Do Estado ao indivíduo: os dilemas contemporâneos da segurança

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III Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 8 a 11 de Novembro de 2011 ISSN 1984-9265

DO ESTADO SEGURANÇA

AO

INDIVÍDUO:

OS

DILEMAS

CONTEMPORÂNEOS

DA

OKADO, Giovanni Hideki Chinaglia1. Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), bolsista pelo CNPq

Resumo: O propósito deste artigo é discorrer sobre o deslocamento do objeto referente da segurança do Estado para o indivíduo e os novos dilemas da segurança que isso acarreta. Trata-se de um texto argumentativo, conduzido por meio de pesquisa bibliográfica e revisão da literatura. À luz das três principais correntes teóricas dos Estudos de Segurança no pósGuerra Fria, procura-se verificar a ampliação e a reformulação do conceito de segurança e como o dilema da segurança clássico, cunhado por Herz, é transcendido e exprime outras situações no século XXI. Em primeiro lugar, apresenta-se, brevemente, o contexto internacional contemporâneo. Em segundo lugar, debate-se a concepção estadocêntrica da segurança e suas limitações para, na sequência, abordar a ampliação e a reformulação do conceito da Segurança, de modo que se identifiquem as origens da insegurança em nível individual. Por fim, delineiam-se dilemas da segurança contemporâneo e se conclui que a segurança deve permanecer como um dos principais eixos articuladores de debates teóricos neste novo milênio. Palavras-chave: Estado; indivíduo; Estudos de Segurança; novos dilemas da segurança.

1. Introdução

Por muito tempo, o Estado permaneceu como a referência central nos Estudos de Segurança. Desde a vitória do realismo no Primeiro Grande Debate das Relações Internacionais2, na década de 1930, e durante a Guerra Fria, predominou uma concepção estadocêntrica que enfatizava o poder – notadamente seu componente militar – e a sobrevivência, de tal sorte que a segurança do Estado se tornou a condição sine qua non a segurança do indivíduo não seria possível. Apenas em meados da década de 1970, no período da deténte, surgiram duas tentativas de transcender a centralidade do Estado e se aproximar de 1

Graduado em Relações Internacionais pela UNESP-Franca. Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/UNESP-Franca). Interesse nas áreas de Segurança e Defesa, Teoria das Relações Internacionais e Política Externa Brasileira. Email: [email protected]. 2

Para mais informações sobre o Primeiro Debate das Relações Internacionais, ver Jackson e Sørensen (2007), pp. 73-74.

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um enfoque mais individual: a segurança econômica e a segurança ecológica. No primeiro caso, procurou-se ampliar a segurança para além da perspectiva da sobrevivência, afinal, os indivíduos ansiavam por outros valores essenciais, como o bem-estar econômico. No segundo, julgou-se necessário incluir os riscos ambientais e os desequilíbrios biofísicos nos problemas de segurança (VILLA, 1999). A partir da década de 1980, os indivíduos adquiriram considerável importância nas teorias das Relações Internacionais e na política mundial, devido à emersão de temas que não se limitavam ao estrito controle estatal: as relações transnacionais, o meio ambiente, as questões culturais, o conceito de sociedade civil global, entre outros. Novos atores, como as instituições intergovernamentais, as organizações não-governamentais, os grupos étnicos e os movimentos religiosos, passaram a contracenar em um palco cuja predominância do Estado, até então, era praticamente absoluta e indiscutível, estabelecendo novas interações e desafios. Esse processo foi se intensificando cada vez mais, a ponto de Nye (2002), por exemplo, argumentar que as empresas transnacionais controlavam (e, certamente, ainda controlam) mais recursos econômicos que os Estados. No final da década de 1990, o autor constatou que pelo menos doze dessas empresas apresentavam vendas anuais superiores ao produto nacional bruto (PNB) de mais da metade dos países do mundo. As ruínas do “tempo de Vestfália”, na expressão de Zacher (2000), são mais nítidas e conduzem a reflexões incessantes sobre as atribuições dos Estados e dos indivíduos no domínio da política mundial. A questão de fundo, que permeia os debates teóricos contemporâneos nas Relações Internacionais, é se a diminuição da autonomia dos Estados pressupõe a superação deles como forma de organização político-social de todas as coletividades do globo em suas interações externas. Verifica-se o aprofundamento do que Badie (2001) classificou como a “hibridização do sistema internacional”, em que pese o os diferentes níveis de envolvimento dos indivíduos – redes transnacionais, comunidades étnicas e culturais, governos locais, regiões, Estados – na conformação de uma nova visão: uma governança não monopolizada pelo Estado. O conceito de “governança global” despontou ao longo dos anos 1990 e adquiriu maior consistência no novo milênio. O termo governança difere de governo, como demonstrou Rosenau (2000), e é possível presumir a existência da primeira sem o segundo. Ambos os termos referem-se à adoção de comportamentos e atividades orientados para a consecução de metas e para a ordenação, no entanto, enquanto o governo sugere que as

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atividades sejam sustentadas por uma autoridade formal, a governança pode ou não ser sustentada por essa autoridade. Czempiel (2000), por sua vez, define a governança como: “a capacidade de fazer coisas sem a competência legal para ordenar que elas sejam feitas. [...] Os governos exercem o domínio; a governança usa o poder.” (CZEMPIEL, 2000, p. 335)3. Isso é fundamental para as relações internacionais, cujo traço marcante é a anarquia. Os Estados e os indivíduos, por não se submeterem a uma autoridade formal e central no plano externo, procuram administrar, dirigir e regular suas interações recíprocas por meio do exercício da governança. Esse processo conferiu maior poder4 aos indivíduos, que passaram a desempenhar um papel mais relevante internacionalmente. As transformações e as novas dinâmicas nas relações internacionais provocaram mudanças significativas no pensamento estratégico e no plano teórico, sobretudo, no que diz respeito à segurança internacional. Particularmente, um ponto nevrálgico de discussão e controvérsia, a correlação entre a soberania estatal e a segurança, não é necessariamente novo. No início do século XX, em uma correspondência a Freud acerca das causas da guerra, Einstein já assinalava o importante desafio da atualidade: “a busca da segurança internacional envolve a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania, e é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.” (OBRAS, 1976, p. 242). A despeito das expectativas de superação do horizonte soberano dos Estados, governança global, a erosão da ordem vestfaliana e a maior participação dos indivíduos nas relações internacionais não atingiram uma federação de Estados kantiana, na qual reinaria a perpétua paz, ou uma sociedade mundial, a terceira possibilidade de ordem internacional para Bull. Ademais, com o desmantelamento da Guerra Fria no último quartel do século XX, ao contrário do que se pensava, o mundo não alcançou o fim da história, como defendeu 3

Biersteker (2009) pondera que o conceito de governança global é permissivo, invocado com muita frequência para aludir a situações diversas, sem ser definido precisamente ou cuidadosamente. Para ele, há cinco aspectos que devem ser considerados na governança global: 1) algum padrão de regularidade ou ordem em nível global; 2) ser propositivo e/ou orientado para alcançar objetivos; 3) um sistema de regras (formal ou informal); 4) deve se impor e requer aceitação; e 5) ser conduzido por agentes e, também, se autorregular. Para mais informações acerca do debate em torno do conceito, ver Kennedy (2005), Buchanan e Keohane (2006) e Overbeek et al. (2010). 4

Em linhas gerais, o poder é definido como a possibilidade de realização da própria vontade perante outrem. Essa definição consta em Weber (1984), Morgenthau (2002), Aron (2002) e até mesmo nos teóricos fundadores do institucionalismo neoliberal, Keohane e Nye (2001).

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Fukuyama (1995), em que o triunfo da democracia liberal levaria a uma ordem mais estável e pacífica. O anúncio de uma Nova Ordem Internacional, pelo presidente norte-americano George Bush, não passou de uma falsa promessa de paz e de um mero início de novos tempos, nos quais o mofo da história recente, evidenciado com a Guerra do Golfo, logo incomodaria: os conflitos interestatais não se encerraram. A ideia dos dividendos da paz pouco surtiu efeito. Além da dimensão estratégico-militar, no decorrer da década de 1990, as tragédias humanitárias, ocorridas na Ruanda, Somália e Bósnia, acentuaram os limites de uma abordagem estadocêntrica e a necessidade de ampliar o conceito de Segurança. Esse quadro de instabilidade e indefinições agravou-se com os atentados de 11 de setembro de 2001, o tom alarmista que o terrorismo engendrou e as seguidas incursões norte-americanas no Afeganistão e no Iraque. Do ponto de vista da estratégia5, a superação dos eixos definidores do conflito bipolar e as tensões que se seguiram ao 11/09 acrescentaram preocupações que excederam a iminência de uma conflagração bélica entre Estados rivais, enclausurada na lógica fatídica do dilema de segurança, em que a segurança de um Estado é alcançada em detrimento da insegurança dos demais Estados. A insegurança, atualmente, pode ser gerada por outras vias e não apenas quando a sobrevivência do Estado é ameaçada. Os indivíduos podem ser diretamente afetados por riscos e perigos que, muitas vezes, nem incidem sobre o Estado. Isso conduz a reflexão sobre o pensamento estratégico, em um momento de menor clareza para os objetivos da política, os meios disponíveis e o(s) adversário(s) a ser combatido(s), bem como desperta a atenção para uma questão: esses riscos e perigos, em nível mais individual, se constituem ou não como problemas de segurança? A resposta para esta pergunta depende de outras três questões que envolvem os debates teóricos contemporâneos sobre a segurança: o que é a segurança, como nós a estudamos e o que deve ser assegurado (KRAUSE; WILLIAMS, 1997, p. 67). De maneira geral, a Segurança tem sido abordada pela seguinte literatura no pós-Guerra Fria6: os Estudos Tradicionais de Segurança (Traditional Security Studies – TSS) mantêm o foco nos assuntos 5

Entende-se por estratégia “a arte da dialética das vontades que emprega a força para resolver o seu conflito”, cujo objetivo é alcançar “os objetivos fixados pela política, utilizando, de melhor maneira, o meio de que dispomos”. A estratégia deve conduzir à desintegração moral do adversário, a ponto de submetê-lo à decisão que se pretende impor (BEAUFRE, 1990, pp. 296-297). 6

Para uma síntese das diversas correntes teóricas que estudam a segurança, ver Smith (2006: 33-55) e Buzan e Hansen (2009, pp. 187-225).

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estratégico-militares, que garantem a sobrevivência do Estado; os abrangentes (wideners), representados pela Escola de Copenhague, tratam da ampliação da agenda de Segurança para outros setores, considerando outros objetos referentes; e, finalmente, os Estudos Críticos de Segurança (Critical Security Studies – CSS) adotam uma atitude de questionamento de toda a estrutura na qual a Segurança é conceituada e visam à emancipação. Essa literatura parte, respectivamente, de um enfoque estadocêntrico para outro individual. De estudos consolidados no nível estatal à adoção de um enfoque individual, entremeado pela construção social de objetos referentes, o fato é que os conceitos tradicionais de segurança já não condensam boa parte dos fenômenos do século XXI e as concepções mais recentes estão se consolidando. Permanece ainda uma grande zona cinzenta entre os Estudos Tradicionais de Segurança e as novas concepções, como a Escola de Copenhague e os Estudos Críticos de Segurança, e isso afeta a percepção e a legitimação das ameaças, o entendimento sobre o que deve ser ou não considerado assunto de Segurança e as medidas que precisam ser tomadas para resguardar o objeto referente que está em risco. Assim, surgem dilemas de segurança contemporâneos, não mais engendrados objetivamente – isto é, relacionados à projeção de poder e suas repercussões –, mas construídos por intermédio das definições que se conferem ao conceito de Segurança, variando de acordo com a percepção, os interesses, as expectativas e as ações dos agentes envolvidos na questão.

2. Sobre a tragédia e a amnésia da segurança: a anarquia, o Estado e o poder

Na literatura dos Estudos Tradicionais de Segurança, centrados nos estudos estratégico-militares e fundamentados pelas teorias das Relações Internacionais realista e neorrealista, a segurança diz respeito à preservação do Estado no sistema internacional anárquico. Para tanto, deve-se considerar as situações nas quais se julga imprescindível o uso da força e a faculdade de fazer a guerra. O entendimento do Estado, enquanto referência central, pressupõe a defesa de sua integridade territorial e soberania, as quais conservam o interesse da nação e o bem-estar da sociedade. Igualmente, verifica-se que a sobrevivência do Estado está diretamente ligada ao desenvolvimento de um poder militar7 condizente a esse 7

Sobre o poder militar, ver Paret (1989).

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objetivo, mesmo porque, sob a ótica global, outros Estados farão o mesmo 8. Por um lado, essa situação confere uma visão trágica para a segurança, na medida em que a lógica da anarquia, o caráter monolítico do Estado e a persecução egoística do poder levam ao tradicional dilema da segurança e assombram as relações internacionais com a perspectiva da guerra. Por outro, as definições apriorísticas de anarquia, Estado e poder desconsideram os processos sociais que as conformaram e, por conseguinte, que construíram a segurança e/ou a insegurança. Waltz definiu a anarquia, enquanto ausência de uma autoridade central, como o princípio ordenador do sistema internacional, que constrange, reciprocamente, os Estados em suas interações e força-os a buscar, no mínimo, a sobrevivência e, no máximo, a dominação do mundo. Em um domínio no qual “vale quase tudo” e predomina a lógica de “auto-ajuda” (self-help), à semelhança do estado de natureza descrito por Hobbes, os Estados podem contar apenas com si mesmos e devem equiparar minimamente suas capacidades (sobretudo, militares) com as capacidades dos demais. As capacidades estimam, em termos relacionais, o poder de que dispõem os Estados e suas respectivas posições no sistema internacional (WALTZ, 2002, p. 138-142). Para Lebow, a condição anárquica sustenta a seguinte a analogia: “a dog-eat-dog world in which states must convince others that they will behave like pit bulls if challenged” (LEBOW, 2003, p. 15). Concebida desta maneira, a anarquia obriga os Estados a se comportarem estritamente em função da política de poder, definida por Wight como “a política da força, ou seja, a condução das relações internacionais por intermédio da força ou da ameaça do uso da força, sem consideração pelo direito ou pela justiça” (WIGHT, 2002, p. 8). Esse comportamento compele-os ao emprego da definição schmittiana do “Político”, sinônima do estabelecimento da relação amigo-inimigo. A aplicação desse antagonismo orienta e justifica o uso da força: por um lado, coopera-se e se defende os amigos, por outro, dissuade-se e se combate os inimigos. Schmitt ainda considera que a oposição política é a mais intensa e extrema de todas; as demais oposições serão tanto mais políticas quanto mais se aproximar do extremo. Assim sendo, torna-se praticamente inevitável o confinamento dos Estados ao dilema da segurança e uma eventual arbitragem, pelas armas, de suas diferenças e disputas. 8

Para Morgenthau: “As nações se armam, quer porque desejam defender-se contra outras nações, quer porque querem atacá-las. Todas as nações politicamente ativas estão, por definição, empenhadas em uma competição pelo poder, da qual os armamentos constituem um elemento indispensável. Por esse motivo, elas têm de concentrar-se em conseguir o máximo de poderio possível – e isso vem a ser, em outras palavras, armar-se o melhor que puderem.” (MORGENTHAU, 2003, p. 734)

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O dilema da segurança foi cunhado por John Herz, na década de 1950, e passou a ser amplamente aplicado para descrever as relações interestatais na ausência de uma autoridade superior que seja responsável para garantir a segurança dos Estados. Em sua concepção original, que não é puramente estadocêntrica9, o termo significa: Wherever such anarchic society has existed – and it has existed in most periods of known history on some level – there has arisen what may be called the “security dilemma” of men, or groups, or their leaders. Groups or individuals living in such a constellation must be, and usually are, concerned about their security from being attacked, subjected, dominated, or annihilated by other groups and individuals. Striving to attain security from such attack, they are driven to acquire more and more power in order to escape the impact of the power of others. This, in turn, renders the others more insecure and compels them to prepare for the worst. Since none can ever feel entirely secure in such a world of competing units, power competition ensues, and the vicious circle of security and power accumulation is on. (HERZ, 1950, p. 157)

O dilema da segurança explica a necessidade para a qual Morgenthau chamou a atenção: os Estados devem se armar e projetar poder. Paradoxalmente, esse armamento e projeção acarretam o pretenso sentimento da segurança, em um jogo de soma-zero. Basta um Estado se armar e projetar poder para outros Estados fazerem o mesmo. O primeiro, ao buscar a própria segurança, provoca a insegurança nos últimos; estes, por sua vez, ao buscarem a segurança, fomentam a insegurança naquele. Percebe-se, ademais, que o dilema da segurança não apenas se apresenta como um dilema, cujas escolhas conduzem a mesma conseqüência, mas também como um processo dialético: a persecução da segurança por um Estado é também o motivo para a própria insegurança, ainda que os outros Estados sintam-se inseguros inicialmente. Para Jervis (2002), a lógica do dilema da segurança não é necessariamente perversa, uma vez que nem sempre causa a insegurança. Isso depende do desenvolvimento das capacidades ofensivas ou defensivas dos Estados e ao propósito a que elas servem. Se os Estados procuram desenvolver suas capacidades ofensivas, visando, por exemplo, conquistar algum território, então, a insegurança será fomentada. Mas, ao contrário, quando as capacidades defensivas são desenvolvidas, cuja preocupação fundamental é a manutenção do status quo, a busca pela segurança não induz a insegurança. Essa diferenciação é muito tênue,

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Aliás, há uma curiosidade sobre Herz. O autor, a exemplo de Carr, procurou demonstrar que o realismo e o idealismo não são mutuamente excludentes, e sim complementares, uma vez que o primeiro, em sua expressão mais pura, é impraticável quando desprovido de um projeto transformador da própria realidade. Esse aspecto, no entanto, é geralmente negligenciado, prevalecendo, no caso do dilema da segurança, apenas a dimensão realista.

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assim como, no passado, tentou-se definir quando as guerras eram justas10. Por sua vez, Mearsheimer (2001), em seu realismo ofensivo, pondera que é possível transcender o dilema da segurança. Dada a estrutura anárquica do sistema internacional, pode-se fazer muito pouco para melhorar esse dilema e os Estados devem procurar acumular o máximo de poder que conseguirem, até alcançarem a hegemonia e dominarem completamente o sistema. Somente assim eles se sentem seguro, muito embora esse comportamento conduza, inexoravelmente, a uma constante competição pela segurança e necessidade de reequilíbrio de poder. O sistema internacional anárquico, ao engendrar o dilema da segurança, configura um arranjo instável, imperfeito e facilmente rompível: o equilíbrio de poder. Bull pondera sobre isso, ao considerar que “o problema de sustentar um equilíbrio de poder não implica meramente a garantia de um equilíbrio militar, mas é também um problema de garantir que se acredite nesse equilíbrio” (BULL, 2002, p. 120). A característica central desse arranjo é a autorregulação, ou o que Wight classificou como a “aplicação da lei da autopreservação”, segundo a qual sempre que um Estado ou um grupo de Estados projeta poder, os demais vão procurar contrabalanceá-lo(s), tecendo alianças de caráter temporário. Com efeito, o equilíbrio de poder acaba se apresentando como um interregno entre a paz e a guerra; mais especificamente, concebe a paz somente como a ocasião de preparo para a guerra. Na década de 1990, Stephen Walt (1991) considerou ter ocorrido, desde o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o renascimento dos Estudos de Segurança. Para Walt, o foco desses estudos é fácil de ser identificado, o fenômeno da guerra, o qual demanda a investigação das condições em que o uso da força se torna provável e das políticas específicas adotadas pelos Estados para se prepararem, se prevenirem ou se engajarem em uma guerra. Não obstante o aspecto militar e estadocêntrico, Walt enfatizou a importância de se estabelecer uma agenda mais ampla para os Estudos de Segurança, que incorporasse desde a análise das políticas domésticas até o refinamento das teorias existentes11. Dessa forma, abriuse a possibilidade para um alargamento nos próprios Estudos Tradicionais de Segurança, embora isso não tenha significado a superação de uma visão trágica da segurança nem a 10 Uma síntese sobre a ideia de guerra justa e suas controvérsias pode ser encontra em Ávila e Rangel (2009).

11 É o caso, por exemplo, da contribuição de Mohammed Ayoob, com o realismo subalterno. Não basta considerar apenas as ameaças externas ao Estado, senão também as internas, decorrentes, sobretudo, do próprio esforço de construção desse Estado, sem o qual, a segurança não seria possível. Essa perspectiva é verificável no que Ayoob denominou de Estados do Terceiro Mundo, cujo grau de desenvolvimento e poder relativo nas relações internacionais são baixos. Em síntese, o argumento do autor é: “The state cannot replace society, but it must protect society. In the lack of political order, social and individual values are meaningless; they cannot be realized, nor can they be protected from assault, violence and chaos.” (AYOOB, 1997, p. 132). Anais do III Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp

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correção de suas ausências. Nessa concepção, o Estado bifronte perdia apenas a venda de sua face que se voltava para dentro. A face que seguiu descoberta continuou enxergando os Estados como bolas de bilhar que se tocavam e se repeliam, de acordo com a lógica da anarquia e da antinomia amigo-inimigo, em que os interesses nacionais eram mimetizados pelo estrito interesse da sobrevivência. A amnésia da segurança, por sua vez, diz respeito exatamente às ausências e negligências decorrentes de um enfoque puramente estadocêntrico para a própria segurança. Partindo do princípio ordenador do sistema internacional, Wendt (1992) argumenta que a anarquia é o que os Estados fazem dela. Não é algo simplesmente dado ou puramente exógeno, mas indissociável aos processos sociais que o constitui e varia de acordo com as identidades e interesses envolvidos nesse processo. Dessa maneira, o sistema de auto-ajuda e o dilema da segurança se apresentam como instituições da anarquia e não como características constitutivas dela. Os Estados é que determinam suas interações sob condição anárquica e não o oposto, a anarquia determinando o comportamento estatal: pit bulls resultam de uma construção social, não de uma imposição estrutural. Fundamentalmente, o que Wendt contesta é a premissa reificada de que o homem é externo ao que produz. Para Wendt (1995), os entendimentos, as expectativas e os conhecimentos compartilhados constituem os atores e a natureza de seus relacionamentos. O dilema de segurança, por exemplo, representa um arranjo em que os Estados desconfiam-se uns dos outros, presumindo as piores intenções de outrem, e definem seus interesses nos termos do sistema de auto-ajuda. Ademais, essa estrutura socialmente compartilhada de entendimentos, expectativas e conhecimentos confere significado para os recursos materiais. Nem sempre a projeção de poder por parte de um Estado é percebida como uma ameaça ou fonte de insegurança por outro Estado, o que pode ser ilustrado pela seguinte situação, de acordo com Wendt: 500 armas nucleares inglesas são menos ameaçadoras para os Estados Unidos do que 5 armas nucleares norte-coreanas (WENDT, 1995, p. 73). Tratar as relações internacionais por meio de processos sociais de aprendizagem e de construção das identidades, que levam em conta o compartilhamento de ideias e expectativas, evita a simplificação do pensamento realista e neorrealista e desqualifica o caráter iminente da guerra. Ken Booth acentua ainda mais o que aqui se denomina como amnésia da segurança, ao enumerar nove críticas ao realismo e, por extensão, ao neorrealismo. Dessas nove críticas citam-se três, que incidem diretamente na questão da segurança: 1) o realismo é uma teoria Anais do III Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp

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estática, desprovida de uma concepção de futuro, pois as dinâmicas da política internacional sempre se dão da mesma forma; 2) o realismo falha no teste da prática, pois os estudos de segurança derivados dele falharam ao julgar os altos níveis de insegurança no mundo e as terríveis condições em que vivem muitas pessoas; e 3) a agenda do realismo é estreita, já que a percepção dos interesses estatais está correlacionada com o interesse de maximizar a segurança do Estado e proteger seu modo de vida, negligenciando os múltiplos perigos que ameaçam toda a sociedade global (BOOTH, 2005, pp. 5-8). Por estas críticas de Booth, pode-se perceber que, quando os Estados lançam-se cegamente para concretizar os objetivos da política exterior – obter o poder, a glória ou o prestígio, na ponderação de Aron –, descuidam-se de sua dimensão doméstica e negligenciam, muitas vezes, a proteção de seus próprios cidadãos. Proteção essa que, na sabedoria moderna sobre a segurança, especificamente em Hobbes, decorre da legitimação paradoxal da autoridade soberana.

Por mais que o Estado tenha se apresentado como a condição

indispensável para assegurar a existência de uma sociedade, há um reconhecimento – na maioria das vezes, implícito – de que ele também se apresenta como uma fonte de insegurança, visto que a conservação da vida dos indivíduos depende de seu comportamento como o Leviatã, exercendo o poder despoticamente. Ao definir o que é e o que não é assunto de segurança, pode colocar em risco seus próprios cidadãos (WALKER, 1997, pp. 66-68). Na atualidade, não é mais possível restringir a segurança à dimensão estatal. Se assim se proceder, toda análise estará fadada a cair na trágica visão realista e neorrealista da segurança, cuja anarquia narra a crônica de um fim anunciado: a guerra. O dilema da segurança, no qual a luta pelo poder encontra sua maior expressão, alimenta desconfianças e encoraja uma paz armada. Essa visão trágica é acompanhada da amnésia da segurança, na medida em que muitos aspectos são desconsiderados em benefício da simplificação da realidade. Notadamente, há pouco espaço para o indivíduo e as preocupações que lhe afligem mais direta e cotidianamente. Preocupações essas que se acentuaram de maneira crescente após o término da Guerra Fria, ao passo que os conflitos interestatais diminuíram. Nesse sentido, Booth afirma que o pensamento realista é incapaz de calcular a complexidade dos desafios enfrentados pelos seres humanos em todas as partes do globo. Mais do que isso, o realismo opõe-se as suas ideias originais: “it is supposed to produce security, but it generates insecurity externally and combines with statism to legitimise insecurity internally.” (BOOTH, 2007, pp. 36). É preciso, portanto, repensar a segurança e insegurança.

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3. As origens da insegurança: um lugar desconfortável para o indivíduo

Investigar as origens da insegurança no mundo contemporâneo implica refletir sobre a ampliação e reformulação teóricas do conceito de segurança para além de sua dimensão estratégico-militar, que privilegia o Estado. Primeiramente, convém recordar que a própria definição do termo Segurança apresenta uma contradição intrínseca. Balzacq (2003-2004) considera-o como um oximoro, pois essa palavra, em sua raiz etimológica, abriga duas ideias conflitantes: sine (sem) e cura (cuidado). Ao invés de denotar um estado no qual não haja nada para se temer, a segurança desperta o temor exatamente pela falta de cuidado. Mais recentemente, outra expressão tem sido empregada para sublinhar essa controvérsia: “conceito essencialmente contestado” (essentially contested concept), que se tornou um aforismo amplamente difundido e compartilhado pelos estudiosos da temática. Booth considera-o como “conceito derivativo” – seguindo a lógica de Cox de que toda teoria é sempre algo para alguém ou para algum propósito –, que está imbuído de valores próprios e cujos resultados refletem o que, a priori, se entende por Segurança. O processo de alargamento conceitual teve início em 1985, com o surgimento Escola de Copenhague, sendo Barry Buzan e Ole Wæver seus maiores expoentes. Para os teóricos dessa vertente, a dimensão estratégico-militar é apenas uma das dimensões da segurança, que deveria englobar também os setores político, econômico, societal e ambiental. Cada um desses setores possui um objeto referente, que não é necessariamente o Estado, sobre o qual incide uma determinada ameaça e enseja uma aproximação com os indivíduos. Sucintamente, os setores da segurança e seus respectivos objetos referentes podem ser apresentados da seguinte maneira: 1) setor militar: a referência central é o Estado, cuja sobrevivência deve ser assegurada pelas suas Forças Armadas; 2) setor político: as ameaças são determinadas em termos dos princípios constitutivos do Estado (soberania e ideologia, por exemplo); 3) setor econômico: os objetos referentes são fixados com dificuldade, oscilando muitas vezes entre firmas e mercados, mas só podem ser considerados caso a sobrevivência do Estado ou da população esteja ameaçada; 4) setor societal: o objeto referente é constituído pelas identidades coletivas (nações, religiões, etc.); e 5) setor ambiental: o objeto referente

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varia, incorporando desde a sobrevivência de espécies individuais ou tipos de habitat, como a manutenção do clima do planeta e a biosfera (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998, pp. 22-23). Determinar os objetos referentes da segurança depende do processo de “securitização” (securitization), que define as ameaças incidentes sobre eles e prevê medidas extraordinárias para combatê-las. Para Buzan, Waever e Wilde, Segurança é “the move that takes politics beyond the established rules of the game and frames the issue either as a special kind of politics or as above politics” (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998, p. 23). Dessa maneira, a securitização pode ser entendida como a visão mais extrema da “politicização” (politicization), porque retira um determinado assunto da esfera da política e o coloca na esfera da segurança12. Além disso, a securitização é concebida como uma prática autoreferenciada, na medida em que se apresenta como um ato discursivo. Um assunto se torna “de segurança” não necessariamente porque há uma ameaça real, mas porque ele é apresentado como uma ameaça. Essa ameaça deve incidir diretamente contra a sobrevivência de um objeto referente, portanto, é uma ameaça existencial, e não qualquer ameaça, demandando medidas excepcionais às normas políticas vigentes. Em suma, a securitização é um movimento que desloca um assunto da normalidade da política para a excepcionalidade da segurança. A literatura dos Estudos Críticos de Segurança vai ainda mais longe, no sentido de repensar toda a estrutura na qual a segurança é conceituada e apresentar um enfoque centrado no indivíduo. Partindo do pressuposto de que, até os anos 1980, os Estudos de Segurança sempre tiveram respostas definidas para questões pré-definidas e que isso não pode mais ser aplicado atualmente, Booth (2005) argumenta que a reformulação desses estudos envolvem duas etapas: o aprofundamento (deepening) e o alargamento (broadening). A primeira consiste na proposição de: a) uma nova ontologia, com um referencial mais amplo, devendo ir além do Estado soberano e englobar desde o indivíduo até toda a humanidade; b) uma nova epistemologia que procure descobrir o “real” na política mundial, sem recorrer aos mesmos métodos das ciências naturais; e c) uma orientação para a práxis, relacionando idéias e ações de forma explicitamente emancipatórias, tendendo ao universalismo. A segunda etapa visa à ampliação da agenda de segurança, deixando de focar apenas o militar e politicizar os temas

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Williams (2003) compara o conceito de securitização, da Escola de Copenhague, com o atributo fundamental do soberano, segundo Schmitt: o caráter de decidir na exceção, e não de acordo com as regras usuais.

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de segurança ao invés de fazer o contrário, securitizar os temas excepcionais da política, como defende a Escola de Copenhague. De acordo com Booth (2007), o mundo não está trabalhando a favor da maioria de seus habitantes e a segurança transcende a perspectiva da sobrevivência (survival-plus); ela emancipa. A sobrevivência se restringe a ideia da existência, não garantindo necessariamente a eliminação das ameaças. Já a segurança conduz a uma escolha que advém da liberdade de ameaças e essa liberdade confere à segurança um valor instrumental. Por sua vez, a emancipação “seeks the securing of people from those oppressions that stop them carrying out what they would freely choose to do, compatible with the freedom of others. [...] Emancipation is the philosophy, theory, and politics of inventing humanity.” (BOOTH, 2007: 112). Assim, a emancipação dever ser entendida como o fim da segurança, e esta como o meio de emancipar. Os Estudos Críticos de Segurança, em grande medida, aproximam-se das contribuições de Amartya Sen (2000) para o desenvolvimento humano. Sen argumenta que o desenvolvimento é, na verdade, um processo de expansão das liberdades humanas. Em outros termos, é a eliminação de toda e qualquer forma de privação que impeça os indivíduos de fazerem as suas escolhas, por vontade própria, e delas se aproximar. Há também quem considere, como Krause (2003), que os Estudos Críticos de Segurança serviram como base para a formulação do conceito de “segurança humana”, cunhado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em seu Relatório de Desenvolvimento de 1994. Adotando uma abordagem centrada no indivíduo, esse relatório foca a vida e dignidade humanas, estabelece sete categorias da segurança (econômica, alimentar, saúde, ambiental, pessoal, comunidade e política) e enumera seis ameaças (crescimento populacional descontrolado, disparidade nas oportunidades econômicas, migração internacional excessiva, degradação ambiental, tráfico de drogas e terrorismo internacional) (UNDP, 1994, pp. 22-46). Após os apontamentos teóricos sobre a Escola de Copenhague e os Estudos Críticos de Segurança, procura-se investigar as origens da insegurança contemporânea, que afetam cada vez mais diretamente os indivíduos, sem colocar a sobrevivência do Estado em risco. É importante, neste ponto, retomar a discussão sobre o caráter das ameaças. De modo geral, a ameaça é definida como “uma representação, um sinal, uma disposição, gesto ou manifestação percebida como o anúncio de uma situação não desejada ou de risco para a existência de quem percebe” (SAINT-PIERRE, 2003, p. 24). É exatamente em decorrência da Anais do III Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp

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percepção que se procura prevenir da situação indesejada que a ameaça acarreta. Essa percepção, no entanto, é problemática, uma vez que “a ameaça se constitui em nós”, enquanto “o perigo tem existência própria” (SAINT-PIERE, 2010, p. 34). Quando o perigo se torna uma ameaça? Quem o faz tornar? Por que o torna? Estas questões fomentam a discussão sobre o que se considera como um assunto de segurança. O sentido existencial da ameaça não parece ser alvo de contestação, e sim a interpretação sobre se determinado assunto põe em risco a existência de um objeto referente e, se o faz, como proceder e que medidas devem ser tomadas. É possível que a interpretação de uma ameaça não corresponda ao entendimento do que Booth chamou de “real”. Campbell (1992), por exemplo, ilustra esse problema, ao considerar que, nos Estados Unidos, algumas questões são priorizadas em detrimento de outras que são mais preocupantes: “HIV infection is considered by many to be America‟s major public health issue, yet pneumonia and influenza, diabetes, suicide, and chronic liver disease were all (in 1987) individually responsible for many more deaths. Equally, an interpretation of danger has licensed a „war on (illegal) drugs‟ in the United States despite the fact that both the consumption level of, and the number of deaths which result from, licit drugs exceeds by a considerable order of magnitude that associated with illicit drugs. And „terrorism‟ is often cited as a major threat to national security even though its occurrence within the United States is minimal (seven incidents without fatalities in 1985 according to the FBI) and its contribution to international carnage minor.” (CAMPBELL, 1992, p. 2).

Este é um bom exemplo para se discutir as fontes de insegurança contemporâneas e a maneira pela qual se deveria lidar com elas. Booth aprofunda essa questão, ao argumentar que: “The problem of security is not in the meaning of the concept, but in the politcs of the meaning.” (BOOTH, 2007, p. 201). O emprego do conceito de Segurança, portanto, é indissociável dos propósitos políticos almejados, que nem sempre são os mais adequados à realidade em vigência, mas que se justificam pelo caráter da urgência e da excepcionalidade e legitimam a tomada de decisões, nem sempre acertada. Na atualidade, as guerras interestatais vêm decrescendo e os conflitos intraestatais, aumentando. Além disso, há uma miríade de fenômenos e processos que geram instabilidade, incerteza e inquietação, e sobre os quais o recurso às armas pouco, ou nada, contribui para promover a segurança. Particularmente, essas preocupações remontam o que se convencionou chamar de “novas ameaças”13, após o término dos eixos definidores da Guerra Fria, 13

Nota-se que o termo “novas ameaças” gera algumas controvérsias. Muitas das ameaças que emergiram na década de 1990 não eram novas, o que ocorreu é que velhos problemas – antes mitigados pelo embate entre as superpotências – reapareceram e se tornaram ameaçadores. Desses problemas, os únicos que se apresentam Anais do III Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp

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designando questões como tráfico de drogas, crime organizado transnacional, desastres ambientais, migrações, pobreza, fome, desigualdades econômicas, entre outros. Essas ameaças colocam muito mais os indivíduos em situação de risco do que os Estados. A perspectiva de Ulrich Beck é ainda mais alarmente. Beck pondera acerca da gravidade das ameaças que começaram a emergir após o desastre de Chernobyl, em 1986, considerando que elas passaram a afetar a todos indiscriminadamente, por meio do conceito “sociedade de risco”, e não se pode escapar delas. Diferente de outros tempos, a sociedade se tornou um lugar inseguro. Em uma perspectiva de certo modo catastrófica, Beck afirma que “a utopia da segurança continua sendo peculiarmente negativa e defensiva: nesse caso, já não se trata de alcançar efetivamente algo “bom”, mas tão somente de evitar o pior. [...] A meta da sociedade de risco é: todos devem ser poupados do veneno.” (BECK, 2010, pp. 59-60, grifo no original). A degradação contínua do meio ambiente, o uso de produtos químicos no cultivo de alimentos, a poluição, a possibilidade de um desastre nuclear e outros fatores são subprodutos do atual período, classificado por Beck como “modernidade tardia”, e se tornaram riscos ubíquos, inclusive presentes nos lares de qualquer família. Essa perspectiva de Beck, embora demonstre claramente a dimensão individual da insegurança, é difícil de ser mensurada em alguns aspectos, como verificar a gravidade dos problemas de intoxicação alimentar ou de exposição diária à radiação, o que também dificulta a aplicação de medidas acautelatórias. Convém retomar a assertiva de Booth, segundo a qual o mundo não está trabalhando para a maioria de seus habitantes, e o tratamento da violência após os atentados ao World Trade Center. Para Smith (2004), os eventos ocorridos em 11 de setembro de 2001 superestimaram as mortes decorrentes da violência política em detrimento das mortes causadas por fatores econômicos, de saúde ou naturais. Isso porque, do ponto de vista teórico, optou-se por definir que a violência é eminentemente política e que as mortes causadas por ela são mais relevantes do que as demais. Smith sustenta seu argumento, e também demonstra o mundo auto-disfuncional de Booth, por meio da apresentação de dados do Relatório de Desenvolvimento Humano de 2002, do PNUD. Como exemplo, citam-se o número de pessoas que vivem na extrema

como novos são o crime organizado transacional e o terrorismo em sua dimensão internacional (LÓPEZ, 2003, p. 89).

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pobreza e o número de subnutridos. De acordo com esse relatório, em 2002, 1,2 bilhões de pessoas viviam com menos de um dólar por dia; com menos de dois dólares diários, esse número se elevava para 2,8 bilhões. Estimou-se também que 815 milhões de pessoas estavam subnutridas. De maneira geral, as estimativas referentes à situação da pobreza permaneceram praticamente as mesmas em 2010, em conformidade com o Banco Mundial. Para o Programa das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), a população mundial subnutrida, também em 2010, é da ordem de 925 milhões14. Além dos problemas da pobreza e da subnutrição, ressalta-se uma questão para a qual, geralmente, pouca atenção é dada: o acesso a água potável e as condições de saneamento básico. O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2006, do PNUD, tratou exatamente desta temática. De acordo com as estimativas do documento, no início do século XXI, uma em cada cinco pessoas residentes nos países em desenvolvimento, algo próximo a 1,1 bilhão de pessoas, não tinha acesso à água potável, e aproximadamente 2,6 bilhões de pessoas não tinham qualquer condição de saneamento básico. A previsão é ainda mais grave para o ano de 2025: mais de 3 bilhões de pessoas poderão viver em países pressionados por causa dos recursos hídricos, sendo que catorze países deverão sofrer escassez efetiva. O relatório é categórico ao afirmar que a exclusão do acesso à água potável e ao saneamento destrói mais vidas do que conflitos armados ou ações terroristas (UNDP, 2006). O Relatório de Desenvolvimento Humano do ano de 2004 assinala um aspecto que também pouco é debatido na dimensão da segurança e que poderia ser inserido no setor societal15, conceituado pela Escola de Copenhague. Segundo o relatório, calcula-se que quase 900 milhões de pessoas – praticamente uma em cada sete pessoas do mundo – são discriminadas ou prejudicadas devido a sua identidade e acabam enfrentando a exclusão cultural, econômica e política (UNDP, 2004). Um estudo lançado pelo UN-HABITAT, em 2003, destaca, por sua vez, o aumento crescente das condições degradantes de moradia, na medida em que se constata uma tendência para a elevação do número de favelas. Em 2001, 924 milhões de pessoas, o que correspondia a 31,6% da população urbana mundial, viviam

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Estes dados estão disponíveis tanto no site do Banco Mundial (http://data.worldbank.org/topic/poverty) como no site da FAO (http://www.fao.org/hunger/en/). 15

O setor societal da segurança é, em geral, considerado como a maior contribuição da Escola de Copenhague. Esse conceito foi elaborado justamente em um contexto no qual as questões como a migração, na derrocada da Guerra Fria, e as identidades nacionais, com a desintegração da Iugoslávia, estavam em grande evidência.

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em favelas, e o prognóstico é que este número aumente para 2 bilhões até o ano de 2030 (UNHABITAT, 2003). O uso de drogas ilícitas é um problema igualmente sério. Além de sua correlação com o tráfico e conflitos armados, o uso de drogas é um dos principais fatores de risco em matéria de saúde global e nos dez países mais desenvolvidos. Em 2009, estimou-se que entre 172 e 250 milhões de pessoas eram usuárias, das quais entre 18 e 38 milhões tinham se tornado dependente (UNODC, 2010). Os problemas que foram acima listados demonstram que a insegurança, no mundo contemporâneo, afeta decisivamente a vida dos indivíduos. São situações de risco em que a existência está em jogo e, portanto, poderiam ser consideradas como ameaças e tratadas como um assunto de segurança. A sobrevivência do indivíduo, na esfera da segurança, não se limita às situações nas quais os Estados recorrem ou se lançam à sorte das armas; quando estas silenciam, a insegurança surge de outras formas, tão ameaçadoras e iminentes quanto à perspectiva da morte no campo de batalha. Em conformidade com os dados do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI)16, no ano de 2008, estavam ativos 16 dos principais conflitos armados em 15 regiões do globo. A questão é: que medidas devem ser adotadas? Por muito tempo, a segurança era guardada pelas armas; no século XXI, a segurança fica cada vez mais órfã das armas. Como ela é definida, quem vai guardá-la e de que maneira o fará são perguntas que conduzem a escolhas e a novos dilemas da segurança.

4. Os novos dilemas da segurança

O conceito de Herz foi muito válido para o período da Guerra Fria, enquanto o realismo e o neorrealismo dominavam o pensamento teórico nas Relações Internacionais e se apresentavam como profecias autorrealizáveis, cujas análises se justapunham à realidade internacional. Em um mundo concebido unicamente para a atuação dos Estados, no qual se enfatizava, objetivamente, o poder, a sobrevivência e a destruição do inimigo, o dilema da segurança se naturalizou no condomínio bipolar e se enraizou no imaginário dos policymakers das duas superpotências em confronto. A expressão maior desse dilema foi o emprego da doutrina militar da “destruição mútua assegurada” (MAD, na sigla em inglês), que, 16

As informações estão disponíveis no site do SIPRI (http://www.sipri.org/yearbook/2009/02/02A).

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fatalmente, conduziu ao equilíbrio do terror, ante a possibilidade do uso de armas nucleares. O desfecho cabal e trágico dessa história, em tese, seria a guerra. O preparo para uma guerra iminente, e que não aconteceu por fim, levou ao despreparo para lidar com outras situações de risco e perigo, solapadas pela lógica cega da autopreservação e cujo tratamento não se restringia ao emprego do componente militar. A natureza das ameaças se diversificou, não opondo simplesmente os Estados entre si, mas afetando seus cidadãos de maneira indiscriminada, independentemente das fronteiras nacionais. Para recordar Smith, no mundo contemporâneo, as mortes não decorrem exclusivamente da violência política, seja pela tragédia da própria política, quando passa a ser conduzida por meio da guerra, seja pela exclusão, seguindo a lógica schmittiana até mesmo em uma versão internalizada17. A pobreza, a fome, a falta de moradia, a falta de acesso à água potável, as condições inadequadas de saneamento básico, entre outras formas de privação, colocam em xeque à vida dos indivíduos no dia-a-dia, sem a necessidade que uma guerra o faça. Além disso, essas mesmas formas de privação podem levar a situações de instabilidade, fomentadoras de conflito inter ou intraestatais, na medida em que os Estados passem a competir por recursos estratégicos vitais ou os indivíduos reivindiquem melhorias de suas condições de vida. O armamento de um Estado, sob a alegação da segurança, perdeu grande parte de sua validade, uma vez que a proteção pelas armas deixaram de ser a condição praticamente absoluta para a segurança de seus cidadãos. Na contemporaneidade, o dilema da segurança deixou de ser definido simplesmente de maneira objetiva e restritiva, em que a ênfase recai sobre o componente estratégico-militar, e passou a ser definido a partir das próprias definições de Segurança, o que se entende pelo conceito, se a primazia reside no Estado ou no indivíduo e de que maneira ele se aplica. Além disso, essa definição não é neutra e tampouco prescinde da política, incorporando as identidades, os interesses e as expectativas dos agentes envolvidos nos processos sociais que apresentam e legitimam as ameaças que devem ser combatidas. A seguir, delineiam-se três novos dilemas para a segurança na contemporaneidade.

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O inimigo cada vez mais se encontra nos limites territoriais de um determinado Estado, que passa a empregar a relação antinômica internamente. Exemplo dessa situação é o tratamento das pessoas de origem árabe após o 11/09 nos Estados Unidos.

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4.1. Repensar a guerra

Inicialmente, se, para os Estudos Tradicionais de Segurança, a Segurança está relacionada, única e exclusivamente, à guerra, investiga-se as implicações do deslocamento do referente estatal para o referente individual no fenômeno bélico. Já se discorreu sobre a guerra como resultado da tragédia da política, guiada pela lógica cega da anarquia. Pretendese, agora, tratar da manifestação do fenômeno em si, com ênfase na formulação secular de Clausewitz, em que a guerra é um meio empregado para alcançar um objetivo político e nunca um fim em si mesma. Se assim o fosse, a guerra tomaria o lugar da política e seguiria suas próprias leis, à semelhança de um projétil que, uma vez lançado, não pode assumir uma direção diferente de sua pontaria prévia (CLAUSEWITZ, 1996, p. 26-27). A lição milenar de Sun-Tzu (2002) já alertava que a guerra era o reino da vida ou da morte e que dela dependia a conservação ou a ruína do império. Aron sentenciou que a guerra, mesmo contrária ao destino da humanidade, é inseparável de sua história (ARON, 2002, p. 454). Essa sentença de Aron soa como um alerta para todas as expectativas demasiadamente otimistas de paz perpétua e, ao mesmo tempo, recorda que as sociedades, hoje, guerreiam da mesma forma que nos primórdios da humanidade, em suas técnicas e métodos18. Consequentemente, isso estimula a reflexão sobre o fenômeno, suas origens e desdobramentos no cenário internacional contemporâneo, em que o reino da vida e da morte inclui menos a conservação ou a ruína dos impérios e mais a salvação ou a condenação dos indivíduos. No século XXI, a grande dúvida acerca das guerras é se sua natureza, precipuamente sua matriz clausewitizana, mudou: a guerra segue como a continuação da política por outros meios? Em um ambiente internacional de profundas transformações, sobretudo, caracterizado pela erosão da ordem vestfaliana e a maior participação dos indivíduos, o fenômeno bélico adquire novos contornos, que desafiam formulação secular de Clausewitz. O termo “novas guerras” foi cunhado, representando conflitos cuja destinação não é impor a vontade política ao inimigo. Daí decorre o dilema para a reflexão estratégica, identificado por Saint-Pierre (2010, p. 33): “ser fiel à tradicional definição de “guerra” e considerar a maior parte desses conflitos como “não guerras”, ou considerá-los guerras e abandonar a definição

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Sobre a evolução da guerra ao longo da história, ver Wright (1988).

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clausewitziana para cair numa polissêmica de espantos.”. Ademais, Saint-Pierre apresenta um panorama geral da segurança internacional neste milênio: “Em algumas dessas “guerras” [novas guerras], o objetivo não parece ser impor a vontade ao inimigo que se enfrenta nos campos de batalha alhures, mas manipular a vontade política do compatriota para dirimir um pleito eleitoral doméstico. Exércitos carregando estandartes da democracia, marchando sobre cadáveres cujas mentes e corações eles se propuseram a conquistar, provocam um resistência alimentada pelo ódio que mistura o invasor com os valores que diz representar. Campanhas militares, unilateralmente punitivas, banalizam a violência e atropelam o Direito Internacional. Culturas milenares são afrontadas por tropas estrangeiras, auxiliares e mercenárias que satisfariam a taxonomia maquiaveliana dos exércitos. Seres humanos assumem o destino de se transformar em vetor da morte, colocando sua vida a serviço do terror. Etnias, raças e religiões alimentam genocídios intraestatais. [...] Algumas intervenções militares para garantir a segurança no mundo são realizadas por empresas privadas. Se garantir a segurança é uma empresa, o negócio é a insegurança e a lógica da política, que se espera na guerra, é substituída pela do lucro.” (SAINT-PIERRE, 2010, p. 33)

A polissêmica espantosa resulta da dificuldade de se conceituar as guerras contemporâneas e as novas lógicas conflituosas que acometem o mundo. Esse desafio epistêmico tornou-se a regra, e não mais a exceção. Curiosamente, as mudanças que têm ocorrido nos últimos quarenta anos são tamanhas que exigem uma investigação mais acurada do senso-comum, como é o caso da diminuição das taxas de mortalidade durante o período de guerras. Conforme o Relatório de Segurança Humana de 2009, três fatores interrelacionados são responsáveis por essa diminuição: as guerras se tornaram menores e mais localizadas, as melhorias das condições de saúde pública contribuiu para salvar mais pessoas em tempos de conflito e o aumento e a efetividade da assistência humanitária. Isso reforça a assunção de que a existência dos indivíduos, não tanto os Estados, é ameaçada mais diretamente. Neste sentido, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2011, do Banco Mundial, intitulado “Conflito, segurança e desenvolvimento”, também destaca a problemática das guerras no século XXI, ao asseverar que os conflitos e a violência atuais são um problema de desenvolvimento e, portanto, não se enquadram no molde dos conflitos travados ao longo do século anterior. Em certa medida, isso explica porque são contínuos e repetidos, ao se verificar que 90% das guerras civis, hoje, ocorrem em países que já haviam sofrido uma guerra civil nos últimos 30 anos. Não obstante essas afirmativas e a avaliação de que, em todo o mundo, mais de 1,5 bilhões de pessoas vivem em Estados frágeis expostos a conflitos ou a violência criminal, persiste a imprecisão conceitual, uma vez que o próprio relatório considera que esses conflitos e essa violência não se encaixam nas categorias guerra e paz.

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No plano teórico, uma das tentativas de lidar com a atual complexidade da definição clausewitziana de guerra incorporando novas questões de segurança é a abordagem de YeeKuang Heng (2006). Para ele, a guerra não se desprendeu de um objetivo político claro, que, contemporaneamente, é o gerenciamento de riscos. Com a vigência da Guerra Fria, desenvolveu-se uma perspectiva de contenção reativa e baseada no combate de ameaças – no caso norte-americano, elas eram avaliadas pelas intenções soviéticas e medidas pelo poderio militar do rival; agora, passou-se para uma perspectiva de políticas preventivas e de cenários baseados em riscos mais ambíguos. É preciso, portanto, repensar a guerra em termos de gerenciamento proativo dos riscos, multifacetados e multidirecionais, abarcando conflitos étnicos, doenças infecciosas, colapso econômico, proliferação de armas, terrorismo, etc. Inevitavelmente, há que se questionar nessa concepção: lançar-se-á à sorte das armas para conter esses riscos? As intervenções humanitárias ou as missões de paz são consideradas guerras preventivas? Sobre o que ou quem é possível impor a vontade política? O deslocamento do referente estatal para o referente individual da segurança, com ameaças que afetam mais diretamente os indivíduos do que os Estados acarretam desafios complexos à teoria da guerra, particularmente a de Clausewitz. Nem mesmo o general prussiano, ao comparar a guerra como um verdadeiro camaleão, poderia imaginar que haveria tantas tentativas de adaptação a diversos casos ou a falta de uma reflexão comedida de sua obra-prima.

4.2. Soberania estatal, segurança do indivíduo

O desafio que Einstein escreveu a Freud, no início do século XX, permanece presente na realidade contemporânea: o alcance da segurança internacional apenas é possível à custa da renúncia incondicional da soberania de todas as nações. O horizonte da soberania estatal não impõe dificuldades apenas entre os Estados para o alcance da segurança internacional, senão também dificuldades no nível dos indivíduos, cuja insegurança pode decorrer de um movimento de exclusão e, simultaneamente, se converter em fator de instabilidade. Walker identifica esse processo de maneira muito acurada: “Claims about common security, collective security, or world security do little more than fudge the contradiction that is written right into the heart of modern politics: we Anais do III Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp

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can only become humans, or anything else, after we have given up our humanity, or any other attachments, to greater good of citizenship. Modern accounts of security are precisely about subjectivity, subjection, and conditions under which we have been constructed as subjects subject to subjection” (WALKER, 1997, p. 71)

Sob a proteção soberana do Estado-nação, os indivíduos renunciaram a uma concepção pluralística de humanidade comum em benefício da condição de cidadãos nacionais. Mais do que isso, ao render obediência a seus príncipes, os indivíduos abdicaram de parte de sua liberdade, na escolha observada por Bauman (2008) entre esta e a segurança. A relação entre ambas tendeu sempre ao equilíbrio: a liberdade de agir conforme os impulsos, seguindo os próprios instintos e desejos, foi parcialmente restringida pela necessidade de proteção contra três tipos de sofrimento: do corpo, do mundo externo e das relações com outras pessoas. A segurança permitiu aos indivíduos fazerem suas escolhas, em um universo de possibilidades limitadas, sem colocar em risco sua proteção (BAUMAN, 2008, pp. 57-58). Historicamente, entre cidadãos e suas respectivas bandeiras, estabeleceram-se as relações de alteridade “Nós x Eles”, de tal maneira que um não poderia interferir no território do outro. Na prática, não foi o que ocorreu. Krasner (2001) considerou a soberania como um “hipocrisia organizada”, haja vista que sua violação passou a ser encarada como uma normalidade, e não mais como uma excepcionalidade. Conquanto servisse como um princípio organizador das relações internacionais, a violação da soberania baseou-se no cálculo de interesses materiais ou de ideias e foi tanto aceita quanto compelida, por meio de regimes e organizações internacionais19, acordos, consenso ou intervenções militares. Com efeito, a soberania perdeu seu caráter inviolável e exclusivista, cedendo espaço para os mecanismos de governança global. A hipócrita noção de soberania, adjetivo mais acentuado no século XXI, enfrenta dificuldades para continuar organizando as relações internacionais, particularmente quando a sobrevivência de indivíduos de um determinado Estado está exposta a riscos, decorrentes da ameaça dos próprios governos, conflitos civis ou tragédias humanitárias, como a catástrofes ambientais ou limpeza étnica. Ao longo das últimas três décadas, procuraram-se razões para legitimar a intervenção em países que apresentavam tais situações, a começar pelo “dever de 19

Os regimes internacionais não constituem necessariamente organizações internacionais. De acordo com Krasner (1995), um regime internacional é composto por um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão em torno dos quais as expectativas do atores convergem em uma determinada área das relações internacionais. As organizações são formadas por meio da associação voluntária de Estados, estabelecidas por um acordo internacional e detêm personalidade jurídica (Herz e Hoffman, 2004).

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ingerência” nos anos 1980, a “intervenção humanitária” nos anos 1990 e a “responsabilidade de proteger” nos anos 2000. Tendo como base o indivíduo como objeto referente da Segurança, a comunidade internacional deveria garantir-lhes o alívio de sofrimentos provocados pelo ambiente de risco e lhes assegurar uma vida digna20. A despeito dos avanços na construção do argumento humanitário, o sacrifício de parte da soberania estatal, em um templo vestfaliano cada vez mais arruinado, ainda gera relutância e suspicácias. A promoção da segurança, não apenas para garantir a sobrevivência, mas como um meio de emancipação dos indivíduos, como preveem os Estudos Críticos de Segurança, é colocada em xeque quando abre a possibilidade de intervenção em outro país. Isso pode ser verificado nas missões de paz, que acarretam um paradoxo intrínseco, como ressalta: “existe uma contradição entre a necessidade de se prover a segurança humana e o respeito aos preceitos de soberania nacional, autodeterminação dos povos e não intervenção em assuntos internos.” (ROCHA, 2010, p. 119). Enquanto persiste este dilema, entre a soberania do Estado e a segurança dos indivíduos, a sociedade civil transnacional, composta por ONGs e movimentos sociais já se articula para prover a segurança de cidadãos em países que enfrentam graves ameaças à sobrevivência, dividindo a função que, pela ordem de Vestfália, é inerente aos Estados (VILLA, 2008)21.

4.3. Securitização da política ou politicização da segurança?

Este dilema é fundamental para se pensar qual o tratamento que deve ser dado para a Segurança: exceção ou normalidade. Por um lado, ao se considerar a Segurança como um estado excepcional, que transgride as normas políticas vigentes, então, tornam-se necessárias medidas também excepcionais para lidar com os problemas afeitos à área. Por outro, é possível tratar a Segurança como um estado excepcional, no entanto, ao invés de securitizá-lo, procurar incorporá-la às normas políticas vigentes. Essa diferença de tratamento decorre da adoção de uma matriz teórica abrangente ou de uma crítica. 20 Para mais informações, ver Fonseca Jr. (2010). 21 Nota-se que o conceito de “dever de ingerência” surgiu com a iniciativa dos Médicos sem Fronteiras de atuar em países que passavam por emergências humanitárias.

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A reflexão sobre a Segurança, à luz do tratamento de excepcionalidade ou normalidade, está relacionada com o deslocamento das ameaças de um nível estatal para outro individual, envolvendo precipuamente o debate sobre as “novas ameaças”. Pobreza, fome, desigualdade social, acesso à água potável, perseguição étnica, moradia, violência urbana, déficit democrático, migrações, danos ambientais, entre outras ameaças que incidem diretamente contra os indivíduos devem ser consideradas pela exceção ou pela normalidade? Este é um ponto bastante delicado. Primeiramente, essas ameaças, muitas vezes, não colocam em risco a sobrevivência dos Estados, tornando-os, em geral, negligente, pois superestimam as ameaças militares em detrimento das não-militares. Em segundo lugar, sob a alegação de que os indivíduos, em algum país do mundo, sofrem privações que lhes ameacem a vida, certos Estados podem intervir, apresentando essa situação como um problema de segurança que justifica a tomada de medidas não previstas pelas práticas políticas convencionais. Atrás do escudo do argumento humanitário, pode-se conduzir um movimento de securitização, que será submetido a uma audiência legítima – ONU, OEA, União Europeia, etc. –, cuja função é aprovar ou não o tema como um problema de Segurança. Em tese, a decisão dessa audiência deve ser obedecida; na prática, nem sempre isso ocorre, como demonstrou a intervenção norte-americana no Iraque, em 2003. A securitização, dessa forma, estaria a serviço dos devaneios das grandes potências, que se enxergam como gendarmes globais, despertando a desconfiança dos países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo. Em terceiro lugar, pode-se assumir que o melhor tratamento para as “novas ameaças” é conduzi-las no marco convencional das políticas adotadas. Por um lado, isso geraria mais previsibilidade, ao evitar que se evoquem medidas extraordinárias instantaneamente e que se releguem a importância de princípios, normas e regras vigentes. Ressalta-se que o tratamento no marco usual da política não é necessariamente estático e nem desconsidera a urgência de situações em que a vida dos indivíduos encontra-se em risco, mas que, necessariamente, a Segurança deve ser tratada e refletida por mecanismos previstos, cabendo reformulá-los, se necessário. Por outro, o grande problema é que as questões de Segurança podem ser expandidas em demasia, passando a tratar qualquer questão como uma questão de Segurança, sem parâmetros que estabeleçam um limite entre o que diz respeito e o que não diz à Segurança. Além disso, há um problema de ordem prática, pois é possível confundir essas

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questões de Segurança com assuntos de política pública ou de qualquer outra política, cujas medidas e ações já acordadas não necessariamente se aplicariam a esses problemas.

5. Considerações finais

Um antigo ditado afirma que “os tempos mudam, e nós mudamos com eles”. No século XXI, a intensificação das mudanças de tempos nem sempre é acompanhada pela reflexão teórica que lhe é devida. Nas relações internacionais, as mudanças se manifestam de maneira demasiadamente dinâmica e complexa, cuja expressão maior é o desgaste do Estado como ator monolítico e central e o crescimento da atuação dos indivíduos na política mundial. Isso trouxe desafios hercúleos para os arcabouços conceituais consolidados e abriu espaço para novas contribuições, com a finalidade de melhor compreender a realidade em curso. Na esfera da segurança internacional, o deslocamento do objeto referente da Segurança do Estado para o indivíduo, no âmago das principais transformações globais, estendeu a discussão do conceito de Segurança para muito além das armas e do medo e remonta, em certa medida, sua raiz etimológica, relacionada à falta de cuidado: há temas sensíveis que são deixados de lado em benefício da dimensão estratégico-militar. Ademais, a Segurança não se restringe apenas à sobrevivência, mas também à perspectiva de emancipação. O alargamento conceitual da Segurança, bem como a tentativa de reformulá-la, possibilitou a investigação de novos horizontes de pesquisa, que procurou acompanhar a mudança de tempos do novo milênio. A visão trágica da Segurança e sua amnésia captam apenas uma parte da realidade atual: quando a estrutura de conhecimento compartilhado entre os atores conduzem a perseguição egoística do poder, a necessidade de equilibrá-lo, a corrida

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armamentista e o desfecho cabal da guerra. Nessa situação, a lógica da anarquia implica um dilema de segurança tradicional, no qual o Estado é o referente central. À luz dos estudos da Escola de Copenhague, essa situação poderia compreendida nos setores militar e político. Na atualidade, a insegurança não provém necessariamente do reino da vida e da morte que se interpõe entre os Estados; ela está mais localizada no nível individual, na medida em que os seres humanos, por todo o globo, são afetados por ameaças que incidem diretamente contra sua sobrevivência. Como argumenta Booth, a política de significado do conceito de Segurança, sempre derivativa, esconde o “real” do mundo e superestima algumas questões, percebidas como mais vitais, do que outras, mais graves, porém, negligenciadas. Isso porque a Segurança serve a interesses, identidades e expectativas dos agentes que a definem e atuam em função dela. À semelhança dos contrastes que apresentou Campbell sobre os problemas norte-americanos no início da década de 1990, os dados dos documentos apresentados demonstram que, mesmo com a diminuição dos conflitos armados e a nova lógica deles, há problemas de escassez, como no caso da subnutrição e do acesso à água potável, que imprimem a incerteza e elementos de instabilidade não apenas nos países afetados. Esses problemas podem transbordar para outros países – inclusive de maneira discreta, com as migrações em massa – e gerar conflitos armados. Com as mudanças de tempos e a ampliação dos Estudos de Segurança, começou-se a verificar outras situações que também geram dilemas para a segurança, não mais contemplados pela tradicional concepção realista. Neste artigo, enumeram-se três desses dilemas: considerar ou não como guerras as realidades diversas de conflito no século XXI, a contraposição entre a soberania estatal e a segurança do indivíduo e a securitização da política vs. a politicização da segurança. A definição do conceito de Segurança induz a escolhas para o tratamento desses dilemas: é possível conceber a guerra como um ato cujo objetivo não é impor a vontade política ao adversário, muitas vezes, indefinido? Em que medida a soberania estatal se contrapõe a segurança do indivíduo? É preciso tratar a Segurança por medidas extraordinárias ou pelo marco político vigente? O deslocamento do objeto referente da Segurança do Estado para o indivíduo conduz a novos dilemas para a segurança internacional. Antigas preocupações coexistem com novas, do mesmo modo que antigos métodos convivem com novos. Muitas vezes, essas preocupações e esses métodos acabam se entrecruzando. Lida-se com as novas preocupações à luz de métodos antigos, ou se procura repensar as preocupações antigas pelos novos Anais do III Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp

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métodos. A securitização acaba sendo confundida com uma excessiva militarização, a segurança do indivíduo permanece atrelada à segurança do Estado, a guerra é entendida como um projétil lançado, entre outras questões, são exemplos das complexidades conceituais que esse deslocamento engendra. No início da década de 1990, Orozco (2005-2006) afirmou que a Segurança se converteu em um eixo articulador dos debates em Relações Internacionais e isso é algo que persiste nesta mudança de tempos: a Segurança continua central para os estudos na área, demandando programas de investigação científica distintos e inovadores, que possam oferecer respostas ou avançar na busca por soluções dos atuais dilemas da segurança, compreendendo melhor a realidade e orientando a prática.

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