DO JUSNATURALISMO E DO DIREITO INTERNACIONAL EM HUGO GROTIUS

July 23, 2017 | Autor: Afranio Andrade | Categoria: Law and Religion
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DO JUSNATURALISMO E DO DIREITO INTERNACIONAL EM HUGO GROTIUS





Afrânio Patrocínio de Andrade[1]




Resumo

De forma sucinta este este texto estuda a contribuição de Hugo Grócio para
o Direito Internacional, fazendo-o em diálogo com outros autores que o
antecederam, em especial com Isidoro de Sevilha e com Francisco de Vitória,
o que é feito sem a pretensão de ofuscar o reconhecido brilho do autor.
Apresenta, após breve comentário sobre vida e obra, os fundamentos do
jusnaturalismo e por fim as questões atinentes ao direito internacional.
Palavras-chave: doutrina do direito natural – natureza humana – direito
internacional.


Abstract

Succinctly this paper investigates the contribution of Hugo Grotius for
International Law, making it into dialogue with other authors who preceded
him, especially with Isidore of Seville and Francisco de Vitoria, which is
done without the intention of obfuscating recognized the brilliance of the
author. Presents, after a brief commentary on life and work, the
foundations of natural law and finally the issues relating to international
law.
Keywords: doctrine of natural law - human nature - international law.



Introdução

Normalmente quando se fala em Hugo Grócio se depara, por um lado, com
escassa bibliografia em português e, por outro lado, com um cenário de
venerações ao que poderíamos chamar de ilustre desconhecido, pois, embora
notável por sua contribuição como fundador da Escola Jusnaturalista moderna
e como principal fundador do Direito Internacional, quase sempre se mostra
como um autor relativamente pouco estudado.

Este breve artigo pretende analisar brevemente a contribuição deste autor
para o Direito Internacional, fazendo-o em diálogo com outros autores que o
antecederam, como Isidoro de Sevilha e Francisco de Vitória. Num primeiro
momento, depois de situar brevemente a vida e obra do autor, passemos a
tratar do jusnaturalismo, já que ele é considerado o pai da escola
jusnaturalista, assim entendido aquela escola que se ocupou em estudar o
direito natural como anterior e superior ao direito positivo.

Num segundo momento vamos nos ater especificamente à contribuição ímpar que
este autor deu para a formação do direito internacional, o que faremos
estudando-o em diálogo com outros autores. Por fim apresentaremos nossas
considerações finais e nosso referencial bibliográfico.


Vida e obra

O jurista holandês Hughes von Groot, cujo nome foi vertido para o latim
como Hugo Grotius e aportutuesado para Hugo Grócio, nasceu em 1583. Menino
prodígio, entrou para a universidade de Leida aos onze anos para estudar
Direito e doutorou-se na Universidade de Orleans, em 1598, com apenas 15
anos de idade. Foi uma pessoa de cultura ímpar, tendo iniciado sua
produção acadêmica aos 15 anos de idade, participando da elaboranção da
Enciclopédia de Martianus Capela. Em 1608 casou com Maria van
Reigersberch, com quem teve sete descendentes, sendo quatro filhos e três
filhas.

Teve intensa carreira jurídica, diplomática e atuação política em seu país,
onde exerceu o cargo de governador de Roterdam, de 1613 a 1617. Em agosto
deste ano ocorreu um conflito entre os Estados Gerais governados pelos
arminianos a cujo segmento se filiava e a Holanda governada pelos
calvinistas, sendo que os arminianos perderam a disputa política.
Perseguido pelos calvinistas, foi condenado a prisão perpétua em 1619 e em
1620 foi novamente condenado, desta feita sob o argumento de que ele teria
traido à pátria.

Ajudado pela esposa escondeu-se em um armário de livros que estava sendo
transferido do lugar e fugiu para a França em 1620, e lá permaneceu por
uma década trabalhando como escritor, sob a proteção de Luís XIII. Mudou-se
mais tarde para a Alemanha. Extraditado de lá, aderiu ao governo da Suécia
e tornnous-e embaixador deste país na Fança, em 1634. Sua vida foi marcada
pela experiência com o conflito iniciado em seu próprio país e prolongado
no campo das disputas internacionais, as quais lhe serviram como
oportundade para colaborar na elaboração de um tratado internacional que
pudesse pôr fim à Guerra dos Trinta Anos. Convidado a voltar para seu país
pela Rainha Cristina, faleceu 8 dias depois de um naufrágio em 1645, com 62
anos de idade.

Sua vasta produção acadêmica foi da teologia ao direito, passando pela
dramaturgia. No campo da teologia, combateu a predestinação calvinista e
escreveu a obra intitulada De veritate religionis christianae ou "Da
verdade da Religião Cristã." Esta obra foi por ele compilada na prisão e
redigida na Fança, vindo a ser publicada em 1627. Esta obra pode ser vista
em três partes. A primeira parte é dedidaca às questões emergentes da
consciência histórica no tocante à autoria e conteúdo dos evangelhos
canônicos.

A segunda parte da obra é dedicada à religião de outros povos, incluindo os
judeus e a terceira parte é dedicada às questões apologéticas legais ou
jurídicas em defesa da fé cristã, possivelmente influenciado por Francisco
de Vitória (1483-1546), teólogo espanhol que o antecipou inclusive nas
questões do direito internacional e no direito da Espanha em conquistar os
povos da América, conforme veremos mais à frente.

Sua obra que mais nos interessa neste breve artigo é intitulada De jure
belli ac pacis, publicada em 1625 e traduzida para o portugues como "Do
Direito da Guerra e da Paz." Escreveu também uma obra que foi publicada
postumamente, em 1668, intitulada De jure praedae ou " Do Direito da
Propriedade." Sua produção acadêmica foi marcada pelo antiaristotelismo,
pelo voluntarismo político no plano teórico e pelo ecunemismo no plano
prático.


O Jusnaturalismo

A teoria grociana do direito natural ou ainda a Escola do Direito Natural
por ele fundada faz a reconciliação entre a razão e a história e se insere
no conjunto das insessantes buscas que empreenderam diversos autores a
partir do Renascimento. Estes autores, diante da desfragmentação do
pensamento unificado que vigorou durante a Idade Média, foram atrás de um
denominador comum, um elo capaz de firmar o entendimento científico, a
autonomia do homem, a formação da sociedade e do Estado e um fundamento
para a Justiça que não contasse com as questões de fé, como o fizeram
durante a Idade Média Agostinho e Tomás de Aquino de quem buscavam se
distanciar.

Vale lembrar que, durante a Idade Média, cogitou-se no Estado fundado na
vontade. Entretanto, tratava-se da vontade divina e não da vontade humana.
O escocês João Duns Escoto (1266-1308), voluntarista, defendera a tese
segundo a qual a vontade divina é a causa primeira da lei, não sendo aquela
fundada em qualquer outra, nem mesmo na razão.

Com o advento do Renascimento, e com a busca de novos fundamentos para o
Estado, chegou-se à conclusão que ele efetivamente se funda na razão mas
desta feita a grande descoberta é que se trata da razão humana e não da
razão divina. Assim, a mudança de paradigma do teocentrismo para o
antropocentrismo proporcionou uma nova leitura da realidade social, da
natureza humana, da vontade e da própria razão.

E graças a esta descoberta que foi possível passar-se a cogitar na ordem
jurídica lastreada na ideia de um direito natural baseado no homem e não
mais de origem divina. A obra de Hugo Grócio reverbera este movimento,
embora ele tenha vivido em época bem posterior ao Renascimento. Ele faz, na
realidade, uma releitura das questões que põe em discussão, tais como:
natureza humana, direito natural e direito internacional.

Com efeito, cerca de um século antes de Grócio, Nicolau Maquiavel
(1469—1527) já havia, de certa forma, trabalhado esta tentativa de
autonomia política em sua obra intitulada O Príncipe, onde propôs as
recomendações que o governante, e não o povo, deveria seguir, se quisesse
conquistar e manter o trono.

Observa-se nessa obra que Maquiavel não tinha como objetivo estabeleceer
uma doutrina social ou política que tivesse o povo como sujeito, e sim
exclusivamente o governante de quem não contou nem com a ética nem com a
moral. Não interessava, para Maquiavel, qual o meio ou meios que o
governante iria utilizar para os fins a que se propõe, isto é, para
conquistar e manter o trono. O que intressava era o resultado do
empreendimento do governante, isto é: a conquista ou manutenção do trono.

Assim procedendo, Maquiavel contribuiu significativamente para a autonomia
da razao, em especial porque, no novo contexto do Renascimento, havia a
necessidade de se estabelecerem novas regras de exercício do poder. Havia a
necessidade de se entender como poderia se dar a autonomia das ações do
príncipe no momento em que o poder central da Igreja Católica estava sendo
posto em dúvida por diversos autores. O teocentrismo se encontrava em crise
e o antropocentrismo se firmava como necessário em busca da auto-afirmação
no mundo.

Neste novo momento histórico havia a necessidade de se buscar uma forma
diversa daquela que perdurou ao longo da Idade Média. Foi exatamente estas
buscas que levaram diversos autores renascentistas retomarem o mundo greco-
romano antigo, em especial nas artes, na literatura, na filosofia, na
política e na ciência. O direito, neste momento, teve que encontrar outro
fundamento que não na vontade divina e tal fundamento foi encontrado na
razão humana capaz de orientar a vida em sociedade e, inclusive, a vontade
humana.

Entretanto, mesmo se distanciando das questões éticas e de fé, Maquiavel
não deixou de contar com a religião como possível aliada do poder. Por
isto, não seria exagero lembrar a precisa observação histórica que fez de
que, "todos os governos do passado que tiveram vontade de ver suas leis
vigorarem no meio do povo a atribuíram de alguma forma a uma divindade".[2]


Por outro lado, Hugo Grócio, ao entender que o direito natural não guarda
qualquer relação com a divindade e que "ainda que não existisse Deus
haveria o direito natural," procurou um novo rumo, isto é, deixou de
contar com a contribuição da religião para a configuração de um governo,
até porque sua experiência pessoal com os calvinistas na Holanda foi
suficiente para provar-lhe que a religião, quando toma posse do governo e o
faz funcionar segundo suas regras, pode ser perigosa até para a liberdade
do indivíduo. Foi neste contexto que Hugo Grócio se pôs a pensar sobre a
reta razão e a natureza humana.

Um outro autor, seu contemporâneo, Thomas Hobbes (1588—1679), igualmente
estava igualmente empenhado em encontrar tais razões fora da voluntas Dei.
Posteriormente em John Locke (1632—1704) também buscou tal autonomia. Mas
nestes autores, não se menciona explicitamente a independência do direito
em relação a Deus.

Hobbes estabelece o Leviatã como um estado eclesiástico e civil, enquanto
John Locke propõe seu tratado político fundado na vida social organizada
racionalmente, independente de discussões religiosas. Hobbes também propôs
o jusnaturalismo mas com uma particularidade: o direito natural é anterior
ao direito positivo, mas não lhe é superior.

A capa da obra O Leviatã é uma demonstração de que o autor não romperia com
a religião, até porque o subtítulo diz tratar-se de "Um Estado Eclesiástico
e Civil". A capa da obra mostra um governante, o soberano, o Leviatã super
poderoso. Mas é curioso que o corpo dele é composto por inúmeros
homenzinhos desenhados por toda a roupa, o significa que o "veste" e
"reveste" o soberano é o poder dos indivíduos que lhe transferem seus
direitos civis.

Na mão direita, o soberano da capa da obra em comento tem a espada,
simbolizando a força, da qual o soberano pode se valer para manter o poder
e, na mão esquerda tem o ábaco, uma espécie de cetro ou cajado utilizado
pelos sacerdotes. Assim, esta obra junta ambos os poderes, o temporal e o
sacerdotal, em uma única figua: o soberano.

Desta forma, os mencionados autores igualmente buscaram a autonomia do
direito, mas nenhum destes foi explícito o suficiente para declarar de vez
que o direito natural não depende de Deus. Por isto, pode-se dizer ser bem
provável que o momento histórico em que Hugo Grócio viveu foi decisivo para
a construção de sua concepção jusnaturalista com certo distanciamento das
concepções deistas.

Pode-se dizer com certo grau de certeza que foi efetivamente com este augor
que podemos vislumbrar com grande clareza a distinção entre vontade divina
e vontade humana, entre razão divina e razão humana, entre direito de
origem divina capaz de inspirar e sustentar um Estado e direito natural
presente na natureza humana e capaz de inspirar, criar e se sobrepor ao
direito positivo.

Grócio é sem dúvida o fundador da Escola ou Doutrina do Direito Natural ou
Jusnaturalismo.[3] E é por isto que o abordamos como tal. Em Grócio o
direito se apresenta como expressão da razão e seu conteúdo é a
sociabilidade. O autor procurou dar uma interpretação humana ao direito,
fugindo à concepção dominante na sua época, que aceitava a intervenção da
"razão de Deus" nas decisões humanas.

Assim, a partir de Grócio, o direito passou a ser considerado uma emanação
da própria natureza humana, sem qualquer dependência de Deus. Desta sorte,
embora a temática tenha sido tratada por outros autores, Grócio é o único
que efetivamente afirma a distinção efetiva entre direito de inspiração
religiosa e direito de inspiração na natureza humana.

Por isto temos em Grócio que a feitura das leis humanas não guarda
qualquer relação com a divindade. Sua posição é antidivinista, portanto.
Para ele a sociabilidade é um fenômeno natural e é aí que se encontra o
princípio do direito. Ou, ainda, o direito tem sua razão de ser no fato
de o homem viver em sociedade. Nao que o homem seja um animal social por
natureza como ensinou Aristóteles, mas porque a vida em sociedade é mais
adequada e mais segura que fora dela.

Por ser racional, o homem organiza a sociedade e suas instituições. De
forma que o direito natural é ditado da reta razão, ou, em suas palavras:
"jus naturale est dictatum rectae rationis" (De Jure Belli ac Pacis, I,
cap. 1, par. 10). São próprios do direito natural: a universalidade, a
validade e a imutabilidade. É universal porque encontrável em todos os
povos, válido porque não pode ser derrogado pela lei civil e imutável
porque integra a própria natureza humana e, enquanto tal, permanecerá
sempre o mesmo.

A escola jusnaturalista assim iniciada foi posteriormente combatida pelo
positivismo jurídico. Um resumo da história desta escola foi feito por
Norberto Bobbio, segundo quem,
Sob a etiqueta de "Escola do Direito
Natural" escondem-se autores e correntes
muito diversos: grandes filósofos como
Hobbes, Leibniz, Locke, Kant que se ocuparam
também mas não precipuamente de problemas
jurídicos e políticos, pertencentes a
orientações diversas e por vezes opostas de
pensamento (...).[4]

Para este autor, a Escola do Jusnaturalismo teria chegado ao fim com a
publicação da obra de Hegel intitulada "Sobre os diversos modos de tratar
cientificamente o direto natural", publicada em em 1802. Atualmente tal
combate se mostra menos agressivo, já que a realidade histórica se
encarregou de demonstrar que o direito positivo necessita de reflexão. Esta
reflexão foi inaugurada principalmente por Gustav Radbruch (1878-1949),
autor este que foi inicialmente adepto da teoria do direito objetivo,
negando o direito natural. Entretanto, presenciou a Segunda Guerra Mundial
e um sistema jurídico estabelecido com todos os juristas de mãos amarradas,
sem poder frear os males do Nazismo.

Diante desta realidade, passou a repensar o direito. Em sua reflexão
profunda sobre os resultados da Segunda Guerra, Radbruch entendeu que


A ciência do direito tem que voltar de novo
ao que constitui a milenária sabedoria comum
da Antiguidade, da Idade Média cristã e da
época da Ilustração: que se dá um direito
supralegal, de acordo com o qual o injusto
(Unrecht) é sempre injusto, muito embora
esteja configurado em formas legai.[5]

É bom que se diga que, enquanto autores refletiam sobre a necessidade de se
repensar o direito e, de fato, retomaram as mesmas teses da Escola do
Direito Natural inaugurada por Grócio, Norberto Bobbio recorria a Benito
Mussolini para pedir que lhe permitisse lecionar na Universidade de
Carmerino, já que fora impedido de faze-lo por uma pena que lhe fora
imposto. Houve, portanto, um desencontro histórico: de um lado a afirmação
da morte da Escola do Direito Natural e, de outro lado, a retomada a ela
como única capaz de inspirar um novo direito, um direito capaz de pôr fim
às barbaridades praticadas sob o manto da legalidade, em especial por
Hitler na Alemanha e por Mussolini na Itália.

Embora ainda existam adeptos do positivismo jurídico que se apresentam como
ferrenhos negadores do direito natural, esta questão está praticamente
resolvida, visto que, em virtude das amplas reflexões que a própria
história se encarregou de trazer e graças a pensadores como Anna Arrent,
além do já mencionado Radbruch, restam atualmente relativamente poucos que
se dispõem a tais negativas.

Segundo Grócio, o direito natural pode ser conhecido tanto filosofica como
empiricamente. O conhecimento do direito natural pela via filosófica é a
priori, isto é, vem antes de qualquer experiência. É a própria razão humana
que reconhece tal direito prsente que se acha em sua própria natureza.

Por outro lado, o direito natural pode ser conhecido também pela via
experimental e histórico, isto é, a posteriori. Constata-se da histórica
que todos os povos, indistintamente, tem um direito natural. Esta é uma
explicação de que todos tem, por natureza, a aceitação o de algo tido como
justo, embora a definição deste não seja de fácil tarefa.

Com efeito, se se entender por justo "aquilo que a ninguém prejudica", como
fizera Marcus Tullius Cícero (106-43 a.C), teríamos dificuldade em encontrá-
lo na sociedade, pois mesmo o Estado, de alguma forma, prejudica alguém,
principalmente no momento em que necessita se utilizar da violência para
fazer valer aqueles mandamentos inscritos na lei. De qualquer forma, em
Hugo Grócio o direito natural tem seu fundamento e razão de ser na própria
natureza humana: "jus naturalis mater est ipsa numana natura".
(Prolegômenas. n.° 17, De Jure).

Se, por um lado, o direito natural, anterior e superior ao direito
positivo, tem seu fundamento nestes termos, por outro lado, o direito
positivo consiste em um pacto que deve ser observado: "pacta sunt
servanda", cláusula esta que se torna de necessária inviolabilidade diante
da também necessária ordem social (Prolegômena. n.° 15). O próprio Estado
tem origem neste pacto ou contrato social.

Desta sorte, o pacto é uma realidade histórica, que deriva da opinião e
oportunidade circunstancial. E é bem aqui que se encontram as diferenças
entre os diversos estados: são criados e mantidos em circunstâncias
culturais, políticas, históricas e até geográfica diversas. Daqui uma de
suas principais contribuições para o direito político. A unidade do Estado
não está na sua forma, na sua aparência, mas na sua concepção profunda a
partir da natureza humana que lhe serve de substrato.

Grócio traz sua contribuição de laicização do direito, negando o valor
atribuído pela Escolástica à sua sacralização. Se, para ele o direito
natural existe independentemente de Deus, como já dissemos acima ou, como
assinalou: "ainda que não existisse Deus existiria o direito natural", há
aí uma forte afirmação de que o direito natural emana da natureza humana e
não guarda relação com as coisas divinas. A origem do Estado está no pacto
ou no contrato social. O pacto é uma verdade histórica, derivado da opinião
e da oportunidade, que se pode resumir nos seguintes pontos.

Primeiro: os povos não têm direito a recuperar a soberania originária. Este
entendimento por certo, tem dificuldade de se firmar no contexto da
democracia direta como a proposta em Rousseau pois, uma vez entregue a
soberania ao Estado, o povo estaria, segundo Grócio, desprovido dela. Além
disto tal entendimento poderia dificultar a dinâmica social, na qual,
dependendo das circunstâncias e de tantos outros fatores políticos, o povo
pode sim retomar a soberania, posto que mesmo delegando os direitos civis
ao Estado, aquele continua detentor do poder originário.

Segundo: o povo, para ele, tem obrigação perpétua de obediência ao
governo. Trata-se de uma tese que caberia ampla discussão, vez que a
obediência ao governo, ou seja, ao Estado, deriva da aceitação do pacto. Os
Autores posteriores não endossaram esta tese que, aliás, não encontra
respaldo em nenhum outro contratualista, chegando a ser negada por
Rousseau.

Terceiro e último, em aberta oposição a Aristóteles Hugo Grócio sustentou
que o povo não tem direito de resistência às leis injustas, nem de rebelião
contra o tirano (De Jure, Liv. I, cap. IV). Esta última colocação grociana
parece-nos infeliz. Primeiro se for comparada com a colocação tomista,
fundada em Aristóteles, que legitima a rebelião contra o tirano, ou seja,
contra as leis injustas e, depois, se for comparada com as teses que se
firmaram na história posterior de que nenhum titular do poder pode se
utilizar dele para se voltar contra o povo de quem tal poder é emanado. E,
por cima de tudo, há que se acrescentar que o direito do soberano não é,
strito sensu, um direito natural.


O Direito Internacional


Muitos autores atribuem a Hugo Grócio o título de pai do direito
internacional. Entretanto, ele não inventou este ramo do direito, que o
antecedeu em muito. Com efeito, autores como Isidoro de Sevilha (570-636)
e Francisco de Vitória já haviam tratado de tal tema com grande
propriedade.

O primeiro foi bispo em Sevilha. Em sua obra "Etimologias", de caráter
enciclopédico, antecipou muito do que posteriormente veio a ser aproveitado
por Hugo Grócio. De fato, Isidoro entendeu o direito como a harmonia
necessária da sociedade e distinguiu cinco ramos do direito, a saber:

1) o direito natural, comum a todas as nações, justo, fundado no instinto
humano e inerente à razão dos homens;

2) o direito público, aplicável aos magistrados e sacerdotes, eis que em
sua época os sacerdotes eram funcionários públicos;

3) o direito quiritário, próprio dos cidadãos romanos, isto é, descendentes
do quirites ou lançadores – nome que se dava aos antigos romanos, depois
que se juntaram aos sabinos;

4) o direito civil ou positivo, entendido como o direito particular de
cada povo e destinado à regência interna e que considera Deus e os homens;
e

5) o direito das gentes, caracterizam-se normas sobre a guerra, paz e
diplomacia.

Assim, a concepção de direito natural emanado da natureza humana e o
entendimento de direito internacional proposto por Hugo Grócio tem como
fonte Isidoro de Sevilha. Entretanto, Grócio alargou mais essa compreensão
e, em sua obra "Do direito da guerra e da paz" tratou deste mesmo tema já
abordado em Isidoro, fazendo-o de forma mais detalhada, diante de uma
realidade mais ampla de povos diversos com interesses sobre objetos em
comum, como os mares navegáveis que passaram a ser disputados por Espanha e
Holanda.

Em Isidoro de Sevilha temos uma sociedade na qual convivem vários povos
inclusive os visigodos para os quais ele prestou seus serviços por longas
décadas. Na obra que escreveu, intitulada Historia regibus Gothorum,
Vandalorum et Suevorum ou "História dos reis dos Godos, dos Vândalos e dos
Suevos" Isidoro deixa a entender que sua intenção de que a lei seja
pública, sem contradições e obscuridades, descrita nas "Etimologias", se
insere no contexto da convivência de diversos povos em um mesmo país, a
saber, na antiga Espania, cujo território cobria o da atual Espanha,
Portugal o sul da França. Para tanto, foi necessário pensar um direito das
gentes ainda que dentro do mesmo território.

Por outro lado, em Hugo Grócio vamos ter vários povos, em vários
territórios e disputando águas internacionais, o que exigiu uma obra mais
abrangente, mas fundada no mesmo princípio segundo o qual, embora os povos
sejam diferentes entre si, a natureza humana é o elo que unifica todos os
povos do mundo.

Esta concepção mais larga do direito internacional já se fora ensaiada
também por Francisco de Vitória, cuja contribuição levou à consolidação do
direito internacional contemporâneo. Francisco de Vitória é considerado um
dos fundadores do Direito Internacional enquanto um ramo específico do
direito. Ele entendeu a sociedade internacional de forma "orgânica e
solidária" e vislumbrou o Estado dotado de soberania limitada.[6]

Seguindo por este viés, Francisco de Vitória já tinha estudado temas como a
liberdade dos mares e a guerra justa e combateu a legitimidade da doação
das terras descobertas, feita pelo papa aos portugueses e espanhóis,
argumentando que tais terra não eram do papa. É que, durante a Idade Média
e no início da Idade Moderna, era tradição recorrer ao poder do papa para
assegurar o domínio das terras descobertas.

O fundamento de tal tradição achava-se no entendimento de que toda a terra
pertence a Deus e, como o pontífice é considerado seu representante na
terra, cabia a este doar a terra aos reis. Assim, o pontífice, como
representante de Deus na terra, assegura aos reis a posse e a propriedade
das terras através de um documento denominada bula, um instrumento solene.
Nele o notário apostava um selo de ouro ou prata, autenticando sua validade
em todos os confins da terra, o que obrigava a todos, inclusive outros
soberanos excluídos, através da então autoridade incontestável do papa.

Francisco de Vitória, embora reconheceu que a Espanha tinha direito a
defender a fé cristã nos territórios descobertos, negou que tais
territórios pertenciam ao papa antes da descoberta. Além disto, entendeu,
com base no direito natural e na natureza humana, que os índios seriam
teoricamente detentores de liberdade e igualdade, ou seja, eram sujeitos da
história.

Não obstante estes estudos antecedentes, o nome Grócio foi tão bem aceito
na comunidade acadêmica que ofuscou o de Francisco de Vitória nos séculos
XVII e XVIII, cabendo ao belga Ernest Nys (1851-1920) a tarefa de
redescobrir a obra de Francisco de Vitória e, assim, trazer a lume sua
contribuição como um dos principais fundadores do direito internacional, em
especial através de suas obras "De Indis Recenter Inventis", De Jure belli
hispanorum in barbaros' e "De Potestate Civili".[7]

Assim sendo, embora exponencial, a contribuição de Hugo Grócio para o
direito internacional deve ser vista neste contexto de autores que o
antecederam. Sua contribuição está, pois, na ampliação que fez da discussão
sobre o direito internacional em um novo contexto histórico em que Espanha
e Holanda buscavam domínio sobre os mares e inclusive o reconhecimento
deste domínio no nível internacional.

Não obstante o exposto, Hugo Grócio deu importante contribuição à formação
do direito internacional. Segundo ele, "o Direito das Gentes deriva do
consentimento e vontade dos povos". Esta concepção é fundamental para se
entender a diversidade a noção de pacto internacional e, ao mesmo tempo,
identifica a vontade como um elo comum que liga todos os povos, isto é, a
vontade como manifestação da natureza humana presente em todos os povos.

O direito de paz mostra suas faces seguintes: o contrato, a propriedade, o
matrimónio, o Estado. Trata-se de uma abordagem interna corpore, isto é, no
âmbito doméstico de cada um dos Estados. Por isto, no capítulos egundo do
livro De Jure Belli ac Pacis, Grócio analisa aquelas coisas que são da
competência comum dos homens, como a origem e progresso da propriedade, o
direito de uso nas necessidades, o direito sobre a água corrente, o direito
de ir e vir, os tributos sobre as mercadorias, o direito de habitação
temporal, os lugares públicos e non-domino, o contrato de compra e venda e
o direito de contrair casamento.

Finalmente sua obra trata dos mares e dos rios: a especificação, a
ocupação, os pactos sobre navegação, lições e princípios de direito
internacional. Tudo isso é feito sob a inspiração do contratualismo. Desta
forma, o contrato se dá tanto no âmbito doméstico como no internacional.

É de se salientar que o pensamento de Hugo Grócio tem reflexos tanto no
atual direito civil como no também atual direito internacional. De fato, em
Grócio vamos encontrar a ideia de um contrato que tem por finalidade
disciplinar as relações entre os indivíduos. Este mesmo contrato se aplica
nas relações entre os indivíduos e os governos ou o Estado e, por fim,
este mesmo pacto se estabelece nas relações entre os diversos Estados
Soberanos.

Assim, fundamentado na natureza humana e amparado racionalmente, tal pacto
seria de cumprimento obrigatório, uma vez que imposto pelas próprias partes
que o assinam vinculando as vontades pré – definidas das mesmas. E é bem
por isto que se estabelece o famoso brocardo pacta sunt servanda, isto é:
os pactos devem ser cumpridos ou observados ou ainda respeitados.

Há, por fim que se dizer que Hugo Grócio entendeu por razão a faculdade
cognoscitiva das verdades fundamentais da vida social. O interesse de
Grócio se concentra nas proposições concretas do direito natural, consoante
às quais podem decidir-se as contendas da vida real no interior do Estado,
com o Estado e entre os Estados.



Considerações Finais

Na realidade, dada a limitação deste artigo, não se poderia, a rigor,
tratar de considerações finais, eis que estamos, em verdade, iniciando um
diálogo sobre este autor. Entretanto, entendemos que nossa breve análise
tenha sido suficiente para mostrar pontos relevantes da contribuição deste
autor para o Direito Internacional, em diálogo com outros autores que o
antecederam, em especial com Isidoro de Sevilha e Francisco de Vitória. Se
este escrito for suficiente para levantar alguns questionamentos ou
encorajar o leitor a conhecer mais Hugo Grócio e o contexto em que se acha
inserido, bem como os autores com quem dialogou, ele terá desempenhado um
bom papel.

E isto dizemos porque, no âmbito da comunidade acadêmica, talvez mais
importante do que uma simples publicação seja o diálogo com outros
interlocutores sobre temas relevantes, em especial quando se trata dos
fundamentos do Estado moderno, da natureza humana, das relações
internacionais e dos pactos, assuntos estes que estão presentes em Hugo
Grócio e se revestem de interesse ainda em nossos dias, até porque são
assuntos que a todos dizem respeito.





Referências Bibliográficas


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MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional
público. Rio de Janeiro: Renovar. 2000. v. 1.

VITÓRIA, Francisco de. Os índios e o direito da guerra: de indis et de jure
belli relectiones. Ijuí: Unijuí, 2006.
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[1] Licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, bacharel em Direito,
mestre e doutor em Ciência da religião, doutor em Direito e pós-doutorando
em Teologia pela EST, bolsista do CNPG/CAPES.
[2] MAQUIAVEL, Nicolau, 1994, p. 61s.
[3] BOBBIO, Norberto et al. 1986, p. 13.
[4] BOBBIO, Norberto et al. 1986, p. 14.

[5] CASTRO, Emílio Silva de. "O Eterno Retorno ao Direito Natural", apud:
RADBRUCH, Gustav. Die Erneueruag des Rechts in: Die Wandlung, 2, (1947/8-
16), disponível em: http://penademorteja.wordpress.com/2009/02/06/o-eterno-
retorno-ao-direito-natural/, acesso em 18.10.14.

[6] MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque, 2000, p. 163.
[7] MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque, 2000, p. 163.
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