Do isolamento à solidão: a novidade totalitária segundo o pensamento de Hannah Arendt

October 3, 2017 | Autor: Adelino Ferreira | Categoria: Totalitarianism, Hannah Arendt
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Do isolamento à solidão: a novidade totalitária segundo o pensamento de Hannah Arendt From isolation to loneliness: The totalitarian novelty according to Hannah Arendt Adelino Ferreira1

Resumo: Hannah Arendt, em sua obra Origens do Totalitarismo, defende a ideia de que o fenômeno do domínio total – em suas vertentes nazista e stalinista – é uma novidade para a qual a teoria política não encontrara subsídios teóricos adequados para a análise. O presente trabalho pretende explicitar as diferenças essenciais, colocadas pela autora, entre a tirania e o totalitarismo, no intuito de demonstrar como este último além de destruir a esfera pública, investe também contra a vida privada, radicalizando o fenômeno do isolamento e introduzindo a solidão como experiência radical da existência humana. Transformar o isolamento em solidão é próprio de um domínio que, destruindo as relações interpessoais, quer acabar até mesmo com o dois-em-um próprio do pensamento que traz consigo a espontaneidade e a pluralidade. Palavras-chave: Isolamento. Solidão. Totalitarismo. Ideologia. Terror. Abstract: Hannah Arendt, in her book The Origins of Totalitarianism, claims that the phenomenon of total control - Nazism and Stalinism - is new to the political theory, which had not found suitable theoretical support for the analysis. This paper aims to clarify the essential differences, raised by the author, between tyranny and totalitarianism in order to demonstrate how this latest apart from destroying the public sphere, also invests against privacy, radicalizing the phenomenon of isolation and loneliness introducing as a radical experience of human existence. Transforming the isolation in loneliness is characteristic of a domination that destroys interpersonal relationships and even ends with the two-in-one characteristic of thinking that brings spontaneity and plurality. Keywords: Isolation. Loneliness. Totalitarianism. Ideology. Terror.

*** Introdução

O Totalitarismo foi um dos grandes temas de discussão do século XX e permanece até hoje como foco da especulação não só política, mas também filosófica, literária e social. A tragédia dos campos de concentração nazistas, os expurgos soviéticos, bem como os horrores da segunda guerra, são temas que estão longe de serem esgotados ainda hoje. Diversos filmes, documentários, obras literárias e ensaios 1

Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ. Orientador: Prof. Dr. José Luiz de Oliveira (DFIME/UFSJ). Bolsista: PET-Filosofia/UFSJ - MEC/SESu/Capes (2011-2013) / FAPEMIG (2014-2015). E-mail: [email protected]

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filosóficos se esmeraram na tentativa de compreender como foram possíveis tais barbaridades em um mundo dito civilizado e evoluído. Dentre os diversos pensadores que dedicaram seus esforços na tentativa de compreender o fenômeno totalitário, encontra-se Hannah Arendt (1906-1975). Arendt nasceu em uma família judia e sofreu dos horrores do nazismo, sendo obrigada a fugir da Alemanha de Hitler. Refugiada nos Estados Unidos, dedicou seu pensamento a analisar o fenômeno totalitário tanto sob o viés sociopolítico quanto filosófico. Em Origens do Totalitarismo, sua obra mais importante acerca do tema, ela aborda alguns aspectos que guiam a reflexão atual sobre este evento radical que marcou a história do século XX. É importante aqui, à guisa de introdução, explicitar que, para Arendt, só existiram dois governos que podem ser chamados de totalitários: o de Hitler, na Alemanha, e o de Stálin, na Rússia. Embora entre estes dois governos haja importantes diferenças, a autora entende que, substancialmente, ambos partilham de características comuns que permitem que sejam considerados totalitários.

O Totalitarismo como novidade

Ao tratar do Totalitarismo, o pensamento arendtiano será todo voltado para a noção de novidade. No prefácio da terceira parte da obra Origens do Totalitarismo, Arendt busca analisar o domínio total de uma forma verdadeiramente nova. Para ela, o fenômeno totalitário é um evento para o qual a teoria política não consegue encontrar elementos para basear sua análise. Já na primeira parte do referido prefácio, ela afirma que: O que é importante em nosso contexto é que o governo totalitário é diferente das tiranias e ditaduras; a distinção entre eles não é de modo algum uma questão acadêmica que possa ser deixada, sem riscos, ao cuidado dos “teóricos”, porque o domínio total é a única forma de governo com a qual não é possível coexistir. (ARENDT, 2006, p. 343).

Daí se percebe que não é possível uma correlação entre totalitarismo e qualquer outra forma de governo. Não são possíveis paralelos para um fenômeno que, segundo o pensamento arendtiano, se constitui como novidade. Para explicitar melhor esta noção, é de grande auxílio o pensamento de Nádia Souki em sua obra intitulada Hannah Arendt e a Banalidade do Mal. No segundo capítulo, denominado A Novidade Totalitária, Souki Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

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busca entender o que, para Arendt, significa dizer que o totalitarismo é um fenômeno ímpar para a história política do mundo. Partindo do conceito de novidade, noção fundamental no pensamento de Arendt, ela comenta que: Tudo o que sabemos do totalitarismo prova uma originalidade no horror, sem que nenhum paralelo histórico aproximativo no permita atenuar. Não se pode escapar ao impacto do totalitarismo recusando-se a fixar a atenção sobre sua verdadeira natureza e se abandonando às semelhanças e aproximações que certos aspectos da doutrina totalitária oferecem com as teorias familiares do pensamento ocidental (SOUKI, 2006, 44).

Fica claro, pois, que é um erro tentar reduzir o totalitarismo a um tipo diferente de tirania ou ditadura, ou mesmo vê-lo como um emaranhado de formas de governo que se juntam. A tentação de restringir o escopo do conceito totalitário a fórmulas já utilizadas em outros momentos históricos é perigosa, pois deixa de fora várias particularidades que são essenciais para a compreensão do fenômeno do domínio total. Souki prossegue afirmando que: “A terrificante originalidade do totalitarismo não se refere a uma nova ‘ideia’ que apareceu no mundo, mas a atos em ruptura com toda a nossa tradição” (2006, p.44). Arendt, na obra Entre o Passado e o Futuro explica como a perda da tradição provocou na época moderna uma enorme lacuna e coloca aos leitores a dificuldade de pensar, “de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro” (ARENDT, 2007, p, 40). É nesta problemática que se insere a reflexão sobre o totalitarismo. Está posta, aí, a dificuldade de se pensar esta lacuna, sem o auxílio do fio da tradição e diante de um novo absurdamente monstruoso, não só em sua dimensão, mas em seu nível de horror. O perigo de se deixar seduzir pelo que já é conhecido e enquadrar o domínio total entre as velhas estruturas de opressão é silenciar para fatos que não podem ser esquecidos para que não venham a se repetir no futuro.

Os precedentes do movimento totalitário: atomização e massificação

Analisando propriamente o fenômeno totalitário fica claro que o Totalitarismo se instaura em uma sociedade atomizada e massificada. Esta atomização social e o consequente fenômeno da massificação já vinham sendo preparados pela sociedade

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moderna que, segundo Arendt, é a época do “Triunfo do Animal Laborans” 2. O conceito de animal laborans, desenvolvido por ela em sua obra A Condição Humana, se refere ao homem moderno que consome o fruto de seu trabalho na busca da simples subsistência. É o homem que perdeu seu contato com o mundo das coisas e dos outros, “vivendo para trabalhar e trabalhando para viver”. O triunfo do animal laborans na idade moderna é o solo fértil para o surgimento de homens, que, sobrevivendo sem ideais, são capazes de se lançar no movimento totalitário. Outro fato que leva à crescente massificação, especificamente na Alemanha, é o declínio do Estado-nação europeu, que promoveu uma mudança de paradigma das relações sociais. Os partidos políticos caíram em descrédito e o próprio conceito de classes entrou em crise e passou a ser repensado. Dados os enormes contingentes de refugiados da guerra que vagavam errantes pelo continente, os antigos critérios que uniam os grupos dentro da sociedade foram postos em cheque. A Europa da época se via diante de uma enorme quantidade de homens para os quais não havia direitos, uma vez que eram refugiados de um país para o qual não podiam voltar e, ao mesmo tempo, imigrantes não-quistos pelos países onde estavam. Toda a desestruturação vivida neste período enfraqueceu as estruturas sociais, abalou as antigas instituições políticas e quebrou o sistema de classes, já há algum tempo fragilizado na Europa. Consequência do declínio do sistema de classes é a facilidade com que o movimento totalitário consegue se instaurar e ganhar adeptos. Ele se instaura exatamente no vácuo deixado pelos partidos que, já não encontrando um grupo forte a que representar, se vêem em uma crise sem precedentes. É este panorama social que o movimento totalitário encontra que lhe dá condições de se instaurar. Ele se mostra como um novo fator aglutinante desta sociedade de homens-massa. Se já não há mais interesses de grupos e sim uma massa “des-interessada”, incapaz de lutar e se reunir, o campo está aberto para a instauração da propaganda ideológica. Esta será capaz de unir a sociedade, mas não de uma forma consciente e participativa e sim alienada, levando os homens a se perderem doando suas vidas ao movimento. Neste sentido, Arendt identifica as massas do século XX, que deram suporte para o movimento totalitário se firmar e ascender ao poder:

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Sobre o Triunfo do Animal Laborans, Cf. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Capítulo VI. São Paulo: Forense Universitária, 2010.

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Do Isolamento à Solidão: A Novidade Totalitária segundo o Pensamento de Hannah Arendt Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas que, por um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política. As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores (2006, p. 361).

Evidencia-se assim que, para Arendt, as massas são um grupo para o qual não há clareza dos interesses comuns. São pessoas que, por não entenderem os limites e as dificuldades da ação política, almejam ideais irrealizáveis ou, pelo menos, dificilmente executáveis em curtos espaços de tempo. Por isso não se ligam aos partidos, não estão dispostos ao debate típico de uma estrutura democrática. Os partidos são tidos, então, como incapazes, morosos e dispensáveis. Não por acaso, há uma atração para o chamado “movimento”, que como o próprio nome já quer demonstrar, acelera as decisões e resoluções. Com um desprezo total pelo debate e pelas leis, o movimento destrói todo e qualquer obstáculo para seu avanço, o que lhe possibilita uma rapidez espantosa nas ações. O movimento deve estar sempre em expansão, característica que herda do imperialismo, mostrando a força da ideologia como fator de mudança rápida e eficaz. É neste contexto que os homensmassa embarcam cada vez mais na propaganda totalitária.

Totalitarismo e Tirania: Duas formas distintas de governo

Cabe agora explicar como Arendt faz a distinção entre totalitarismo e tirania. Esta distinção se faz necessária à medida que a autora faz questão de apresentar o totalitarismo como novidade, enquanto muitos o viam como uma forma de tirania ou ditadura unipartidária. As tiranias e as ditaduras têm por característica principal concentrar o governo na mão de um (o tirano) ou de alguns (os membros dos partidos). É de costume que, após chegar ao poder, eles substituam as leis existentes no território e instaurem suas próprias leis, restringido normalmente as liberdades individuais, de associação e de reunião, censurando os meios de comunicação política. Há, após a tomada do poder, uma caça aos opositores e os meios de violência e tortura são utilizados em larga escala

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até que todos os movimentos de resistência sejam aniquilados e o medo tome conta da população. Via de regra, há uma valorização do exército que passa a ter grande força nas decisões de governo, uma vez que é ele quem garante a manutenção do governo ditatorial ou tirânico pelo uso das armas. O uso da força se dá no sentido de calar as vozes, de impedir a oposição. As leis são mudadas como forma de impedir a disseminação de pensamentos contrários e de possíveis revoluções populares. Governos com estas características já haviam sido experienciados um sem número de vezes ao longo da história. Arendt, em contrapartida, pretende demonstrar que: Os governos totalitários do nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipatidários; sempre que estes se tornavam realmente totalitários, passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias – legais, lógicas ou de bom senso – podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever o seu curso de ação (2006, p. 512).

O totalitarismo rompe com a estrutura tirânica e ditatorial introduzindo uma nova forma de conduzir o governo. Arendt afirma que, mais do que se mostrar um governo sem precedentes, o totalitarismo faz repensar a próprio conceito de governo (2006, p. 513). Isto se dá, pois o que está em jogo no governo totalitário não é apenas a troca de leis, a supressão de liberdades ou mesmo a perseguição aos inimigos, o domínio total se dá no âmbito do abandono total das leis nascidas pelo consenso ou mesmo pela imposição. Arendt demonstra no último capítulo da obra Origens do Totalitarismo, denominado Ideologia e Terror: uma Nova Forma de Governo que, a lei a ser executada pelo movimento não nasce dos homens, o que se quer é seguir as leis históricas ou da natureza mesmo que, para isto, os homens necessitem ser sacrificados. Tanto a vertente nazista como a stalinista não substituem as leis existentes por seus próprios códigos, o que eles entendem é que a natureza ou a história devem seguir seu caminho sem empecilhos e que, se os homens forem causa de barreira, devem ser eliminados o mais breve possível para que estas leis possam ser executadas. Analisando inicialmente a vertente nazista, percebe-se que o movimento totalitário na Alemanha afirma ser a lei natural ou biológica da raça pura e da perfeição da espécie a norma a ser executada. Dada esta lógica, todos aqueles que não se

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enquadram devem morrer. Percebe-se aí o fato de que não é por escolha, simpatia ou crítica ao regime que se vive ou morre, é simplesmente pelas características físicas e genéticas. A simpatia ou não pelo regime pouco importa. Esta distinção para com a tirania é gritante, pois esta, como já foi afirmado, se levanta apenas contra os opositores. Ideia semelhante ocorre na Rússia de Stalin, só que lá as leis biológicas ou naturais são substituídas pelas leis históricas. O governo totalitário quer avançar o movimento histórico e, para isto, certas classes precisam ser eliminadas. Não à toa o governo de Stalin em seus expurgos levou a cabo o assassínio de milhões de camponeses para que as terras russas pudessem ser coletivizadas. Em ambos os casos, o que se percebe é a ideologia sendo posta em prática. Arendt entende ideologia como a “lógica de uma ideia” (2006, p. 521), ou seja, o que se tem é uma chave da história que explica todos os acontecimentos a partir de um raciocínio que vai se desenvolvendo de forma apenas lógica, excluindo todas as contradições. É este pensamento lógico, que não contempla a reflexão e exclui o senso comum, que é típico de um homem-massa, de um animal laborans, e que permite o governo totalitário se instaurar. Outra característica do governo totalitário que o distancia de outros tipos de governo é o primado da polícia secreta sobre o exército. Como a ideia do movimento é a constante expansão, ele entende o mundo todo como um só território, pois as leis que ele pretende executar são universais. Desta forma, não se tem a primazia do exército como meio de conquista, mas da polícia que está em todos os lugares através de um serviço de inteligência que pretende dominar o mundo, não apenas alguns países. A lógica da expansão é total e, embora o exército cumpra seu papel de uso da força para a derrota dos inimigos, é a polícia que tem o status de executora das leis naturais ou históricas. Desta forma a violência se transforma em terror, pois a polícia continua a perseguir, prender e matar mesmo depois do fim de toda a oposição. A eliminação dos “supérfluos” e indesejados é a tônica do movimento que não pode cessar de se expandir. No movimento totalitário, a execução não acaba e sempre novos inimigos objetivos precisam ser eleitos e caçados. Já não se pode falar de uma simples perseguição, mas do terror como forma de governo. Os eleitos para viver ou morrer são escolhidos e tem que aceitar seu fim de um jeito ou de outro, pois, ou se declaram inocentes e são culpados como mentirosos, ou se declaram culpados e, por isto, devem ser executados.

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A caça aos inimigos do regime quebra de forma radical os laços entre os homens já que todos os envolvidos com os “culpados” são tidos como igualmente condenáveis. Esta forma de terror impede não só a associação para fins políticos, mas todas as relações sociais possíveis entre os homens, lançando-os em uma terrível situação de abandono e perda do mundo comum. É aí que o terror encontra sua face mais devastadora e que o totalitarismo introduz a solidão como experiência mais radical na existência humana.

A solidão como novidade

É justamente na introdução da solidão como novidade que o Totalitarismo avança de forma mais específica sobre as tiranias, segundo Arendt. Aqui é importante fazer algumas distinções fundamentais para que se possa entender o que a autora quer demonstrar especificamente pelo conceito de solidão. O conceito de solidão, tal como será apresentado neste trabalho, está definido na última parte da obra Origens do Totalitarismo, intitulada Ideologia e Terror: uma Nova Forma de Governo. Para o presente artigo foi utilizada a tradução de Roberto Raposo, publicada em sua 6ª reimpressão pela editora Companhia das Letras no ano 2006. Na referida obra o autor traduz as palavras isolation, loneliness e solitude como, respectivamente, “isolamento”, “solidão” e “estar só”. Tal conceituação não é unânime entre os estudiosos brasileiros de Arendt. O conceito Isolation é, via de regra, traduzido por isolamento e se refere à falta de relações sociais e políticas, como se verá mais adiante. Já o que Arendt define por Loneliness é traduzido por alguns, como desamparo3, outros como desolação4 e outros ainda, como solidão5. Uma vez que a obra utilizada como base para a confecção deste artigo é de tradução de Roberto Raposo, serão utilizados aqui, por questão de coerência interna do texto, os conceitos de isolamento, solidão e estar só. 3

O termo desamparo aparece no artigo Ação, Linguagem e Poder: Uma releitura do Capítulo V da obra The Human Condition de Theresa Calvet de Magalhães, presente na obra Hannah Arendt e a condição humana, organizada por Adriano Correia e publicada em 2008 pela editora Quarteto. No referido artigo, a autora identifica loneliness com desamparo e solitude com solidão (p. 55). 4 O termo desolação aparece no artigo Totalitarismo e Liberdade de Newton Bignotto, presente na obra Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias, organizada por Eduardo Jardim de Moraes e Newton Bignotto e publicada pela editora UFMG em 2001. No referido artigo, o autor identifica loneliness com desolação. 5 Na mesma obra citada acima, o artigo de Bethânia Assy, intitulado Eichmann, Banalidade do Mal e Pensamento em Hannah Arendt identifica os termos loneliness e solitude da mesma forma que Roberto Raposo: como “solidão” e “estar só”, respectivamente.

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Para se tratar da questão do totalitarismo como novidade, o presente trabalho quer ressaltar que, para Arendt, o isolamento (isolation) é entendido como a quebra dos vínculos sociais e políticos. Assim ela descreve o isolamento: O isolamento e a impotência, isto é, a incapacidade básica de agir, sempre firam típicos das tiranias. Os contatos políticos entre os homens são cortados no governo tirânico, e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas. Mas nem todos os contados entre os homens são interrompidos, e nem todas as capacidades humanas são destruídas. Toda a esfera privada, juntamente com a capacidade de sentir, de inventar e de pensar, permanece intacta (ARENDT, 2006, p. 527).

O que se percebe a partir da noção de isolamento dada por Arendt é que apenas as associações, as liberdades e toda e qualquer tentativa de oposição são atingidas. Sabe-se que, para Arendt, o conceito de poder é um poder relacional, que nasce do agir em concerto (2009, p. 60), daí se percebe que, ao colocar os homens isolados uns dos outros, os governos tirânicos pretendem coibir a formação do poder das oposições. As tiranias e ditaduras não se preocupam com a vida privada dos indivíduos, os homens em isolamento são impotentes por definição, logo não há com o que se preocupar. O isolamento se dá, como Arendt afirma em A Condição Humana, quando o homem se retira do meio de seus iguais para manusear a natureza e produzir sua obra6. A produção (poiesis) necessita não do contato com os iguais, mas sim do homem com seus instrumentos e matérias-primas. Este caráter privado se mantém intacto nas ditaduras e tiranias, pois não oferece perigo para o status quo. Arendt afirma que o isolamento é a característica do Homo Faber, daquele que produz as coisas humanas e, por isto, está em contato com o mundo como obra humana (2006, p. 527). A partir destes dados é possível perceber que as tiranias e ditaduras investem contra a política e a formação do poder. Tal fato já havia sido experienciado ao longo da história e uma vasta tradição do pensamento já havia se dedicado ao estudo de tais estruturas políticas. O que Arendt diagnostica no totalitarismo é um passo a mais, um rompimento mais radical das relações humanas. O governo pretende ser total, por isto avança na destruição de todos os laços possíveis entre as pessoas. Ao ir além de qualquer outra proposta de domínio é que o totalitarismo se constitui uma novidade do pensamento. É exatamente por transformar o isolamento em solidão que o governo total quebra todos os paradigmas oferecidos pela tradição. 6

Sobre o conceito de Ação, Obra e Trabalho, Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Revisão de Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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Arendt afirma a passagem do isolamento à solidão nos seguintes termos: Enquanto o isolamento se refere apenas ao terreno político da vida, a solidão se refere à vida humana como um todo. O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera da vida pública, isto é, sem destruir, através do isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter (2006, p. 527).

Introduzir a experiência da solidão (loneliness) como experiência das massas é uma tipicidade do totalitarismo que Arendt faz questão de acentuar e explicitar. O terror dos campos de concentração ou de trabalhos forçados são o ponto mais radical desta experiência de não pertencimento do mundo. O animal laborans, aquele que não vive, apenas sobrevive com o suor do rosto, chega ao ponto máximo de solidão no governo totalitário. Já não está apenas só (solitary), sem companhia, está desamparado de qualquer obra e convívio humanos, está solitário (lonely). Esta experiência é a que Arendt entende como uma das mais desesperadoras que o homem pode ter (2006, p. 527). E é a partir dela que a lógica do movimento pode se dar. Se o homem está solitário até mesmo no pensar, se já não traz consigo o senso comum advindo do convívio entre os seus, a lógica da ideia pode-se instaurar plenamente. São os homens-massa, indivíduos incapazes de pensar, de estabelecer relações comuns, que serão os alvos do terror total, meros utensílios aptos para receber ordens de matar ou morrer. Arendt visa demonstrar que solidão é a quebra das pontes entre os homens, a impossibilidade do pensamento entendido como dois-em-um: A rigor todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento (2006, p. 528).

O pensar só se estabelece neste dois-em-um que é preservado no advento das tiranias, mas não no totalitarismo. A incapacidade de pensar, de ser dois-em-um, levará à existência de homens como Adolf Eichmann, que Arendt afirmará não ser um psicopata, mas um homem incapaz de pensar. É na incapacidade do pensamento que o

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mal pode acontecer de forma banal, como foi visto no Nazismo e no Stalinismo7. Aí o domínio total chega ao seu ponto máximo de instauração na sociedade e consegue dominar uma massa que não tem poder para resistir, pois toda a capacidade relacional foi desfeita e toda a pluralidade destruída. Percebe-se, pois, que uma vez tendo abordado o totalitarismo sob este prisma da incapacidade de pensar advinda da solidão da época moderna, Arendt irá ocupar seus esforços intelectuais e acadêmicos para o resgate da faculdade humana do pensar e do espaço público da palavra e da ação. Resgatar a faculdade do pensar é tirar o homem da solidão e consolidar o espaço público é permitir aos homens um lugar onde possam exercer a liberdade, a capacidade de iniciar algo novo e construir relações geradoras de poder.

Considerações finais

A análise arendtiana do totalitarismo se insere entre as mais respeitas reflexões sobre o tema. Não por acaso sua obra vem tomando uma importância crescente, sendo estudada por mais e mais pesquisadores do tema. Embora alvo de algumas críticas no âmbito da fidelidade histórica de alguns fatos, o que importa na análise arendtiana sobre o domínio total não é um historiografia minuciosa, mas uma reflexão filosófica e social do evento totalitário. Arendt analisa o totalitarismo como novidade que nos impele a pensar a política através de outro paradigma. O que se quis salientar neste trabalho é o totalitarismo como ruptura que se diferencia das formas de tiranias e ditaduras na medida em que manipula as massas modernas colocando-as em uma situação de solidão. Esta situação de perda do senso comum, que já vinha sendo preparada com o advento da modernidade, tem seu auge no domínio total que arregimenta estes homens-massa para o engajamento na ideologia do movimento das leis históricas ou naturais. Hannah Arendt soube diagnosticar nos governos nazista e stalinista os elementos totalitários que os permitem tal denominação. Ela chama a atenção para a diferença entre os dois governos, para modos diferentes de manipulação das massas e confinamento nos campos. Contudo, a autora afirma que, assim como as monarquias inglesa e francesa eram diferentes entre si, mas não deixavam, por isso, de ser 7

Sobre a questão da banalidade do mal, Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalem. Um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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monarquias, os governos estudados não deixaram de ser totalitários por possuírem certas características divergentes (ARENDT, 2006, p. 343).

Referências ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ______. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rev. Adriano Correia. São Paulo: Forense Universitária, 2010. ______. Sobre a Violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. ASSY, B. E. Banalidade do Mal e Pensamento em Hannah Arendt. In: MORAES, Eduardo Jardim de; BIGNOTTO, Newton. (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 136-165. BIGNOTTO, N. Totalitarismo e Liberdade. In: MORAES, Eduardo Jardim de; BIGNOTTO, N. (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 111-123. MAGALHÃES, T. C. de. Ação, Linguagem e Poder: Uma releitura do Capítulo V da obra The Human Condition. In: CORREIA, Adriano. (Org.). Hannah Arendt e A Condição Humana. Salvador: Quarteto, 2006. p. 35-74. SOUKI, N. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

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