Do patrimônio histórico ao patrimônio cultural: diálogos e interações na aplicação de políticas públicas de preservação.

June 4, 2017 | Autor: A. Sapiezinskas K... | Categoria: Patrimonio Cultural, Interações Sociais
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PATRIMÔNIO CULTURAL: DIÁLOGOS E INTERAÇÕES NA APLICAÇÃO DAS POLÍTICAS

ARTIGOS

DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO AO

PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO

ALINE SAPIEZINKAS*

Palavras-chave: Patrimônio histórico. Patrimônio cultural. Identidade local. Interações sociais

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origem da conservação de monumentos históricos na Europa pode ser localizada na Itália, mais precisamente em Roma, por volta de 1420, quando Martinho V restabelece a sede do papado na cidade desmantelada à qual deseja restituir o seu poder e o seu prestígio (CHOAY, 2000, p. 29). O objetivo é o processo de apropriação dos monumentos gregos pelos romanos, no intuito de confirmar o passado glorioso de Roma. Poderíamos voltar mais na história para localizar ali a existência de monumentos, todavia, a diferença que marca esse momento histórico e não outro é o fato de seu valor estar no modelo que representa, suscitando uma arte de viver que era própria dos Gregos. Cabe ressaltar que, nesse momento, tratava-se mais da apropriação concreta de fragmentos da arquitetura ou de

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Resumo: o presente artigo traça um breve histórico do percurso da noção de patrimônio histórico, desde sua origem como conceito ligado aos monumentos na Europa até chegar em sua aplicação mais recente, nas políticas públicas de resgate e preservação do patrimônio cultural no Brasil. Buscando uma perspectiva pluralista, procura mostrar o ponto de vista dos moradores de casas tombadas, adicionando o aspecto de recepção das políticas públicas pelos cidadãos envolvidos no processo.

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objetos de artesanato que ganhavam um novo valor de uso nas ruas e nas habitações dos Romanos do que propriamente de uma atitude reflexiva por parte destes. Não havia ainda qualquer projeto concreto de preservação. O que ocorre neste momento é a tomada de consciência do valor histórico e artístico dos monumentos da Antiguidade. A partir de 1430 e do pontificado de Eugênio IV é que os humanistas de sua corte passam a reclamar a conservação e proteção dos monumentos romanos: “é aos papas que compete a tarefa da preservação. Mas trata-se, agora, de uma conservação moderna, já não apropriadora e lesiva, mas distanciada, objetiva e provida de medidas de restauro e de proteção dos edifícios antigos contra as agressões múltiplas de que são alvo” (CHOAY, 2000, p. 44). Mais tarde, na França da época da Revolução Francesa, volta-se a pensar na preservação dos monumentos. Segundo Choay (2000, p.85), em função das grandes destruições ocorridas, organizaram-se neste período as primeiras instruções de um projeto que ganhou forma na constituição da primeira Comissão dos Monumentos Históricos, em 1837. O patrimônio transmitido da Igreja para o povo como forma de herança reunia bens imóveis, monumentos e estátuas, e representava a propriedade pública e coletiva, lançando as bases para a construção da noção de patrimônio nacional. Incluía também antiguidades nacionais, antiguidades greco-romanas e prédios de arquitetura moderna e contemporânea. Tanto os monumentos poupados quanto os monumentos destruídos pelas forças revolucionárias, na França, possuíam um valor simbólico, associado ao que representavam. Por esse motivo, ensejavam um uso político de seus significados, como forma de mobilização e concentração das atenções do povo para objetivos definidos. A noção de patrimônio histórico desde o momento de sua origem corresponde aos bens imóveis, prédios e monumentos públicos, e aos valores simbólicos que eles representam emblematicamente para o império, no caso de Roma, e poste-

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riormente para a nação moderna. Os valores e características culturais de um povo seriam então socialmente compartilhados e simbolicamente projetados sobre a propriedade coletiva, seu patrimônio. Os monumentos patrimoniais na França contribuem para a construção da história, ou de uma memória histórica que vai mobilizar os sentimentos de pertencimento dos cidadãos em relação ao seu país, com uma função afetiva que relaciona patrimônio histórico e valores nacionais. Este país inova instaurando uma política de gestão e conservação do patrimônio histórico como um negócio do Estado, como também ocorreu na Itália, mas essa política não é mantida com o mesmo interesse nos anos seguintes à revolução. Os dados históricos trazidos até aqui nos servem principalmente para ressaltar um sentido comum da relação entre patrimônio e identidade: “indivíduos e sociedades não podem preservar e desenvolver a sua identidade senão na duração e através da memória” (CHOAY, 2000, p. 95). Mais recentemente a noção de Patrimônio passa a ser tratada de modo mais amplo, envolvendo o aspecto cultural que nele sempre esteve presente. HANDLER (1985), por exemplo, discute a questão do patrimônio nacional a partir do caso do Quebec, no Canadá, enfocando a ideia de propriedade cultural. Para este autor, falar em patrimônio é remeter-se à cultura nacional como propriedade e à nação como proprietário “coletivo individual”, envolvendo a ideia de “coisa antiga”, ou seja, marcada de alguma forma pela passagem do tempo. Essa definição permite que qualquer aspecto da vida humana possa ser imaginado como objeto, delimitado no tempo e no espaço, e associado como propriedade de um grupo, que se imagina histórica e territorialmente delimitado. O pressuposto fundamental de toda a ideologia nacionalista do CanadáFrancês e do Quebec é de que existe uma nação individuada, delimitada tanto geograficamente quanto em termos de seus traços constitutivos, o que a torna diferente de todas as demais individualidades.

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Para uma definição de patrimônio, temos algumas características principais que contribuem para o seu entendimento conceitual, tais como a necessidade da passagem do tempo na forma de duração da memória, que é fator principal da construção de uma identidade, individual ou coletiva. Além disso, os critérios para reconhecimento de um bem como patrimonial depende de uma atribuição de valores. Os valores atribuídos aos bens podem ser originários de uma memória afetiva, ou podem constituir referências cognitivas para profissões e ofícios, reconstruindo histórias, artes, costumes e técnicas próprios de saberes específicos. Pode também ser levado em conta o valor econômico, tanto dos bens em si como da possível exploração turística, e finalmente o valor artístico, dado que na época do surgimento do conceito de patrimônio nacional, a noção de estética era ainda recente (CHOAY, 2000, p. 99). Sem a intenção de fazer um inventário completo das práticas históricas com relação ao patrimônio histórico, o que se buscou nestas linhas foi ilustrar a noção primitiva de patrimônio na Europa, e localizar o princípio da preocupação de preservação dos monumentos. Localizada a origem da noção de patrimônio, descobrimo-la vinculada à Modernidade e associada ao processo de constituição de um país como uma nação, o que nos leva à necessidade da definição do conceito de nação, uma tarefa complexa. Como ponto de partida, tomo de empréstimo a definição de Benedict Anderson de nação como uma “comunidade política imaginada” (ANDERSON, 1983). Para torná-la consistente foi necessário fazer brotar as suas tradições, criar o sentimento de identidade nacional, embora hoje o termo não se mostre tão homogêneo ou satisfatório para definir as inúmeras variações no modelo de nação que podemos encontrar ao redor do globo, conforme discutiremos adiante. Hobsbawn debruça-se sobre a questão da nação e dos nacionalismos e sublinha que “o nacionalismo é historicamen-

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te menos importante. Não é mais como antes um programa político global, como se poderia dizer que foi nos séculos XIX e início do XX” (HOBSBAWN, 1998, p. 214). Para o autor, o mundo não pode mais ser contido dentro dos limites que costumavam ser conhecidos, política, econômica, linguística ou culturalmente. Entretanto, as identidades locais mostram-se reforçadas, e as tradições ainda têm um papel a cumprir frente ao enfraquecimento das antigas fronteiras políticas que definiam os limites do que se conhecia como nação. As pessoas continuam desejando pertencer a um grupo, ou a mais de um, e identificar-se com os símbolos e valores, inventados ou não, que o orientam na identificação do seu lugar no mundo. Para Hobsbawn (1992, p. 12), “a invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição”. De um modo geral, na elaboração das tradições inventadas empregam-se elementos antigos para finalidades bastante originais, pois encontra-se no passado de qualquer sociedade um amplo repertório de práticas e comunicações simbólicas. Muitas instituições políticas, inclusive o nacionalismo, buscam elementos simbólicos retirados do passado para a construção de uma continuidade histórica, associada a símbolos e acessórios inteiramente novos na construção de um conjunto de referencial identitário. Na construção de tradições e de símbolos nacionais, diversos elementos podem ser mobilizados para concentrar o sentimento de nacionalismo. Assim na Europa inicialmente, e depois no resto do mundo, as políticas de identificação e conservação do patrimônio histórico contribuíram na construção e reforço de identidades locais, orientadas por diretrizes globais. Reconhecendo a importância de verificar como operam as representações sociais e os processos de atribuição de significados e reapropriação do espaço para as pessoas que estão envolvidas nos programas de preservação do patrimônio

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edificado, tentamos mostrar como os moradores de bens imóveis tombados estão recebendo e lidando com essas políticas públicas. Para situar melhor o contexto da pesquisa de campo, foi traçado um pequeno histórico do surgimento das políticas de preservação patrimonial no Brasil. Partindo da caracterização do período histórico em que se deu a constituição dos estados nacionais, para os quais a constituição de um patrimônio foi de fundamental importância para sua legitimação junto ao povo, procuro estabelecer as características principais que marcam o período moderno e que dão o tom das políticas públicas propostas. Para definir as características gerais que marcam o período, considero apropriado partir de um recorte da literatura, que exprime o espírito daquele momento histórico denominado Modernidade. Para Charles Baudelaire, o significado da modernidade está na fugacidade do momento, de um gesto, de um olhar que lhe é característico, mas que é difícil de ser descrito, por sua própria mutabilidade (BAUDELAIRE, 1971 (1860), p. 36). A obra de Baudelaire nos mostra diferentes visões da modernidade, que não são coerentes entre si, mas antes contraditórias, e por isso mesmo características de um período de velocidade e transformação no qual ainda há espaço para o herói. Baudelaire acredita na razão, e vê na modernização o espaço para a superação do conflito entre natureza e cultura. O questionamento entre aquilo que é instintivo no homem, da ordem da natureza, por oposição ao que lhe é inspirado e inscrito pelo universo social, da ordem da cultura. Tal superação se daria a partir da transformação do homem e do ambiente ao seu redor, a cidade. Com a modernização e urbanização da cidade, transformar-se-ia também o homem, o seu habitante, que encontraria a superação de si mesmo, dos seus instintos primordiais, pelo uso da razão. Para Berman (1986, p. 138), a mensagem de Baudelaire é de que “a vida moderna possui uma beleza peculiar

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e autêntica, a qual, no entanto, é inseparável de sua miséria e ansiedade intrínsecas.” Segundo este autor, Baudelaire se comunica com o leitor através de cenas da vida na cidade, do espaço urbano, que possuem uma profundidade mítica que lhes confere status de “arquétipos da vida moderna” (BERMAN, 1986, p. 144). A partir da perspectiva de que a modernidade possui contradições em si mesma, a obra de Baudelaire adquire um novo sentido, cuja lógica é ilustrar esse processo histórico de transformações e incoerências, dando a conhecer toda a sua riqueza e profundidade. Observa-se a experiência da modernidade profundamente vinculada a construção das cidades e à vida no meio urbano. A Modernidade enquanto experiência histórica pode ser entendida como “um modo de experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida”, uma experiência que é compartilhada por todos. “A Modernidade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: envolve-nos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia” (ANDERSON, 1986, p. 2). Perry Anderson critica a forma como Berman caracteriza a modernidade justamente porque, ao tratá-la como permanente renovação, ele a retira do tempo histórico para localizá-la num tempo mítico no qual as experiências se renovam, desconstroem e se reconstroem, implicando na impossibilidade de ocorrer desenvolvimento. O ponto de vista destacado por Anderson, é de que a Modernidade é uma experiência histórica à qual corresponde um processo socioeconômico de modernização, concebido como um projeto de desenvolvimento. A este processo corresponderia uma visão cultural, uma forma de expressão estética do período, denominada de “modernismo”. A tarefa de analisar as expressões modernistas como representação da modernidade coloca um grande desafio, pois dadas as intensas contradições do período, as suas expressões

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são grandemente variadas. Para Anderson, deveria haver uma explicação mais conjuntural para as práticas e doutrinas estéticas agrupadas como modernismo, pois a explicação formulada por Berman, por exemplo, reduz o fenômeno a mera repetição. Uma explicação satisfatória deveria envolver a intersecção de diferentes temporalidades históricas a fim de compor uma configuração que desse conta da variabilidade do fenômeno (ANDERSON, 1986, p. 8). A consciência do tempo e da historicidade é uma das particularidades da própria modernidade. O homem se vê como sujeito, como agente que contribui na construção do seu presente, que logo será ultrapassado, podendo então fazer parte da história. A forma de encarar o presente é transformada pela consciência da passagem do tempo. Nesse sentido, Habermas (1980, p.86) argumenta que “o novo valor conferido ao transitório, ao fugaz e ao efêmero, a própria celebração do dinamismo, manifestam o anseio por um presente íntegro, imaculado e estável.” A ênfase no movimento de vanguarda, na valorização do novo confere um valor maior ao presente. Habermas define a modernidade como sendo expressão da “consciência de uma época que se posiciona em relação ao passado da Antiguidade, a fim de compreender a si mesma como resultado de uma transição do antigo para o novo” (HABERMAS, 1992, p. 100). Ligada à aceleração do tempo histórico e a uma maior consciência acerca da percepção da passagem do tempo e caracterizada pela sua fugacidade e transitoriedade, a modernidade se coloca como uma maneira de experimentar o espaço e o tempo, de forma auto consciente. Assim, a modernidade é definida pelo sociólogo Anthony Giddens (1991) como auto reflexiva, com referência a uma autoconsciência histórica e estética do momento presente. Giddens propõe a caracterização da natureza da modernidade através da investigação sobre como as instituições modernas estão situadas no tempo e no espaço, ressaltando a separação e recombinação deles na forma de “zoneamento” da vida social.

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O autor exemplifica o “zoneamento” do tempo como sendo a jornada de trabalho, ou seja, o tempo pensado de maneira uniforme e dividido em “zonas”, o que permitiria uma distribuição e organização diferenciada. Essa forma de lidar com o tempo, abstrata e ordenadora, permitiu uma forma de organização da vida social uniformizada. A adoção de calendários em escala mundial exemplifica bem esta uniformidade de referência temporal e da mensuração do tempo (GIDDENS, 1991, p. 25). Para o autor, a separação entre o tempo e o espaço é essencial para o dinamismo da modernidade, porque ela é a condição principal do processo de desencaixe. “Por desencaixe me refiro ao ‘deslocamento’ das relações socais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”(GIDDENS, 1991, p. 29). O desencaixe seriam as novas formas de conexão entre o local e o global, possibilitadas pelas organizações modernas, alterando as formas de relação social entre as pessoas. Os mecanismos de desencaixe permitem operar globalmente através de “fichas simbólicas”, sendo o dinheiro a mais difundida, e através de “sistemas peritos”, sendo estes os sistemas de competência técnica capazes de organizar grandes áreas do mundo social em que vivemos (GIDDENS, 1991, p. 37). A confiança em sistemas peritos por parte das pessoas comuns, leigas, se baseia na experiência de que estes sistemas geralmente funcionam como se espera deles. A atitude das pessoas, nas decisões menores de seu dia a dia, costuma levar em conta as informações amplamente divulgadas sobre o saber específico destes “sistemas peritos”. A sua influência sobre as pequenas coisas é considerável, e por isso pode-se dizer que as instituições modernas influenciam localmente através de eventos que ocorrem em lugares distantes no globo. A reordenação reflexiva ocorre justamente porque o conhecimento especializado está em constante evolução, e novas descobertas científicas vêm alterar o já conhecido, pro-

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duzindo certezas provisórias. Para Giddens, a reflexividade, definidora de toda ação humana, recebe um novo sentido com a modernidade, resultando em constante exame e reforma das práticas sociais (GIDDENS, 1991, p. 45). As práticas sociais são continuamente alteradas pelas novas descobertas que vão informá-las, alcançando todos os aspectos da vida humana, e, embora atingindo diferentemente a grupos sociais distintos, possuem um alcance global. A modernidade é constituída e marcada por esta reflexividade, por este processo de renovação reflexiva do conhecimento. Decorre daí o seu caráter dinâmico de permanente renovação. É clara a relação entre as instituições modernas e os seus mecanismos de influência na vida cotidiana, determinando uma nova forma de conhecer o mundo e se relacionar socialmente. Antes de entrarmos na questão da auto identidade individual, cabe trazer um pouco do debate entre modernidade e pós-modernidade, ainda presente na antropologia social, e a contribuição apresentada por Giddens através da distinção entre os dois conceitos, que se constitui na perspectiva histórica de abordagem da realidade social. A relevância da distinção se revela ao realizar-se a análise das políticas de preservação e restauro do patrimônio histórico, pois as ideias ou a mentalidade que influencia uma época estão em certa medida presentes também em campo, permeando os argumentos de justificativa ou de critica as ações empreendidas. Segundo Perry Anderson (1998, p. 9), “a ideia de um pós-modernismo surgiu pela primeira vez no mundo hispânico, na década de 1930, uma geração antes de seu aparecimento na Inglaterra ou nos Estados Unidos”. Criada por Frederico de Onís, foi usada para descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo, ganhando espaço dentro da crítica literária hispanófona. “Só uns vinte anos depois o termo surgiu no mundo anglófono, num contexto bem diferente, como categoria de época, e não estética” (ANDERSON, 1998, p. 10). O termo passou a ser amplamente empregado, e trazia consigo

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uma pergunta: “o pós-modernismo é apenas uma tendência artística ou também um fenômeno social?” (ANDERSON, 1998, p. 26). O conhecido teórico da Pós-Modernidade, Frederic Jameson (1984) atribui a controvérsia em torno da existência ou não da pós-modernidade à falta de conhecimento das obras literárias ou artísticas que abrangem o período. Esse autor aponta como característica a dissolução das categorias de gênero e linguagem e das fronteiras disciplinares e a importância do pastiche e da esquizofrenia como traço central da forma estética. Todavia, ao falar em arte ou literatura, não estaremos nos remetendo diretamente ao conjunto de expressões culturais que têm em comum algumas características de estilo? Segundo Jameson, o pós-modernismo é “um conceito de periodização cuja principal função é relacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e uma nova ordem econômica” (JAMESON, 1984, p. 17). Para Jameson, a emergência da pós-modernidade está relacionada com o capitalismo avançado das sociedades de consumo. O fato de expressões artísticas da modernidade, tais como Picasso ou James Joyce, serem hoje ensinados como clássicos nas academias só vem reafirmar sua posição de que houve uma ruptura com a modernidade. O autor advoga a transformação da realidade e da linguagem em imagens e a fragmentação do tempo num presente perpétuo como evidências mais que suficientes da pós-modernidade como período histórico. Observa-se que o termo Pós-modernidade costuma ser empregado como sinônimo de pós-modernismo. Todavia, o mais apropriado, recorrendo novamente a Giddens, seria empregar o termo pós-modernismo para “se referir a estilos ou movimentos no interior da literatura, artes plásticas e arquitetura. Diz respeito a aspectos da reflexão estética sobre a natureza da modernidade” (GIDDENS, 1991, p. 52) A pós-modernidade seria o desenvolvimento de uma trajetória que estaria

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nos levando a uma nova forma de desenvolvimento social, nos tirando da modernidade para encaminhar a um outro tipo de ordem social. Para o autor, “falar da pós-modernidade como suplantando a modernidade parece invocar aquilo mesmo que é declarado impossível: dar coerência à história e situar nosso lugar nela” (GIDDENS, 1991, p. 53). A posição do autor é de que as disjunções que são percebidas hoje devem ser vistas como “resultantes da auto elucidação do pensamento moderno.” Para ele, “nós não nos deslocamos para além da modernidade, porém estamos vivendo precisamente uma fase de sua radicalização” (GIDDENS, 1991, p. 57). Resulta que não podemos falar de uma pós-modernidade, pois a ordem social da modernidade permanece presente e orienta nosso cotidiano. Parece não haver divergências em relação ao fato de que existe o Pós-modernismo, enquanto um estilo próprio de expressão cultural, com características específicas e distintas do Modernismo. Entretanto, não se segue que, por haver um movimento cultural, necessariamente ele corresponda a um novo modo de vida. Podemos observar a emergência de novas formas de relação social mediadas pelo uso de novas tecnologias, e a influência do capitalismo globalizado até nas mercadorias dos vendedores ambulantes de cada esquina. Podemos perceber o local se transformando e se reinventando em função do contato com o global. Mesmo sabendo o quanto o mundo mudou no último século, parece desnecessário e precipitado afirmar que vivemos um novo período histórico chamado pósmodernidade. Afinal, o velho e o novo convivem lado a lado, e podemos testemunhar as velhas instituições convivendo com as novas tecnologias. Seria isso mesmo a Modernidade, tal como nos é dado experimentar como brasileiros. A questão parece se resumir a uma disputa pelos termos a serem usados para nomear o momento histórico em que vivemos: modernidade tardia ou pós-modernidade. Conceitos e termos são construções arbitrárias cujo objetivo é chamar a atenção para um determinado fenômeno. O importante é que se reconheça quais são as características que marcaram o pe-

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ríodo moderno, e que em grande medida estão presentes hoje e marcam as políticas públicas de identificação do patrimônio histórico. Após uma discussão sobre as características da Modernidade, e o debate entre “modernos e pós-modernos”, que esquenta, mas não chega a alterar a forma como nos pensamos em termos de identidades e o modo de manifestarmos o pertencimento a grupos sociais, procuro traçar um pequeno histórico das políticas públicas de constituição do patrimônio histórico no Brasil. Tais políticas partem da construção de monumentos e prédios públicos de referência à nação e se expandem no sentido do alargamento da noção de patrimônio histórico e artístico nacional para englobar também a ideia de patrimônio cultural, material e imaterial. Para melhor contextualizar tais políticas lanço um breve olhar sobre o Movimento Modernista e o Patrimônio no Brasil. Em 1936, durante o governo de Getúlio Vargas, o escritor Mário de Andrade redigiu um projeto de lei, a pedido do Ministro da Educação Gustavo Capanema, no qual ele definia o patrimônio como “todas as obras de arte pura ou aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos e a organismos sociais e a particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil” (LEMOS, 1987, p. 38). O trabalho de Mário de Andrade, num esforço para abranger tudo o que diz respeito a produção artística e cultural brasileira, incluindo os eventos que são do interesse da antropologia social, marca o começo dos debates sobre a preservação do patrimônio cultural e artístico no Brasil. De acordo com Avancini (1998, p. 193) a visão de Mário de Andrade era muito avançada para a época, e incluía também “manifestações variadas da cultura popular do país como ‘música, contos, histórias, lendas, superstições, medicina, receitas culinárias, provérbios, ditos, danças dramáticas’ e outros que julgou de maior premência no trabalho de preservação a ser empreendido com urgência já naquela época”.

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Na visão de Mário de Andrade, devia ser empreendida uma corrida contra o tempo no intuito de preservar e resgatar “o maior número de bens culturais, dando-nos uma amostragem do que era o Brasil na sua diversidade” (AVANCINI, 1998, p. 194). Ele foi responsável também pela elaboração de uma hierarquia de procedimentos necessários para se efetivar a completa e eficaz preservação do patrimônio da cultura brasileira. Interessante observar que a discussão do patrimônio no Brasil surgiu por parte dos mesmos intelectuais que estavam envolvidos no movimento modernista, caracterizado pela vontade de renovação, de desapego ao passado e pela construção de uma arte, música e literatura totalmente nova, moderna e tipicamente brasileira. Além de Mário de Andrade, podemos citar Oswald de Andrade, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Lúcio Costa. Segundo Bomeny (1995, p. 16), Mário de Andrade foi responsável pela vinda ao Brasil de intelectuais internacionalmente reconhecidos, como o casal Lévi-Strauss, e tinha preocupações em aproximar o erudito do popular, o tradicional e o novo, a música e a literatura, a cultura e a política, numa perspectiva eminentemente antropológica. A preocupação com a preservação de uma herança para as futuras gerações, inicialmente delineada no projeto de Mário de Andrade, tem originado uma série de leis, que, no seu conjunto, se complementam. O Decreto-lei número 25, de 30 de novembro de 1937, organizou o SPHAN, Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que define o patrimônio como sendo: “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Transformado posteriormente em IPHAN, este órgão divide hoje a tarefa de identificação e tombamento do pa-

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trimônio histórico, cultural e artístico com estados e municípios. O tombamento dos bens imóveis pode ser realizado em qualquer uma das instâncias de poder, e em cada uma delas obedece-se a mesma legislação. Segundo Lemos (1987, p. 85), “o tombamento é um atributo que se dá ao bem cultural escolhido e separado dos demais para que, nele, fique assegurada a garantia de perpetuação da memória”. Conceitualmente, podemos dizer que o tombamento é o reconhecimento oficial de um bem junto aos órgãos de registro patrimonial. O Decreto-lei número 25 regulamenta a proteção dos bens culturais no Brasil. De acordo com a legislação, um bem tombado deve ser preservado e suas características originais devem ser mantidas pelo proprietário do imóvel. Qualquer iniciativa de mudança ou reforma, por menor que seja, deverá ser consultada previamente por escrito junto ao órgão de registro, embora o proprietário mantenha totalmente seu direito de posse e usufruto do bem. O proprietário de um imóvel registrado como patrimônio histórico detém a posse e a propriedade do bem, embora esteja impedido de tomar decisões que afetem sua estrutura ou função estética, dividindo seu gerenciamento com um órgão público. Segundo Fonseca (1997, p. 34) “no caso específico do bem tombado, a tutela do Estado recai sobre aqueles aspectos do bem considerados de interesse público – valores culturais, referências da nacionalidade”. Assim sendo, do ponto de vista dos agentes de preservação patrimonial, as ações são realizadas com o intuito de garantir o direito à cultura de todo o cidadão. Conforme a autora: “o objetivo da proteção legal é assegurar a permanência dos valores culturais nela identificados. Esses valores só são alcançáveis através das coisas, mas nem sempre coincidem exatamente com unidades materiais” (FONSECA, 1997, p. 35). A propriedade dos valores culturais representados pelo imóvel é colocada sob tutela do estado, que age no sentido de promover o bem geral, mas os valores culturais são sempre os valores de um grupo social. Assim, faz sentido nos per-

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guntarmos, no caso específico de cada imóvel ou monumento preservado, quais são os valores que ele está representando, que atributos justificam a sua existência enquanto patrimônio de uma cultura, e qual a relação dos moradores locais, os portadores dessa cultura, com os imóveis ou monumentos tombados. Sobre os imóveis tombados, que já possuíam um valor econômico no mercado imobiliário, incide um segundo valor, o valor cultural, criando uma certa tensão entre os interesses do proprietário em relação ao imóvel, interesse privado, e o interesse mais geral, representado pelo Estado, o interesse público. O tombamento, regido pelo Decreto-lei federal nº 25 de 30 de novembro de 1937, juntamente com suas alterações parciais posteriores, pode ser definido, segundo Santos (1997) como um procedimento pelo qual o Poder Público impõe ao proprietário particular ou público de um bem de valor comprovadamente de interesse cultural geral certas restrições administrativas, visando a preservação do bem em favor da coletividade. A expressão tombamento deriva do verbo “tombar” que significa “arrolar ou inscrever”, e veio do direito português. É sacramentado com o registro no Livro do Tombo, que, desde 1988, constitui-se de vários volumes, dependendo do tipo de tombamento. Há previsão de tombamento também no art 222 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Um marco importante no percurso da preservação do patrimônio cultural foi a criação da UNESCO, em 16 de novembro de 1945. Com o objetivo de promover a paz e os direitos humanos com base na solidariedade intelectual e moral da humanidade, esta agência das Nações Unidas incentiva a cooperação entre os Estados membros e desenvolve um programa internacional de preservação do patrimônio cultural de cada país e de defesa da diversidade mundial das culturas. Dos encontros internacionais resultam “Recomendações” a serem seguidas pelos países membros sobre os procedimentos para a preservação dos bens de natureza material e imaterial.

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Em 1964, é assinada a Carta de Veneza, difundindo mundialmente o conceito de patrimônio e as práticas de preservação a ele associadas. A partir deste momento, as ideias de conservação foram estendidas também às cidades e a malha urbana como um todo, privilegiando-se, desta vez, os valores estéticos das construções. A ideia central é de uma apreciação dos bens pelo seu valor estético de uma construção humana, capaz de provocar a memória e de dialogar com os homens, como um objeto de comunicação, que testemunha sobre um dado grupo de homens de um determinado momento historicamente marcado no tempo, mas que se dirige a toda a humanidade. O Brasil aderiu à Convenção do Patrimônio Mundial em 1977. Inicialmente concentrada nos bens de interesse histórico, a lista brasileira foi sendo diversificada e hoje reflete o esforço do País para construir uma representação equilibrada e abrangente da sua notável diversidade cultural e natural. Entre os bens brasileiros considerados Patrimônio Mundial, estão a Amazônia e o Pantanal, o rico acervo de arte barroca e urbanismo do período colonial; Brasília, a capital; com sua arquitetura modernista; um sítio pre-histórico, como a Serra da Capivara, a singela cidade de Goiás, com suas técnicas e tradições vernaculares, entre outros. Também na década de 70 foram realizados no Brasil dois encontros de governadores, em Brasília e Salvador, cuja importância foi fundamental para as políticas de descentralização das atividades de preservação. A Constituição Federal de 1988 amplia a legislação relativa ao patrimônio cultural, e define as competências de promoção, regulamentação e fiscalização das práticas de preservação, atribuindo um papel mais significativo para o âmbito da administração municipal, e a participação popular nos processos. A participação da comunidade na preservação do patrimônio cultural está prevista em lei para ocorrer de três modos possíveis: na apresentação de projetos de lei, na fiscalização de execução de obras e na proteção direta do bem. O cidadão que

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tiver interesse poderá participar da preservação do patrimônio cultural seja sozinho, reunindo-se com outros no mesmo interesse ou associando-se a alguma entidade. A participação das pessoas envolvidas nos processos de reconhecimento patrimonial é de importância fundamental, uma vez que o valor cultural das referências é dado não somente pelos técnicos especializados utilizando critérios próprios de seus respectivos ofícios, mas principalmente pelo valor de testemunho histórico e de concentração de memórias e significados atribuídos pelo grupo social ao bem tombado. Na investigação dos significados e das representações sociais compartilhadas e no reconhecimento dos bens pelos cidadãos como herança cultural para as futuras gerações é que se pode chegar mais perto daquilo que de fato seja representativo para determinado grupo social. Diante da diversidade do fenômeno da construção de identidades locais e nacionais, e daquilo que denominou “mundo estilhaçado”, GEERTZ (2001, p. 192) questiona: “o que é um país, se não é uma nação?” Analisando exemplos como o do Canadá, do Sri Lanka e da antiga Iugoslávia, o autor demonstra que o modelo “território-língua-etnia” revela-se insuficiente para descrever o estágio atual de organização global. Quanto mais o mundo parece tornar-se homogêneo, tanto mais as diversidades parecem se destacar e se reforçar. O papel dos estudos sobre a diversidade cultural é enfatizado, pois se observa que quanto mais as pessoas entram em contato com o mundo globalizado, e tenderiam a se homogeneizar, tanto mais buscam reforçar identidades locais, tendendo a se diferenciar. Essa busca pela diferença, pela afirmação da diversidade e da particularidade passa pela atribuição de sentidos, de significados humanos ao universo circundante. A investigação das representações e de imaginários é fundamental para a compreensão das culturas locais, que se apropriam diferentemente dos mesmos objetos materiais e dos processos sociais. As novas leis referentes ao patrimônio cultural são um reflexo dos processos sociais de valorização da diversidade

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cultural e de identidades locais, mesmo no meio urbano. Isso se dá após ter passado o impacto inicial da globalização, quando se acreditava que o mundo caminharia no sentido de uma cultura global homogeneizada. Assim, as políticas de afirmação de identidades étnicas e de comunidades locais, construídas como resposta aos riscos de homogeneização trazidos pela globalização, encontram reflexo na Carta Magna, que procura regulamentar os procedimentos práticos com finalidades de valorização cultural e de garantia de igualdade de acesso e de direitos aos cidadãos. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 representou um grande avanço na legislação relativa ao reconhecimento do patrimônio cultural nacional, ao definir no art. 216 que “as fontes e manifestações culturais que podem se expressar em bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, que portam referências à identidade, ação ou memória dos grupos que formam a sociedade, constituem o patrimônio cultural brasileiro.” O Decreto-lei nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, ampliando a normatização constitucional, institui o registro de bens culturais de natureza imaterial ou intangíveis, que constituem o patrimônio cultural brasileiro, criando um programa nacional do patrimônio imaterial. Este decreto prevê a inclusão na categoria de patrimônio cultural os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, os rituais, festas e celebrações que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social, as manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas, além de mercados, feiras, santuários, praças, e demais locais onde se reproduzam práticas culturais coletivas e para tudo mais que for considerado relevante para a identidade nacional, poderão ser abertos novos livros de registro. A previsão deste tipo de matéria na legislação nacional é relativamente recente, entretanto, os antropólogos desenvolvem pesquisas sobre o tema há muito tempo. Considerar os

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modos de fazer, as festa e rituais, por exemplo, como característicos de uma determinada comunidade, e como fator fundamental na construção e afirmação das identidades locais, regionais, étnicas ou outra tem sido feito no campo da antropologia desde seus estudos iniciais, ou seja, os Patrimônios Culturais já estavam sendo inventariados e anotados no fazer dos antropólogos. Como pensar um patrimônio cultural da humanidade, herança de uma cultura global, se a cultura, tomada do ponto de vista da antropologia, não existe por si só, mas é atributo de um grupo social, datado historicamente? A preocupação com os temas do patrimônio tem motivado até mesmo a criação de cursos de pós-graduação especificamente voltados para o tema1, tanto no Brasil como no exterior. Os patrimônios material e imaterial possuem um sentido que é compartilhado socialmente por um grupo, que é construído social e historicamente, e que se for transportado a um nível de universalidade, corre o risco de perder-se do seu significado, do sentido que lhe atribuía o grupo de onde foi retirado. O patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial, é historicamente marcado e diz respeito a um grupo social com valores comuns que compartilha o seu significado, e o encara e percebe como representativo da coletividade, para ser transmitido como herança aos mais jovens. A perspectiva de que um bem seja tombado com patrimônio da humanidade é positiva enquanto considerar o valor do bem como produto da capacidade humana de construir e simbolizar, enquanto testemunho da diversidade cultural, contextualizado. O patrimônio cultural material, prédios, casas, igrejas, monumentos, sofre o desgaste dos materiais de que é feito, além dos estragos causados pelo uso e de tempos em tempos precisam ser restaurados. O patrimônio imaterial, por sua vez, rituais, festas populares, modos de vida, línguas, fazeres específicos, socialmente compartilhado, está vivo e em constante renovação no interior do grupo social. Daí a dificuldade em realizar o seu tombamento em livros de re-

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gistro, pois é preciso levar em conta o caráter específico desse tipo de patrimônio. Assim como o patrimônio material precisa ser restaurado de tempos em tempos, devido ao desgaste, o registro do patrimônio imaterial precisa considerar a complexidade do contexto de produção e de uso, a variabilidade e a transitoriedade desses saberes. Segundo Maciel (2002, p. 33), “manifestações culturais são vivenciadas incorporando elementos da vida moderna, adaptando-as a novas situações, como a vida urbana, criando e recriando.” Assim, as pesquisas antropológicas demonstram que não há apenas um jeito certo de cozinhar um prato típico, e que este saber tende a ser atualizado, assim como a forma de realização de um ritual é datada e tende a ser alterada pouco a pouco com o tempo. A realização de registros do patrimônio imaterial passa pela consideração desses fatores da dinâmica cultural. A variabilidade se explica pelo fato de várias pessoas dentro de um mesmo grupo conhecerem diferentes maneiras de prepararem um prato típico, sem que haja uma forma mais certa que a outra. Essa variabilidade se apresenta exatamente como se observa nas línguas, ou seja, há uma margem para a variação individual dentro de uma prática que é coletiva. A dinâmica da transitoriedade se observa nas pequenas mudanças que se operam com o passar do tempo, nas pequenas adaptações realizadas pelos praticantes de um ritual, por exemplo, devido ao fato da cultura ser viva e vivida, sendo constantemente atualizada pelas pessoas. O risco que se corre pela não consideração dessa complexidade seria a cristalização de uma prática cultural. A cristalização ocorreria se a partir do tombamento de um ritual, por exemplo, ele passasse a não ser mais atualizado pelos seus praticantes, que ficariam presos ao que foi escrito no registro. A cristalização das práticas culturais impediria a variabilidade e também a sua mudança natural. O risco de cristalização cultural de certas práticas existe, mas é preciso considerar a importância do reconhe-

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cimento dos fazeres como um conteúdo culturalmente compartilhado por um grupo social e representativo da diversidade humana, aproveitando todo o seu potencial simbólico de comunicação. A antropóloga Eunice Maciel destaca que não podemos confundir preservar com cristalizar, pois considera muito diferente de preservar práticas e manifestações culturais, engessando arbitrariamente no tempo e no espaço algo que é vivo e dinâmico, daquilo que tem sido realizado em campo, na atuação dos antropólogos ao inventariar o patrimônio imaterial. Ela destaca que nesse processo é preciso “ressaltar as pessoas envolvidas como produtores ou portadores e as suas vivências” (MACIEL, 2002, p. 33). Para a autora, a preservação de práticas e saberes culturais tradicionais vai muito além do inventário que possa ser feito deles. Tal preservação depende da participação das pessoas envolvidas no processo como um todo, e de que lhes seja reservado um espaço central na identificação de tais práticas, e no registro de suas trajetórias de vida, associando as práticas aos significados a elas atribuídos. Para tomar um outro exemplo, teríamos o caso da língua portuguesa, registrada na Constituição Estadual do Rio Grande do Sul como patrimônio nacional e dos gaúchos. A língua é considerada idioma oficial tanto no padrão culto como em sua forma popular. Com esta formulação, o registro assegura uma margem para a variação, e também para a transformação gradual e natural das línguas. Naqueles grupos sociais em que as pessoas conhecem bem as práticas, e o bem tombado é parte de seu cotidiano, já não importa se ele foi tombado ou não, pois o registro não vai impedir ou cristalizar a evolução natural do fazer local. Aquele que detém um conhecimento cultural não precisa buscar livros para se informar sobre ele. Quando se trata de descrever, analisar e identificar o que quer que seja considerado um patrimônio cultural imaterial, é preciso nunca esquecer que este patrimônio não está solto no espaço, mas diz respeito a um grupo social e está

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marcado historicamente. Forma assim um sistema cultural, e é somente no interior do grupo que é possível encontrar os significados sociais associados a uma prática. É preciso mergulhar nas categorias nativas para emergir delas com uma compreensão melhor do que representam os significados simbólicos associados a uma prática social, identificando seus elementos constituintes e conhecendo como se processa dentro do sistema como um todo, a sua mudança, a sua permanência e a sua continuidade. Para que a análise de um caso concreto possa iluminar as reflexões sobre as políticas de patrimônio, descrevo o caso do tombamento das casas da Travessa dos Venezianos, em Porto Alegre, RS, que conheci de perto. Numa caminhada pelo bairro Cidade Baixa, um dos mais antigos da cidade de Porto Alegre, desperta a atenção do passante a variedade de tipos de residências, casas grandes com pátio, casas pequenas de alvenaria, pequenos e grandes edifícios, nas ruas de menor circulação e uma grande quantidade de casas antigas. À medida que se observa as características do bairro, nota-se que se trata de construções de uma época, e que há certa unidade de estilo. Conversando com os moradores, descobre-se que se trata de casas tombadas como patrimônio histórico-cultural, por serem representativas de um modelo de construção colonial. A Travessa dos Venezianos é um conjunto de quinze casas construídas provavelmente entre o final do século XIX e o começo do século XX, em estilo português. As casas do lado par foram construídas primeiro2, sendo um pouco menores, têm em geral quatro metros de frente por seis metros e trinta centímetros de fundos, com uma porta e uma janela na fachada. As casas do lado ímpar foram feitas um pouco depois, datando de 1932, e têm uma média de cinco metros de frente, estas medidas variando um pouco mais neste lado da rua. Estas casas em geral têm a porta e duas janelas na frente. Possivelmente foram construídas em um único lote, para servir como casas de aluguel, partindo da Joaquim Nabuco e estendendo-se em

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profundidade até a Rua Lopo Gonçalves, formando no centro do terreno uma via de acesso às moradias que hoje se conhece como a Travessa do Venezianos. Chama-se a esse tipo de construção de “casas em fita”, uma ao lado da outra, com apenas uma parede divisória entre elas. As paredes são feitas de tijolos de barro, assentados com argila. Entre uma casa e outra há apenas uma parede que faz a meação. Na construção original não foi utilizado cimento entre os tijolos e nem havia reboco nas paredes. As divisórias internas eram originalmente de madeira. Sem fundações, as casas não permitem a construção de um segundo piso, a menos que sejam reforçadas as estruturas. Dos dois lados da rua encontram-se construções semelhantes, sendo as do lado ímpar mais recentes e um pouco maiores na área total. O registro de venda de uma das casas, datando de 1947, a descreve da seguinte maneira: “uma casa de alvenaria com porta e janela de frente à Travessa dos Venezianos, terreno com 36 m², mede 4m de frente e 6m de fundos, parede divisória tem meação.” Em geral as casas possuíam uma pequena sala logo na entrada e um dormitório. Um cômodo levava ao outro. Havia um pátio interno no meio do terreno e ao fundo a cozinha e o banheiro. Quase todas as casas sofreram reformas internas anteriormente ao tombamento, em geral envolvendo a substituição de madeiras, a aplicação de reboco nas paredes e a transformação do pátio interno em um outro cômodo ou numa sala mais ampla. Como as construções têm o pé direito alto, em algumas casas foi feito um mezanino, permitindo colocar mais um ou dois dormitórios em cima. Também era comum substituírem o piso original de madeira por cerâmica, material mais resistente à umidade do local. Segundo dados da Equipe de Patrimônio Histórico Artístico e Cultural da Prefeitura de Porto Alegre, os terrenos da antiga rua Venezianos, atual Joaquim Nabuco, pertenciam todos a um único proprietário, chamado Francisco Cândido Lopes. Quando de sua morte, a propriedade

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foi dividida entre os herdeiros: Antonina Lopes, esposa, Ernani Lopes e Haydéia Lopes, filhos. Nesta época já estavam construídas as casas do lado Leste, de numeração par. As casas do lado oposto, de numeração ímpar, foram construídas pouco tempo depois, em 1932, e o proprietário inicial foi João Bonetti. A única exceção é a casa de número 45, cujo proprietário inicial provavelmente foi Francisco Medeiros de Albuquerque, datando a sua construção de 1935. Em um projeto de tombamento datado de 1977, a cargo do Eng° Telmo Thompson Flores, prefeito na época, encontra-se uma descrição das casas, comentando inclusive detalhes da infraestrutura urbana:

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Tal projeto, conhecido como “Projeto Renascença” previa, entre outras reformas urbanísticas neste bairro, a desapropriação das casas e a sua utilização para o abrigo de atividades culturais e de caráter turístico, tais como lojas de artesanato, galeria de arte, livraria, escolinha de artes e restaurante de comidas típicas gaúchas. As fachadas e os telhados das casas foram tombados como patrimônio histórico e cultural de caráter público por ser considerado todo o conjunto um testemunho histórico representativo das construções portuguesas da época e foram todos restaurados entre 1980 e 1982, na data do tombamento. As características originais das casas e os detalhes da edificação e da rua têm sido preservados, embora o reboco das casas venha sofrendo o desgaste do tempo, somado aos danos provocados pelo uso. Desde o tombamento a rua adquiriu um status de local turístico e tem sido visitada com bastante frequência por

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As casas eram simples, as janelas possuíam um caixilho de vidro e tampões internos, as portas eram compostas por duas folhas. Os esgotos e a luz elétrica foram instalados em torno de 1926, existem documentos que comprovam o pagamento de impostos a partir dessa data.

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estudantes, artistas, músicos, poetas, e turistas de passagem pela cidade. Além disso, a Travessa já serviu de cenário para comerciais de televisão e para a gravação de “videoclipes” de cantores como Joana, Renato Borguetti e Neto Fagundes, despertando o interesse dos moradores do bairro e provocando movimentações. Durante os aproximadamente 30 anos em que as casas fazem parte do patrimônio público, a movimentação local tem aumentado progressivamente, não apenas em função do crescimento acelerado da cidade e das reformas urbanísticas ocorridas no bairro, localizado próximo ao centro, mas também porque o local conheceu o desenvolvimento de novas formas de organização e de interação social, alterando o perfil inicial. Historicamente, a área que se estende ao sul da colina da rua Duque de Caxias constitui o bairro Cidade Baixa, que era conhecido como “Emboscadas”, por ter servido de local de refúgio de escravos. Em 1856, foi encaminhado ao presidente da Província um projeto de arruamento da área, que não se realizou com muita urgência. Na década de 1880, foram oficialmente abertas as ruas Lopo Gonçalves e Venezianos, hoje conhecida como Joaquim Nabuco. Esta rua existe desde 1883, conforme se pode ler no Jornal do Comércio de 28/03/1883 oferta de terrenos à venda, nas “futurosas ruas Lima e Silva, Concórdia (José do Patrocínio) e Venezianos” (FRANCO, 1998, p. 230). Historiadores da cidade afirmam que o nome “Venezianos” foi uma homenagem à sociedade carnavalesca de grande popularidade que ali se localizava. De acordo com Damasceno (1970), a tradição carnavalesca das festas de rua com os foliões mascarados a jogarem-se esguichos de água e limão de cheiro teve origem na cidade de Veneza, e de lá se espalhou, chegando até a América (DAMASCENO, 1970, p. 19). A tradição de celebrar os três dias de carnaval dançando e brincando nas ruas da cidade foi trazida para Porto

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Alegre pelos açorianos, e aqui tornou-se prática muito apreciada pela população, que apesar da existência de leis proibitivas, insistia em lançar esguichos de água malcheirosa e divertir-se atirando limão ou outras essências. A criação das sociedades carnavalescas era uma tentativa de acabar com a prática das molhadelas generalizadas, conhecida pelo nome de Entrudo, ao organizarem novas formas de festejamento, com blocos de carnaval. Segundo este autor, foi em 1873 que foram criadas as sociedades carnavalescas Esmeralda Portoalegrense e Venezianos, através da eleição de sua diretoria. Durante o carnaval, na Rua da Praia enfeitada pelos moradores, desfilava o bloco dos Venezianos, com bandeira vermelha e branca, que competia em luxo e ornamentação com o bloco carnavalesco da Sociedade Esmeralda, cujas cores eram branco e verde. Em 1875, o carnaval ganha ainda mais brilho, e a cada ano as sociedades Esmeralda e Venezianos se empenhavam mais nos preparativos dos desfiles e das festas. Passados alguns anos de grande popularidade e brilhantismo dos desfiles, por volta de 1885, extingue-se a Sociedade Venezianos. Tendo desaparecido a sociedade carnavalesca, a bandeira vermelha e branca do bloco dos Venezianos foi posteriormente adotada pelo time de futebol do Sport Club Internacional, na sua fundação em 1909. A existência dessa sociedade carnavalesca teria então motivado a denominação da pequena rua como “Travessa dos Venezianos”. O mito de origem da rua envolve ainda outras explicações para o nome recebido. Segundo alguns moradores, o nome se deveu a um grupo de imigrantes italianos que se instalou na região, proveniente de Veneza, ficando a rua em que viviam conhecida como a rua dos Venezianos. A rua dos Venezianos era o nome do atual Joaquim Nabuco, e a travessa consistia numa passagem existente entre esta e a rua Lopo Gonçalves, localizada paralelamente à primeira. Já para outros, a Travessa recebeu este nome devido aos frequentes alagamentos provocados pelas chuvas que transformavam a rua numa pequena Veneza, sendo possível se deslocar apenas de

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barco pela região. Assim, os moradores da pequena Veneza ficaram conhecidos como “os Venezianos”. Podemos pensar no reconhecimento da Travessa dos Venezianos sendo um sítio de preservação do patrimônio histórico da cidade como um ato que a torna um lugar sagrado para toda a população, e em decorrência disso, ela torna-se simbolicamente um centro que é visitado por essa população em busca de conhecer o seu próprio passado e pelos visitantes que estão descobrindo a cidade. Nesse processo, o ato de reconhecimento transforma o caráter da rua, remetendo-a ao âmbito do sagrado, e resulta numa transformação simbólica do local, motivada pelo interesse dos visitantes e demais moradores da cidade pelos valores atribuídos ao sítio. Entretanto, por ter sido reconhecido como espaço de referência histórica da cidade, o local também se transforma fisicamente, com a intensificação do movimento de visitantes e passantes na Travessa dos Venezianos. Conforme se caminha pelas ruas que adentram o bairro, percebe-se a tensão entre os movimentos antagônicos de modernização e renovação imobiliária e preservação histórica na presença de casas antigas e museus ao lado de prédios novos. Comércio intenso pontua cada passo em direção ao nosso destino: barbearia, sorveteria, loja de roupas usadas, fruteira, açougue, papelaria, academia de esportes, lavanderia. A vizinhança é bem servida em termos de opções de produtos e serviços, alguns adequados ao novo perfil do bairro, outros lembrando seus velhos tempos. A Travessa dos Venezianos, então, se revela. O colorido das 15 casas, pintadas uma diferentemente da outra, as comadres tomando chimarrão em cadeiras de praia na frente das casas, as janelas e portas de madeira, todas pintadas de marrom, abrindo e fechando enquanto os olhinhos curiosos conferem cada movimento novo, a rua calçada com paralelepípedos, crianças jogando bola, as calçadas estreitas, o cachorro deitado na sombra, os postes de luz do século passado, hoje sustentando uma fiação elétrica bastante baixa:

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todo este conjunto constitui-se num cenário ao ar livre que transporta o visitante para um outro tempo, no passado, em meio a modernos edifícios. Os moradores que vieram para a Travessa dos Venezianos sabendo que tratava-se de uma rua tombada como patrimônio histórico salientam duas razões principais para a escolha da casa: a valorização simbólica do antigo, representado como “um charme a mais”, e a garantia de que sendo uma rua preservada, a sua casa não será ladeada por edifícios, permanecendo um espaço livre do ritmo da modernidade. A preocupação com a originalidade dos imóveis, associando a ideia de originalidade com o sentido da preservação, se encontra presente na fala de vários moradores. Essa perspectiva chama a atenção para o fato de que o que está sendo preservado é apenas uma referência ao passado, uma vez que os imóveis estão sendo constantemente reformados. Mesmo durante a restauração promovida pela Prefeitura, foram trocadas portas e janelas que estavam com a madeira danificada, sendo substituídas por janelas e portas de formato semelhante. O reboco das casas sofre o desgaste do tempo, e a maioria delas tem as paredes bastante úmidas, dificultando a fixação da tinta aplicada. Evidentemente nem todos os moradores compartilham da mesma opinião sobre as decisões que são tomadas no intuito de contribuir para a preservação do patrimônio histórico e cultural no município, e essas divergências de ponto de vista muitas vezes resultam mesmo em desavenças entre os vizinhos. Este lugar caracterizado pela relação entre o espaço público de visitação e o espaço privado das residências familiares abriga diferentes representações sobre a importância do patrimônio histórico, resultando em diferentes apropriações simbólicas e diferentes formas de expressão dessas representações no dia a dia dos moradores. A preocupação dos moradores está em preservar a construção antiga ao mesmo tempo em que precisam reali-

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zar as reformas e adaptações. Resulta que o que é preservado é o “estilo antigo” da casa, ou seja, mais o conceito que informa o tombamento do que os materiais em si de que elas são feitas. A primeira imagem que se encontra são moradores indignados com a intervenção da Equipe de Patrimônio Histórico Artístico e Cultural, cerceando a sua liberdade em relação às casas. Nas suas falas iniciais os moradores se mostram totalmente contrários a essas políticas. Um olhar mais atento, levando em conta as representações sobre a forma de morar e os valores idealizados para a casa, percebe-se que o fato das casas terem sido tombadas como patrimônio é utilizado como fator de valorização dos imóveis, e morar em uma casa tombada é empregado como elemento de distinção desses moradores com relação aos demais moradores da cidade. Eles mencionam a rua como sítio histórico e confessam organizar, reformar e decorar o interior das casas levando em conta esse caráter histórico da rua e das fachadas. De um modo geral os moradores afirmam adequar o que colocam dentro das casas com o estilo da construção, priorizando a simplicidade e a durabilidade dos materiais. Buscam acompanhar a evolução tecnológica da modernidade tardia, abrigando no interior de suas pequenas casas diversos aparelhos eletroeletrônicos, sem descuidar dos elementos que remetem ao antigo e que representam a herança e a tradição. As estratégias de distinção comumente empregadas aliam modernidade e tradição. A tradição remete à permanência no tempo e carrega o peso da continuidade. Pode ser representada por um móvel antigo que foi herdado, ou por objetos antigos colecionados. As reformas realizadas e a própria organização interna das casas, no que se refere ao estilo de decoração sugere a intencionalidade de alguns moradores de construir uma identidade de si mesmos como personagens da história da cidade de Porto Alegre, e suas aparições ocasionais na mídia contri-

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buem para a construção de uma imagem de referência histórica e conferem certo prestígio. Ao adequarem o interior das suas casas às representações sobre o patrimônio histórico e cultural, os moradores se veem fazendo parte daquele espaço como um todo, integrados ao ambiente e assim são vistos também por quem chega para visitar a rua. Ao serem vistos como moradores-personagens, estas pessoas se tornam de alguma forma pessoas públicas. Esse foi um dos principais efeitos diretos do tombamento das casas sobre a vida dos moradores. A questão do patrimônio pode ser entendida hoje como a atualização do antigo “patrimônio histórico e artístico nacional” em um “Patrimônio Cultural” que inclui tanto o caráter material, de prédios e monumentos representando significados importantes para os grupos sociais, quanto o caráter imaterial, mais efêmero e transitório, mas não menos significativo, representado pelas festas populares ou religiosas, rituais, pratos típicos, danças, vestimentas, linguagens, decoração e estilos de vida, cujas características sejam referência cultural para um determinado grupo. A constituição do patrimônio imaterial como reforço das identidades locais é uma forma de afirmação e desenvolvimento do local no sentido de representar o pertencimento de formas variadas de expressão cultural ao todo que é a nação, buscando reconhecimento e visibilidade para participar em nível global. Assim, é importante que haja um acompanhamento das políticas públicas de tombamento de bens imóveis de valor histórico, no sentido de não se descuidar dos significados simbólicos associados aos bens e do contexto cultural no qual eles estão inseridos. A percepção desse contexto cultural é o que os moradores da Travessa dos Venezianos procuram manter, mesmo ao reformarem as casas. Preservar o patrimônio envolve muito mais do que simplesmente tombar casas históricas. Envolve resgatar identidades, memórias, vivências, percepções de mundo, enfim, for-

mas de sociabilidade e representação. Só assim o patrimônio pode ser algo mais do que um significante vazio, tornando-se coisa viva que cumpre entender e vivenciar. Notas 1 Curso de Mestrado em Gestão do Patrimônio Cultural, UCG e cursos apoiados pelo IPHAN. 2 No registro oficial consta apenas que são anteriores a 1925, não sendo possível precisar esta data. Referências ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1983.

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through its changing of meanings aiming at the application in recent public policies of Cultural Heritage in Brazil. Focusing on the construction of a pluralistic view, we bring to the analysis the point of view of the dwellers involved in the process of registering their houses as cultural heritage.

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Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília, com pesquisa na área de Políticas Públicas e Cultura Popular. Mestre em Antropologia e Especialista em Projetos Sociais e Culturais pela UFRGS. Bacharel em Letras/tradução pela UFRGS. Reside em Berlin e atua como Consultora Independente em Antropologia. Contribui regularmente para revistas acadêmicas como parecerista e autora.

, Goiânia, v. 6, n. 1/2, p. 67-101, jan./dez. 2008.

Keywords: Historical Heritage. Cultural Heritage. Local identity. Social interactions.

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