Do ensino novo e alternativo, ao discurso do poder: as Academias de Belas Artes
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De ensino novo e alternativo, ao discurso do poder: as 1
Academias de Belas Artes Emília Ferreira 1. Academia Platónica A palavra academia é antiga e ao longo da sua história nem sempre teve o mesmo significado. No início, a etimologia cruza-‐se com a localização da escola de Platão (428-‐347 a.C.). Fundada em Atenas c.386 a.C., desenvolveu-‐se nos jardins do herói ateniense Academos. Longe do que hoje entendemos como ensino académico, pensa-‐se que a instrução aí praticada seria semelhante à que o filósofo traçaria no Livro VII da República, o que significa dizer que o seu programa se orientava para a filosofia, baseada em consistente formação 2
matemática . Desligado das artes a que hoje chamamos plásticas, o ensino platónico dedicava-‐se a examinar o belo ideal, não tratando por isso de assuntos relacionados com a estética. Com efeito, a palavra grega aisthesis (raiz da aisthetika) significa sensação e designava inicialmente o conhecimento sensível, oposto à noétika — conhecimento intelectual. Platão foi o primeiro a fixar esta diferença, acentuando-‐a na sua teorização dos dois mundos: o inteligível e o sensível. Nessa distinção, a arte resultava desfavorecida já que, para o filósofo, ela pertencia ao mundo sensível, mera imitação do inteligível, apelando por isso apenas aos sentidos e afastando o espectador daquilo que interessava: a verdade, a ideia, o ser. Para Platão beleza e arte não eram coincidentes. Aquela, por ser universal, não estava sujeita ao devir; já esta, sendo temporal, estava-‐o. O valor das obras produzidas pelos 1
Texto publicado no catálogo da exposição O Desenho Dito, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, 2008. ISBN-‐ 978-‐972-‐8794-‐48-‐4. P. 48-‐55. 2
"Segundo Platão, a eficácia da matemática reside em o seu estudo facilitar, àqueles que para ela têm talento, a capacidade para compreenderem toda a classe de ciências; quanto aos preguiçosos, ao serem nela iniciados e treinados, ainda que outra utilidade lhes não traga, ao menos estimula neles a agudeza de compreensão. É a máxima dificuldade que as matemáticas oferecem a quem as estuda que as qualifica como meio de cultura apto para a selecção espiritual." In JAEGER, Werner — Paideia: a formação do homem grego. Lisboa: Editorial Aster, 1979. p. 842.
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artesãos era-‐lhes portanto conferido pela participação da ideia de belo e não pela qualidade da manufactura. Em jeito de síntese, podemos assim afirmar que, apesar de a academia platónica não corresponder no geral às que, após a redescoberta da Antiguidade no século XV, surgiram um pouco por toda a Europa, serviu-‐lhes efectivamente de alento inspirador. Durante a Idade Média, o modelo escolar passará por grandes alterações. A princípio circunscrito aos mosteiros e conventos, tornar-‐se-‐á mais exigente e universalista a partir do século IX, quando as cidades aumentam de dimensão e importância e nasce a instituição universitária. Contudo, também aí o ensino é prioritariamente dedicado ao desenvolvimento das faculdades intelectuais, ficando as artes manuais restringidas à passagem das experiências, de mestre para discípulo, nas corporações e confrarias, organizadas por ofícios e sem qualquer tipo de exercício teórico. 2. Triunfo do saber laico 3
Resultado da curiosidade insaciável, que o humanismo renascentista sublinha e alimenta, a Europa assiste ao surgimento de um imenso número de academias logo desde o século XV. Porém, estas apresentam-‐se com uma roupagem muito distinta da platónica. O conceito muda, definindo-‐se como um lugar de estudo teórico, de tertúlia e discussão informal. Divididas em temáticas literárias, científicas e artísticas (aí incluindo a música) estas associações laicas cedo se propuseram como centros de estudo, das ciências e das artes. Dado o seu pendor intelectual, em termos profissionais elas foram da maior relevância na defesa dos seus membros, embora nem todas se tenham empenhado de igual modo nessas lutas, dependendo do país em que se encontravam e do estado geral da cultura que aí se vivia. Porém, mantinham o estudo das artes 3
"Originalmente religiosa a ideia de Renascimento implica, de facto, um «novo nascimento», entendido à maneira neoplatónica do reditus, ou seja, como um regresso frontal, para um novo e genuíno acordo com a natureza «humana» do homem, que se presume perdida, e que se concebe na sua dimensão mais criativa, seja nas artes, seja na investigação, seja no ensino, seja na técnica, seja na vida social." In CARVALHO, Mário A. Santiago de – "Renascimento". Logos: Enciclopédia Luso-‐Brasileira de Filosofia. Volume 4. Lisboa/S. Paulo: Verbo Editora, 1992, colunas 697-‐704.
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circunscrito a questões teóricas. Então, a grande mudança operada é a admissão de pintores e escultores a esses espaços de discussão. Fruto da uma nova luz lançada sobre os Antigos, na leitura dos originais de Aristóteles, mas sobretudo, no estudo das obras de Platão e de uma multiplicidade de outros autores clássicos, durante séculos mantidos na sombra e perdidos nos comentários de comentadores, o espírito renascentista, humanista, voltar-‐se-‐á contra o ensino religioso e dogmático da Universidade e abrirá um leque de alternativas. Se todas as áreas de expressão humana beneficiaram desse novo enquadramento, podem agradecê-‐lo à filosofia que, liberta da orientação para a verdade da revelação, se apresenta, de novo, com o sentido que iluminara a criação do vocábulo: o amor ao saber. Assim renascerá algum panteísmo, assim surgirão, ao abrigo do sonho da Antiguidade revisitada, as academias, e nelas se preparará um futuro que aqui nos interessa sobretudo no domínio da estética e das produções artísticas. Optando por escrever em língua vulgar e de forma clara e simples, o filósofo renascentista desferiu assim um duro golpe no espírito e no poder da velha instituição universitária. Reagindo contra pressupostos que considerava ultrapassados, o projecto humanista deu início a uma profunda revolução do pensamento e, portanto, dos modos de instrução e criação artísticos. E, no processo, logrou ainda outra proeza: é que com ele o artista começou a resgatar o seu valor. 3. Um contexto favorável Não esqueçamos também que, além do já apontado, o contexto geral era propício à mudança. Como notou o teórico espanhol Juan Antonio Ramírez, el descubrimiento de nuevas tierras y de nuevas vías comerciales produjo, no sólo importantes consecuencias psicológicas, sino que favoreció el incremento general de la riqueza y el desarrollo del individualismo. Coincidiendo con la aparición del capitalista, el industrial o el comerciante independientes, que «triunfan» a título personal, de un modo similar al del general o el escritor, el artista, productor de imágenes, afirma más que nunca su posición
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privilegiada en un intento de alcanzar la total independencia respecto 4
a las viejas organizaciones gremiales. A arte viveu então um período particularmente fecundo, a que não foram alheias as referidas descobertas de novos mundos e de produtos. Além dos temas doravante possíveis — a pintura sacra deixa de ser dominante para passarmos a encontrar cenas mitológicas, de história, de género, o retrato e, em breve, a 5
paisagem ; relevando no processo um interesse pela análise do quotidiano e do mundo natural, seja no aturado estudo anatómico seja na investigação do corpo da natureza — os materiais alteram-‐se, possibilitando uma maior rapidez na execução e um consequente aumento de produtividade e riqueza dos seus agentes. A madeira é preterida pela tela (mais económica e fácil de transportar, mesmo em dimensões grandes), o óleo substitui a têmpera, com todas as vantagens da sua facilidade de trabalho, nuances lumínicas e cromáticas. Os ateliers dos artistas reorganizam-‐se, permitindo a realização mais rápida das 6
obras e o aumento do volume de trabalho . Por seu turno, o embaratecimento da produção alarga o mercado, o que permite ao artista um maior à vontade 7
social e uma quase independência . Também os modos de produção de papel, tornando-‐o mais acessível em termos de custo, e a difusão da gravura (levando as imagens a públicos cada vez mais 8
vastos, dado o baixo custo da sua quase massiva produção ), permitiram aos 4
In RAZMÍREZ, Juan António – Medios de masas e historia del arte. Madrid: Cuadernos Arte Cátedra, 1992, p. 22. 5 6 7
Cf. idem, p. 22. Cf. idem, p. 22-‐23.
“Los cuadros se abaratan y muchos sectores de la baja nobleza y de la burguesía incipiente se rodean de unas cuantas imágenes de sí mismos, de sus familiares o de acontecimientos celebrados de la historia, la religión, el mito, o la naturaleza. Las iglesias y los edificios públicos aumentan en riqueza icónica. En ciertas regiones europeas (por ejemplo en los Países Bajos) un mercado abierto de imágenes pintadas termina propiciando una separación entre el artista y el comprador eventual, dándose todas las premisas objetivas para una total desacralización de la imagen.” Idem, p. 23. 8
Além de dar trabalho a uma multiplicidade de profissionais, dos desenhadores aos gravadores e impressores, a gravura permite a reprodução em várias centenas de exemplares de cada imagem, num tempo muito reduzido e com custos muito baixos. Chega, por isso, a quase todas as classes sociais, convertendo-‐se num meio de divulgação histórica ou plástica, e de propaganda política e religiosa de grande eficácia. Popularmente, foi também usada para jogos. Cf. iIdem, p. 26-‐28.
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artistas uma maior liberdade de experimentação do desenho além da criação do seu próprio banco de imagens. Apesar do exposto, e voltando à questão académica, convém notar que a implantação definitiva, em toda a Europa, destas instituições e pese embora o quadro favorável, não foi fácil nem imediatamente vocacionada para o diálogo interdisciplinar, como se pode perceber ao seguir a história da Accademia Fiorentina, a primeira de todas as academias renascentistas. 4. Primeira academia 9
Nascida na Florença quatrocentista, a Accademia Fiorentina foi a primeira em 10
termos cronológicos (surge c. 1450 ). Organizada com base numa ideia de Cosme de Médicis, conhecido por Cosme, o Antigo, (1389-‐1464), foi concretizada pelo jovem filósofo, médico, mago e músico Marsílio Ficino (1433-‐1499), que se encarregaria de traduzir as obras de Platão e de outros filósofos, actualizando e divulgando parte importante da herança teórica clássica, e cultivando o italiano em detrimento do latim. Contudo, apesar da abertura, o domínio da actividade académica permanecia, portanto, intelectual. É, então, sob o reinado do poeta e protector das artes, Lourenço I de Médicis, conhecido como Lourenço, o Magnífico (1449-‐1492), que esta academia se abrirá ao diálogo interdisciplinar, proporcionando um ambiente informal de convívio e diálogo filosóficos, congregando um amplo círculo de pensadores e artistas ilustres, entre os quais se contam algumas das mais destacadas figuras do humanismo italiano da 2ª metade do século XV. Refiram-‐se, em particular, os nomes de João Pico della Mirandola, Leão Batista Alberti e Cristoforo Landino. Sabe-‐se que se reuniam para celebrar o nascimento de Platão, organizavam récitas e palestras sobre textos e temas platónicos, tendo por modelo o diálogo do filósofo ateniense, O Banquete. […] Não havia um sistema rígido de doutrina que vinculasse os membros 9
De facto, foi instalada em Careggi, perto de Florença. Esta data é a indicada por Jacques Demougin, no artigo "Académie" de La Grande Encyclopédie
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Larousse. O artigo de Paulo Durão, "Academia", na Enciclopédia Luso-‐Brasileira de CulturaI, indica o ano de 1477 como o da fundação da Accademia Fiorentina.
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da platonica familia. No comum e ágil espírito platónico que respiravam são contudo reconhecíveis alguns traços característicos, designadamente: a ideia da conciliação das doutrinas filosóficas e religiosas, o elevado sentido da dignidade do homem, a insistência na liberdade, espontaneidade e imortalidade da alma, o amor, o ideal da 11
vida contemplativa." Esta insistência na dignidade do homem e na liberdade aponta para os traços fundamentais do pensamento moderno — com uma interpretação do poder 12
criador do homem e, portanto, do artista —, que nos deixa já longe da teoria platónica. Acima de tudo, tal visão abre o caminho para a diferente concepção do papel deste último na sociedade, nomeadamente através da possibilidade de acesso de pintores e escultores a estas escolas informais, nas quais não 13
vigoravam as normas restritivas das corporações . Após as mortes de Lourenço de Médicis e de Ficino, a academia florentina iniciaria um período de declínio, descurando as vocações humanísticas e filosóficas, em benefício da política. Em 1522, após a acusação de alegado envolvimento de alguns dos seus membros na conjura contra o cardeal Júlio de Médicis, a instituição seria encerrada. Foi preciso esperar dezoito anos para que o grão-‐duque Cosme I de Médicis (1519-‐1874) fundasse nova academia, desta feita com propósitos mais literários. Não nos compete alargarmo-‐nos em mais considerações sobre esta associação. Porém, antes de terminar, convém lembrar ainda que foi também esta academia que introduziu o estudo da anatomia (até 14
então apenas leccionado em universidades e sujeito a várias restrições ) como disciplina obrigatória no ensino artístico, a partir do século XVI, “instituindo 11
In SANTOS, Leonel Ribeiro dos. "Academia Florentina", Logos: Enciclopédia Luso-‐Brasileira de Filosofia. Lisboa/S. Paulo: Verbo Editora, 1991. P. 43-‐46. 12
Impõe-‐se uma ressalva, ao utilizar este vocábulo. "O termo «artista» não existe no Renascimento. Procuramo-‐lo em vão no acervo de textos de Leonardo, a mais vasta herança literária que um pintor alguma vez deixou. Quando soou a hora de celebrar os tempos novos, Giorgio Vasari dedicou a sua colectânea aos «artífices do desenho», ou seja, «àqueles que praticavam as artes visuais»." In Chastel, André — "O Artista", O Homem Renascentista. Direcção de Eugenio Garin, tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 171. 13
Cf. PEVSNER, op. cit., p. 40.
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Sobre este assunto ver, por exemplo, PERSAUD, T. V. N. — Anatomy; The Post-‐Vesalian Era. Springfield, Illinois: Charles C. Thomas Publisher Ltd, 1997.
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assim a estreita relação entre arte e medicina que persistiu até meados do século 15
XIX.” A partir de então, por toda a Europa, vão-‐se multiplicando os estudos anatómicos, proliferando as publicações sobre o tema, destinadas a um público-‐ alvo composto por artistas e médicos. Em síntese, bastar-‐nos-‐á referir que a importância de que se revestiu, além do já citado, não se traduziu apenas na sua própria actividade mas, acima de tudo, nas repercussões que se verificaram, primeiro em toda a Península Itálica e depois por toda a Europa. 5. Expansão do modelo — especializações várias Com efeito, após alguns anos, as academias tornaram-‐se um modelo de ensino de grande sucesso. Como notou o ensaísta Nikolaus Pevsner, no seu conhecido livro sobre a história destas instituições, já no final do século XV o seu prestígio acabaria por se impor à própria universidade, instaurando mesmo uma confusão 16
etimológica, que em muitos casos se mantém até hoje . No entanto, isso não significaria a fusão das duas instituições, nem sequer a sua confusão de igual modo por toda a Europa. Em síntese, podemos dizer que, por um lado, a Universidade manteve as suas funções; por outro, se o significado e o sistema de ensino mais aberto das academias se manteve flexível por mais algumas décadas, cedo ele começaria a estruturar-‐se um pouco por todo o continente. Com efeito, a emergência do período maneirista e, em especial, a Contra-‐ Reforma contribuíram para uma profunda alteração no seu conceito, abandonando estas o seu característico informalismo e abertura e passando a funcionar de modo institucional. É também por essa razão que a sua inicial vocação humanista cedo se especializa, estabelecendo nesse passo as normas dos saberes, ditando novas regras sobre o que era relevante conhecer e como e quem podia aceder a esse conhecimento. E, como vimos, houve-‐as dedicadas 15
“The Florentine Academy of Arts was the first institution to introduce anatomy as a required subject for artists in the sixteenth century, thus initiating the close connection between art and medicina that persisted far into the nineteenth century.” In BENTHIAN, Claudia — Skin: on the cultural border between self and the world. Tradução do original alemão por Thomas Dunlap. New York: Columbia University Press, 2002, p. 45. 16
Lembremo-‐nos que a tradição universitária é hoje conhecida (e referida) como académica.
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preferencialmente à filosofia, à música (estas, com frequência ligadas às primeiras, foram embriões dos futuros conservatórios), outras à literatura, à ciência, às artes, à história… embora as influências se pudessem cruzar, ou os 17
seus nomes pudessem ser pouco esclarecedores dos seus programas . Entre o final do século XVI e a passagem para o XVII, o movimento científico baseado na experimentação, que então tomava a Europa, originou instituições 18
pioneiras no ensino e no debate das ciências , espaços de desenvolvimento de 19
projectos mais inovadores do que os universitários . Como lembra Pevsner, “los descubrimientos de Kepler, Galileo, Descartes, Newton y Leibniz son los 20
resultados del nuevo espíritu de investigación experimental” . Dentro de um espírito de ilustração e da noção de que saber é poder, as academias proliferaram com o programa da difusão e democratização do saber. O século das luzes que levaria um dos seus mais famosos filhos, o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-‐1804), a definir o iluminismo como o momento em que a razão humana chega à maioridade, alimenta-‐se da ideia de que um espírito instruído (iluminado) se emancipa. Enciclopédia e revolução encontram-‐ se aí de mãos dadas, para criar um momento científico e filosófico de intensa 17
Um bom exemplo do que queremos dizer foi a literária Accademia della Crusca, florentina,
fundada em 1582 como dissidente da de Ficino; nesta nova instituição, dedicada à protecção da língua (tendo editado logo em 1612, em Veneza, o Vocabulàrio della Crusca), se inspiraram outras como a gaulesa Académie Française, estabelecida, por ordem do rei Luís XIII, o Justo (1601-‐1643) e mecenato de Richelieu, no ano de 1635; a espanhola Real Academia de la Lengua, fundada em 1713; e a lusa Academia das Ciências de Lisboa. 18
Entre estas saliente-‐se a Accademia dei Lincei, fundada em 1603, em Roma. O nome, proveniente de lince, simbolizava o propósito de um olhar arguto por parte dos seus membros, entre os quais se contou o físico, matemático, astrónomo e filósofo Galileu Galilei (1564-‐1642). A instituição extinguir-‐se-‐ia em 1630, vitimada por várias perseguições por parte da Igreja (nomeadamente a que envolveu o processo de Galileu), que nela via um foco herético. Não poderíamos também esquecer a florentina Accademia del Cimento, fundada pelo geómetra Vicenzo Viviani (1622-‐1703). Durante os escassos dez anos de actividade fez algumas experiências relativas à pressão do ar e gravitação universal. Entre os seus membros destacou-‐se o físico e matemático Evangelista Torricelli (1608-‐1647), discípulo de Galileu, e inventor do barómetro. 19
São disso exemplo a Royal Society of London nascida em 1660 — como produto de carta real de Carlos II, e herdeira de uma associação científica criada em 1645 —, para o estudo da matemática, física e biologia; a Académie des Sciences, fundada três anos volvidos, por Colbert, em França; a Academia Scientiarum, de Berlim, criada em 1700, bem como a classe de ciências da parceira portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa, tornada Real por aviso de 13 de Maio de 1783, contando com a protecção de D. Maria I. 20
In PEVSNER, op. cit., p. 30.
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aposta na divulgação; nascem os primeiros museus. O mundo do saber pretende-‐ se ao alcance de todos. Enfim, de quase todos, como adiante veremos. Mas voltemos à arte. 6. A vertente artística. A primeira academia de desenho. Como vimos, as primeiras academias foram criadas com programas generalistas. E mesmo quando começaram a especializar-‐se, só em meados do XVI surgiu nos seus programas uma clara e específica vocação para o ensino artístico (teórico e prático). Faltava, portanto, uma instituição que conferisse o mesmo grau de oportunidade científica e social a pintores, escultores e arquitectos. Com efeito, para estes profissionais, mantinha-‐se apertado o controlo das confrarias, apesar de nos últimos anos estas terem perdido poder, nomeadamente na salvaguarda dos interesses dos seus membros. Para que a história se alterasse, foi necessário o concurso do pintor e arquitecto Giorgio Vasari (1511-‐1574), que convenceu Cosme I de Médicis a criar uma Accademia delle arti del Disegno. Corria o ano de 21
1560 . Determinado a organizar os estudos e a conferir protecção social aos seus membros, Vasari estabeleceu dois propósitos principais — a criação de uma sociedade que reunisse os principais artistas florentinos, unidos na sua diversidade de profissões pelo eixo comum do desenho; e a educação dos principiantes dentro da dupla vertente prática e teórica, acentuando a importância do saber no caminho da distinção profissional. Assim moldada, esta 22
instituição cedo se tornaria modelo de outras , atraindo vários artistas de diversas cidades da Península Itálica. A sua fama chegou mesmo além-‐fronteiras, tornando-‐se a Academia sinónimo de autoridade nas artes. Escassos anos depois de estabelecida, já Filipe II de Espanha a mandava consultar em relação aos planos que tinha para o Escorial.
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Por vezes a sua fundação é referida como sendo de 1563.
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Cf. PEVSNER, op. cit., p. 46.
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Pese embora alguns equívocos organizativos que abalaram a instituição tal como Vasari a tinha concebido (separando a área pedagógica da concernente aos assuntos do grémio), ela sobreviveria ao desaparecimento do seu fundador. Para isso foi importante a reforma operada pelo pintor maneirista Federico Zuccari (1542/3-‐1609), logo nos meados da década de 70 de Quinhentos, nas quais ficava estabelecida a separação entre actividades escolares e administrativas, com grande ênfase nas primeiras, que deviam centrar-‐se no desenho do natural (para cujo ensino devia haver um espaço específico), leccionadas por vários mestres cuja principal função era o bom aconselhamento (teórico e prático) dos discípulos. A grande ênfase dada às questões teóricas ia além das referentes à escultura, pintura e arquitectura, incluindo as de física e matemática, ministradas sob a forma de conferências. O objectivo de dilatar a cultura dos discípulos estava assim assegurado. Iniciou-‐se também uma política de atribuição de prémios aos melhores alunos, algo que viria depois a ser seguido por todas as futuras academias de belas artes. Antes de encerrarmos o capítulo referente à Accademia del Disegno é necessário lembrar que, nos seus tempos áureos, ela foi ainda guardiã do que mais tarde se chamaria património. Com efeito, logo no início do século XVII, foi pedido que supervisionasse a aplicação da lei que visava impedir a alienação de obras dos mais conceituados artistas nacionais. Apesar da sombra que sobre ela se espalha a partir dos meados de Seiscentos, esta instituição teve uma inegável importância no estabelecimento do que foi, desde então, o grande eixo do ensino artístico, centrado essencialmente no desenho e afirmando os seus autores como responsáveis pela criação do sentido do gosto, e pela notoriedade dos mecenas e das nações que serviam. 7. Prestígio crescente da instituição académica Na verdade, um dos factores de crescimento destas instituições prende-‐se com o inestimável apoio que lhes foi concedido por patronos de grande fortuna e fama. Príncipes e reis estão associados ao nome das academias desde o primeiro dia. Para isso contribuiu, entre outros aspectos, um esforço centralizador e 10
regularizador do subjacente conceito de escola, assumido como modelo alternativo de ensino e saber. Paradigmático exemplo do que acabamos de dizer é o caso francês e toda a movimentação gerida pelos ministros do rei, o cardeal Richelieu (1585-‐1642) e Jean-‐Baptiste Colbert (1619-‐1696). De facto, as academias seriam, durante muito tempo, acossadas pela Igreja, incomodada por esses centros de pensamento livre, devotados a grande esforço de modernização científica. Assim, a sua transformação em instituições com estatutos definidos garantiu-‐lhes resistência ao combate levado a cabo pelos seus opositores (entre os quais se contavam também as corporações artesanais), embora acabasse por as submeter à necessidade de solicitação de mecenato dos grandes senhores. O apoio foi de facto grande e, com o correr do tempo, as academias seriam acarinhadas por reis e ministros por toda a Europa. Aliás, o século XVII, com a emergência do barroco e com todo o movimento teatral e cortês que então se afirmou, levando mais uma vez o artista à corte, provou ser terreno propício para esse tipo de actividade. No século XVII, acentua-‐se a relação do artista com o poder que o financia, sublinhando a relevância do seu trabalho no crescente poder e celebridade dos seus patronos. A glória do Príncipe, criada com a importante ajuda da obra de arte, participa na eternidade que esta gera. Se o mecenas (rei, príncipe ou outro) consegue, através da obra, uma fama e um espólio artístico capazes de legitimar o seu próprio poder, também o artista alcança não apenas uma fonte de rendimento mais seguro como uma importante alteração no seu papel social. Presente na corte, na qual se move com à-‐vontade, não se limita, portanto, a obedecer a encomendas, mas já a elaborar formas de civilização do poder. Ou seja: se o rei é servido por uma imagem de legitimidade, o artista dita-‐lhe algumas regras para a construção dessa mesma aura. Nestas imagens, encontramos os testemunhos legitimadores do seu poder, seja através da representação das figuras em composições sacras ou mitológicas, seja na elaboração de retratos, em poses e contextos de incontornável autoridade. Compreensivelmente, essa imagem era reconhecida pelos monarcas que a recompensavam com generosidade. Assim, a formação da Académie Royale de 11
Danse, em 1661, antes mesmo da fundação da Académie des Sciences, ilustra muito bem a forma como os apoios dados para a formação das academias, no 23
século XVII, estavam relacionados com o poder e os interesses régios . Só depois houve interesse em criar congéneres destinadas a proteger e dilatar conhecimentos nas áreas da literatura (a Académie des Inscriptions et Belles-‐ Lettres é de 1663), ciência (1665), música (1669) e até arquitectura (a Académie Royale d'Architecture é de 1671) — mesmo sendo o ministro real eminente patrono de sábios, artistas e poetas. O espírito de elogio ao poder régio já dera origem, em 1648, a uma instituição hierarquizada: a Académie Royale de Peinture et Sculpture (instalada nas galerias do Louvre), doravante juíza e gestora das produções desses criadores. Fundada pelos pintores Justus Van Egmont (1601-‐1674) e Michel Ier Corneille (1601-‐1664) e pelo escultor Jacques Sarrazin (1592-‐1660), que elaboraram os estatutos, era apenas destinada aos artistas régios, em particular aos dedicados ao ensino do desenho. É também dentro deste espírito nobilizador, émulo cultural das embaixadas políticas, que se entende a criação das academias em Roma. Em França, o ano de 1666 via a Académie Royale de Peinture et Sculpture criar uma nova instituição: a Académie Française à Rome. É igualmente a Colbert, cuja juventude fora passada na Cidade Eterna, que se deve a formação desta academia, instalada no palácio Capranica (mais tarde, mudada para o palácio Mancini, até ir ocupar, a partir de 1803, a Villa Médicis). O seu primeiro director foi o pintor, gravador e arquitecto Charles Errard (1606-‐1689). Para lá, a França enviou, primeiro, pintores e escultores; depois, arquitectos, gravadores e músicos. Para conseguir semelhante “promoção”, todos eles deviam vencer, em França, o disputado Prémio de Roma, para o qual era necessário criar um trabalho de temática histórica — então, a grande maneira. Uma vez em Roma, estavam impedidos de trabalhar para particulares e, ao que parece, desaconselhados de viajar. Quanto a cópias — um método de estudo que visava a inspiração e aprendizagem 23
Luís XIV adorava dançar. O seu apoio (bem como os esforços de Colbert) foi, pois, em primeiro
lugar para a dança, suportando também a realização de debates que tinham em vista a melhoria das condições e do nível da dança. Cf. PEVSNER, op. cit., p. 27.
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através das obras de outros artistas —, só a partir dos antigos e de Rafael, considerado uma autoridade nos valores da Antiguidade. As restrições eram tantas que a academia acabou por viver momentos de crise, por falta de candidatos. A situação só melhorou na segunda metade do século XVIII, quando foi levantada a proibição de trabalhar para particulares e a obrigatoriedade de só fazer cópias para decoração dos palácios reais. Os alunos apareceram então em maior número, tendo surgido entre as suas fileiras de laureados alguns dos mais conhecidos artistas do tempo: Hubert Robert (1733-‐1808), Jean-‐Honoré Fragonard (1732-‐1806) ou Jacques-‐Louis David (1748-‐1825). 8. A academia alvo de críticas Apesar dos muitos aspectos positivos, as academias não foram isentas de falhas. E pese embora a alteração do estatuto social do artista, a promoção à desejada categoria não foi para todos, como também não foi igualmente dada a todos a oportunidade de estudo e de acesso aos saberes. A possibilidade de trabalhar com observação do nu, por exemplo, foi particularmente complicada. Na Académie Royale de Peinture e Sculpture, embora o seu estudo fosse iniciado pouco tempo após o aparecimento da instituição, questões de pudor obstaculizaram de diversos modos o seu ensino. Sobretudo se os estudantes eram mulheres. Aliás, estas foram tardiamente admitidas nas academias em geral, embora já desde o final do Renascimento se contassem inúmeras profissionais no campo da pintura, principalmente em Itália, com destaque para a cidade de Bolonha. Uma das suas mais famosas cidadãs, a pintora Lavínia Fontana (1552-‐1614), foi a primeira mulher a entrar para a Academia de Roma, nos primeiros anos do século XVII. Porém, isso foi possível apenas porque Bolonha tinha uma atitude diferente em relação às mulheres, orgulhando-‐se de contar, entre os seus cidadãos, inúmeras mulheres ilustradas e até com 24
formação universitária .
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"The city prided itself on women learned in philosophy and law — Bettisa Gozzadini, Novela d'Andrea, Bettina Caldenni, Melanzia dall'Ospedale, Dorotea Bocchi, Madalena Bonsignori,
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Neste aspecto, a imagem da Renascença liberal não correspondeu a uma realidade igualmente aberta. De facto, em 1552, o mesmo ano em que Lavinia Fontana nascera, registava-‐se, em Florença, um número que correspondia a 15-‐ 16% de mulheres encerradas em conventos para aliviar as famílias de números excessivos e indesejáveis de elementos femininos. Bolonha é uma nota positiva entre a amálgama das cidades italianas, que se digladiavam entre si, cada uma contribuindo para o prestígio da Península com o seu quinhão de artistas e intelectuais. Na realidade, esta cidade foi talvez das que deu mais frutos no campo feminino, devido ao facto de ter aberto as portas da sua universidade às mulheres, logo no século XIII. Na verdade, entre Quinhentos e Seiscentos, Bolonha regista a presença de vinte e três pintoras profissionais, com ateliers abertos em seu nome, na qualidade de mestras de pintura. De resto, no geral, no que respeita às mulheres o acesso e as condições de estudo nas academias continuou vedado até ao século XIX. Se as filhas de artistas tinham a possibilidade de estudar nos ateliers da família, as demais viam-‐se obrigadas a estudar com mestres particulares, em onerosos cursos apenas acessíveis a famílias abastadas. Já no século XIX, o ingresso das mulheres nos cursos artísticos não foi igual em toda a parte. Alguns países negavam-‐no em absoluto. Outros, embora permitindo-‐o, impunham-‐lhes restrições curriculares. Tal foi o caso da Academia de Belas Artes da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Apesar de as mulheres poderem frequentar as suas aulas desde meados de Oitocentos, até 1868 as aulas de nu estar-‐lhes-‐iam vedadas. E, embora a partir de então lhes fossem acessíveis, sendo o programa muito semelhante para ambos os sexos, era ministrado em classes separadas e com a componente científica vedada às estudantes. Semelhante política obrigava, portanto, a que ara completar a aprendizagem, então já sentida como pouco rigorosa, incompleta e desadequada ao tempo, muitos alunos (e em especial as alunas) recorressem a aulas particulares com artistas consagrados. Tal situação não se verificava apenas nessa academia norte-‐americana, mas um pouco por todo o
Barbara Arienti, and Giovanna Banchetti, who all wrote, taught, and published." In CHADWICK, Whitney — Women, Art, and Society. London: Thames and Hudson, 1992. P. 80.
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mundo. A França, por exemplo, apesar dos direitos iguais proclamados em 1789, 25
apenas permitiria a entrada de mulheres na Academia em 1897 . Contudo, estas instituições que, para além de escolas do gosto, em termos de formação dos artistas, deram origem à crítica de arte (nascida nas suas sessões), não punham só problemas às alunas. No seu seio a vida não corria de forma pacífica. Além dos problemas já mencionados, era também punida a independência, havendo que respeitar os programas estabelecidos. Assim, artista que não seguisse o cânone institucionalizado não era bem visto pelos seus pares. Isso aconteceu, por exemplo, com o pintor veneziano Francesco Guardi (1712-‐93), mais interessado nas vibrações da cor e na atmosfera do que nos detalhes do desenho. Aliás, esta velha questão estética, que sempre marcou o debate académico, preferindo-‐se o desenho por este se encontrar mais próximo da ideia, faria com que, durante largo tempo, pouquíssima importância se concedesse aos pintores de Veneza, mais preocupados com aspectos cromáticos e lumínicos do que com a linha. A revolução estética de Setecentos — alimentada nas fecundas discussões académicas — acabaria por instalar o gérmen do descontentamento e viria a abrir caminho a múltiplas contestações a estas instituições e ao seu estilo considerado por alguns como passadista. Dadas as suas estreitas relações com o poder, a Revolução Francesa de 1789 encerrou-‐as, vendo nelas símbolos da autoridade do Antigo Regime. No entanto, pouco tempo depois, as academias seriam redimidas e reabertas. O triunfo da burguesia e a constituição de uma nova elite nobilo-‐burguesa criou um amplo mercado para a pintura de história. A rejeição das mulheres pelo mundo académico fez com que raras conseguissem singrar no conceituado universo da “grande maneira”
26
, optando, para
sobreviver, pela prática do retrato.
25
Cf. WEISBERG, Gabriel P.; BECKER, Jane R. (editores) — Overcoming all Obstacles: the Women of the Académie Julian. New York, New Brunswick, New Jersey, London: The Dahesh Museum e Rutgers University Press, 2000, p. 3. 26
Relembremos que este género pictórico, ao qual apenas os homens podiam concorrer, era o único para o qual existia o prestigiado “prémio de Roma”, consagrador de carreira e garantia de mercado.
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Do mesmo modo que as mulheres artistas se viram constrangidas a essa prática quase exclusiva (embora os sucessos conseguidos lhes garantissem renome e recursos económicos), muitos artistas homens abraçaram também como temas “preferenciais” outros menos conceituados e apetecidos pelo mercado, como a paisagem e a pintura de género. Manifestos político-‐pictóricos em alguns casos, estas temáticas afastadas das oficiais fizeram nascer importantes escolas de pintura, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, por exemplo (associando-‐se à criação de uma imagem algo mítica de identidade nacional), como ainda em França, em particular através dos artistas que, rejeitando academia, mercado e a nova urbanidade da cidade industrial, se refugiaram na Floresta de Fontainebleu, 27
aí criando a que ficou conhecida como a Escola de Barbizon . 9. Necessidades de mudança A partir dos anos trinta de Oitocentos, várias academias ver-‐se-‐ão a braços com necessidades de renovação e actualização face às novas exigências do mercado. E de então até aos anos 70 do mesmo século, muitas delas redefiniram os seus programas de desenho, estabelecendo duas vias: uma para as belas artes (pintura, escultura e arquitectura) e outra para as artes aplicadas, ou seja para o desenho aplicado à indústria (aquilo a que hoje chamamos design), de modo a modernizar a produção de fábricas e manufacturas, com produções internacionalmente competitivas. Este objectivo tornou-‐se tanto mais imperativo quanto a partir de 1851, com a Great Exhibition, as Exposições Internacionais se tornaram montras de nações nas quais cada país lutava por alargar o mercado das suas produções industriais. Apesar dessa tentativa de actualização académica por via das reformas, o final do século XIX, na senda das alterações provocadas pelo impressionismo, criaria o 27
Esta escola informal, assumida como ex-‐cêntrica ao poder, teve como projecto a atenção à Natureza, retratando-‐a de modo realista e emotivo, integrou nomes como Théodore Rousseau (1812-‐1867), Jean Baptiste Camille Corot (1796-‐1875), Gustave Courbet (1819-‐1877), Honoré Daumier (1808-‐1879), Jean-‐François Millet (1814-‐1875), Charles-‐François Daubigny (1817-‐1878) ou Constant Troyon (1810-‐1865). A sua postura constituiu uma recusa da cidade, do poder e do mercado que condicionava à obrigatória pintura neoclássica, e partiram para o campo para expressar a sua criatividade e livremente exercer a sua arte.
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termo academismo para nomear a expressão plástica dominada por um ensino artístico que denunciava como sujeito ao mercado, pouco ou nada inovador e avesso à experimentação. Seria esse mesmo conceito de experimentação versus sistema académico que faria triunfar o preconceito modernista do século XX em relação a essa tradição, dando uma carga inevitavelmente negativa ao vocábulo. Durante décadas, essa visão, nutrida na defesa da arte vanguardista, acusou de passadismo a instituição académica. Contudo, estudos recentes apontam hoje casos inequívocos de “resistência” também nesses meios, na continuidade de práticas aturadas de desenho e de trabalho que, embora apoiado no estudo dos velhos mestres, não deixou de trazer novos contributos à arte do seu tempo, apesar da rejeição patente nos modos plásticos não escolares tidos como 28
experimentais . Além disso, convém recordar que, por esses anos, surgiram ainda academias alternativas, abertas sobretudo aos excluídos das suas congéneres estatais. Entre as mais conhecidas estão algumas cujo currículo se orgulha de ter contribuído para o diálogo das vanguardas, como as parisienses Académie Julian, criada em 29
1868 — e que desde 1873 permitiu o estudo do nu em classes de homens e de 30
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mulheres , embora por ensino idêntico cobrasse mais a estas do que àqueles —, ou a Académie de la Grande Chaumière, já em 1902. Entre os muitos alunos da primeira, salientamos pela diversidade de propostas plásticas que trilharam, os pintores Cecília Beaux (1855-‐1942), Anna Klumpke (1856-‐1942), Pierre 28
Sobre este assunto ver, por exemplo, Art and the academy in the nineteenth century. Edição de Rafael Cardoso Denis e Colin Trodd. New Brunswick e New Jersey: Rutgers University Press, 2000. 29
Com o objectivo de preparar os estudantes para a difícil admissão na École des Beaux Arts (a velha Academia). Sobre a história da Académie Julian, ver . WEISBERG, Gabriel P.; BECKER, Jane R. (editores) — Overcoming all Obstacles: the Women of the Académie Julian. New York, New Brunswick, New Jersey, London: The Dahesh Museum e Rutgers University Press, 2000. 30
“Established on 1868 by Rodolphe Julian, a former wrestler, the Julian atelier began on a small scale in one well-‐lighted room in which models were posed for intensive study. As early as 1873, after Julian hired respected artists to serve as mentors to his students, men and women worked side by side in drawing and painting from the nude, a new innovation at the time.” In WEISBERG, Gabriel — “The Women of the Académie Julian: The power of Profissional Emulation”. In op. cit., p. 13. Contudo, o ensino não era misto, mas ministrado em classes separadas e às mulheres eram, regra geral, apresentados modelos femininos. Cf. GARBA, Tamar — “Men of Genius, Women of Taste: The Gendering of Art Education in Late Nineteenth-‐Century Paris”, idem p. 127-‐ 128. 31
Na verdade, cobrava o dobro. Cf. Idem, p. 14 e 128.
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Bonnard (1867-‐1947), Jacques Villon (1875-‐1963), Diego Rivera (1886-‐1957) e Jean Dubuffet (1901-‐1985), ou os escultores Jean Arp (1886-‐1966), Marcel Duchamp (1887-‐1968) e Louise Bourgeois (1911-‐). Pela segunda, sobretudo, também num regime livre e experimental mais de atelier que de aprendizagem formal, passaram ainda (como alunos ou professores) nomes como o da arquitecta e designer Eileen Gray (1878-‐1976), dos pintores Amadeo Modigliani (1884-‐1920), André Lhote (1885-‐1962), Joan Miró (1893-‐1983), Arpad Szenès (1897-‐1985), Tamara de Lempicka (1898-‐1980) e Balthus (1908-‐2001), ou dos escultores Alexander Calder (1898-‐1976), Alberto Giacometti (1901-‐1966) e da já referida Louise Bourgeois que, como outros, circulou entre as duas escolas. 10. Academias em Portugal Quanto a Portugal, embora por vezes sejam citadas a escola de Sagres e a corte 32
da Infanta D. Maria (1521-‐1577) como as primeiras academias humanistas existentes no país, estas não podem ser consideradas como pares das criadas na Europa em meados de Quatrocentos. Com efeito, do pouco que se sabe acerca da organização da escola de Sagres — importante centro de formação específica para a empresa da Expansão — é certo esta nunca ter constituído obstáculo ao ensino universitário já organizado. Quanto à corte da Infanta D. Maria, também nada surgiu dessas "tertúlias" cortesãs com o intuito específico da formação artística ou literária, aposta pedagógica organizada, determinada em mudar a face cultural, social e estética do reino. De facto, entre nós, as Academias surgiriam tarde em relação ao restante panorama europeu. Muito particularmente as destinadas às Artes. É certo que 33
em 1602 já existia a Irmandade de São Lucas , associação de artistas — pintores 32
Roy Strong (Arte y Poder Fiestas del Renacimiento: 1450-‐1650. Madrid: Alianza Editorial, 1988.) apresenta uma definição de academia bastante lata, na qual reuniões cortesãs como as do círculo da infanta podem ser incluídas. Contudo, no sentido de escola e mesmo de instituição com um programa, não a podemos considerar como tal. 33
"Embora Cyrillo Volkmar Machado diga que ignora a data da fundação da Irmandade, parece-‐ nos, pelos termos em que está redigida a escritura de 17 de Outubro de 1602, […], que ela foi instituída nesse ano. O próprio Compromisso, confirmado em 1609, parece, no seu final,
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"todos, assi de olio como de tempera, Architectos, Scultores, Iluminadores, ou quaisquer outras pessoas que professarem debuxo que quiserem ser irmãos desta irmandade do glorioso São Lucas, serão reçebidos nella, sendo conhecidos por 34
pessoas de boas consciencias" —, inspirada na congénere italiana criada no século XVI. Mas também a esta faleciam propósitos pedagógicos. Com o tardio aparecimento de academias em Portugal sofreram artes, artistas e património. Constantemente adiadas, pela situação instável do país — guerras da Restauração e o envolvimento na Guerra da Sucessão, no início do século XVIII —, só depois de restabelecida a paz, em 1715, se desenvolveram semelhantes estabelecimentos em Portugal. Contudo, ainda assim, apenas dedicados à literatura e às ciências (e reservando-‐se ao convívio dos nobres e de raros burgueses). As Belas Artes tiveram de esperar. Embora já se tenha afirmado que, nos anos 20 do século XVIII, D. João V (1689-‐1750) abriu uma Academia de Portugal em Roma, inspirado no gesto prestigiante de outros monarcas do seu tempo, de acordo com o estudo da investigadora italiana 35
Valeria Tocco , nada se apresenta de conclusivo em relação a isso, parecendo apenas que esse seria simplesmente o nome atribuído ao local onde ficavam hospedados os bolseiros portugueses em Roma. Embora os escritos dos escultores Joaquim Machado de Castro (1731-‐1822) e Cyrillo Volkmar Machado (1748-‐1823) sejam benévolos quanto ao reinado de D. João V, descrevendo-‐o como um tempo de significativo mecenato, reiterado nos reinados de D. José I (1714-‐1777) e de D. Maria I (17341816), ambos apontam também a falência do ensino artístico, as dificuldades teóricas que os artistas sentiam em relação a uma multiplicidade de assuntos, além da escassa oferta bibliográfica das bibliotecas coevas. Apesar de D. João V ter mandado adquirir
corroborar essa asserção." In TEIXEIRA, Francisco Augusto Garcez — A Irmandade de São Lucas estudo do seu arquivo. Lisboa: s.n., 1931, p. 6. 34
In Compromisso da Irmandade de S. Lucas, transcrito idem, p. 40. Esta nota que refere as pessoas de boas consciências parece iluminar a questão da má imagem de que os artistas gozavam. 35 Cf. TOCCO, Valeria — “A Academia Portuguesa de Belas-‐Artes em Roma, entre mito e realidade”, in Quaderni del Dipartamento di Lengue e Letterature Neolatine. Bergamo: Universidade de Bergamo, 1997, p. 45. Esta história permanece, contudo, algo confusa, havendo registos de envios de gessos da suposta academia, para Portugal, no início do século XIX.
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várias obras para as (poucas) bibliotecas do reino, havia ainda que ultrapassar dois outros obstáculos: a censura da Inquisição e a barreira das línguas estrangeiras. 36
Chega entretanto o tempo de Pombal . E se é certo que antes do famoso ministro de D. José I, já tinha havido várias tentativas para modernizar o 37
ensino , seria necessário esperar pela sua reforma para que esse projecto se concretizasse. O Real Collegio dos Nobres (organizado em 1761 e aberto cinco anos depois) é disso exemplo, reflectindo já os propósitos do médico e educador Ribeiro Sanches (1699-‐1783) que preconizava a "articulação entre educação e Poder", numa nova reforma, laicizante, que iria contemplar a totalidade do 38
ensino, do básico ao universitário . Estabelecida em Lisboa por ordem do rei D. José I, essa escola tinha por objectivo dotar a nação de jovens de berço. Por isso mesmo, a admissão, na qual deviam constar as provas da fidalguia do candidato, passava ainda pelas competências básicas da leitura e da escrita. O ensino desses rapazes dos 7 aos 13 anos de idade, versaria — além das mestrias de classe, como as artes de cavalaria, esgrima e dança — um quadro de disciplinas 39
40
clássicas , a que se juntavam algumas novidades curriculares , com um claro pendor matemático, já que o estudo, de acordo com D. José I, "das diferentes partes, que a constituem, he não só util, mas indispensavelmente necessario a todos os que aspirarem servir-‐Me na Milicia, ou por Mar, ou por Terra"41. Se os alunos sem talento matemático deveriam ser desviados para o ramo da arquitectura e do desenho essas disciplinas mantinham contudo rigor na 36
Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-‐1782), Marquês de Pombal e Conde de Oeiras.
37
Vejam-‐se, neste campo, as obras e perspectivas pedagógicas de pensadores como Martinho de Mendonça (1693-‐1743), Ribeiro Sanches (1699-‐1783) e Luís António Verney (1713-‐1792). 38
In GOUVEIA, António Camões —"Estratégias de Interiorização da Disciplina", História de Portugal. IV Volume: O Antigo Regime (1620-‐1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. P. 432. 39
Nestas compreendia-‐se o latim, grego, retórica, história da filosofia, lógica, eloquência, poética, história (antiga e moderna, incluindo administração do território). Cf. Collecção de Legislação Portugueza, Decreto de 7 de Março de 1761, p. 782. 40
Eram estas: cronologia, geografia, português, francês, italiano, inglês (a modernidade pedagógica encontra-‐se precisamente na inclusão no currículo de línguas estrangeiras vivas), além da formação científica em física, sendo o colégio dotado de instrumentos científicos que o próprio monarca mandara adquirir. Cf. idem. 41
Idem, p. 782.
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docência, sendo leccionadas por professores específicos que, nas áreas distintas da arquitectura militar, civil e no desenho propriamente dito, forneceriam as necessárias bases de fortificação, praças, sítios, campos e exércitos, princípios da arquitectura e medidas e proporções. Apesar de todas as novidades, o Colégio não seria contudo o primeiro passo para a desejada fundação do ensino artístico em Portugal. Em 1768, assistiu-‐se a mais uma tentativa, com a criação do Curso de Gravura, na Impressão Régia. E o final dos anos setenta ainda veria surgir mais dois laboratórios de pintura: Mafra (com origem no próprio convento) e Lisboa (em torno da modelação de estátua equestre de D. José I, da autoria de Machado de Castro). Contudo, mais uma vez, não se trata de Academias, como também não o fora a Casa do Risco, iniciada em 1755, aquando da reconstrução da capital, ou a Aula de Debuxo da Real Fábrica das Sedas, criada em Lisboa em 1734 e renovada 1757, e cujo ensino do 42
desenho “era a aplicação do debuxo à produção de tecidos” . A primeira manifestação de ensino artístico organizado e independente, em Portugal, nasceu no Porto, com uma proposta da Junta da Companhia das Vinhas do Alto Douro, de criar uma Aula Pública de Desenho e Debuxo, em 1779. No mesmo ano, em Lisboa, surgiria o diploma da Aula Régia de Desenho de Figura e de Arquitectura. Ainda na capital, em 1780 — o mesmo ano em que, também na Invicta, o pintor francês Jean Pillement (1728-‐1808) abria uma escola particular — Cyrillo, que regressara de Roma três anos antes e de lá trouxera o desejo de instituir no país um espaço de ensino de desenho, abriu a Academia do Nu. A 16 de Maio de 1780, iniciaram-‐se os trabalhos para a sua instalação e funcionamento. Todavia, várias dificuldades se lhe colocaram no caminho: por um lado, os professores eram velhos, de gostos antigos; por outro, não se arranjava modelo, fresco ainda na memória um episódio de 1768, aquando da primeira tentativa de desenhar a partir do nu, numa escola em Lisboa. Escandalizada, a população atirara pedras às janelas da sala onde o pobre se encontrava, provocando-‐lhe o pânico e consequente desaparecimento. A 42
In SANTOS, Celso Francisco dos —"João Maria Policarpo May. Debuxador e Lente da Aula de Desenho da Real Fábrica das Sedas”. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto: 2002. 1ª série, Volume I, p. 203-‐209. P. 206.
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Academia do Nu teria assim vida curta, como teve a Aula Pública de Desenho, instaurada em Lisboa no mesmo ano de 1780. Pina Manique, por seu turno, deixaria o seu nome impresso nesta história ao criar uma aula de desenho na Casa Pia. No conjunto, porém, e dadas as suas características, nenhuma delas pode no entanto ser considerada uma verdadeira Academia de Belas Artes. Nas primeiras décadas de Oitocentos surgiram novas aulas de desenho e associaram-‐se outras, na expectativa de que esforços conjuntos tornassem mais fortes as empresas a que se propunham. Em 1800-‐01, abriu a Aula na Oficina Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do Cego. Em Janeiro de 1802, foi renovada a aula da Impressão Régia, sendo nela incorporada a da Oficina. Em 1803, na Invicta, abria portas a Academia Real de Marinha e Comércio, nela agregando a Aula Pública de Debuxo e Desenho, na qual foram professores os pintores Vieira Portuense (1765-‐1805) e Domingos Sequeira (1768-‐1837). Querendo dar cumprimento ao velho sonho académico de Vieira, em relação a esta aula de desenho, Sequeira resolveu fazer-‐lhe um regulamento. No entanto, a invasão comandada por Junot embaraçar-‐lhe-‐ia os planos, como também obstou às esperanças de que o estaleiro da Ajuda desse início a uma academia. A chegada das tropas napoleónicas, seguida das convulsões políticas da revolução liberal, a partir de 1820 fizeram desmoronar quaisquer ilusões restantes. Seguiram-‐se anos difíceis. Quando, em 1820, Portugal se achava convulsionado pela revolução liberal, a Aula de Gravura da Impressão Régia estava praticamente desactivada, desaparecendo no ano seguinte. A Casa do Risco extinguiu-‐se também — sendo na mais optimista das visões “transferida” para o Brasil, com a Corte em fuga. D. João VI (1767-‐1826). A sua chegada ao Rio de Janeiro transforma os hábitos culturais, artísticos e sociais da colónia. Como forma de valorização da cidade que o recebeu, o monarca decretou a instituição 43
da Academia Imperial de Belas Artes, que abriria as suas portas em 1826 , quatro anos depois da independência do Brasil. 43
Apesar de a criação desta academia datar de 1815, ela só abre em 1826, quatro anos após a Independência. Cf. DENIS, Rafael Cardoso – “Academicism, imperialism and national identiy: the case of Brazil’s Academia Imperial de Belas Artes” in Art and the academy in the nineteenth century. Edição de Rafael Cardoso Denis e Colin Trodd. New Brunswick e New Jersey: Rutgers University Press, 2000, p. 55 e segs.
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Sete anos depois, em 1833, ainda antes de estabilizada a situação política do Reino, uma comissão nomeada pelo rei D. Pedro IV (1798-‐1834), que incluiu o escritor e político Almeida Garrett (1799-‐1854), foi encarregue de estudar a reforma geral dos estudos do Portugal liberal, aí considerando, por fim, o ensino 44
das Belas Artes . Entretanto, extintas as ordens religiosas em 1834, e os conventos sujeitos ao saque do seu recheio artístico, tornava-‐se urgente a criação de instituições que acolhessem esse património móvel, cuja classificação e protecção urgia levar a cabo para que não fosse deixado à mercê do momento iconoclasta ou da cobiça de negociantes sem escrúpulos. Chegados a Fevereiro de 1835, o ministro Agostinho José Freire (1780-‐1836) nomeou nova comissão que preparou os estatutos da Academia Pública de Belas-‐Artes, cujo estabelecimento deveria não apenas ter fins pedagógicos mas também de defesa patrimonial. Finalmente, o decreto que instituiu a academia de Lisboa, a 25 de Outubro de 1836 (a do Porto seria decretada a 22 de Novembro do mesmo ano), reconhecia o estado calamitoso das artes em Portugal e sublinhava a urgência da instituição. Estava, enfim, criada a tão desejada escola para os artistas. 11. Epílogo Apesar de uma reforma incipiente em 1871, o grande projecto de reorganização das Academias portuguesas surge em 1875, acompanhando o movimento de renovação académico europeu. Em 1881, ele é finalmente levado a cabo. As Academias de Lisboa e Porto tentavam sobreviver, adequando-‐se aos novos tempos. Apesar das dificuldades sempre apontadas (falta de meios, ausência de dotação suficiente...) das suas aulas e do seu regime de bolsas para aprofundamento dos conhecimentos no estrangeiro (e consequente enriquecimento do panorama nacional no seu regresso) saíram os nomes mais conhecidos das nossas gerações de fim de século, como Cristino da Silva (1829-‐ 1877), Alfredo Keil (1851-‐1907), José Malhoa (1855-‐1933), Columbano Bordalo Pinheiro (1857-‐1929), Luciano Freire (1864-‐1935), Falcão Trigoso (1879-‐1956) 44
Cf. idem.
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oriundos da Academia de Belas Artes de Lisboa, e Sousa Pinto (1856-‐1939), Silva Porto (1850-‐1893), Artur Loureiro (1853-‐1932) ou Aurélia de Souza (1866-‐1922), da Academia Portuense de Belas Artes. Com o advento da República, a nova legislação de 1911 extingui-‐las-‐ia, reorganizando a sua actividade em Escolas de Belas Artes. Mas tempos difíceis se aproximavam. Então, os principais agentes do modernismo português assumiam o autodidactismo como valor, recusando a escola como fonte de vícios. E, além de Amadeo de Souza-‐Cardoso (1887-‐1918), que passara pela Academia de Lisboa em 1905 para rumar a Paris no ano seguinte, entre os novos, Sarah Affonso (1899-‐1983) seria uma rara presença na instituição. O início do século XX português assiste à confirmação de Paris como centro de estudos para a maior parte dos nossos artistas apostados numa formação estrangeira. Mas então o modelo já se tornou híbrido e a prossecução dos estudos passa tanto pela frequência de escolas — assim aconteceu com a própria Sarah Affonso, bem como com Mily Possoz (1888-‐1968) e Vieira da Silva (1908-‐1992), alunas da Académie de la Grande Chaumière — como pelo convívio artístico em ateliers e tertúlias, visitando exposições e museus e seguindo assim o ar do tempo. A era do modernismo e dos seus agentes viria, portanto, a colocar alguns pontos de interrogação no futuro da Academia como lugar de aprendizagem. No entanto, ela soube sobreviver. Os seus nomes foram mudando e, em Portugal, depois de várias reformas ao longo do século XX, as Escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto acabariam por se transformar em Faculdades, participando deste modo no velho sonho académico de equiparar o trabalho manual ao intelectual. Vários séculos depois de Vasari, e apesar de tantos entraves e até de humilhações, os artistas aí estão enfim: de maltrapilhos a senhores, passando mesmo por génios na mística que o romantismo lhes conferiu, são hoje sobretudo senhores da sua formação e da sua criação. Também em Portugal. "Longe, longe de nós a paixão de Eschola: os possessos de tal espírito, logo mostraõ as contorsões da Soberba, as visagens da Ignorancia, e o orgulho da
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Indolencia" escreveu Machado de Castro em 1788. Porque, de facto, a escola não explica tudo — como não pode dar talento. Mas ajuda, pelo menos, a obter instrução. E até algum reconhecimento. Como tanto falecia aos artistas do seu tempo. Talvez hoje, num triunfo póstumo, Machado de Castro possa, enfim, sorrir.
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In CASTRO, Joaquim Machado de — Discurso sobre as utilidades do desenho. Lisboa: s.n., 1788. P. 23.
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