DO OUTRO LADO DO ESPELHO - A inversão das imagens do Estado Novo no cinema de João Canijo

July 1, 2017 | Autor: Susana Guerra | Categoria: History, Dictatorships, Cinema, Historia, Estado Novo, Memoria
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DO OUTRO LADO DO ESPELHO A INVERSÃO DAS IMAGENS DO ESTADO NOVO NO CINEMA DE JOÃO CANIJO SUSANA GUERRA*1

Nas suas aventuras subterrâneas [Alice] é atormentada pela ideia de não ser quem ela pensa que é, ou até de deixar de ser, o que leva, inevitavelmente, ao terrível enigma que lhe coloca a lagarta: “Quem és tu? […] Alice responde com certa timidez: -Pois... pois acho que neste momento não sei, senhora...”. [...] Alice e a lagarta sabem que nos definimos pelo que recordamos, já que as nossas lembranças são as nossas biografias e guardam uma imagens do nós próprios. [...] Alice concebe uma maneira diferente de decidir por si própria quem poderia ser. Presa na toca do coelho, pergunta-se quem é realmente e nega-se a ser quem não quer. Alberto Manguel. Una historia natural de la curiosidad. Alianza Editorial: Madrid, 2015, pp.208;210. (Tradução da autora)

Em 1940, é inaugurada em Lisboa a Exposição do Mundo Português. Por essa altura, o mundo estava convulsionado, mas a agitação em Portugal era de outra ordem. Em Lisboa, a capital resplandecente de luz, festejavam-se as datas pátrias da fundação da nação e da restauração da independência tingidas de sublime, enquanto que a Europa, oprimida pelo blackout, se cobria de escuridão para desaparecer noite dentro. Governava o país uma aliança entre as Forças Armadas, a Igreja Católica e uma série de grupos econômicos, que daria lugar a um regime de carácter corporativo, fortemente repressivo e violento, aninhado no seio do autoritarismo que assolava a Europa. Instável e em crise, a ditadura militar que havia encerrado a breve experiência republicana, chamara António Oliveira Salazar ao poder em 1928, que num ano resolve o problema financeiro. Em 1933, Salazar substituíra o governo militar pelo Estado Novo, do qual seria líder incontestado até à sua morte, em 1970. Indiferente aos dramas sociais da maioria da população,

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*Bolsista de pós-doutorado pela UFPA/CAPES/PNPD.

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predominantemente rural e isolada naquele que era o país mais miserável da Europa, o Estado Novo de Salazar beneficiava da “vasta retaguarda social e mental desse país de camponeses, artesãos, comerciantes, pequenos funcionários, o viveiro natural da cultura de resignação e obediência que impregnava a mentalidade geral e o ‘ser social’ português”2. Num artigo de jornal publicado em 1932, o jornalista António Ferro (que no ano seguinte seria o diretor do Secretariado de Propaganda Nacional) dizia do modo de suavizar os efeitos da violência sobre a população: As paradas, as festas, os emblemas e os ritos são necessários, indispensáveis, para que as ideias não caiam no vazio, não caiam no tédio… A supressão forçada, necessária, de certas liberdades, de

certos direitos humanos, tem de ser coroada através de alegria, do

entusiasmo, da fé. (FERRO apud SANTOS, 2008: 63)

A violência evocada por Ferro se tornaria omnipresente na vida dos portugueses, inculcando o medo no cotidiano. Desde 1945, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) procede à disseminação do terror assente, sobretudo, na prática da delação: todos podiam ser “bufos”, e estavam por todos os lados -uma breve conversa entre vizinhos ou familiares podia condenar, em regime de exceção, à detenção, tortura e assassinato. Entre os visados se encontrava a grande maioria da população, quer os que engrossavam a resistência ao regime e à ordem estabelecida (sendo os comunistas o alvo preferencial das perseguições), quer os que se encontravam alheados ou descomprometidos com o político. Aliado à repressão, o SPN (Secretariado de Propaganda Nacional) procedia à estetização do salazarismo, com base a doutrina da “política do espírito”, criada por Ferro – o programa cultural oficial que determinava a orientação da produção artística dentro do enquadramento ideológico do regime, em nome da sua exaltação e manutenção. Segundo Graça dos Santos: Com a “política do espírito”, que inclui iniciativas como a “Campanha do bom gosto” (que tentava apagar as imagens de pobreza), António Ferro consegue ao mesmo tempo utilizar o mundo das artes para a promoção da ideologia salazarista e impor alguns traços e processos identificáveis, procedendo à criação dum país mítico com a maquilhagem do real. (SANTOS, 2008: 64)

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Segundo Fernando Rosas.

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A 25 de Abril de 1974, abre-se finalmente o caminho à democracia em Portugal, com uma revolução que põe fim a quarenta e oito anos de ditadura. Abril também colocou um fim à guerra colonial, conflito iniciado por Salazar contra a autodeterminação dos territórios ultramarinos em África, que se prolongou por treze anos.

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Invariavelmente, quando falamos da ditadura, remetemos o evento para o passado; no caso português, algo que já passou, que teve o seu termo, há quarenta anos. Impondo-lhe um encerro, tratando o tema da ditadura como algo que está concluído, esconjuramos, inconscientemente, um período da história que, longe de reunir consenso quando abordado, ganha por vezes essa forma ambígua e incômoda das imagens pouco evocadas. Contudo, ao empreender o trabalho de resgate das memórias da ditadura constatamos que esse fim não é mais que uma ilusão. Essa persistência do passado ditatorial no presente democrático tem sido evocada de forma singular por uma série de produções cinematográficas a que temos vindo a assistir em Portugal, movidas pela resistência aos discursos que alegam o passo do tempo, mas também pela resistência às amnistias concedidas, à crescente banalização do tema e à indiferença generalizada por uma justiça que não chegou nunca a ter lugar. Marcadas por uma visão crítica renovada, e com o fim do impedimento legal que condicionava os arquivos da ditadura, as abordagens cinematográficas mais recentes têm-se centrado no uso das imagens oficiais entretanto recuperadas. Ainda que produzidas pelo regime, estas imagens abrem-nos a possibilidade de rever temas esbatidos pelo tempo e relançar o debate sobre uma série de questões inerentes à própria produção dessas imagens, ao seu uso pelo poder e ao modo em que finalmente, hoje, podemos entender essas imagens fora do aparato ideológico que as originou. Ao mesmo tempo, essa nova geração de realizadores tem vindo a valorizar a memória contida nos testemunhos dos que viveram esses acontecimentos, num confronto tenso e difícil com a sedimentação da memória oficial da ditadura que, em muitos casos, de forma unilateral e acrítica, sobredeterminara os programas educativos, a pesquisa acadêmica e a significação dos eventos cívicos. Na tentativa de

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interromper o silêncio, exigindo justiça onde esta não existe, vão desfiando os mitos do salazarismo e a sua velada consumação no presente.

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Em 2010, João Canijo produz Fantasia Lusitana, filme que propõe uma releitura das imagens do regime salazarista, procurando exceder o seu funcionamento ideológico em direção ao profundo mal-estar que ocultam. O filme está fundado sobre uma seleção de jornais cinematográficos das décadas de 30 e 40, produzidos pelo Secretariado de Propaganda Nacional, e começa com uma sucessão de atualidades onde predominam as imagens militares e bélicas. Assistimos ao desfile das tropas exibindo o material de guerra, a exercícios sincronizados de ginástica masculina, à celebração de datas históricas e manifestações populares, de apoio ao governo. Seguem-se peças sobre a guerra que decorre na Europa, sucedem-se as imagens de bombas sendo lançadas sobre uma cidade que se desmorona em meio a grandes incêndios; uma notícia pretende explicar o que é uma blitz; mais bombardeamentos, populações em fuga, cenas de despedidas, crianças que se amontoam, coisas que são deixadas para trás. Acompanhadas por uma locução off, lembramnos dos horrores que causa a guerra nos países beligerantes. O bloco encerra com imagens das ruas de Lisboa, onde os prédios exibem as janelas cobertas com faixas para evitar os estilhaços, na eventualidade de um ataque aéreo, em ruas barricadas com artilharia. Em meio a tudo isto, a elite reúne-se nos encontros oficiais do governo, ou marca presença em celebrações religiosas e eventos culturais. Compreendemos que a preocupação que subjaz a todas estas imagens é a de reafirmar a neutralidade portuguesa na guerra, feito atribuído a Salazar, e o seu corolário imediato: o estado de paz (em plena guerra) e de permanente celebração (num dos períodos mais obscuros da história), que se vive nas ruas de Lisboa. Trechos dos discursos de Salazar, inseridos no filme, acabam por impor às imagens esse sentido. Procurando problematizar essa evidência, Canijo introduz no filme outras vozes. Trata-se do testemunho de refugiados que passam por Lisboa, como destino final ou plataforma de trânsito a caminho do exílio na América, e que enchem as ruas da capital de

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gente das mais variadas proveniências e costumes. Alfred Döblin, Erika Mann, Antoine de Saint-Exupéry são as vozes solitárias, improváveis mas privilegiadas, que permitem ouvir (e, indiretamente, ver) uma outra história, pela perspectiva marginal e inesperada que abre a uma reflexão em desarmonia com as narrativas do regime. A recuperação de breves trechos destas considerações, das experiências registadas em cartas e diários, revela-nos o que seria, para um estrangeiro, viver na Lisboa de 40: entristecem-se com a extravagância da luz do sol, desesperam nos espaços públicos repletos, condenam as exibições opulentas e incômodas dos que encenam uma falsa rotina, conhecem a angústia do exílio e a vulnerabilidade em que se encontram. Com eles, sentimos o peso de presenciar uma farsa em cada manifestação cotidiana, em cada celebração, em cada ato de governo. Da mesma forma, pouco a pouco, as imagens da propaganda tornam-se cada vez mais ambíguas, ganhando um sentido inesperado, presas da mesma angústia manifestada pelos estrangeiros. Vemos imagens de homens e mulheres, sozinhos ou em grupos, congelados numa espera indefinida, em filas para obter qualquer coisa, seja notícias, correspondência ou alimentos. Muitas das imagens mostram pessoas sentadas ao lado de malas e embrulhos, amontoados na rua ou na gare de estações de trem. Rostos apáticos preenchem os planos. Olham algo distante, manifestam cansaço, revelam uma vida interrompida. E as imagens, conciliadoras e consensuais, deixam então de ser meros acessórios do mito para passar a perturbá-lo. Gradualmente, percebemos o desajuste entre o que é dito e o que é mostrado que acaba por suspender o funcionamento do discurso da propaganda, num movimento que revela que o mito salazarista da neutralidade e da paz social, é apenas isso -uma ficção, uma fantasia. Quando o filme retome as narrativas do regime e as imagens oficiais, já nada fará sentido. O seu funcionamento ideológico foi perturbado irremediavelmente. Canijo identifica no Estado Novo uma fantasia, uma forma de carnaval que, sobrepondo-se ao real, anulou-o durante quase cinquenta anos. Não o faz explicitamente (não há no filme uma narrativa que conduza as imagens), mas a montagem paralela dos testemunhos dos refugiados proporciona essa subtil abertura, excedendo e questionando as imagens conciliadoras do regime. O desajuste entre o que é dito e o que é mostrado suspende, assim, o discurso hermético da propaganda.

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Vejamos um exemplo. Vemos imagens da Exposição do Mundo Português de 1940, que celebram o papel civilizador assumido nos territórios ultramarinos. A grande atração são as reproduções de aldeias portuguesas, com figurantes encenando a vida cotidiana. O que observamos são pessoas, dispostas em aldeias cenográficas, trajando roupas regionais e entregues a tarefas arcaicas: um homem lava roupa num tanque, outros dois cortam madeira, as mulheres entrançam palha com a qual fabricam artefatos ou cozem roupa sentadas na soleira da porta; vão a missa, recolhem água de uma fonte, um pastor guarda um rebanho, as paisagens são dominadas pela luz avassaladora do sol. Mais adiante, assistimos ao desfile dos “grandes homens de pedra”, onde figurantes se transvestem de personalidades históricas, e desfilam ao lado de animais: há um imenso leão, que jaz adormecido enquanto é transportado por um carro de bois, arquejante e sofrendo sob o calor do sol. Também desfilam outros animais de grande porte e exotismo: um elefante, vários cavalos, aos quais, curiosamente, se segue um grupo de figurantes que caminham juntos, retratando judeus, curvados e andrajosos, seguidos pelos “moiros”, trajando claro e portando uma atitude altiva. Para além das reproduções de aldeias portuguesas, há também as aldeias dos indígenas, vividas por figurantes trazidos do império. Mais uma vez, a câmara desfila pelas tarefas cotidianas representadas nestes cenários: uma família exibe-se em seus trajes típicos de guerra, uma criança executa uma dança, outras crianças recebem aulas das freiras da missão. As tarefas da vida da comunidade não parecem diferir muito das antes representadas no palco português, do seu universo rural. Em paralelo ao falso ouropel das celebrações, Canijo introduz novamente as imagens dissonantes dos refugiados. Novamente imagens de espera, mas que carregam em si uma angústia maior. A voz que narra fala em tristeza, reflexo do sentimento de opressão que domina os estrangeiros, e as imagens revelam essa tristeza: os olhares são vagos ou ansiosos, as mãos estão quase sempre perto do rosto, ou escondendo-o; a multidão domina as ruas, caminha apertada e enche os espaços confusamente. As filas e os papéis parecem igualmente dominar as cenas – há quase sempre alguém que está segurando um papel, e a maioria parece estar perdida. A dada altura, a narrativa retoma o discurso oficial das atualidades sobre a carestia vivida nas cidades europeias sujeitas à guerra. As imagens que as ilustram mais uma vez

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representam as condições de vida da população portuguesa. Numa feira, vemos os produtos da terra exibidos em grandes quantidades. A câmara pretendeu filmar a abundância, mas filmou também, revelando, os modos arcaicos: os burros no curral são descritos, inacreditavelmente, como o meio de transporte mais eficaz (em 1940!). Mas, sobretudo, as imagens já não convencem, parecem infetadas de irrealidade: a fantasia trai o pesadelo. Numa nova sequência, Salazar discursa no Terreiro do Paço, e as imagens mostram a aclamação popular do líder do Estado Novo (são milhares de pessoas acantonadas numa das praças principais de Lisboa, portando cartazes de agradecimento). Assistimos, novamente, ao constante clima de festa de que se jacta o regime. Mas Canijo subverte habilmente essas imagens deixando ouvir um fado de fundo: a letra diz (involuntariamente?) das condições inumanas do trabalho, da pobreza resignada, do atraso no qual o país está mergulhado. E tal como nas imagens das atualidades anteriores, a luz do sol banha as cenas, mas agora parece colocar em risco o próprio filme, envolvendo as figuras numa claridade abrasadora. Seguem imagens de camponeses deslocando-se para os seus trabalhos; vemos as vindimas, a apanha do arroz, as pessoas submergidas em água e lama até aos joelhos, sob um sol enlouquecedor. Mulheres e crianças carregam baldes de água, fardos de palha ridiculamente grandes à cabeça – tudo parece equilibrar-se na cabeça dessas pessoas, dobrando-as. Vestidas de negro, arrastam-se pelo chão pagando promessas; estão quase sempre descalças; com o corpo e a cabeça coberta por mantas, dormem no chão, estão isoladas. Essa é a natureza do seu cotidiano, não a fantasia que propaga o regime. Finalmente, as tensões subjacentes (que existiam mas não se viam, ocultadas pela produção e difusão das imagens do consenso) também passam a manifestar-se nestas algumas fotografias e filmes da época (as imagens oficiais do regime). As imagens fazem isso sozinhas ou foram as intervenções preliminares de Canijo que as abriram a essa variação do sentido? O certo é que, quebrando o encantamento sob o qual se mostrava o regime, o filme resgata um ruído de fundo que nos incomoda, que nos faz pensar em tudo o que vimos até aqui (no filme em questão mas também nos livros de história, nos documentários tradicionais e nos arquivos fotográficos). E, no final, duvidamos de tudo. De que modo Canijo consegue pôr-nos a pensar nestas imagens, onde parecia não radicar pensamento nenhum? À medida que o filme se acerca do final, a manifestação das

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tensões que atravessam o regime acaba por ganhar uma forma mais evidente. Uma vez mais sob a voz de Salazar, retomando o discurso do governo, a violência surge em imagens de pobreza e perseguições. Um grupo de mulheres (operárias) corre pelas ruas perseguidas pela polícia armada. Uma delas, em primeiro plano, arrasta, angustiada, o filho, em traje escolar. Ao lado dela, uma idosa grita, a cabeça envolta num pano escuro. Outra mulher corre descalça. Antes, um plano de um pormenor da imagem põe em evidência o momento em que um polícia se prepara para atingir com a coronha da sua arma o rosto de uma das mulheres em fuga. Fora de cena, deslocadas, continuam as imagens de extrema vulnerabilidade em pescadores e varinas, numa imagem em que a recolha do peixe no cais, de madrugada, os apresenta no seu aspeto despojado, roupas escuras indistintas, marcas da pobreza no rosto. Nas estradas de terra, gente que caminha ao lado de burros. Canijo seleciona e monta este material com um objeto – problematizar o sentido das imagens da ditadura e questionar o mito da neutralidade portuguesa e da paz social salazarista durante a Segunda Guerra. Naquilo que a obra tem de mais notável, reconhece o poder dos recursos imagéticos usados pelo regime, e pelo uso dos mesmos meios utilizados – o cinema – faz com que surja um novo ponto de vista, que não oculta um mundo (in)existente, mas que o revela. Expondo as imagens a uma interpretação distinta e alternativa, quebra a tendência do nosso olhar conformado pela evidência das representações reproduzidas ainda hoje de forma acrítica.

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Como consegue Canijo operar todos esses fenômenos de sentido? O que faz, para por a falar as imagens, fora daquilo que elas sempre disseram, alterando a função para a qual foram criadas? E o que diz isso do cinema, da sua potência para criticar aquilo para cuja edificação contribuiu? 1) Para começar, Canijo opera um deslocamento das imagens, dos seus lugares originais de consumo para um espaço novo, associado ao cinema de arte. Nesse circuito alternativo de exibição, as imagens já não se oferecem apenas ao consumo, mas apelam a que nos relacionemos criticamente com o que vemos. Isto não é secundário, se tivermos em conta

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o espaço no qual circularam as imagens em questão na época em que foram produzidas (e os modos de recepção que esses espaços privilegiavam). Nos primeiros anos do cinema como indústria, as imagens ganharam muitas vezes uma função peculiar quando projetadas no âmbito de regimes autoritários, e a projeção de filmes esteve sujeita a uma lógica distinta da que conhecemos hoje. O cinema, aliado à propaganda, afirmou-se nomeadamente como um espaço de doutrinamento. Produzindo pequenas peças de atualidades cinematográficas e documentários oficiais, contribuía para impor uma imagem oficial do estado das coisas. À semelhança de outros produtos análogos, o Jornal Português3 estava composto por notícias e, nessa medida, reclamava um valor de verdade intrínseco. Ao mesmo tempo, a esta breve amostra de informação, à exposição das imagens do documentário oficial do regime, costumava seguir-se imediatamente a exibição de longas-metragens de ficção. Esse movimento, do momento informativo, a priori sério e verdadeiro, ao momento da fantasia e da ficção, logo, da suspensão da incredulidade, dificultava a possibilidade de uma reflexão sobre o que se acabava de ver e ouvir nas atualidades. A isto há que somar que a ficção portuguesa da época também não se subtraía ao caráter ideológico do regime, e estava sujeita à censura prévia, filmando em geral argumentos de concepção simples e popular, que veiculavam e reforçavam os valores morais tradicionais afetos ao governo. É o tempo da evocação dos heróis históricos, em dramas de exaltação nacionalista, e das comédias musicais, personificadas por atores do teatro de Revista, que se desenrolavam em pitorescos cenários populares, que se ofereciam como retrato fiel da vida e da população portuguesa. Pensados para um consumo tão rápido quanto decodificado, não permitiam qualquer margem para a inquietação ou a dúvida. Em resumo, a relação com as imagens das atualidades estava fortemente condicionada pela dinâmica do dispositivo de exibição. Não se pode passar por alto a preocupação com a produção e difusão do cinema pelo regime, que em parte cifrava nas suas imagens a doutrinação de uma população constituída na sua maioria por analfabetos. Notemos que os dispositivos cinematográficos onde filmes como os de Canijo se inscrevem apresentam caraterísticas muito diferentes (que inclusive acabaram por condenar esses espaços ao encerramento face à hegemonia da indústria de lazer). Em festivais ou cinematecas, no segundo canal da televisão pública ou nas edições em DVD, somos 3

O Jornal Português foi a primeira edição de atualidades cinematográficas produzida em Portugal.

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convidados a assumir uma posição singular, onde se privilegia a reflexão do que vemos por oposição à assimilação acrítica. Retiradas do seu contexto original, inclusive as imagens do Estado Novo nos põem a pensar. 2) Em segundo lugar, Canijo nos propõe, como vimos, uma montagem surpreendente das imagens que já foram usadas pela propaganda do Estado Novo. Procurando problematizalas, as justapõe como numa colagem dadaísta, colocando em contato imagens e palavras cuja inesperada vizinhança produz uma forte sensação de estranhamento. Não as alinha numa narrativa polarizada, mas as deixa decorrer em uma ordem aparentemente sem direção prévia (não pressupõe uma intriga, não parte de um argumento). E, nessa excêntrica repetição, veem muitas vezes o seu sentido invertido, suscitando no espectador reações contraditórias, e uma inevitável ironia, pelo ridículo que resulta da montagem, expondo-as a uma variação imponderável do seu sentido. 3) Por fim, fazendo proliferar o sentido dessas imagens que pareciam esgotadas, encerradas na desgastada glorificação do Estado Novo, Canijo provoca um questionamento do próprio cinema. O estado corporativo de Salazar desprezava o progresso, mas servia-se do meio mais moderno para veicular o seu programa, porque sabia do seu poder de persuasão. As imagens produzidas pelo Estado Novo não só eram conduzidas à população, fazendo-a aceitar e confiar no seu lugar providencial e nas suas consequências, como também as colocava à disposição da elite, fazendo-a acreditar que a presença nas colônias se revestia de prestígio e sucesso. Grande parte da população, seduzida, consumiu a ilusão, viveu a ficção montada pelo regime (e por vezes parece continuar a fazê-lo). Com a revisitação do modo em que as imagens construíram e reforçaram o mito salazarista, Canijo abre a oportunidade para uma reflexão sobre a potência do cinema, concretizando, na autocrítica que subjaz ao filme, a capacidade do próprio cinema para interromper as imagens de consenso, tornando possível que as imagens nos afetem de outro modo (interrogando-nos, questionando-nos e, em última instância, despertando-nos para que assumamos a nossa responsabilidade perante o mundo que as imagens refletem ou refratam). Ao explorar as possibilidades do cinema enquanto propagador de uma ilusão, Fantasia Lusitana recorda-nos do papel do cinema e das imagens para a história, do seu poder e eficácia na construção de mitos e ideias que serviram muitas vezes para consolidar e perpetuar regimes autoritários. Fazendo isso, o cinema converte-se em

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um dispositivo crítico e se redime, em certa medida, dos pesados compromissos que assumiu no passado (e continua a assumir frequentemente no presente).

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Na releitura que faz do passado, o filme de Canijo vê o Estado Novo como uma farsa assente numa construção fictícia do que seria Portugal. Numa conjuntura em que a ordem se ressentia dos confrontos internos e externos, que colocavam em causa a própria legitimidade do governo, as imagens do poder alinhavam a “realidade” com o discurso hermético da propaganda, consagrando-o. O que não se encaixava nesse discurso era apagado, não era visto, anulado por uma intenção inicial que não permitia a criação da dúvida perante a encenação – e essa intenção era o desejo de esconder a violência que estava a ser exercida nesse momento sobre a população portuguesa. Uma descrição final, porventura a mais significativa de todo o filme, de uma imagem que, nas diversas leituras que permite, parece a um dado momento, querer abranger dois pontos essenciais da obra de Canijo: por um lado, metáfora da decadência e queda do regime; por outro, crítica ao próprio funcionamento do cinema, uma crítica feita no mesmo lugar da sua produção, uma crítica ao cinema pelo cinema – o seu filme, denunciando os mecanismos do uso da imagem, da potência e dos riscos da montagem. A imagem é a captada no batismo da nau Portugal, uma embarcação alegórica em alusão aos descobrimentos, durante a Exposição do Mundo Português de 1940. As câmaras estão a postos. A nau destaca-se ao longe, elevando-se por detrás de uma série de barcos menores, presos ao cais. A população observa a cerimônia. A câmara oferece-nos o plano dessa multidão através da portinhola de um canhão. Alguns homens quebram as escoras, os marinheiros acenam da proa e se equilibram nos mastros. A nau desliza, toca as águas. Mas não chega a avançar. Sob os olhares do público, perante as câmaras que estão aí para perpetuar o momento, o barco tomba e naufraga. Os marinheiros abandonam a nau, saltam à água, é cada um por si. A alegoria da glória do império devém imprevisivelmente alegoria da sua decadência. E o cinema, que durante décadas se dedicara a ocultar tudo isso, procura agora revelar, ao mesmo tempo, a realidade velada e o seu papel na construção da fantasia.

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Essas imagens, ao mesmo tempo hilariantes e trágicas, que tiram toda a credibilidade ao regime salazarista, quiçá devolvam ao cinema a sua ambiguidade essencial.

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Fantasia Lusitana deu lugar a uma série de entrevistas de Canijo em torno da relação entre o cinema e a história. Para concluir, gostaria de deter-me sobre algumas dessas intervenções. Em 20114, Canijo revela-nos o inesperado motivo que o faria alterar o protejo inicial do seu filme, levando-o a assumir uma obra completamente distinta da que lhe havia sido encomendada: uma conversa com o seu filho adolescente sobre uma aula de História. Canijo diz: “pouco tempo antes, um professor de História do meu filho, que andava no 9º ano, deu uma aula em que explicou algumas das virtudes do salazarismo. Então decidi fazer o filme para o meu filho, para os miúdos, e explicar-lhes como as coisas realmente eram”. Canijo identifica uma continuidade entre as diferentes formas de governo em Portugal, que perpetuam, ainda hoje, a fantasia do que significa ser português, contribuindo para o enraizamento de certos mitos identitários: “Há aquele discurso sobre o verdadeiro espírito português, a humildade, a disciplina... O Dr. Cavaco continua a dizer a mesma coisa. (...) Estamos convencidos de que temos uma história gloriosa. Isso percebe-se ao ver a Exposição do Mundo Português: continuam a ser esses os mitos dos miúdos do liceu” (Câmara, 2010). O pessimismo toma conta das respostas de Canijo. Teme que nada vá mudar nunca, que as coisas não têm remédio. Podemos entender esse pessimismo: ao penetrar na relação que mantém com o cinema, vemos que os seus filmes não nos oferecem respostas; antes, apelam a que nos atrevamos a reconhecer as questões que são colocadas. Fantasia Lusitana simplesmente pretende desmistificar, ironizar e subverter os valores que sempre tivemos como dados – a construção artificial da realidade portuguesa. Não obstante, esse ato constitui, claramente, uma denúncia: Canijo revela uma estrutura de poder, cujo aspecto mais nocivo se encontra nas consequências que projeta sobre 4

Por ocasião da estreia de “Sangue do meu Sangue”.

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o nosso futuro – é esse estado de coisas que impede que hoje exista uma perspectiva de mudança em Portugal. Mas, o que é Portugal se não essa fantasia, que induz o cepticismo e a resignação à hora de agir? Responder a essa pergunta implica uma tarefa. Canijo pretende que cada um procure a sua interpretação sobre aquilo que vê. A sua proposta está associada a uma possibilidade de ação – a resistência. Acredita na possibilidade de minar a estrutura que conserva os mitos, através da luta contra as estruturas de sentido que determinam aquilo a que podemos ou não aspirar, aquilo que é ou não é possível. Pensar quem somos e o que queremos ser é crucial para reverter a relação de forças naturalizada por uma forma da ideologia que não conseguiu desfazer completamente a revolução de Abril. Assim, num movimento sobre nós próprios, voltando o olhar sobre o nosso passado, quiçá consigamos abrir a possibilidade de compreender a realidade dupla do nosso presente, reconhecendo debaixo da superfície frágil das democracias em que vivemos, a agitação de uma história que não se encontra encerrada.

Referências bibliográficas BARROS, Eurico de (2010), “O que havia de arquivo está aqui, espremidinho”. (http://www.dn.pt/inicio/artes/interior.aspx?content_id=1549191&seccao=Cinema, consultado em Junho de 2014). CÂMARA,

Vasco

(2010),

“João:

Canijo:

Acho

que

isto

não

tem

cura.”.

(http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/joao-canijo-acho-que-isto-nao-tem-cura-255087, consultado em Junho de 2014). CANIJO, João (2010), Fantasia Lusitana, Portugal: Periferia Filmes, 65'. MADUREIRA, Nuno (2013) ,“Cada vez me interessa mais confundir realidade e ficção”, (http://www.tvi24.iol.pt/sociedade/videos/cada-vez-me-interessa-mais-confundir-realidade-eficcao, consultado em Janeiro de 2015). MONTEIRO,

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(2011),

“João

Canijo:

Trabalho

de

(http://www.ruadebaixo.com/joao- canijo.html, consultado em Fevereiro de 2015).

realizador”,

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