevantíssimos” no Brasil – como o Processo Civil – por meio de simples decretos, sem a necessidade de lei, em razão do grau de simplicidade dos institutos. Aqueles que militam no campo das ações coletivas sabem como é ridícula – e desnecessária – a subdivisão dos direitos dessa categoria em difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, cada um com um tratamento diferente. É muito “reme-‐reme”, muita enrolação. Ouvindo e vendo um pouco das palestras e textos incrivelmente lúcidos e objetivos de Eduardo Giannetti (se ainda não viu, veja: https://www.youtube.com/watch?v=3SkhSmReC4Q), penso que a razão de ser da enrolação do ensino jurídico no Brasil tenha duas origens principais. A primeira, já referida, parte da tentativa de tornar o campo o mais incompreensivo possível – importando um pouco a ideia da caligrafia criptografada dos profissionais médicos -‐, como se isso o valorizasse. A segunda, da ausência de pensamento sério no nosso país. De uma maneira geral, não temos uma tradição acadêmica de pensadores com ideias originais (ou seja, não temos uma “tradição de pensamento”). Na academia, aprendemos a copiar e colar o máximo de citações e ideias alheias, em maior volume possível (não por acaso, aqui no Brasil, é inconcebível uma tese de doutorado de apenas cem páginas, algo comum nos Estados Unidos). A consequência de tudo isso é uma só: o ensino jurídico se aproxima de uma chouriça, preenchido com institutos que se assemelham aos miúdos – e mereciam ser descartados. Por mais prejudicial e gorduroso que seja, é servido diariamente na mesa das universidades.
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