Do Direito à Política: a Gênese da Jurisdição Constitucional Norte-Americana.

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Do Direito à Política: a Gênese da Jurisdição Constitucional Norte-
Americana.





Christian Edward Cyril Lynch[1]


Publicado em: Revista de Ciências Sociais (UGF), v. 20, p. 15-40, 2010.


Resumo: O objetivo do artigo é o de reexaminar a gênese da jurisdição
constitucional norte-americana e reavaliar as relações entre direito e
política à luz da recente literatura de história das idéias políticas
naquele país, resgatando o peso da cultura política inglesa e da tradição
colonial de pluralismo religioso. Essas duas heranças refletir-se-ão num
conceito defensivo de soberania do povo, que levará à proposta federalista
de organizar as novas instituições políticas a partir da fragmentação
vertical e horizontal do poder. No intuito de eliminar a discricionariedade
inerente ao conceito de soberania, os fundadores da república atribuirão ao
senado uma função moderadora que, a longo prazo, ele se revelará incapaz de
exercer. È nesse quadro que, primeiro de modo tímido, depois ostensivo,
surge a Suprema Corte como verdadeiro poder moderador da Constituição de
1787.

Palavras-chave: Estados Unidos, Constituição, Inglaterra, jurisdição
constitucional, Suprema Corte, Poder Moderador.






Introdução





Um dos mais fascinantes temas da teoria política é aquele referente
às relações entre os conceitos de soberania popular e de constitucionalismo
que, ao oporem a toda potência igualitária da massa à proclamada limitação
do poder político em nome da liberdade, conformam uma das mais importantes
antíteses constitutivas da democrática liberal (ARON, 1997:70). Entretanto,
os estudos políticos que abordam o problema daquela antítese conceitual,
quando da passagem para a modernidade política, geralmente se limitam a
explicá-la pela contraposição algo chã e reducionista das teorias liberais
de Locke às democráticas de Rousseau. Essa insistência de uma análise
puramente filosófica e autoral, em detrimento de um complemento histórico e
contextual, deixa de lado uma série de outros aspectos, concernentes às
formas empíricas, concretas, institucionais, por que aquela antiga oposição
foi ou não resolvida no mundo político real, e consequentemente as aporias
e tensões daí decorrentes. Por isso, alguns estudos contemporâneos têm
preferido se debruçar mais detidamente no estudo das diferentes soluções e
experiências de governo constitucional e representativo que foram ensaiadas
quando da saída do Antigo Regime, começando pela Inglaterra, pelos Estados
Unidos e pela França, e depois pelo restante da Europa e da América Ibérica
(1789-1848). Em todos os casos até agora examinados, os resultados têm sido
reveladores da complexidade da transição, em cada realidade nacional, do
Antigo Regime para o Estado democrático liberal, pois ajudam a desvelar as
variadas formas por que transigiram a dimensão especificamente política do
conceito de soberania com o elemento caracteristicamente jurídico do
conceito de Constituição.


E é justamente nesse espaço intermediário entre soberania e
constituição, como reflexo das aporias e tensões decorrentes dos esforços
de conjugação dos dois conceitos, que deve ser compreendido o tema
momentoso do controle da constitucionalidade. Por conta da emergência
visível do papel político do Poder Judiciário - fenômeno conhecido como o
de judicialização da política, ou por politização da justiça –, o tema do
controle da constitucionalidade deixou de ser considerado um tópico
estritamente jurídico, confiado à competência dos juristas e afins, para
adentrar triunfantemente na seara das ciências sociais. Foram justamente
esses estudos mais recentes, resultantes da relativização da abordagem
filosófica pela introdução dos elementos históricos e contextuais, que
permitiram essa avocatória no plano específico da teoria política, onde o
controle da constitucionalidade tem sido visto tradicionalmente como um
assunto secundário; mera técnica liberal de limitação da soberania popular.
Assim, por exemplo, o exame detalhado efetuado nos anais parlamentares da
Revolução francesa por Marcel Gauchet (GAUCHET, 1995) permitiu entrever que
o tema do controle da constitucionalidade já tinha lugar no continente
europeu no decorrer do século XVIII; do mesmo modo, procurei demonstrar, em
minha tese de doutorado, que ele se desenvolveu da reflexão republicana
clássica da necessidade de se conciliarem as exigências de um governo
virtuoso regido por leis impessoais, de um lado, e a de se admitir,
excepcionalmente, um poder discricionário que pudesse excepcionalmente
suspender a legalidade. Essa nova abordagem me levou a crer, assim, que o
controle de constitucionalidade emergiu do debate político do século XVIII
como uma instituição destinada a legalizar a manifestação da potência
absoluta da soberania, quando circunstâncias extraordinárias pusessem em
perigo a existência da constituição política do Estado, entendida como
expressão primeira da vontade política de uma comunidade de viver de modo
autônomo.


Naturalmente, a diversidade de panos de fundo ideológicos e
contextuais levou à conformação de tipos distintos de controle da
constitucionalidade. Desenvolvendo argumentações explicitamente políticas
em torno do conceito de soberania e da necessidade de estabilização do novo
governo constitucional e representativo, no torvelinho da Revolução, os
franceses chegariam à elaboração de uma fina teoria de um controle
estrutural da constitucionalidade. A ele, dar-se-ia o nome de poder
moderador, neutro ou preservador, a ser exercido por um chefe de Estado
imparcial, desvinculado da atividade governativa, com o fim de preservar o
equilíbrio político entre os poderes e, conseqüentemente, a Constituição em
que se plasmava a nova forma democrática e liberal. Já os norte-americanos,
na esteira da tradição judiciarista britânica, crédulos da estabilidade
política de suas novas instituições, elaboraram um controle normativo da
constitucionalidade, na forma de uma jurisdição constitucional destinada a
circunscrever os excessos da política, decorrentes do entrechoque dos
poderes soberanos do povo – executivo e legislativo -, dentro de um círculo
supostamente metapolítico do direito, resguardado pelo poder judiciário. A
ele, dariam o nome de revisão judicial ou jurisdição constitucional. O
poder moderador seria destinado a uma atuação mais episódica contra os
conflitos de natureza e institucional que ameaçassem as estruturas
políticas da constituição do Estado; a jurisdição constitucional, por sua
vez, era encarregada de preservar a integridade normativa da Constituição.
A mesma função moderadora, portanto, exercida com diferenças de graus:
preservar o Estado liberal desenhado no documento político que era
expressão da vontade soberana: a Constituição. Isso significa que, ao
contrário do que geralmente se sustenta, o estado de exceção e o controle
normativo da constitucionalidade não são institutos adversários, mas afins;
além disso, a reflexão permite resolver o lugar do poder moderador na
teoria política ou do Estado, entendido ele como instituição intermediária
entre ambos, na forma de um controle estrutural da constitucionalidade.


Dando seqüência a essas reflexões, a que voltarei mais adiante,
procederei, neste artigo, a um primeiro reexamine da gênese e do
desenvolvimento da jurisdição constitucional norte-americana durante o
século XIX, de forma a contrapô-los à gênese e ao desenvolvimento do poder
moderado, ocorridos na França durante o mesmo período – exercício este a
que dediquei em minha tese de doutorado. Este artigo pretende, portanto,
revisitar o tema da gênese da jurisdição constitucional nos EUA para
reforçar o argumento de que o controle normativo de constitucionalidade
pode ser compreendido dentro de uma teoria mais ampla que versa sobre o
problema do poder discricionário decorrente do conceito de soberania na
formação do Estado constitucional liberal, entendido aqui como Estado de
direito. Guardando fidelidade à teoria política que me guiou quando desta
última empreitada, reitero minha filiação, no que toca à forma teórica de
se pensar o político, ao espírito da escola francesa contemporânea,
"aroniana", a que pertencem François Furet, Claude Lefort, Pierre
Rosanvallon e Marcel Gauchet. Para eles, o fenômeno político deve ser
compreendido, na encruzilhada da filosofia e da história, a partir de uma
interrogação tanto "sobre a origem do poder e sobre as condições de sua
legitimidade; sobre a relação mando - obediência em toda a extensão da
sociedade", como também "sobre a religião, sobre os fins respectivos do
indivíduo e do corpo social" (LEFORT, 1991:11). Do ponto de vista da
análise histórica, por sua vez, tentarei me amparar em autores anglófonos
como Gordon Wood, Bernard Baylin, Isaac Kramnick e John Pocock, que
renovaram nas últimas décadas o estudo da história das idéias políticas
norte-americanas no período em tela em obras como: A Criação da República
Americana, As Origens Ideológicas da Revolução Americana e O Momento
Maquiaveliano. Esses conseguiram abrir uma via intermediária refinada, de
gosto contextual e lingüístico, num debate então esterilizado na contenda
entre os analistas marxistas, para quem a revolução americana fora elitista
e conservadora (PARENTI, 1986:237), e os estudiosos de expressão liberal e
ufanista, para quem eventos de 1776-1787 teriam constituído, ao contrário,
"uma revolução sem paralelo nos anais da história humana" (MASON, 1978 23).
Como se percebe, trata-se se uma abordagem histórica e política e não
sociológica, puramente filosófica ou jurídica. Embora verse sobre temas
como o da judicialização da política e a teoria da decisão judicial, o
objeto do controle normativo da constitucionalidade é tratado aqui
exclusivamente a partir da história das idéias políticas e, portanto, de
forma externa ao debate travado, seja no campo da sociologia do direito,
seja no campo da filosofia do direito.


Nestes termos, buscarei desenvolver o argumento de que o retorno ao
ambiente intelectual do período, por intermédio desses autores, permite
compreender a jurisdição constitucional a partir do débito das instituições
norte-americanas com uma cultura inglesa de precedência do direito sobre a
política e uma tradição colonial de pluralismo religioso. Essas duas
heranças levaram os norte-americanos a organizar a sociedade política a
partir de uma fragmentação do poder político, não apenas horizontal, pela
divisão em executivo, legislativo e judiciário, mas também vertical, pela
divisão estabelecida entre União e Estados. O resultado foi a forja de um
conceito defensivo de soberania do povo, sem ênfase na sua unidade ou
potência, reservada apenas para o caso de usurpação do governo por outrem -
bastante distinto, portanto, daquele vigente na Europa continental e, em
particular, daquele consagrado no curso da Revolução Francesa. No intento
de garantir o equilíbrio das diversas partes componentes, os fundadores da
república recorreram à tradição polibiana do governo misto renovada por
Montesquieu para incumbir o senado de exercer uma função moderadora dessa
complexa estrutura constitucional – tarefa que, a longo prazo, ele se
revelará, entretanto, incapaz de exercer. È nesse quadro que, primeiro de
modo tímido, depois de forma ostensiva, enfrentando resistências de toda a
ordem, paulatinamente a Suprema Corte se afirmará como o verdadeiro poder
moderador da Constituição de 1787, no exercício do controle normativo da
constitucionalidade. Depois de examinar os pareceres dos
constitucionalistas americanos do século dezenove e a forma radicalmente
diversa como a jurisdição constitucional passou a ser percebida cerca de
cem anos depois, o artigo conclui retomando o tema do direito e da
política, representativos das tensões entre o liberalismo e a democracia.





1. Da jurisdição constitucional como tipo normativo do controle da
constitucionalidade.





No âmbito da teoria política, o tema do controle de
constitucionalidade está umbilicalmente ligado à tensão constitutiva da
organização do Estado moderno como entidade política. Esta tensão deriva
das oposições entre duas idéias-força em torno dos quais ele foi
estruturado, o de soberania absoluta e o de governo legalmente limitado,
nas suas formas historicamente sucessivas –, soberania monárquica, depois
nacional ou popular, e o de governo misto, depois governo constitucional
representativo ou Estado de direito. A primeira idéia, encerrada no
conceito de soberania, pressupõe a existência de um poder uno, indivisível
e absoluto, isto é, discricionário, reunido para preservar a ordem e da
segurança da comunidade por quem detém legitimamente o direito de governar.
Já a segunda idéia, encerrada no conceito de governo limitado por leis,
exprime a divisão eqüitativa do poder entre as forças da comunidade e sua
limitação por leis que assegurem sua perpetuidade e a liberdade ou
autonomia das corporações ou dos indivíduos que a compõem. Esses princípios
antagônicos começaram a ser conciliados pela doutrina ou teoria do poder
constituinte, para a qual só uma constituição fixada pela vontade do
soberano é legítima a organização institucional e a limitação do político.
Ou seja, que a soberania só é exercida em sua plenitude no momento
constituinte, deixando de ser ordinariamente exercido quando da entrada em
vigência da constituição que deverá orientar o Estado de direito ou o
governo constitucional. Disse ordinariamente, porque a manifestação da
potência soberana não desapareceu de todo, depois do advento da ordem
constitucional; ela foi canalizada por três institutos encarregados pela
própria constituição de regular o seu emprego quando nas hipóteses de razão
de Estado, isto é, ocasiões mais ou menos extraordinárias ou excepcionais
de ameaça à sua existência, à sua estrutura política ou à sua integridade
normativa. No fito de responder a cada uma dessas ameaças, foi constituída
uma modalidade diferente de controle, isto é, de defesa da Constituição.


Exercendo sucessivos tipos de controle constitucional, portanto,
conforme os diferentes graus e espécies de ameaça à ordem, se acham
respectivamente os institutos do estado de exceção, do poder moderador e da
jurisdição constitucional. Todos eles regulam o emprego discricionário da
força pública desgarrada, em maior ou menor grau, dos limites
ordinariamente impostos pelo Estado de direito. A faculdade de exercício de
cada um desses institutos foi distribuída eqüitativamente pelos poderes
políticos conforme um critério de relevância. Assim, coube ao Poder
Legislativo a declaração de vigência do primeiro e mais grave desses
institutos, o estado de exceção, destinado a suspender a constituição no
todo ou em parte para salvá-la ou à comunidade que ela rege. Conforme o
país, o gênero possui diversas espécies ou designações: de guerra, de
sítio, de defesa ou de emergência. O segundo instituto foi conferido nos
países parlamentares ao chefe do Estado, com as designações de moderador,
neutro, régio, preservador ou arbitral, destinado ao controle das
estruturas políticas subjacentes à normatividade constitucional, ou seja, a
velar pelo equilíbrio entre os poderes políticos. Seu maior doutrinário foi
Benjamin Constant, mas, longe de constitui uma teoria antidemocrática e
superada do século XIX, ela guarda toda a sua atualidade, ao menos nos
países não-parlamentaristas, como fórmula que possibilita conciliar a
estabilidade do Estado com a permanente contestação aos governos, típica do
regime de livre competição partidária[2]. Por fim, encarregada de preservar
a incolumidade da Constituição contra as leis, projetos de lei ou atos
normativos editados pelos poderes públicos que contrariem seus dispositivos
normativos, a jurisdição constitucional foi entregue a um tribunal de
natureza e procedimento judiciários, que exerce controles de diversas
espécies, como o difuso ou concentrado, o abstrato ou concreto, o
preventivo ou repressivo. Circunscrevo-me aqui a esmiuçar o papel
específico da jurisdição constitucional.


O controle normativo da constitucionalidade é exercido por uma corte
ou conselho, à parte ou como cúpula do judiciário, dotado de autoridade
para excluir do ordenamento jurídico normas produzidas pelos poderes
políticos, desde que considerados incompatíveis com a Constituição. Assim,
o juiz constitucional se faz intérprete da vontade do soberano e, com base
na sua interpretação e em seu nome, toma a decisão que, ao excluir a norma
do ordenamento jurídico, o torna uma espécie de legislador negativo
(KELSEN, 2003). Geralmente, tais decisões também vinculam a administração
pública, que é obrigada a seguir o mesmo entendimento. Embora os estudos
sobre a natureza desse instituto primem por apresentá-lo como a antítese do
estado de exceção, em nome da conservação dos direitos individuais ou
difusos contra os excessos do poder, entendo que na verdade são institutos
da mesma natureza, situados nas extremidades opostas de uma mesma balança
de poder discricionário exercido por outras instituições. Ambos os
institutos velam pela preservação da vontade geral, ambos desempenham
papéis eminentemente políticos, ambos fazem uso de um poder discricionário
constitucionalmente regulado. É que a jurisdição constitucional ou controle
normativo de constitucionalidade reflete indiretamente a expressão da
vontade geral e, portanto, da soberania popular. Se, conforme preconiza a
teoria que nos rege, a lei votada não exprime a vontade geral, senão na
medida de sua conformidade à Constituição, é evidente que, na inexistência
de um controle normativo, não haverá garantias de que a lei corresponderá à
expressão da vontade soberana, gerando incerteza sobre a legitimidade do
ordenamento. Assim, o juiz constitucional também deve ser encarado como
intérprete da vontade soberana, vez que, pelo seu ato de jurisdição, ele
enuncia os princípios contidos na Constituição.


"O juiz constitucional se apresenta, portanto, como o 'representante'
encarregado de exprimir a vontade do soberano inscrita nos textos
constitucionais. Ora, esses textos têm por autor 'o povo soberano
(...)', soberano fictício suposto impor, ao cabo do tempo, sua vontade
constituinte aos poderes constituídos. Esse 'povo soberano
constituinte ' corresponderá ao 'povo eleitoral' que designa seus
representantes políticos? (...) O constitucionalismo supõe que a
vontade do soberano dure; que ela seja contínua. (...) O juiz
constitucional reflete aos parlamentares a imagem de um representante
que deve respeitar a constituição. (...) O controle de
constitucionalidade permite assim à vontade do 'povo constituinte' se
impor exteriormente aos poderes constituídos" (BLACHÈR, 2003).


O estado de exceção, exercido pelo Parlamento, e a jurisdição
constitucional, exercido por um órgão colegiado de natureza judiciária, se
distinguem pelo grau de discricionariedade de que dispõem. Este é
muitíssimo mais reduzido no caso do controle normativo da Constituição, já
que a decisão jurisdicional impõe a observância de rígidos procedimentos
exegéticos e formais. Essa redução do grau de discricionariedade se
justifica no fato de que, conforme referido, o estado de exceção e a
jurisdição constitucional se destinam a enfrentar graus distintos de ameaça
à Carta – um existencial; outro, normativo. Pressupõe-se que as ameaças à
vontade soberana, embutidas nos casos submetidos a uma corte
constitucional, são de natureza muito menos gravosa que aquelas enfrentadas
pelo estado de exceção ou pelo poder moderador. Daí que, inferior o
potencial de dano, sua resolução não requer tanta urgência, nem o mesmo
grau de discricionariedade decisória. Nem por isso, a decisão jurisdicional
perde o seu caráter discricionário. Quem o reconhece é o próprio Kelsen,
criador do modelo de corte constitucional moderna: quanto mais elevado o
topos jurídico a ser decidido pelo tribunal, mais político e sujeito a
interpretações abertas e discricionárias ele estará:


"O caráter político da jurisdição é tanto mais forte quanto mais amplo
for o poder discricionário que a legislação, generalizante por sua
própria natureza, lhe deve necessariamente ceder (...). Na medida em
que o legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos limites,
interesses contrastantes entre si, e decidir conflitos em favor de um
ou de outro, está lhe conferindo um poder de criação do direito, e
portanto um poder que dá à função judiciária o mesmo caráter
'político' que possui – ainda que em maior medida – a legislação"
(KELSEN, 2003).


Entretanto, o que a jurisdição constitucional perde em
discricionariedade, ganha em periodicidade de seu exercicio cotidiano,
através da possibilidade de ser provocada por parte de membros legitimados
pelo soberano por meio da propositura de ações específicas ou da
interposição de recursos de última instância. É o que, aliás, explica
também a adoção de ritos mais elaborados, pautados pelo contraditório e do
devido processo legal, próprios do direito e, em particular, do direito
processual. Historicamente, esse instituto encontrou suas formas sucessivas
de exercício nos modelos da Suprema Corte norte-americana e do Tribunal
Constitucional austríaco, copiados mais ou menos por toda a parte nos
últimos dois séculos. É sobre a gênese do primeiro modelo, americano, que
o artigo discorrerá.





2. A precedência do direito sobre a política: a Constituição norte-
americana como aperfeiçoamento da Constituição da Inglaterra.





Parte substantiva do repertório conceitual que concorreu para a
elaboração da Constituição norte-americana de 1787 foi extraída do debate
que teve lugar na Inglaterra durante a primeira metade do século XVIII.
Capitaneado por Bolingbroke na década de 1720 contra o discurso liberal
emergente, o republicanismo cívico voltou com força total quando Jorge III
ascendeu ao trono e enfim a oligarquia whig foi desalojada do poder,
quarenta anos depois. O retorno dos tories aos conselhos da Coroa deu a
muitos whigs, agora na oposição, a oportunidade de reencontrar o antigo
cânone radical que haviam abandonado ao subirem ao poder; desta vez, porém,
o discurso radical revestiu-se também de uma série de argumentos
jusnaturais e contratualistas articulados por Locke para fundar a
legitimidade da ordem política. Nessa qualidade, o republicanismo foi
reivindicado pelos que condenavam qualquer concepção de governo restritiva
de direitos políticos, postulando por isso reformas no sistema eleitoral
que só em 1832 começariam a ser efetuadas (POCOCK, 1985:258). Foi essa
tradição republicana revelou-se vivíssima nas colônias inglesas da América
do Norte nos anos que precederam a guerra da independência. Outra fonte em
que foram beber os fundadores da república norte-americana para justificar
a submissão e a limitação do político ao direito foi o constitucionalismo
antiquário (BAILYN, 2003:49).


Grosso modo, a tradição política inglesa resultava da conjugação de
dois discursos que, desaparecidos do continente, sobreviveram na cultura
política anglófona – o constitucionalismo antiquário e o republicanismo
cívico (ou clássico). O discurso republicano cívico remonta a Roma antiga e
postula que, amparada na moralidade dos seus costumes e no culto da lei, a
liberdade política do povo era condição essencial para o autogoverno da
polis. Livre da disciplina moral, o homem tenderia a se corromper, e essa
degeneração dos costumes traria consigo a decadência do governo e a
tirania. Já o constitucionalismo antiquário pugnava que os direitos dos
cidadãos ingleses remontavam à Idade Média, decorrendo de uma luta entre o
poder arbitrário e a resistência à opressão, cujo desfecho, na Revolução
Gloriosa, culminara com a vitória da liberdade (POCOCK, 1997). Ambas as
ideologias entendiam que o bem estar da sociedade política dependia de
instituições que, embora representativas do poder popular, fossem limitadas
pela lei. Predominava aí uma concepção pluralista do político, onde o
direito do indivíduo, compreendido como produto da vontade histórica e
fundamento da ordem legítima, formatava a esfera de manifestação da
soberania. Essa concepção foi decisiva na formatação do liberalismo anglo-
americano, com seus postulados de individualismo e livre iniciativa, e sua
condenação da ingerência do Estado na esfera privada. Do ponto de vista
constitucional, essa concepção das relações de poder se refletia num
respeito quase religioso às formalidades jurídicas, na supressão quase
absoluta do recurso ao poder discricionário, na divisão dos poderes e no
papel do Poder Judiciário, como moderador político. No entanto, o caráter
fundacional decorrente da independência das treze colônias impôs
importantes diferenças frente à experiência inglesa institucional,
inclusive no conceito de Constituição. Pretendo destacar alguns dos
elementos de ruptura e de continuidade verificados nesse momento, dentro da
tradição anglo-americana de soberania e de Estado de direito.


O primeiro ponto é, naturalmente, a posição dos fundadores da
república norte-americana frente ao modelo institucional representado pela
Constituição Inglesa, julgada então de maneira ambivalente, como tudo
relacionado à metrópole. Aqueles que a acusavam, para justificar a
independência, apontavam-lhe quatro defeitos. Primeiro, ela seria demasiado
complicada, de difícil compreensão; segundo, ela não consagrava a soberania
do povo, almejando uma injustificada acomodação da democracia com elementos
monárquicos e aristocráticos que lhe deveriam ser subordinados ou
simplesmente eliminados. Desqualificado idealmente, o governo misto
estamental também era condenado in concreto, já que a prática
constitucional se revelara incapaz de coibir as usurpações dos órgãos da
vontade popular pela Coroa (MADDOX, 1989:60). Por fim, a forma costumeira
da constituição tornava precária a defesa dos direitos contra o poder
político, devendo ser escrita e, assim, ter forma visível: a Constituição
Inglesa era "imperfeita, sujeita a convulsões e incapaz de produzir o que
parece prometer" (PAINE, 1973:53). Por outro lado, mesmo aqueles que
criticavam a Carta britânica ressalvavam que ela encerrava muitas lições
que precisavam ser aproveitadas; com todos os esses defeitos, ela ainda era
a melhor modalidade de organização política conhecida. Embora Jefferson
reconhecesse, pois, que ela era uma "espécie de meio termo" entre
despotismo e o governo livre (JEFFERSON, 1973:19), o próprio Paine
reconhecia que "os indivíduos têm mais segurança na Inglaterra do que nos
outros países" (PAINE, 1973:53 e 54). O resultado foi que, embora
criticada, a própria Constituição da Inglaterra deveria servir de base para
a elaboração de uma organização política superior. "A história da Grã-
Bretanha (...) nos dá muitas lições úteis", lembrava Hamilton. "Podemos nos
valer da experiência deles, sem ter de pagar seu custo" (MADISON, HAMILTON
& JAY, 1993:109). O modelo britânico serviu assim de principal referência
dos convencionais de Filadélfia, a ponto de um conhecido Jefferson
reconhecer que a Constituição dos Estados Unidos resultara "da composição
dos princípios da Constituição Inglesa com os outros, derivados do direito
natural e da razão natural" (JEFFERSON, 1973:13). Esse aperfeiçoamento da
equilibrada Constituição britânica envolvia, porém, aspectos muito
delicados, que passavam previamente por reconceitualizar a soberania do
povo norte-americano e depois articulá-la com o arcabouço institucional do
novo estado federativo.


Isto posto, na fabricação da Constituição dos Estados Unidos,
predominaram, ainda que racionalizadas, as premissas constitucionais
antiquárias implícitas no sistema da common law, que haviam sido levadas
para a América inglesa no início da colonização e vulgarizadas pela obra de
Blackstone. Embora a independência tenha gerado movimentos pela codificação
do direito, a queda de braço travada nas décadas subseqüentes terminou com
a vitória do sistema herdado da ex-metrópole e, com ela, a influência
doutrinária dos juristas ingleses que tinham Edward Coke como patrono
(DAVID, 1996:364).






3. Fragmentação religiosa e direito natural: uma concepção defensiva da
soberania popular.






Na raiz desse movimento, estava uma concepção de soberania e de povo
muito diferentes daquelas que, naquela época, predominavam nas obras dos
republicanos franceses. A concepção francesa hegemônica de Estado de
direito consagrava a soberania do povo como princípio ordenador da ordem
política. A lei era aí vista como um instrumento de uma vontade eticamente
definida e, como tal, poderia ser suspensa ao seu arbítrio. Ou seja, era a
política que formatava o direito, e não o contrário. Do ponto de vista
constitucional, a subordinação da lei à soberania implicava a subordinação
do Judiciário frente aos poderes políticos – Executivo e Legislativo. Por
conseguinte, o Judiciário ficava impossibilitado de verificar a
constitucionalidade dos seus atos ou de apreciar as ações de que o Estado
fizesse parte, reservados à esfera de uma justiça administrativa. No
entanto, o juscontratualismo anglo-americano considerava a soberania
popular de modo completamente diverso. Para eles, Estado e representação
eram elementos apartados do povo e soberania. Se estes últimos davam-lhes
origem por meio das eleições, nem por isso estes adquiriam qualquer força
autônoma. Os federalistas entendiam que era da "natureza do poder soberano
uma avidez (...) que dispõe os que estão investidos de seu exercício a ver
com maus olhos todas as tentativas de limitar (...) suas ações" (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:163). Assim, ao invés de concentrar o poder soberano
do povo nas mãos de um único representante, como preconizavam os
republicanos franceses, os fundadores da república norte-americana
preferiram desinstitucionalizar completamente o locus da soberania,
deixando-o nas mãos do povo. Como a dimensão absoluta do poder soberano era
malvista independentemente de quem fosse o seu detentor, a soberania do
povo foi interpretada, não ofensivamente, como força de ação e criação, mas
defensivamente, como o poder de resistência a qualquer tipo de absolutismo
que violasse os direitos naturais. Atualizada e consolidada por argumentos
iluministas, a soberania do povo passou a ser identificada a um complexo de
direitos fundamentais conferidos aos indivíduos por Deus, pela natureza ou
pela história.


Essa perspectiva era perfeitamente oposta àquela de Rousseau, que
concebera o povo soberano como potência legisladora leiga e ativa. A tese
de que o pacto de associação suprimira os direitos naturais, dissolvendo-os
no poder coletivo e soberano da vontade geral, era categoricamente
rejeitada. Não apenas a anterioridade e a perenidade dos direitos eram as
únicas salvaguardas da resistência à tirania (JEFFERSON, 1973:10), como a
própria concepção de uma soberania, desvinculada do reconhecimento prévio
dos direitos naturais do homem, era considerada base do despotismo eletivo
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:340). Para os norte-americanos, o papel da
lei não era o de criar o direito fundamental, pois ele já existia na
natureza e na divindade; o que ela deveria é confirmá-lo aos olhos dos
homens e garanti-lo no melhor estilo lockeano (BAILYN, 2003:179). A
finalidade do pacto de associação era melhor salvaguardar o direito, que
continuava essencialmente nas mãos do povo; por isso, as relações entre
povo e Estado eram estabelecidas por meio de mandatários eleitos, cujos
poderes decorriam de uma delegação a título precário. O preconceito contra
o poder político em geral, visto como ameaçador, justificava o apelo de
Paine a que os homens não se descuidassem "no dever e apego mútuos", pois
"nada, a não ser o céu, é inimpregnável ao vício". Daí que o Estado não
passasse de "mal necessário" (PAINE, 1973:52). O político se achava,
portanto, em posição subordinada frente ao direito, devendo pautar-se em
conformidade a ele.


No entanto, a principal causa dessa concepção dessubstancializada do
conceito de soberania democrática nos Estados Unidos, mais profundamente
que a herança inglesa, deve ter sido a cultura protestante das colônias. A
tradição católica francesa motivara os seus teóricos a transferir ao povo
todos os atributos da soberania divina, como a unidade, a bondade e a
onipotência, voltando-a simultaneamente contra a Igreja e o Trono para
criar um absolutismo democrático. Fragmentada em inúmeras seitas
igualitárias e desprovidas de um intermediário entre o céu e a terra, a
tradição protestante norte-americana, ao contrário da francesa, preservava
a esfera religiosa em toda a sua intensidade e por isso a punha numa esfera
distinta e superior à política, ainda que a moldasse à sua feição. Assim,
ao invés de deslocar os atributos de soberania de Deus para o povo e voltá-
los contra a própria religião, Deus continuou perfeitamente poderoso e
intocado nos Estados Unidos, velando pelos direitos naturais de seus fiéis
na terra – a liberdade, a igualdade e a propriedade. A Bíblia tornou-se
assim a principal fonte de mobilização política pela defesa dos direitos
fundamentais: os libelos de Paine, por exemplo, apontavam no sentido da
fundação de uma "república de direito divino". Segundo ele, "a vontade do
Todo Poderoso (...) desaprova expressamente o governo dos reis. (...) A
monarquia, na Bíblia, ocupa o lugar de um dos pecados dos judeus, pelo que
paira sobre eles a maldição" (PAINE, 1973:55/56). O manifesto de
independência americana fez quatro referências a Deus: ele era autor da
natureza e das leis naturais, criador dos direitos individuais, juiz da
justiça da rebelião emancipadora e fonte da divina providência, em cujos
desígnios os revoltosos confiavam (JEFFERSON, 1952:1). Como se percebe, a
precedência do jurídico sobre o político não passava por uma concepção
estritamente laica do direito; muito pelo contrário, ela se justificava
justamente pela conotação religiosa que perseguia a idéia de justiça
embutida no direito.






4. Da fragmentação religiosa à fragmentação política: federalismo,
representação e divisão dos poderes na organização constitucional de 1787.





Dito isto quanto à compreensão da natureza da soberania do povo na
Constituição de 1787, outro tanto o merece a respeito da forma como o poder
político representativo haveria de ser exercido no quadro das novas
instituições. Três pontos aqui são particularmente dignos de atenção. Os
dois primeiros dizem respeito à distribuição espacial ou horizontal do
poder político, operada pela criação da estrutura federativa, e à
legitimação das instituições do Estado, articulada pela representação
política. O terceiro ponto a ser abordado concerne à distribuição vertical
do poder político, viabilizada pela divisão de poderes por critério de
especialidade de competências e por seu equilíbrio aos mecanismos de freios
e contrapesos. Este terceiro ponto se entrelaça com a questão do controle
normativo da constitucionalidade ou da jurisdição constitucional.


O problema da conciliação da unidade da soberania com a dualidade de
estruturas governativas não era um problema novo na América do Norte: uma
fórmula de soberania dual havia sido esboçada antes da independência,
quando se tentara acomodar a teoria da supremacia parlamentar com a
reivindicação autonomista das colônias (BAILYN, 2003:202). Rechaçada pelas
autoridades britânicas por criar um imperium in imperio, a idéia acabou
resgatada pelos fundadores da república norte-americana, depois da
independência. Da convenção de Filadélfia saiu assim um governo federal
substantivamente mais poderoso que o estabelecido anteriormente pela
confederação. Mesmo assim, ele ainda parecia mais fraco do que o de
qualquer monarquia européia, dada o receio que tinham os Estados-membros de
que suas prerrogativas pudessem ser ameaçadas pelo novo centro de poder. Os
Estados consideravam-se entidades soberanas e naturalmente não desejavam
que sua liberdade de ação acabasse reduzida ou aniquilada com a criação da
União Federal. A fim de evitar problemas teóricos que servissem de munição
aos opositores do projeto constitucional, os federalistas preferiram
confirmar, em seus escritos, a teoria da soberania dos entes federados – o
que não os impediu de, na prática, transferir para a União a maior parte
das prerrogativas inerentes à soberania: a manutenção de relações
internacionais, a declaração de guerra, a mobilização de exércitos e a
cunhagem de moeda (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:281). Nascia assim a
célebre doutrina do federalismo dual, caracterizada por "poderes mutuamente
exclusivos, reciprocamente limitadores, cujos ocupantes governamentais se
defrontavam como iguais absolutos" (SCHWARTZ, 1984:26). A celebridade dessa
doutrina, porém, esteve longe de resolver o problema teórico da unidade da
soberania na prática institucional norte-americana. Nos Estados Unidos, ela
serviria de argumento para a secessão dos estados do Sul, em 1860, estopim
da guerra civil que a sucedeu[3].


O segundo aspecto relevante na nova configuração institucional
concerne à representação, concebida como delegação temporária de poder
deliberativo. A vastidão do território nacional e a multiplicidade de
interesses nele existentes prenunciavam desafios para os quais o
republicanismo cívico, que valorizava os meios diretos de participação do
povo, parecia oferecer poucas respostas. De sorte que a representação
política já parecia uma necessidade indeclinável do mundo atual mesmo para
os republicanos puros, admiradores dos modelos da Antiguidade (JEFFERSON,
1973:14). Essa consciência da ruptura no interior das temporalidades não
significa, porém, uma rejeição em bloco do classicismo: embora o mundo se
tivesse modificado demasiado para que aqueles modelos pudessem ser imitados
de forma acrítica, "os progressos da ciência política" permitiriam adaptá-
los aos tempos modernos (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:129). A principal
adaptação a ser efetuada era a da teoria do governo misto, pedra de toque
da teoria institucional do republicanismo clássico e que pressupunha o
equilíbrio do poder político entre duas câmaras, uma ocupada pela
aristocracia, outra pela democracia. A preexistência de uma camada
aristocrática e virtuosa era mesmo um pressuposto sociológico do
republicanismo clássico. Ocorre que os federalistas se decepcionaram em sua
expectativa de que a o patriciado rural norte-americano pudesse desempenhar
aquele papel e compensar, com suas virtudes cívicas, a carência que dela
tinham as camadas inferiores (POCOCK, 1975:514). Daí que a questão da
representação política adquiriu foros de um problema magno: além de
viabilizar o a república num país de grandes proporções, ela deveria agora
ser organizada de sorte a filtrar, entre os candidatos, aqueles mais
capazes de administrar a coisa pública; dessa forma, a falta de uma
aristocracia natural seria qualitativamente suprida. Os efeitos deletérios
do poder do número seriam corrigidos, limitando-se este a plebiscitar a
posteriori a gestão de seus mandatários (MANIN, 1996:209). Ao contrário do
republicanismo francês, não era função da representação projetar a unidade
soberana para o interior das estruturas políticas, mas refletir pluralmente
a diversidade numa rede de instituições eqüipotentes e equilibradas: "A
regulação desses interesses diversos e concorrentes constitui a principal
tarefa da legislação moderna e introduz o espírito partidário nas operações
necessárias e ordinárias do governo" (MADISON, HAMILTON, & JAY, 1993:135).


Esse ponto nos leva ao terceiro e último aspecto do arcabouço
institucional, relativo à distribuição vertical do poder pela sua divisão
em três, a partir de um critério de divisão de competências por
especialidade, e de seu equilíbrio, pela inserção de mecanismos de freios e
contrapesos. A necessidade de se garantir os direitos individuais
protegidos pela Constituição exigia fórmulas que permitissem às facções
competirem entre si, sem pôr em risco a estabilidade sistêmica.


Para os federalistas, haveria apenas dois meios capazes de operar
essa proeza. O primeiro passava pela criação de um "poder independente
(...) da própria sociedade" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:351). Em tese,
esse poder autônomo poderia ser criado tanto pelo preenchimento de certos
cargos públicos por um critério de hereditariedade, como pela criação de
órgãos que, como as convenções e os conselhos de censura, previstos na
tradição republicana; órgãos que periodicamente institucionalizavam, em
nome do soberano, um poder discricionário encarregado de examinar a
Constituição, reformá-la e anular os atos normativos ou leis que,
elaborados nesse ínterim, fossem considerados incompatíveis com ela
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:343). Disse em tese porque, os federalistas
julgavam os dois mecanismos inviáveis na prática. A hereditariedade lhes
parecia incompatível com o princípio republicano, que exigia a eleição
popular para todos os cargos. Já as convenções à Mably se lhes afiguravam
tumultuárias e inócuas; e, quanto ao tribunal de censura, a experiência
daquele previsto na Constituição da Pensilvânia (1776) também não o
recomendava[4], tendo sido incapaz de constituir um locus ético de defesa
do bem comum. Além disso, como Montesquieu, os federalistas temiam que
institutos como estes só conseguissem manter a ordem sacrificando a
liberdade. Para eles, abolir a liberdade porque ela nutria lhes parecia
"tão insensato quanto desejar a eliminação do ar (...) porque ele confere
ao fogo sua ação destrutiva" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:134).


Todos esses motivos que os levavam a rejeitar as convenções soberanas
e dos tribunais de censura e, com eles, a própria ambição de instaurar uma
instância estatal autônoma da própria sociedade, poderiam ser reduzidos a
um único: a impossibilidade de se criar um poder eletivo imparcial,
intérprete abalizado do interesse comum. Os federalistas não acreditavam
que o Estado pudesse ser ocupado por legisladores iluminados, capazes de
incutir as virtudes cívicas num povo corrompido; logo, achavam que os
sistemas de controle fundados em poderes independentes da sociedade
acabavam encapsulados pelo próprio facciosismo que deveriam combater,
podendo "tanto esposar as aspirações injustas da maioria como os interesses
legítimos da minoria" como "se voltar contra ambos os grupos" (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:352). Toda representação criava sempre um interesse
particular e a politicidade inerente a esse órgão lhe impossibilitaria de
fazer exame imparcial dos atos cometidos pelos demais poderes, que também
eram políticos (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:347). Ademais, a rejeição de
um controle político ou estrutural de constitucionalidade, por parte dos
federalistas, não decorria apenas do seu modo eletivo de composição; o
vício residia na própria natureza humana que, dominada pelas paixões,
raramente conseguia visualizar o bem comum. A virtude que havia no mundo
não era suficientemente duradoura ou tão estável para que se pudesse fiar
apenas nela para se fundar a república (BAILYN, 2003:327).


Essa descrença num órgão político capaz de assegurar a supremacia do
soberano, por meio do imparcial controle da ordem constitucional
representativa, levava os federalistas a uma segunda alternativa: a de
arquitetar "de tal modo a estrutura interna do governo, que suas várias
partes constituintes possam ser, por suas relações mútuas, instrumentos
para a manutenção umas das outras em seus devidos lugares" (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:349). O poder político deveria ser fracionado nas mãos
de "um número tão grande de categorias distintas de cidadãos, que tornaria
muito improvável, senão impraticável, o conluio injusto da maioria"
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:351). Evidentemente, a tradição de uma
multiplicidade de seitas religiosas convivendo harmonicamente num mesmo
espaço pesou de forma decisiva nessa solução de pulverizar o poder político
para garantir a liberdade. Adaptando a Constituição da Inglaterra, tal como
Montesquieu a descrevera, os federalistas preconizavam a construção de um
arcabouço institucional onde os poderes políticos, embora emanassem da
vontade popular, deveriam ser igualmente divididos por especialização e
mantidos em equilíbrio por freios e contrapesos.


"Enquanto toda a autoridade emanará da sociedade e dela dependerá, a
própria sociedade estará fragmentada em tantas partes, interesses e
categorias de cidadãos, que os direitos dos indivíduos, ou da
minoria, serão pouco ameaçados por combinações interesseiras da
maioria. (...) As facções ou partidos serão gradualmente induzidos
(...) a desejar um governo que proteja todas as partes, tanto a mais
fraca quanto a mais poderosa" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:352).


Tomando como modelo a teoria do governo misto que norteava a
Constituição da Inglaterra, os federalistas projetaram, com o nome de
república, uma monarquia original, temperada e eletiva. O elemento
temperado ficava por conta da outorga do Poder Legislativo a um outro
órgão, que não o príncipe; já o elemento eletivo, decorria de ser o
príncipe eleito pelo povo para reinados de duração predeterminada: quatro
anos. A este príncipe, deram o nome de Presidente da República.
Interessante notar que o esboço de sistema de gabinete foi rejeitado como
fruto da corrupção da Constituição Inglesa. "Esse 'poder arbitrário
dominador, que controla absolutamente o Rei, os Lordes e os Comuns era
composto, dizia-se, pelos 'ministros e favoritos do Rei' que, a despeito de
Deus e dos homens igualmente, 'estendem sua autoridade usurpada
infinitamente longe' e, abandonando o equilíbrio da constituição, fazem de
sua 'vontade despótica' a autoridade da nação" (BAILYN, 2003:126). Se o
Executivo deveria recair portanto sobre uma única pessoa, o Poder
Legislativo deveria ser bicameral. Na câmara baixa ficariam os
representantes do povo e, na alta, os dos estados-membros da federação.
Encarregado de preservar os direitos individuais, o Judiciário seria
formado por juízes vitalícios e encabeçado por uma corte suprema federal. O
sistema de freios e contrapesos se compunha de várias possibilidades de
intervenção recíproca entre os poderes políticos. Destacava-se a faculdade
de veto do Executivo sobre projetos do Legislativo, a nomeação dos juízes
pelo presidente, a possibilidade de declaração de nulidade de atos
inconstitucionais pelo Judiciário, o mútuo papel revisor das câmaras sobre
os respectivos projetos e, finalmente, o processo de impeachment do
Legislativo contra o Executivo. Essa teia de poderes e suas respectivas
interconexões eram replicadas em número correspondente ao dos estados-
membros da federação, que também a adotariam em seus respectivos
territórios.






5. O Senado e a intervenção federal como mecanismos de equilíbrio
constitucional.






A partir dessa idéia de unidade da soberania originária, fragmentada
todavia sua projeção pelos órgãos do Estado, os fundadores da república
norte-americana conseguiram conciliar a exigência da origem popular de todo
o poder, sem constituir no interior do aparelho do Estado, a supremacia de
um interesse único, tal como preconizado pelo "celebrado Montesquieu"
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:332). Em particular, evitava-se o perigo de
uma câmara popular demasiado poderosa que, com sua força, desequilibrasse
os poderes públicos e pusesse o governo exclusivamente nas mãos da
multidão. A pedra angular desse sistema, que lhe conferiria o almejado
equilíbrio, residiria na câmara alta, o Senado. Os argumentos que faziam
dele o "regulador estrutural" ou "poder moderador" das instituições norte-
americanas foram três: primeiro, o da necessidade de um elemento
aristocrático, extraído da tradição humanista; segundo, o do equilíbrio
institucional pela oposição de diferentes interesses, retirado da filosofia
moral inglesa; e terceiro, a exigência de uma representação estadual
eqüitativa junto ao governo da União.


Vimos que sobrevivia na cultura política anglo-americana uma tradição
aristocrática que se nutria do receio da democracia. Na medida em que, na
república, o fundamento do poder residia essencialmente no povo, a
assembléia única que o representasse ficaria "imbuída de intrépida
confiança em sua própria força", pois seria "suficientemente numerosa para
sentir todas as paixões que movem uma multidão" (MADISON, HAMILTON & JAY,
1993:339). A concentração das prerrogativas soberanas numa única
instituição resultava "numa das mais execráveis formas de governo que a
insensatez humana jamais concebeu" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:200); daí
que o sistema legislativo unicameral à francesa apresentava maiores perigos
do que o Executivo único. Nos Estados Unidos, a tradição e a história
indicavam aos federalistas que, sem uma classe social economicamente
independente, educada, livre, e permanentemente acima do egoísmo mesquinho
da multidão, ao invés de representar a 'infinita diversidade dos interesses
particulares e opiniões dissonantes', ele ficaria prisioneiro do interesse
da maioria ignorante e pobre, levando a um regime de desordens (BAILYN,
2003:258). Eis por que o Legislativo deveria ser fracionado em duas câmaras
distintas, a fim de que, nos momentos difíceis, um senado "moderado e
respeitável" pudesse chamar a turba à razão, dissipando os ânimos e
favorecendo o equilíbrio.


O argumento extraído da filosofia moral inglesa sustentava que não
era preciso esperar excessiva virtude dos senadores para que o salutar
efeito moderador do senado fosse produzido pela câmara alta: bastava
recrutá-los de maneira a que, pela natureza de seus próprios interesses,
ele não pudesse se identificar com o povo representado na câmara baixa, nem
com o governo, dirigido pelo chefe do Estado (MONTESQUIEU, 1979:151). Na
prática, esse "componente seleto e estável no governo", que era a câmara
alta, (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:404) poderia ser forjado adotando-se
certas precauções frente aos critérios admitidos para a seleção para a
Câmara baixa. Primeiro, os requisitos de elegibilidade ficariam mais
rigorosos, elevando-se a idade mínima para que os candidatos fossem mais
maduros. Segundo, a duração dos mandatos deveria ser três vezes mais longa,
a fim de que a estabilidade incutisse nos senadores um interesse de longo
prazo. Por último, os senadores não deveriam ser eleitos pelo povo, mas por
cada assembléia estadual. Elas seriam capazes de fazê-los representar, não
as paixões da câmara baixa, mas os interesses gerais de cada estado que, de
si mais serenos, o ficariam ainda mais pela eleição indireta.


Por fim, na costura do acordo parlamentar sobre a organização da
representação legislativa federal, conhecida como "o grande compromisso", a
idéia de uma segunda câmara caiu como luva. Divididos os deputados acerca
do critério para se distribuir as cadeiras de representantes junto à União,
isto é, se deveria ser adotado o critério de proporcionalidade
relativamente ao tamanho da população, ou um critério de paridade entre os
Estados, fundado na igual soberania de cada qual, a proposta de se criar
duas câmaras ao invés de uma agradou a gregos e a troianos: o primeiro
critério serviria para a composição da Câmara dos Deputados; o segundo
critério, para organizar o Senado (MILLER, 1962:116). Foi assim que o
senado se tornou, aos olhos de uma longeva tradição constitucionalista
norte-americana, "a mais importante e valiosa parte do sistema e seu
verdadeiro ponto de equilíbrio, que ajusta e regula seus movimentos"
(STORY, 1833:182).


Esse modelo de governo plural, que concebia a política como uma arena
de poderes delegados pela representação, fragmentada verticalmente pelo
federalismo e, horizontalmente, pela divisão de poderes, impactou de modo
negativo quanto à possibilidade de manifestação excepcional do poder
discricionário. É verdade que os federalistas recorriam ao "fato
excepcional" para justificar o emprego extraordinário da força: "a idéia de
governar sempre pela simples força da lei (...) só tem lugar nos devaneios
daqueles doutores em política, cuja sagacidade desdenha os conselhos da
experiência" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:223); "nenhuma limitação pode
ser imposta à autoridade encarregada de assegurar a defesa e a proteção da
comunidade" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:261). No entanto, esse argumento
não foi utilizado para ampliar a ação do poder excepcional, mas para criar
o próprio poder federal, visto como uma "superintendência discricionária
geral", contra a oposição encabeçada pelos antifederalistas (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:161). A referência ao poder discricionário excepcional
tem por fim convencer o leitor da necessária subordinação dos Estados ao
poder da União e não para justificar a eventual dispensa da lei ou da
apreciação judiciária dos atos do governo. Com efeito, a Constituição de
1787 esteve longe de contemplar hipóteses como a de sua própria suspensão
em caso de urgência e perigo iminente. Ela só admitiu a mesma hipótese
tímida prevista pela Constituição da Inglaterra previa desde o Bill of
Rights: a suspensão do habeas corpus em caso de rebelião ou invasão
estrangeira (art. 1o. Seção 9). As discussões da Convenção Constitucional
evidenciam que a preocupação em cercear o poder discricionário da União
Federal veio principalmente dos Estados, que temiam que suas eventuais
resistências futuras aos atos inconstitucionais daquelas pudessem sempre
ser interpretadas como rebeliões, ensejando a suspensão do habeas corpus;
entretanto, cedo se chegou a um consenso de que sob circunstâncias extremas
de guerra ou invasão teria de ser tomada medida semelhante (TURLEY,
2005:154)[5].


A lógica da estrutura federativa deu ensejo, todavia, a uma nova
modalidade de ação discricionária regulada - a intervenção federal. Na
condição de "baluarte contra o perigo estrangeiro, a mantenedora da paz
entre nós, a guardiã de nosso comércio (...) e o antídoto adequado contra a
doença das facções" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:153), a cabia à União
Federal intervir nos Estados-membros para combater "o abuso dos
governantes" e "as agitações e arbitrariedades do facciosismo e da sedição
na comunidade" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:189). Mas nem sempre a
intervenção derivaria da decisão soberana do governo federal; ela só teria
lugar quando ameaçada a forma republicana de governo ou em caso de invasão
estrangeira ou de outros estados federados. Em todos os demais casos, a
Constituição exigia como requisito da intervenção a requisição do próprio
governo do Estado. Nessas hipóteses, não tinha o governo federal direito
algum de agir por conta própria, isto é, julgar por si mesmo se os governos
estaduais teriam ou não capacidade de dar conta de seus problemas sozinhos
(art. 4, seção 4a., da constituição). No mais, a discricionariedade
regulada parecia banida do panorama institucional norte-americano: o senado
"moderador" não gozava de qualquer poder especial, não havia formas de
controle político dos atos normativos (como a censura), admitindo-se
apenas, a título de freio, um controle normativo de caráter judiciário,
difuso e ex post.






6. Do Senado à Suprema Corte: o triunfo do controle normativo sobre o
controle político da constitucionalidade.





No entanto, a prática constitucional veio desmentir as intenções dos
fundadores da república de extirpar do solo da América a "bolha
discricionária". A primeira intervenção federal foi decretada já em 1794
para sufocar a insurreição do uísque na Pensilvânia (JACQUES, 1964:96);
além disso, a restrição dos direitos fundamentais, durante e depois da
Guerra de Secessão, iria bastante mais além do que previra a Constituição.
Nas áreas conflagradas, Lincoln agiria como autêntico ditador, abolindo a
escravidão nos Estados do Sul por meio de proclamação unilateral, de que o
Congresso não participou. Seguindo a tradição inglesa, a Suprema Corte
entendeu em 1863 que, nos negócios que dissessem respeito às zonas de
guerra onde tribunais não funcionassem ou fosse "impossível exercer a
jurisdição criminal", a lei marcial poderia ser decretada para substituir a
autoridade civil pela militar, que ficaria encarregada de velar "pela
segurança do exército e da sociedade" (In: SCHMITT, 1968:224). Esse acórdão
não impediu que, dominado pelos radicais abolicionistas, o Congresso
decretasse a lei marcial em cinco diferentes distritos depois do final da
guerra, como mero instrumento de repressão dos focos de resistência à
política adotada no Sul (MILLER, 1962:202). Quanto à interpretação do
Senado como um poder moderador, popularizada por Story, ela colapsou quando
o processo de democratização tornou evidente o caráter elitista, politizado
e partidário daquela instituição. Tornara-se problemático sustentar que o
Senado constituiria uma câmara de caráter equilibrado e apolítico, pois que
há muito a instituição se achava sujeita à mesma sorte de pressões
partidárias que a Câmara dos Deputados, recriminada por todos os lados como
sede dos lobbies de todas as oligarquias rurais, comerciais e industriais
do país (ZIMMERMANN, 1999:124). O debate culminou na promulgação da 17a.
emenda constitucional, em 1913, que alterou a fórmula de escolha de
senadores, que passaram a ser eleitos pelos votantes de seus Estados, ao
invés de o serem pelos Legislativos estaduais. Desde então, tornou-se
impossível, desde então tratá-lo seriamente como uma verdadeira câmara de
representação estadual.


Essas evoluções da prática constitucional norte-americanas foram
acompanhadas da emergência de outra instituição, cujo papel não havia sido
claramente estabelecido pelos federalistas e cuja pretensa apoliticidade
havia sido sempre questionada pelos políticos. Esse órgão foi a Suprema
Corte. O papel desse tribunal nos Estados Unidos deve ser examinado a
partir das conseqüências, já insinuadas aqui, do modo como os fundadores
daquela república encaravam as relações entre direito e política. Imersos
intelectualmente nas fontes do republicanismo cívico, do contratualismo
whig e da tradição jurídica do constitucionalismo antiquário, os
federalistas cultivavam uma visão dicotômica entre direito e política que
os levava, a exemplo dos ingleses, a compreender o jurídico como o lugar do
não-político, isto é, da força que limitava o político. Essa visão era
diametralmente oposta à dos republicanos franceses, para quem o direito,
embora dele distinto, extraía sua força precisamente do fato de constituir
a autêntica expressão do político. Encarando o direito como espaço da
despolitização, o discurso anglo-americano tinha por fim esvaziar o
conteúdo ético do conceito de soberania que se achava no coração da
tradição política da Europa continental. Desaparecido o locus social em que
se pudesse ancorar uma ética de bem comum que servisse de óbice ao espectro
do partidarismo, impunha-se substituí-lo pelo formalismo de um compromisso
constitucional escrito, consagrador dos direitos individuais e da divisão,
autolimitação e equilíbrio dos poderes estatais. Para tanto colaboraram a
experiência das antigas cartas coloniais e das constituições estaduais
preexistentes, bem como o desejo de pôr os princípios jurídicos sobre as
instituições políticas, a salvo dos embates cotidianos dos interesses
particulares. Como a organização do Estado e os direitos humanos haviam se
tornado os princípios ordenadores da comunidade, o interesse público
passava a ser entendido como o minimum minimorum de eticidade do texto
constitucional (BAILYN, 2003:80). Documento onde o interesse público
encontrava a sua expressão e limitação, a Constituição precisava
forçosamente ser considerada superior às demais leis existentes no âmbito
da União. Esse foi, aparentemente, o desejo dos convencionais da
Filadélfia, que no art. 6º. daquele documento o qualificaram como "a lei
suprema do país".


Do princípio da supremacia da Constituição, pouco bastava para se
deduzir um segundo princípio, o da supremacia do Judiciário, insinuado no
art. 3o. seção 2a. daquela carta e solidamente ancorado na experiência
inglesa (CAPPELLETTI, 1984:59). A lógica sistêmica era clara: o fato da
soberania do povo impunha, à realidade do sistema representativo,
mecanismos de controle da legitimidade dos atos praticados pelos
representantes, que poderiam sempre extrapolar os limites de suas
respectivas delegações. Esse controle da legitimidade, que passava pelo
poder de "declarar a nulidade dos atos contrários ao sentido manifesto da
Constituição" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:480), deveria ser exercido por
um poder distinto daqueles dois, independente como eles, mas imparcial
diante de suas rusgas. Ao contrário do tribunato rousseaniano, que
moderaria somente o executivo para proteger o legislativo soberano
(ROUSSEAU, 1996), nenhum poder político detinha, nos Estados Unidos, a
exclusividade na representação da soberania popular. Por conseguinte, não
havendo qualquer hierarquia ente eles, a preservação da ordem normativa da
Constituição pressupunha um órgão que arbitrasse seus conflitos.


No entanto, o conteúdo defensivo do conceito de soberania e a
descrença dos federalistas a respeito na neutralidade de qualquer órgão
eletivo na esfera do interesse público frustraram qualquer veleidade de que
o controle normativo pudesse ser exercido por uma instituição independente.
Madison propusera à convenção que se criasse um conselho político de
revisão judicial, mas a proposta naufragou, sob as acusações gerais de que
ele violaria a separação e a igualdade dos três poderes políticos
(KRAMNICK, 1993:48). Inadmitida qualquer forma autônoma de controle, só
restava delegar aquela função ao Poder Judiciário em geral. Destarte, ele
seria "um intermediário entre o povo e o Legislativo, de modo a, entre
outras coisas, manter este último dentro dos limites atribuídos a seu
poder" (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:481). No conjunto deste poder, a
Suprema Corte ganhava relevo: era ela que decidiria da constitucionalidade
das leis em última instância, ao julgar os processos judiciais individuais
em grau de recurso e os conflitos entre os entes federados. Na prática,
esse poder de decidir soberanamente sobre a interpretação da Constituição
tornava-na um quarto poder, superior, ao mesmo tempo, aos demais órgãos
judiciários, ao governo e ao congresso. Daí o surgimento, no lugar do
senado, desse poder que o próprio Washington designara como a "coluna-
mestra", a "chave de abóbada do nosso edifício político" (In: BARBOSA,
1974:326).


Ocorre que não foi assim como, até pouco tempo, o papel da Suprema
Corte no quadro constitucional norte-americano foi explicado. Ainda que
reconhecessem o papel decisivo dos tribunais na compreensão do alcance e
dos limites das normas editadas pelo poder legislativo[6], seus próprios
defensores negavam o caráter político das decisões daquele tribunal e sua
posição de superioridade frente aos outros dois poderes. Os operadores
jurídicos pleiteavam que, ao nulificar leis, o Judiciário não decidia
discricionariamente; apenas exercia uma atividade hermenêutica que
simplesmente declarava a intenção do soberano, expressa – agora sim – de
modo discricionário no compromisso constitucional. Os federalistas, aliás,
foram os primeiros a corroborar a opinião de Montesquieu, para quem o
Judiciário era um poder politicamente nulo, adstrito que era à aplicação
mecânica das leis (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:479). Ora, na medida em
que a organização política dos Estados Unidos se consolidava, a Suprema
Corte precisava construir e delimitar suas funções institucionais, sem
gerar oposição violenta por parte do Congresso ou da Presidência da
República. Por razões estratégicas, os magistrados preferiram insistir na
neutralidade do Judiciário, que supostamente se restringiria a aplicar o
ordenamento jurídico e resolver as controvérsias constitucionais, lançando
mão do critério hierárquico. Assim, a justificativa para declarar a
nulidade do texto legislado seria buscada noutra norma legislada, a ela
superior – e não fora do sistema jurídico, em fundamentações políticas
(SOUZA NETO, 2002:62).


Essa linha de argumentação tornou-se majoritária, de modo que, graças
a juristas como Joseph Story e Thomas Cooley, em meados do século dezenove
a doutrina constitucional norte-americana já construíra uma elaborada
interpretação que confirmava a rigorosa separação que deveria prevalecer
entre o direito e a política, a fim de não violar o princípio da separação
e da igualdade dos poderes. Embora ao Judiciário coubesse o papel de
intérprete máximo da Constituição, ele ficava proibido de julgar o mérito
de questões exclusivas dos poderes legislativo e executivo, isto é,
"questões políticas", cuja característica estava no exercício, por parte
dos congressistas e do presidente, de competência discricionária. Assim,
"sobre questões políticas, os tribunais não têm qualquer autoridade,
devendo aceitar a determinação dos órgãos políticos do governo como
conclusivas" (COOLEY, 1898:156). Mas, como a doutrina não elencava de forma
exaustiva que questões eram essas, ela fornecia argumentos para que o
Legislativo e Executivo desobedecessem a decisões judiciárias, a pretexto
de que o Judiciário se metera em "questão política". Na mesma trilha, a
doutrina vedava o exame da constitucionalidade da lei em tese, ou seja, em
abstrato, validando apenas os casos individuais em que a lei acusada de
inconstitucional vulnerasse interesse concreto. Na medida em que, nesses
casos, o efeito nulificador da sentença se limitaria a restaurar os
direitos violados dos autores, preservava-se a ficção de que a lei
elaborada pelos outros dois poderes políticos seguia intocada, restaurando-
se o direito ferido sem violar o princípio da separação de poderes e o
princípio democrático.


"Os diversos órgãos do governo são iguais em dignidade e em
autoridade coordenada e nenhum pode sujeitar o outro à sua própria
jurisdição, nem privá-lo de qualquer porção de seus poderes
constitucionais. Mas o judiciário é a autoridade última na
interpretação da constituição e das leis, e sua interpretação deve
ser recebida e seguida pelos outros departamentos. (...) Mas os
tribunais não têm autoridade para julgar questões abstratas, nem
questões não suscitadas pelo próprio litígio e que, portanto, digam
respeito exclusivamente às autoridades executiva e legislativa. Nem
há aí qualquer método pelo qual suas opiniões possam ser
constitucionalmente expressas, de modo a ter força vinculante sobre o
executivo ou o legislativo, quando a questão se apresenta, não como
relativa a uma lei existente, mas como algo próprio à política,
competente para legislar no futuro. O judiciário, embora juiz último
do que a lei é, não é o juiz do que a lei deve ser" (COOLEY,
1898:159).


Portanto, para aqueles que defendiam a revisão judicial, a alegação
de que ela contrariava o princípio de separação e eqüipotência dos poderes
não passava de um falso problema. Se haveria que se falar em superioridade
de algum poder, ele residia, não no Judiciário, mas no povo soberano; os
juízes apenas teriam sido incumbidos de, por meio da jurisdição
constitucional, garantir que a vontade dos políticos não fosse além daquela
que o povo estabelecera na Constituição (MADISON, HAMILTON & JAY,
1993:480). No final do século dezenove, ela acabou repetida por James Bryce
em A Comunidade Americana, reputada o primeiro "clássico" da ciência
política moderna, e obra destinada a ter imensa repercussão no modo de
explicar o funcionamento do sistema político-institucional norte-americano,
até a Primeira Guerra Mundial:


"Os juízes americanos, ao contrário do que usualmente dizem os
europeus, não 'controlam o legislativo', mas simplesmente interpretam
a lei. A palavra 'controlar' é enganadora porquanto implica dizer que
a pessoa ou órgão que a usa possui e exerce vontade pessoal
discricionária. Ora, os juízes americanos não têm mais vontade na
questão do que o tribunal inglês quando interpreta as leis do
Parlamento. A vontade que prevalece é a do povo, expressa na
Constituição. Os juízes simplesmente verificam nas leis qual a
vontade do povo, aplicando-a aos fatos de determinado caso. (...)
Faltariam eles ao dever se expressassem, poderíamos dizer, sequer
pensassem, uma opinião sobre a política que a respalda, exceto na
medida em que tal política contribuir para explicar-lhe a
significação (...). Interpretar a lei, isto é, elucidar a vontade do
povo como legislador supremo, constitui o princípio e o fim dos seus
deveres" (BRYCE, 1959, I:76/77).


Foi desse modo que a doutrina buscou, por mais de um século, negar a
superioridade e a politicidade do Poder Judiciário, verberando seu papel
meramente jurisdicional de controle, último dos mecanismos de
interdependência entre os poderes.






7. A jurisdição constitucional como poder moderador reconhecido da
Constituição americana.





A primeira manifestação concreta do ativismo judiciário no exame da
constitucionalidade das leis teve lugar em 1803, quando do julgamento do
caso Marbury vs. Madison. No voto do presidente daquela Corte, John
Marshall, foram enunciadas pela primeira vez as três teses centrais do
judiciarismo, isto é, do movimento de defesa da jurisdição constitucional.
A primeira tese sustentava a superioridade normativa da Carta, considerada
a manifestação máxima da vontade do povo, expressa na plenitude de seu
poder discricionário: era o princípio da supremacia da Constituição.
Marshall explicava que a vontade soberana só poderia ser respeitada na
medida em que se reconhecesse a Carta como uma lei hierarquicamente
superior às demais; do contrário, "a Constituição escrita não passa de um
esforço inútil" (In: MASON, 1978:41). A segunda tese do judiciarismo
preconizava que, sendo da essência da atividade judicante que os tribunais
interpretassem as normas sobre os casos concretos, a jurisdição
constitucional era corolário necessário da vontade do povo de se governar
por uma Constituição (TEPKER, 2003:131). A terceira tese enunciava que, em
decorrência dos postulados anteriores, os magistrados ficavam obrigados a,
em caso de conflito normativo, preferir sempre a aplicação do comando
constitucional àquele da lei ordinária. Do contrário, não faria sentido
que os países elaborassem leis constitucionais; elas não passariam de
"tentativas absurdas (...) de limitar um poder ilimitado por sua própria
natureza". E prosseguia: "Qual é o serviço ou o objetivo de um Judiciário
senão executar as leis de maneira pacífica e ordenada, sem derramar sangue,
criar uma disputa ou levar os senhores a fazer uso da força?… A quem os
senhores irão recorrer contra uma infração da Constituição, se não
conferirem tal poder ao judiciário? Não há outro órgão capaz de
proporcionar tal proteção" (In: MASON, 1978:41).


Reafirmado pela Corte Suprema quando do julgamento do caso Fletcher
vs. Peck, em 1810, o judiciarismo ganhou cada vez mais força entre os
constitucionalistas e os teóricos políticos - até que, 23 anos depois, em
seus Comentários à Constituição dos Estados Unidos, o primeiro grande
comentarista da constituição norte-americana, Joseph Story, aduziu que a
Suprema Corte era o "final e comum árbitro fornecido pela própria
Constituição, a que todas as outras decisões ficam subordinadas" (STORY,
1833:347). Pouco depois, ainda na década de 1830, Tocqueville reconheceria
o judiciarismo como uma realidade inconteste em A Democracia na América:
"Os americanos reconheceram nos juízes o direito de fundamentar seus
veredictos na Constituição mais do que nas leis. Em outras palavras,
permitiram-lhes não aplicar leis que lhes pareçam inconstitucionais"
(TOCQUEVILLE, 1973:207). Na obra, por fim, escrita com o propósito
deliberado de superar a Democracia na América como guia de exame e
interpretação do sistema político-institucional norte-americano, já em
torno de 1890, James Bryce descreveria o controle normativo de
constitucionalidade em termos já apologéticos: "Nenhum aspecto do governo
dos Estados Unidos desperta tanta curiosidade à mente européia, provoca
tantas discussões, merece tanta admiração, e menos se compreende do que os
deveres atribuídos ao Supremo Tribunal e as funções por ele desempenhadas
na defesa da Constituição". Para o Bryce de A Comunidade Americana, o poder
moderador representado pelo controle normativo da constitucionalidade
atribuído a um poder não-político, neutro, imparcial, como o Judiciário,
era um ovo de Colombo: "Parte alguma do sistema americano mais credencia
seus autores e melhor funciona na prática. Possui a vantagem de relegar
questões não apenas intrincadas e delicadas, mas especialmente capazes de
excitar a paixão política, à fria e seca atmosfera da decisão judicial"
(BRYCE, 1959, I:80).


Isso não quer dizer que o judiciarismo se tenha firmado sem oposição.
Muito pelo contrário, a oposição foi ferrenha, não sendo exata a
observação, também de Tocqueville, de que a jurisdição constitucional era
"reconhecida por todos os poderes; não se encontra partido que o conteste"
(TOCQUEVILLE, 1973:207). Tendo desde cedo rejeitado o papel de colaborador
do governo para afirmar sua independência e promover uma interpretação
unionista - leia-se: federalista - da Constituição, a Suprema Corte logo
foi considerada peça estratégica do embate político, tendo os republicanos
e, depois, os democratas, regularmente combatido como antidemocrático o
poder de revisão judicial que aquele tribunal se arrogara. Como forma de
contrastar a influência da Suprema Corte, dominada pelos adversários,
Jefferson e outros republicanos passaram a defender o direito
correspondente que os tribunais estaduais teriam de nulificar leis federais
que julgassem inconstitucionais (PINTO FILHO, 2002:28). Já sob o influxo
dos debates da França revolucionária, um íntimo amigo de Jefferson, Filippo
Mazzei, proporia a criação de um conselho de anciãos, de caráter político,
que cumpriria o papel de um poder moderador[7] (MAZZEI, 1798:376). Em 1809,
Jefferson voltou a reclamar que a Constituição não previra suficientes
freios à autoridade da Suprema Corte. Sete anos depois, ele romperia com os
sistemas de freios e contrapesos consagrado em Filadélfia para pregar uma
pura e simples separação de poderes, todos eles eletivos - inclusive o
judiciário. Ele pensava que, tornando os três poderes diretamente
responsáveis diante do soberano, o "intermediário" a que se referira
Hamilton no artigo 78 de O Federalista - a Suprema Corte - poderia afinal
ser suprimido. Os argumentos expostos por Jefferson nesse período acerca do
caráter antidemocrático do controle normativo da constitucionalidade seriam
basicamente os mesmos que invocariam, no futuro, todos aqueles que se
oporiam à jurisdição constitucional, como Alexander Bikel[8].


Mas essas contrariedades e limitações não foram capazes de evitar, a
longo termo, a sedimentação do judiciarismo e sua propagação pelo restante
do continente. Ele resistiria às humilhações que lhe infligiram Andrew
Jackson, Abraham Lincoln e o Congresso da Reconstrução; ele resistiria ao
próprio conservadorismo que dominaria a maioria de seus juízes no final do
século dezenove e só seria vencido por Franklin Roosevelt, na década de
1930. Com a encampação do movimento pelos direitos civis, vinte anos
depois, o caráter político da jurisdição constitucional acabou reconhecido
por todos os autores, seja para exaltá-lo ou condená-lo. Da mesma forma, a
hermenêutica jurídica contemporânea tanto reconhece a margem discricionária
do poder decisório dos juízes da Suprema Corte, que parte dela, encabeçada
por Dworkin, que se dedica a encontrar argumentos filosóficos para cerceá-
los, sustentando que é possível extrair princípios políticos da própria
ordem liberal democrática que conduzam o juiz à decisão adequada[9]. A
atividade interpretativa da Suprema Corte acabou por assumir uma tamanha
proporção na determinação da ordem constitucional, que um dos principais
constitucionalistas contemporâneos descreveu a Carta norte-americana
recentemente como "uma prática institucional baseada em um texto em que
intérpretes autorizados (isto é, os juízes daquele tribunal) podem criar
novas normas constitucionais" (GRIFFIN, 1998:56). Ou seja, ainda que por
meio de procedimentos judiciários argumentativamente fundados em
princípios, reconhece-se hoje não apenas o caráter político da decisão
judicial como o próprio caráter legislativo da atividade hermenêutica
desenvolvida pelos juízes da Suprema Corte, por conta da formidável margem
discricionária de que eles. Não deixa de ser uma ironia para um país que
criou o sistema justamente para, por meio dele, banir a política em nome do
direito.





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-----------------------
[1] O autor é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); professor do Programa de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF); professor da Escola
de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNI-RIO) e do Departamento de Direito Público da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
[2] È a questão suscitada por Raymond Aron em Democracia e Totalitarismo.
"Como obter a conciliação entre o entendimento nacional e a contestação
permanente?", ele pergunta. Uma das soluções passaria pela "subtração de um
certo número de funções, de pessoas ou de decisões à contestação dos
partidos. Em certos regimes do tipo ocidental – mas não nos países
presidencialistas - , o presidente da República ou o monarca passa por
estrangeiro, superior às lutas partidárias. Dito de outra forma, tenta-se
encarnar num homem a adesão unânime dos governados ao regime e à pátria. O
monarca ou o presidente da República é a expressão de toda a coletividade"
(ARON, 1965:78).
[3] Ainda hoje, "a doutrina da soberania popular não tem tido um
significado claro para a tradição constitucional americana. O conceito de
soberania persistiu como problema porque embora a geração fundadora
estivesse acostumada a ser parte de um governo que inclui a monarquia, eles
eram, sobretudo, republicanos. Esta mesma geração discordava sobre a
natureza e a localização da soberania, mas não sobre a importância deste
conceito em suas novas circunstâncias politicas" (SIFFERT, 2002:60). Até
mesmo no Brasil, durante a primeira década republicana, ela geraria uma
série de controvérsias inauguradas no começo da década de 1890 entre Campos
Sales e Anfilófio de Carvalho, pacificadas somente quando o Supremo
Tribunal, dez anos depois, assentou que apenas a União Federal era
soberana.
[4] O artigo 46 dessa Constituição determinava que coubesse a esse tribunal
de censura examinar "se a constituição tem sido preservada inviolada em
cada uma de suas partes; e se os poderes executivo e legislativo têm
desempenhado seus deveres como guardiões do povo, ou arrogado para si ou
exercido outros ou maiores poderes, além daqueles conferidos pela
constituição".
[5] Posteriormente, a eclosão de guerras civis ou mundiais não impediu que
se tentasse alargar o campo de autoridade discricionária do governo
federal, por meio de leis ordinárias, doutrinas ou medidas de pura força.
Assim, em 1917, a lei de espionagem deu origem, pela Suprema Corte, à
doutrina do "perigo real e iminente", com que se tentava limitar a
liberdade de expressão para reprimir os progressistas que protestavam
contra o recrutamento para a guerra. No julgamento de Schenck vs. Estados
Unidos, a Suprema Corte entendeu que "para que o governo possa punir a
manifestação de uma opinião, é necessário geralmente que tenha ocorrido em
tais circunstâncias ou sido de tal natureza que criasse um perigo evidente
e atual do que decorreriam males substantivos que o governo poderia evitar"
(CORWIN, 1986:239).
[6] "Todas as leis novas, ainda que redigidas com a maior perícia técnica e
aprovadas apos a mais completa e madura deliberação, são consideradas mais
ou menos obscuras e equivocas até que seu significado seja estabelecido e
determinado por uma série de discussões e julgamentos particulares. A
obscuridade que surge da complexidade dos objetos e da imperfeição das
faculdades humanas, o meio pelo qual os homens transmitem uns aos outros
suas concepções acrescentam uma nova confusão (...) Nenhuma língua (...) é
rica o bastante para suprir palavras ou expressões para toda idéia
complexa, ou tão correta a ponto de não incluir muitas de denotação
equivoca (...). E essa inevitável imprecisão será maior ou menor, segundo a
complexidade e a novidade dos objetos definidos" (MADISON, HAMILTON & JAY,
1993:268).
[7] "Nossas constituições declaram com razão que os três poderes, o
legislativo, o executivo e o judiciário, devem ser separados e distintos e
absolutamente independentes um do outro, mas elas não indicam a maneira de
por fim às diferenças que poderiam nascer entre eles... Admitindo-se o
estabelecimento desses seis (anciãos), essas diferenças poderiam ser
julgadas por eles" (MAZZEI, 1798:376).
[8]"O puro republicanismo (...) somente pode ser mensurado pelo completo
controle do povo sobre seus órgãos de governo. A pedra de toque da
constitucionalidade deve ser, portanto, um apelo ao povo. Cada órgão do
governo deve ter 'um igual direito de decidir por si mesmo qual é o
significado da constituição nos casos submetidos à sua ação'. A revisão
judicial era 'efetivamente uma doutrina muito perigosa' e incompatível com
uma autêntica leitura da constituição, que havia 'sabiamente feito todos os
órgãos co-iguais e co-soberanos entre eles" (VILE, 1998:181).
[9] Embora empregue imprecisamente o conceito de "política" em seus textos,
no que se refere à natureza da dimensão judicial (a carga é empregada no
sentido negativo, como sinônimo de "discricionariedade", mas numa chave
positiva, quando "domada" pelos princípios), o fato é que Dworkin aqui faz
uma habilidosa defesa da decisão judicial como devendo ser simultaneamente
política, mas não-discricionária. Ele sustenta a necessidade de se superar
a hermenêutica positivista, cujas tentativas de recuperar a intenção
histórica do legislador mal ocultariam a dimensão política da decisão
judicial sob a capa da aparente neutralidade do julgador. Reivindicando
assim a assunção, pelo juiz, de um papel abertamente político, Dworkin
evita, entretanto, recair no puro realismo jurídico esposado nesta matéria
pelo próprio Kelsen, para quem, nos casos difíceis, o juiz fica livre para
decidir conforme suas preferências pessoais. Para o jurista austríaco, a
crença em valores universais de justiça traduziria uma nostalgia do direito
natural, perfeita "ilusão da justiça" (KELSEN, 2000). Para Dworkin, porém,
é perfeitamente possível decidir de forma política e não-discricionária, a
partir do momento em que o juiz deve recorrer aos princípios políticos que
caracterizam a ordem liberal democrática em que se insere o ordenamento
jurídico. Naturalmente, Dworkin não tem qualquer comprometimento com
teorias puramente jurídicas, propondo abertamente a integração da atividade
jurisdicional à ordem política liberal e democrática. Assim, à pergunta
sobre a possibilidade de haver uma única resposta certa para os casos
controversos, ele responde afirmativamente, negando a discricionariedade do
julgador. A decisão judicial é assim simultaneamente política e não-
discricionária (DWORKIN, 2001). Seja como for, Dworkin está no terreno do
wishful thinking ao propor que a decisão judicial siga os parâmetros por
ele propostos, exatamente porque os julgadores, na prática, tendem a agir
de modo discricionário.
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