Do espaço público ao regrado: contributos e reflexões em torno de uma nota histórica de 1642 acerca da proibição de ‘abrir a água dos chafarizes, lavar neles e beber bestas no chafariz grande do Toural’ em Guimarães

July 1, 2017 | Autor: R. Nogueira Martins | Categoria: Urban Planning, Geografia, Urbanismo, Espaço Publico, Guimarães, Praças
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Atas X Congresso da Geografia Portuguesa OS VALORES DA GEOGRAFIA

Maria José Roxo Rui Pedro Julião Margarida Pereira Daniel Gil

Ficha Técnica Titulo: Valores da Geografia. Atas do X Congresso da Geografia Portuguesa Coordenador: Maria José Roxo Co-coordenadores: Rui Pedro Julião, Margarida Pereira e Daniel Gil Editores: Associação Portuguesa de Geógrafos ISBN: 978-989-99244-1-3 Ano de Edição: 2015

X CONGRESSO DA GEOGRAFIA PORTUGUESA Os Valores da Geografia Lisboa, 9 a 12 de setembro de 2015 Do espaço público ao regrado: contributos e reflexões em torno de uma nota histórica de 1642 acerca da proibição de ‘abrir a água dos chafarizes, lavar neles e beber bestas no chafariz grande do Toural’ em Guimarães R. Nogueira Martins(a), F. Nunes(b), A. de Azevedo(c) Laboratório da Paisagem – Universidade do Minho/Município de Guimarães, [email protected], [email protected] (b) Departamento de Geografia, Universidade do Minho, [email protected] (c) Departamento de Geografia, Universidade do Minho, [email protected] (a)

Resumo ‘Do espaço público ao regrado’ coloca em discussão as questões da mudança de pensamento urbanístico e de ‘direito à cidade’ a partir de uma nota municipal de Guimarães, datada de 1642. O debate constrói-se a partir da decisão de proibição do usufruto público das fontes de água para fins domésticos, que viria a ser aplicada e disseminada aos poucos em todos os municípios, instaurando assim normas de política urbana, higiene e convivência pública dos espaços de uso colectivo. Ao mesmo tempo em que se antevê uma mudança estrutural do centro ‘urbano’, com a ruralidade a ser expulsa para a periferia ou para o espaço extra muralhas. O poder municipal enquanto agente da decisão acabaria assim por responder à instauração do cosmopolitismo, redefinindo a prática do uso público nas formas de exibição e usufruto. Palavras chave: espaço público, urbanismo, Guimarães, Toural.

1. A função deliberativa do Município de Guimarães na administração seiscentista Os ‘homens bons, oficiais e juízes’ da época, considerados aptos intelectualmente para ditar o rumo de Guimarães, governavam e deliberavam em uníssono em Guimarães. Do senado Municipal e das relativas actas das vereações e referências das primeiras épocas anteriores ao período seiscentista, Guimarães apresenta “documentos isolados em pergaminhos escassos e remotos” (Braga, 1953, p.8). É neste sentido que se justifica a presente discussão em torno de um número reduzido de livros das Vereações das sessões de Câmara do século XVII que aferem a função deliberativa de Guimarães para este período. Deste modo, partindo da análise da obra “Administração Seiscentista do Município Vimaranense” de Alberto Vieira Braga (1953), que brilhantemente reúne um conjunto de registos acerca do Municipalismo Vimaranense Seiscentista, é possível conhecer as deliberações desses ‘homens bons’ nas Sessões de Câmara. Algumas das deliberações dariam início a uma verdadeira mudança de mentalidade no que se refere ao usufruto do espaço público. Uma deles, que dá azo à presente discussão, datada de 1642, é relativa ao chafariz de Toural dando nota que fora “proibido abrir a água dos chafarizes, lavar neles e beber bestas no chafariz grande do Toural, sob pena de 1$000 réis e 10 dias de cadeia” (Braga, 1953, p.171). 152

No século XVII, a cidade de Guimarães, no que diz respeito ao ordenamento das funções sociais do espaço, procurava regular os seus acessos e apropriações por via da função deliberativa que o corpo municipal possuía. Na época passava a assumir-se como fulcral a gradual definição do que é considerado espaço público, espaço privado, e o que neste trabalho se apelida de espaço público regrado, em consideração do espaço público adaptado às normativas da modernidade que no período seiscentista se implantava. Debatendo esta deliberação, pretende-se indagar o conhecimento da vida do Município de Guimarães no período seiscentista, enquanto Sede de Poder, ao mesmo tempo que se procura reflectir acerca das transformações em curso no pensamento urbano.

2. O espaço como política: a praça e chafariz do Toural da cidade de Guimarães O chafariz do Toural (figura 1) foi ponto de encontro para o convívio social pela frescura que proporcionava no Verão, desde 1585, ano em que foi colocado nessa praça (Teixeira, 2008), junto da agora demolida igreja de S. Sebastião. “Tem esta Praça entre si e as casas que a cercam da parte do sul um chafariz de seis bicas, que correm de taças de pedra bem lavradas, e tem no alto uma esphera de bronze dourada, e ao pé della um escudo com as armas de Portugal, e nas costas deste outro com uma aguia negra coroada de ouro, com um letreiro aos pés que diz anno de 1588. É este chafariz todo cercado de assentos de pedra para se recrearem os que ali vão” (Azevedo, 1692, p. 322).

No século XVI, Guimarães concretizou assim um importante feito de urbanismo e engenharia, com a implementação deste chafariz, como sinónimo do controlo e acalmia da água pelo ser humano. Construído em finais de quinhentos, foi pago por um imposto lançado sobre a venda de vinho verde, azeite, carne e peixe na vila de Guimarães e autorizado por uma provisão régia de 15851. Este chafariz, aproveitava-se do encanamento das águas para a vila de Guimarães, desde as nascentes da Piolhosa e da Presa do Monte na Serra da Penha (Guimarães, 1903).

A “obra do encanamento (…) foi custeada por uma parte da imposição de um ceitil em cada quartilho de vinho verde, vendido a retalho, e d'azeite e em arrátel de carne e pescado, auctorisada por dez annos, por provisão regia do anno de 1585” (Hermano, 1902, p. 28) 1

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Figura 1 – Chafariz do Toural, 1865-70 Fonte: (http://www.csarmento.uminho.pt/)

As regras sobre a utilização do espaço público vimaranense, em particular para o usufruto de tão importante monumento na praça mais emblemática de Guimarães, já surtiam efeito antes da deliberação de 1642, pois a Câmara tentava zelar pela limpidez e segurança da água e para que esta não fosse desviada para outros fins. “Os moradores serviam-se na maioria, da água dos poços, que era alcatruzada aos canecos para quem dela precisasse, visto que os chafarizes da água da serra eram poucos, e esta andava sempre desviada dos canos, pelas armadas roubalheiras dos que a minavam e encaminhavam para a rega dos seus campos e almuinhas.” (Braga, 1953, p.21).

Em 22 de junho de 1605 deliberava o município “que toda a pessoa que abrir o chafariz da Praça e se aproveitar da água para as hortas e campos, pagará 2$000 rs. da cadeia”, da mesma forma que deliberava que “ninguém lave no chafariz da praça e do toural, sangue, hortaliça panos nem outra cousa, com pena de 2$000 rs” (Braga, 1953, p. 130). Mais tarde, a 21 de março de 1628, reforça-se a posição de higienização municipal ao proibir “lavar roupa nos chafarizes da praça e do Toural.” (Braga, 1953, p. 156). Das estratégias de poder na gestão do espaço urbano seiscentista, afere-se assim a restrição do uso de espaços da cidade por via das deliberações municipais. No caso particular de Guimarães, observou-se a aplicação de restrições sob o que considerava serem espaços primordiais de convivência social como as praças, bem como monumentos peculiares, onde se incluem os chafarizes. Do ponto de vista cultural, assiste-se assim à mudança das práticas da população que se foi adequando a novas normas de habitabilidade, na sequência deste tipo de deliberações que foram surgindo no sentido da higienização e regulamentação do espaço, no duro percurso para a modernidade. Deste modo, o espaço público, em particular a praça do Toural, ao ser alvo de novas regras de convivência, entra em confronto com o sentido de lugar de cada sujeito que vive a cidade, na medida em que, para Campelo (2000, p. 13), “a praça ocupa no imaginário e na prática do cidadão um outro sentido de pertença ou de apropriação. 154

Na verdade, desde o século XVII, que a praça do Toural assumia um papel de unificação de massas predominantemente na partilha de hábitos rurais e festividades várias. A população havia transbordado “por cima dos muros de D. Dinis, e, como se procurassem compensação ao constrangimento em que vivera quási abafada pela estreiteza das ruas e pequenez dos terreiros veio sentar-se em volta de um grande campo, mesmo contíguo às muralhas, para o lado oeste” (Braga, 1939, p. 150). Era a este grande campo, considerado no século XVII “uma das melhores [praças] do Reino” (Azevedo, 1692, p. 321) onde “ […] semanalmente se estendia aos olhos do povo, o mercado mais importante do Reino” (Braga, 1939, pp. 150-151), que Guimarães tentava operacionalizar com a introdução de regras de convivência e de hábitos. Da estreiteza medieval do traçado do aglomerado urbano e das sombras e obscuridade da religião bem patente no período medieval, Guimarães, propôs criar urbanisticamente desde o século XVI um terreiro e adro, “que por ser ali a feira do gado, lhe chamavam de Toural, que vale o mesmo que dissessem – dos Touros” (Braga, 1939, p. 151), onde se assistia à transacção não só de gado mas também de outros bens obtidos do sector primário. A utilização deste adro para festas populares, acertos de contas e outras demais festividades religiosas, sob o ponto de vista da geografia cultural e da fenomenologia do espaço propunha aos seus utilizadores a criação de um sentido de lugar, marcado por um forte vínculo emocional com esta praça. As deliberações seiscentistas em causa neste trabalho reflectem o desafio municipal de contornar os hábitos rurais que a praça ao longo de todo o século XVII assumiu, preparando Guimarães para uma mudança do paradigma social e urbanístico, a transição do Toural - Terreiro para o Toural - Praça Cosmopolita. O chafariz deveria continuar a acalmar as ostes nos dias de maior calor pelo seu aspeto estético e funcional, mas jamais neste espaço público, definitivamente regrado com a última deliberação seisentista de 1642, se lavaria roupa, legumes ou se daria de beber a gado. Posteriormente ao período seiscentista, no século XVIII e seguintes, com o surgimento dos primeiros prédios no lado poente do velho burgo, aproveitando a sinergia social que o terreiro do Toural criara como espaço público, Guimarães passa a explorar uma nova dinâmica sócio-económica assente em hábitos urbanos de usufruto do capital, com o surgimento dos primeiros comércios associados a funções distintas do anterior hábito rural da praça “nos assentos de pedra junto da muralha, em todo o cumprimento (…) nas lojas e no passeio do lajedo que corre junto delas, que se reúnem diariamente os tafuis e passeantes, para matarem as horas de ócio, conversando e inquirindo novidades” o que em conformidade com as águas esteticamente controladas possibilitava afirmar que o Toural “E’ o Chiado de Guimarães” (Braga, 1939, p. 151).

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Na sequência dessa nova dinâmica associada a esta praça, o chafariz é desmontado a 26 de Outubro de 1865. Sendo que a demolição total seria concluída em 1878 no âmbito da renovação da praça do Toural, onde se faria surgir um jardim cercado de grades, um coreto para a música e um marco fontanário em mármore (Meireles, 2000). Arrumado na Praça do Mercado, o chafariz é transladado e montado em 1891 no jardim da Igreja do Carmo. Mais tarde é ordenado a ocupar o seu local original no Toural (fig. 2) no âmbito dos planos de requalificação urbana promovidos aquando dos trabalhos urbanísticos de preparação de Guimarães para Capital Europeia da Cultura em 2012. Retorna assim ao seu local original a 5 de dezembro de 2011.

Figura 2 – Chafariz do Toural, 2015

3. Conclusão As deliberações seiscentistas municipais sobre o usufruto da água por via do chafariz do Toural empenhada pelos diversos vereadores que sucederam à Câmara traduzem o esforço Municipal em higienizar a cidade de Guimarães e em introduzir na população vimaranense estratégias de convivência baseadas em regramentos do espaço público. Em sintonia com as normativas da modernidade que se começavam a impor na época, procurava-se assim alterar os modos de viver o espaço público, em particular no que concerne ao uso de monumentos estéticos de teor hídrico, que foram replicados procurando-se expor a abundância e a limpidez da água nas principais praças das cidades. Em complementaridade às decisões municipais e posteriormente à função deliberativa, o surgimento de trabalhos de canalização doméstica e a deslocação gradual de atividades rurais para a periferia de Guimarães por via da função Administrativa Municipal, acabaria mais tarde por disseminar população e hábitos não compatíveis com a estratégia que se viria doravante a desenhar para o espaço urbano público de Guimarães.

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Em contexto de alterações socioeconómicas do desenvolvimento de capital no que diz respeito à secundarização e terceirização dos sectores económicos, o chafariz e a praça do Toural sofrem renovações urbanas albergando novas vivências de usufruto do espaço público.

4. Bibliografia Braga, A. V. (1953). Administração Seiscentista do Município Vimaranense. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães. Braga, A.V. (1939). Curiosidades de Guimarães IV Feiras e Mercados. Revista de Guimarães, 49 (3-4), 136-177. Campelo, Álvaro (2012). A Praça: espaço para a criatividade e sustentabilidade do poder. In A. Vieira & F. Costa & P. Remoaldo (Eds.). Cidades, criatividade(s) e sustentabilidade(s). Guimarães: Departamento de Geografia da Universidade do Minho, 11-20. Ferrão, B. & Afonso, J. F. (2000). A Evolução da Forma Urbana de Guimarães e a Criação do seu Património Edificado [online] Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães. Disponível em: http://www.cmguimaraes.pt/uploads/writer_file/document/799/470409.pdf [15 março de 2015]. Guimarães, J. G. O. (1903). Apontamentos para a história de Guimarães. Abastecimento de águas potáveis. Revista de Guimarães, 20, 1, 26-50; 20, 2, 71-85; 20, 3-4, 128-147. Hermano, A. (1902). Apontamentos para a História de Guimarães. Abastecimento de águas potáveis. Revista de Guimarães, 19, 27-54. Meireles, M. J. M. Q. (2000) O património urbano de Guimarães no contexto da idade contemporânea (Séc. XIXXX): permanências e alterações. Tese de Mestrado. Braga: Universidade do Minho. Teixeira, F., J. 2008. VII – O Chafariz do Toural [online]. Disponível em: http://www.oconquistador.com/noticia.asp?idEdicao=138&id=3175&idSeccao=751&Action=noticia [Acedido em 25 de março].

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