DO IMPERCEPTÍVEL (da ternura de Chris Marker por nosso tempo)

June 8, 2017 | Autor: Alberto Pucheu | Categoria: Cinema, Chris Marker, Arte Contemporanea, Fotografia, Mídia
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DO IMPERCEPTÍVEL
(da ternura de chris marker por nosso tempo
http://revistacult.uol.com.br/home/2016/01/do-imperceptivel/)

Em depoimento escrito em 2009 sobre sua exposição de fotografias Quelle heure est-elle? no catálogo da mesma no respectivo ano, em que, com máquinas disfarçadas em relógios de pulso e outros aparatos para que não fosse percebido no ato de seu trabalho, com uma máquina-relógio-fotográfica tornada invisível, dissimulada, o cineasta e fotógrafo Chris Marker fotografou, de 2004 a 2008, rostos de mulheres no metrô parisiense, mostrando que os caminhos do fazer artístico hoje são bem diferentes dos do fazer jornalístico, contrapondo um a outro: "Os jornais adoram fotografar as pessoas (de preferência, celebridades) de forma inusitada, se possível com uma expressão estranha e ridícula, coisa que pode acontecer mecanicamente, independente da nossa intenção. Quando eu era criança, o então presidente francês Poincaré visitou, sob um sol escaldante, os túmulos dos soldados da primeira guerra mundial, e a luz muito forte fez aparecer no seu rosto, por um décimo de segundo, uma expressão de ricto que na verdade deveria ser outra bem mais tênue. Uma fotografia capturou aquele momento, e, depois disso, durante toda sua vida, ele foi chamado por seus opositores políticos de 'o homem que dá gargalhadas em cemitérios'. Talvez tenha sido essa memória de infância que me ajudou a ter uma curiosidade desconcertante por imagens. Assim meu objetivo, ao colher esses rostos, é exatamente - assim espero - o contrário ao dos jornais. Eu tento dar a eles seu melhor momento, isso pode ser imperceptível no correr do tempo, às vezes 1/50 de um segundo faz com que eles sejam mais verdadeiros do que são".
Por um lado, os jornais com seus paparazzos ambicionando a imagem privilegiada das celebridades, fotografadas de modo a mostrar, de preferência, algo que possa gerar uma fofoca, uma mentira, uma ridicularização, uma despotencialização da pessoa; por outro lado, contrariamente aos jornais, como uma crítica à imagem espetacularizada, enquanto um "paparazzo do bem", seu próprio desejo ou projeto de fotógrafo de arte de fotografar a pessoa comum, a pessoa qualquer, em seu trânsito diário, em um desses lugares – o metrô – em que, a princípio, não se faz nenhuma experiência (se é que hoje se a faz em algum lugar...) senão a (falta) de, em meio a um aglomerado de gente, na pressa da chegada, esperar o aviso da estação almejada. Nesse local mais imprevisto de se conseguir uma singularidade e intensidade maiores, o fotógrafo se coloca, como desafio, mostrando que as intensidades sempre se fazem, mesmo que imperceptíveis, demandando um olhar apto a ver o imperceptível que habitualmente não se consegue alcançar. O fotógrafo retira então o "melhor momento" da pessoa comum em sua rotina, do passageiro qualquer em seu cotidiano, para lhe devolver e a todos nós, o momento da manifestação de uma expressão que, de seu rosto, seria imperceptível para nossas percepções, mas que pode ser captada pelo microinstante (1/50s) do clique da máquina fotográfica (no caso, da máquina-relógio-fotográfica), pelo microinstante de sua temporalidade igualmente imperceptível para nós sem a fotografia, por uma divisão extremada do tempo com o qual estamos habituados a lidar, por uma divisão que, ao recortá-lo e cindi-lo, a máquina separa o tempo de si mesmo interpretando por si o aspecto visual que, penetrando-o, apreende com a intervenção do fotógrafo e através do jogo das lentes.
Como fotografar um pensamento que atravessa o rosto de uma usuária qualquer do metrô que não se sabe nem se vê fotografada, ou, talvez ainda, talvez melhor, talvez bem melhor ainda, como fotografar, em um rosto, um instante anterior ou posterior a qualquer pensamento, um instante sem pensamento que corta um rosto pontualmente desprovido de palavras? Como fotografar essa apreensão do real que, em 1924, em "On kinopravda", Vertov chamou de a "impossível possibilidade"? Há, em todo caso, um agenciamento homem-câmera, olho-câmera, dedo-câmera, sendo a câmera um olho suplementar, protético, que traz à tona o tempo dividido ao extremo e, com ele, o imprevisto de uma vida, uma vida não prevista nem anteriormente vista, o "melhor momento" do rosto fotografado. Não à toa, o tempo, já no título da exposição e no relógio que disfarçava a máquina fotográfica, o tempo, digo, esse 1/50s do aparato, capta o que, incaptável, só ele pode captar. Se o tempo é fraturado, fraturado é igualmente o título, pois, se o esperado em francês fosse perguntar Quelle heure est-il, com os rostos femininos, quebra-se igualmente o habitual da frase, quebra-se o (tempo) masculino, colocando, no lugar do il, o elle feminino.



Dos rostos femininos, em uma ínfima temporalidade que escapa tanto ao cronológico, cindindo-o, quanto à percepção humana, abrindo-a para além de suas possibilidades naturais, trata-se, então, de captar o imperceptível, que se apresenta como capaz de mostrar o que o fotógrafo-cineasta chama de uma "verdade" maior do que a que nos rostos se consegue flagrar com a exclusividade do olhar, um documento do existente impossível de se captar com a exclusividade do olho nu, uma "verdade" maior do que a que se atualiza em um rosto para quem o olha sem a prótese da máquina fotográfica, "roubando", do rosto, uma irrupção errática e enfática, atemporal, de sua extrema potência. Com a máquina, com a poesia da máquina fotográfica, com uma sensação maquínica, com certa emancipação da máquina ou, ao menos, com a emancipação de suas lentes e de sua temporalidade maquínica, trata-se de captar o sensível que o olho não vê, a negação do cronológico hegemônico, dando-nos uma nova percepção e uma nova sensação do que vemos. A máquina lida como uma microcronia que capta um imperceptível do real, alavancando, pelo que foi percebido pelo olho-câmera, a dinâmica do real enquanto imperceptível sempre aberto a novas percepções.
Enquanto, de modo geral, a fotografia jornalística quer fixar uma imagem falsa, burladora da real intenção do fotografado e ridicularizante ou despotencializadora da celebridade que foi objeto da imagem, a ponto de, não importando sua mesquinhez ética, fixar o que, apesar de tudo, não pode deixar de ser percebido e repetido enquanto o mesmo para todos, na fotografia de arte, trata-se de fotografar o imperceptível a olhos nus, ofertando, pela máquina, o imperceptível à percepção de todos nós, de modo que a imagem faça ver o mais sutil e expressivo no mais insignificante, de modo que o imperceptível seja o "melhor momento", o "melhor momento" da mulher fotografada, o que condensa uma verdade maior do rosto do que o rosto habitualmente revela para si mesmo e para quem o vê, o que condensa uma verdade dos rostos mais conforme aos seus "inner selves", como se, nessas fotografias, tais pessoas se mostrassem subitamente mais abertas ao que quer que seja que de fato são, potencializando-as. Vivendo um momento em que a preponderância ou mesmo a obrigatoriedade do acúmulo das imagens midiáticas se colocam intermediando nossa relação com o outro e com o real e, consequentemente, afetando nossas percepções naquilo que as despontecializa despotencializando igualmente os laços sociais, a questão de Chris Marker parece ser se, nesse mundo manipulado pelo conluio entre mídia, economia e poderes institucionalizados que organizam, determinando-os, nossos corpos e pensamentos coletivos, é possível ir além da midiocracia, recuperando imagens potencializadoras do qualquer e do comum.
O que pode uma imagem? O que pode uma imagem de um rosto? O que pode um imperceptível de um rosto em uma imagem? O que pode um "melhor momento", um momento imperceptível, de um rosto, no caso, de um rosto feminino? Essas perguntas parecem obsedar Chris Marker, que, praticamente trinta anos antes de Quelle heure est-elle, começava o filme La jetée fazendo o personagem narrador dizer: "Essa é a história de um homem marcado por uma imagem da infância", sublinhando a frase ao projetá-la também por escrito na tela, para logo em seguida revelar que tal imagem é a de um rosto de mulher. A intensidade do imperceptível do "melhor momento" de tal rosto pode ser constatada pela frase em que o personagem, ainda no início do filme, nos faz escutar: "Esse rosto, a única imagem do tempo de paz a chegar ao tempo de guerra. Ele se perguntou por muito tempo se havia realmente isto ou se havia criado esse momento de doçura para protegê-lo do momento de loucura que estava por vir". Em tempos de guerra e de loucura, conseguir uma imagem que, mesmo que se impossível de saber se ela realmente existira ou se é uma invenção, mesmo que se impossível de transformar o tempo em que vivemos, possa, ao menos, trazer a cada um de nós um pouco de proteção e de ternura.





MARKER, Chris. "Numa estação de metrô". Tradução de Leonardo Gandolfi. Revista Grampo Canoa, número 1, outubro de 2015. Editora Luna Parque.


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