Do Plano Piloto à paisagem cultural: Escalas de preservação em Brasília

May 30, 2017 | Autor: Alba Bispo | Categoria: Paisagem Cultural, Patrimonio, Preservação, Brasilia
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DO PLANO PILOTO À PAISAGEM CULTURAL: Escalas de preservação em Brasília

BISPO, ALBA 1. IPHAN. Escritório Técnico de Tiradentes Rua da Câmara, nº 124, Centro, Tiradentes, MG, CEP: 36.325-000 [email protected]

RESUMO As relações entre paisagem e patrimônio estão intensamente conectadas da concepção e implantação do Plano Piloto ao processo de acautelamento do conjunto de Brasília como bem cultural. Este trabalho propõe analisar as legislações patrimoniais referentes ao tombamento de Brasília a fim de verificar como a noção de paisagem cultural pode ser estrategicamente adotada na preservação da capital brasileira, portanto, contribui enquanto reflexão crítica sobre o conceito de paisagem cultural a partir do campo do patrimônio cultural. Quanto à bibliografia de referência, partimos dos principais documentos relativos ao processo de reconhecimento de Brasília como patrimônio cultural, destacando Costa (1989; 1991), Campofiorito (1990) e Peralva (1988). Mencionamos as cartas patrimoniais e recomendações internacionais reunidas em Cury (2004) e as legislações patrimoniais incidentes sob o Plano Piloto de Brasília, protegido em três instâncias: pela UNESCO, integrando a Lista do patrimônio Mundial, em 1987; por tombamento distrital pelo Governo do Distrito Federal (GDF), através do Decreto nº 10.829/1987; por tombamento federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), através do Processo nº 1305-T-90, regulamentado pela Portaria nº 314/1992 e pela Portaria nº 68/2012. Para discutir o caso do Plano Piloto de Brasília, especificamente, consideramos as noções de paisagem cultural ventiladas no campo da geografia por Ribeiro (2007) e Jucá (2005), bem como as considerações de Sant'anna (1995) e Leitão (2009) sobre preservação do patrimônio urbano. Brasília destaca-se como meio natural em que o homem imprimiu as marcas de suas ações e formas de expressão diversificadas, quanto aos usos, ocupações e dinâmica urbana, configurando-se como objeto que integra atributos arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos resultantes de sua configuração espacial. A cidade derivada do Plano Piloto transformou o espaço natural, principalmente através de movimentações de relevo, de modo a formar uma série de taludes, desenhando novos terraplenos no ambiente para que fosse hasteada. Do projeto à implantação, Brasília modificou não só o sítio natural, mas o modo de viver em sociedades urbanas. Além de exemplar de urbanismo singular, se constitui como produto do agenciamento do homem sobre a natureza, como paisagem planejada e evolutiva, a ser protegida através de gestão compartilhada e a partir de diferentes escalas de preservação. Palavras-chave: Patrimônio; Preservação; Paisagem Cultural; Brasília.

Quando a paisagem é patrimônio O termo “paisagem” é discutido por diferentes campos - geografia, arquitetura, ecologia, arqueologia, antropologia, paisagismo e patrimônio cultural -, que apresentam leituras diferenciadas sobre o conceito e a abordagem. Na geografia a noção de paisagem cultural vem sendo discutida como “testemunho do trabalho do homem, de sua relação com a natureza, como um retrato da ação humana sobre o espaço ou ainda como panorama ou cenário”. (Winter, 2007, p. 14) A paisagem pode ser lida como um documento que expressa a relação do homem com o seu meio natural, mostrando as transformações que ocorrem ao longo do tempo. A paisagem pode ser lida como um testemunho da história dos grupos humanos que ocuparam determinado espaço. Pode ser lida, também, como um produto da sociedade que a produziu ou ainda como a base material para a produção de diferentes simbologias, locus de interação entre a materialidade e as representações simbólicas. (Winter, 2007, p. 9)

A abordagem da geografia encontra eco no campo do patrimônio, embora a categoria “paisagem cultural” só tenha sido abordada recentemente pela UNESCO e pelo IPHAN através da Portaria nº 127/2009 que estabelece a chancela da paisagem cultural brasileira. O Comitê do Patrimônio Mundial define as paisagens culturais como bens que “ilustram a evolução da sociedade e dos povoamentos ao longo dos tempos, sob a influência de constrangimentos físicos e/ou das vantagens oferecidas pelo seu ambiente natural e das sucessivas forças sociais, económicas e culturais, internas e externas”. Prevista na Constituição Federal de 1988, a preservação da paisagem como patrimônio começa a ser discutida a partir da Carta de Atenas de 1931, preocupada com a visibilidade dos monumentos e sua vizinhança, e do Decreto-Lei nº 25/1937 do IPHAN que prevê a inscrição de bens no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, embora a paisagem fosse abordada como cenário ou plano de fundo para os monumentos, assumindo papel coadjuvante. Já em 1940 a Convenção de Washington para a Proteção da Flora e da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América se preocupa em proteger e conservar a paisagem de beleza rara, especialmente as naturais. Somente a partir da Recomendação de Paris de 1962 os centros históricos passam a ser considerados como parte do meio ambiente e compreendidos no planejamento territorial. Já em 1972 a UNESCO confere a Convenção para Proteção do Patrimônio Natural e Cultural e em 1976 a Recomendação de Nairóbi define o que é um conjunto histórico e a ideia de ambiência como um quadro ao redor que influi na percepção do bem protegido. Já em 1987 a 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Carta de Washington preocupa-se em valorizar e preservar as relações da cidade histórica com o seu entorno natural ou criado pelo homem. Em 1992, a ONU organizou a Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro e a UNESCO instituiu a paisagem cultural como categoria para inscrição de bens na lista de patrimônio mundial, antes enquadrados como bens naturais ou culturais. Ao incorporar a paisagem cultural como categoria, o Comitê do Patrimônio Mundial alterou os Critérios para Avaliação do Valor Universal Excepcional sendo que o bem deve responder pelo menos a um dos dez critérios vigentes. Atualmente, a Convenção do Património Mundial divide as paisagens culturais em três categorias principais: Paisagem claramente definida que é “intencionalmente concebida e criada pelo homem, englobando as paisagens de jardins e parques criadas por razões estéticas que estão muitas vezes (mas não sempre) associadas a construções ou conjuntos religiosos”; Paisagem essencialmente evolutiva que refletem o processo evolutivo na sua forma e na sua composição, pois “resulta de uma exigência de origem social, económica, administrativa e/ou religiosa e atingiu a sua forma atual por associação e em resposta ao seu ambiente natural”; Paisagem cultural associativa, justificada “pela força da associação dos fenômenos religiosos, artísticos ou culturais do elemento natural, mais do que por sinais culturais materiais, que podem ser insignificantes ou mesmo inexistentes”. (UNESCO, 2014) Considerando esta categorização, a cidade-parque de Brasília poderia ser classificada como paisagem claramente definida, entretanto, considerando o processo evolutivo da cidade moderna, Brasília pode ser compreendida como paisagem essencialmente evolutiva, sobretudo diante dos desafios postos pela dinâmica urbana vigente. Para tanto, apresentamos um breve panorama sobre o processo de concepção de Brasília enquanto paisagem planejada e sua valorização como bem cultural.

Brasília enquanto paisagem planejada Num breve panorama histórico sobre o processo de concepção do Plano Piloto e da locação da cidade no sítio natural, Brasília destaca-se como paisagem planejada, derivada de uma concepção essencialmente paisagística. O partido urbanístico incorpora os condicionantes naturais da região e o ideário moderno, reunidos por Lucio Costa no projeto da capital. O processo de escolha do sítio natural da futura capital remonta a fatos históricos ligados à independência brasileira e aos processos de ocupação do interior do país. A primeira referência data de 1761 quando o Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal, propôs mudar a capital do império português para o interior da colônia, sobretudo em função da 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

segurança da corte portuguesa no Rio de Janeiro. Já em 1789, durante a Inconfidência Mineira, foi cogitada a mudança da capital para o interior mineiro, em São João Del Rei, segundo relata Silva (2006). Finalmente em 1823, o patriarca José Bonifácio defende a transferência para o centro-oeste e sugere o nome “Brasília”, conforme lembra Jucá (2005): Em diversos mapas antigos (séculos XVII e XVIII), para incitar a ocupação das terras no interior do país, o sertão, a localização de pedras preciosas, minérios e depois um lago – nascente de diferentes rios – curiosamente coincidiam com a linha de Tordesilhas. Alguns desses mapas designavam as terras portuguesas no continente americano pelo nome Brasíliae. Assim, a história da ocupação do Brasil parece, quase dois séculos depois, propor este lugar como centralidade ideal, e o nome, como reafirmação do país por meio de sua nova capital. (Leitão, 2009, p.242)

Entretanto, a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília só foi oficializada a partir da Constituição Republicana de 1891 que reserva uma zona de 14.400 km² no Planalto Central. Ainda em 1891 foi nomeada a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, composta por 22 membros, entre militares, médicos, geólogos e botânicos, liderados pelo astrônomo Luiz Cruls, cuja missão era escolher e demarcar o local onde a capital seria erguida. A “Missão Cruls” realizou levantamentos geomorfológicos sobre a região, incluindo dados sobre topografia, geologia, pedologia, hidrologia, clima, flora, fauna, recursos minerais e materiais de construção. Em 1894, o Relatório Cruls apontou a área mais adequada para se erguer a nova capital, delimitada fisicamente por um quadrilátero de 160 km x 90 km situado em Goiás que ficou conhecido como “Quadrilátero Cruls” e cuja localização incluiu uma área conhecida como Águas Emendadas, “onde se reúnem as nascentes dos rios que compõem as três principais bacias hidrográficas do país: o São Francisco, o Paraná e o Tocantins” Leitão (2010, p.22). Na prática, o Relatório Cruls é o primeiro documento técnico e que descreve os elementos físicos indissociáveis do Plano Piloto de Brasília e assinala a criação do Lago Paranoá: Enfim, de jornada em jornada, estudando tudo [...], cheguei a um vastíssimo vale banhado pelos rios [...]. A vista panorâmica das colinas circunvizinhas, […] de incomparável esplendor […], prendendo no mesmo lugar o espectador, maravilhado, mais majestosa ainda se tornaria com tão grande lençol d’água banhando-lhes a base, vivificando todos os contornos e deleitando a vista. (Leitão, 2009, p.243)

Em 1922, em comemoração ao centenário da Independência, o presidente Epitácio Pessoa instalou a “Pedra Fundamental da Futura Capital” nas proximidades da atual Planaltina/DF. Entretanto, a transferência da capital seria adiada durante o período do Estado Novo (1937-1945), sendo retomada somente a partir da Constituição de 1946, quando foi instituída 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

a Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital ou Missão Polli Coelho que ampliou a área de estudo em 77.000 m². Por fim, em 1953, em parceria com a Firma Donald J. Belcherand Associates Incorporated, foram realizados levantamentos aerofotogramétricos de toda área incluída num retângulo de 52.000 km² que ficou conhecido por “Retângulo Belcher”. A partir deste trabalho foram selecionados os cinco melhores sítios de 1.000 km² para implantação da capital, identificados por cores: Amarelo, Azul, Verde, Vermelho e Castanho, sendo este último escolhido pela “Missão Belcher” em 13/04/1955 para sediar Brasília. Segundo destaca Jucá (2005), “a escolha do sítio Castanho confirma aquele apontado pela Missão Cruls em 1896, assinalando sua excepcionalidade e, desde o princípio, a importância da paisagem natural na construção de uma cidade-capital.” (Leitão, 2009, p.244) Na historiografia brasiliense, a capital encontra-se associada ao ideal cristão da terra prometida, através de um sonho de Dom Bosco1 que em 1883 teria previsto o surgimento de uma nova e majestosa civilização ao longo do paralelo 15, onde atualmente a cidade encontra-se hasteada, e fazia referência ao futuro Lago Paranoá: “Entre o grau 15 e 20, havia uma enseada bastante extensa, que partia de ponto onde se formava um lago”. O sonho transforma-se em realidade na década de 1950 quando o projeto de transferência da capital para Brasília é empreendido pelo presidente Juscelino Kubistchek como uma das principais metas de governo. Em 1956, com a definição da localização do sítio e a constituição do Lago Paranoá, é lançado o Edital do Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil, cujo vencedor é o Plano Piloto de Brasília proposto por Lucio Costa. No processo de concepção de Brasília, registrado no Relatório do Plano Piloto de 1957, o urbanista traça dois eixos perpendiculares entre si, desenhando uma cruz. Trata-se de uma referência simbólica ao cristianismo, filosofia religiosa predominante no país. Conforme lembra Jucá (2005), “o valor mítico desse símbolo, relacionado com o rito de fundação das cidades, sugere centralidade e tomada de posse do território” (Leitão, 2009, p.242). Além das referências cardeais de fundação da cidade com o cruzamento do cardo e do decumeno romano, o Plano Piloto de Costa evoca a ideia de ordem e progresso perseguida como lema federativo, especialmente ao elaborar o plano urbano da capital a partir de princípios de racionalidade geométrica e regras de equilíbrio, proporção, simplicidade e simetria.

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O sonho profético de Dom Bosco, fundador dos Salesianos e atual padroeiro de Brasília, encontra-se registrado na transcrição de uma reunião da Assembleia Geral da Congregação Salesiana, publicado em CERIA, Eugenio. Memorie biografiche di San Giovanni Bosco. Vol. 13. Torino: Società Editrice Internazionale, 1935. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Como contraponto à reta que constitui o Eixo Monumental (Leste-Oeste), Costa conforma um arco onde implanta o Eixo Residencial (Norte-Sul), de modo a acomodar o traçado da cidade ao desenho arqueado do Lago Paranoá, circunscrevendo o desenho urbano da capital-rodoviária num triângulo equilátero.

Figura 01: Sobreposição dos eixos Monumental (reto) e Residencial (arqueado), circunscritos no triângulo equilátero que define o Plano Piloto original, protegido pelo GDF, IPHAN e UNESCO, implantado na Bacia Hidrográfica do Lago Paranoá que define o entorno. Fonte: SEDHAB, 2011, p.144.

Conforme destaca Jucá (2005), “a leitura da forma linear do projeto, além de evocar referências à história urbana, sua disposição ao longo do eixo norte-sul, que segue a curva da 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

massa d’água, assinala o ponto de vista e a característica de nossas cidades coloniais”. (Leitão, 2009, p.244) Entretanto, o urbanista não restringe o partido urbano da capital à planta baixa da cidade, tirando partido do sítio físico, caracterizado pela convexidade expressa na colina da área central e pela concavidade da bacia hidrográfica do Paranoá. Assim, a cidade é hasteada a partir de escalonamentos de gabarito em respeito ao relevo natural: da cota mais alta de implantação, onde implanta o Eixo Monumental, até a cota mais baixa, no Lago Paranoá. A técnica oriental milenar dos terraplenos “garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental” (COSTA, 1991). Jucá (2005) explica que: (...) a escala monumental é estruturada na linha de declividade natural do terreno de maior alcance visual por um parque linear em terraplenos – Eixo Monumental –, no qual se dispõem diferentes monumentos e palácios. É um ordenamento que garante visuais livres entre si e de grande profundidade sobre o lago e as chapadas, criando, segundo Lucio Costa, “espaços adequados à escala do homem” e permitindo “o diálogo monumental”. (LEITÃO, 2009, p.245)

Acomodada ao contorno do Lago Paranoá, a cidade desenha-se sob uma área marcada pelo bioma do cerrado e pelo relevo horizontalizado em pleno planalto central, entretanto, os desafios de locação do projeto no terreno natural revelariam que a superfície não era completamente plana. No processo de implantação, o Plano Piloto sofreu algumas alterações, contudo sem desvirtuar a concepção urbana original. A principal adaptação ocorreu por sugestão de William Holford, arquiteto e urbanista inglês, enquanto membro da Comissão Julgadora do Concurso do Plano Piloto da Nova Capital: “o conjunto da cidade deslocou-se para leste, e os lotes residenciais passaram para o outro lado do lago. A razão deste deslocamento foi reduzir a extensão de área vazia entre a cidade e a água, a seu ver vulnerável, no futuro, a pressões no sentido de uma ocupação indevida” (Leitão, 2009, p. 50). De fato, uma das maiores dificuldades foi acomodar o Plano Piloto ao terreno natural, conforme evidencia Zettel2: Havia sempre uma ilusão de que o terreno de Brasília era plano como uma mesa de bilhar e na verdade não era. Esse acerto do Plano no terreno inclusive foi uma proposta do William Holford: se você pegar o Plano Piloto, vai ver que tem uma distância diferente entre o projeto e a execução, ele desceu mais para o lago e inverteu um pouco a situação. E aí eram cortes em todo o terreno pra fazer um aproveitamento melhor da movimentação de terras – cortes e aterros. A Asa Sul foi construída antes da Asa Norte e quando você anda hoje pelas asas, percebe que a Asa Sul é mais plana e a Asa Norte tem mais relevos, isso foi

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Jayme Zettel é arquiteto, estagiou no escritório dos Irmãos Roberto e depois foi trabalhar com Lucio Costa, em 1957. Foi chefe da Divisão de Urbanismo da Novacap na construção da cidade de Brasília. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

decorrente das dificuldades da época, de acomodar a cidade no terreno que não era tão plano quanto parecia.3

Em suma, o processo de locação do Plano Piloto no terreno natural demandou uma série de movimentações de terra, desenhando novos taludes, terraplenos e perfis topográficos no nível da superfície, no entanto, sem promover interferências no contorno da silhueta que circunscreve e emoldura a cidade. Respeitando a linha de cumeada como limite de altura, Costa esboça massas edificadas estabelecendo relações de hierarquia e proporção volumétricas entre os diferentes setores. Partindo deste princípio, o urbanista promove a concentração de massas construtivas mais altas nos setores centrais e a uniformização volumétrica nas superquadras com adoção de um gabarito máximo de seis pavimentos sob pilotis. Portanto, o partido urbanístico da cidade se apropria da paisagem natural preexistente, preservando a leitura da silhueta horizontalizada como traço marcante da paisagem citadina.

Figura 02: Skyline da Escala Gregária e Monumental, com setores centrais marcados por massas de edificações de gabarito mais alto (em segundo plano) e da Escala Residencial com gabarito uniforme de seis pavimentos das superquadras (em primeiro plano). Foto: Alba Bispo, Julho/2011.

Ao incorporar características dos elementos geográficos da região ao partido urbanístico, respeitando a paisagem natural preexistente, a cidade é planejada não só do ponto de vista da planta baixa, mas de uma visão topográfica e planimétrica que incorpora a horizontalidade do território na paisagem planejada da cidade. Sob uma perspectiva paisagística, portanto, Costa distribui discretamente na vegetação os volumes puros, procurando destacar a leitura da silhueta da bacia hidrográfica de modo que o ambiente construído se implanta de modo circunscrito sob o meio natural, numa relação de consonância, ou seja, sem subordinar a paisagem natural que circunscreve os limites geomorfológicos de Brasília. Trata-se da criação de uma cidade-parque onde as massas construtivas e vegetativas são organizadas sob uma lógica setorial e funcional, de modo que o desenho urbano é orientado 3

Entrevista concedida a Alba Bispo, realizada em 21/09/2012, no Salão Portinari do Palácio Gustavo Capanema, cuja transcrição ainda não foi publicada. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

pelas áreas verdes (vazios) onde as massas construtivas (cheios) se distribuem. Jucá (2005) destaca o papel dos vazios vegetativos na composição urbana: De fato, trata-se da vegetação como elemento fundamental à estruturação e à composição dos espaços abertos da cidade-parque. Sua presença nas diferentes entidades urbanas é garantida pela continuidade dos vazios entre os cheios e pelo predomínio da natureza pública do solo sobre a propriedade privada. Nos espaços mais íntimos e arborizados da superquadra, apropriados para atividades contemplativas, essa configuração espacial proporciona vistas parciais que chamamos de “pequena paisagem”. Por vezes, com o corpo em movimento, por causa da abertura da vegetação e do escalonamento do terreno, surgem “paisagens variadas”. Estas resultam da mescla de pequenas paisagens a grandes visuais, os quais denominamos “grande paisagem”. Essa é uma percepção própria dos espaços monumentais. Além disso, a profundidade visual é garantida pelos espaços bucólicos, que proporcionam, ao olhar, grandes extensões e panoramas. (Leitão, 2009, p.248)

Sobre os vazios como elementos de composição, Costa (1989) esclarece que “da proposta do plano piloto resultou a incorporação à cidade do imenso céu do planalto, como parte integrante e onipresente da própria concepção urbana – os “vazios” são por ele preenchidos; a cidade é deliberadamente aberta aos 360 graus do horizonte que a circunda”. Portanto, o Plano Piloto define uma proporção volumétrica entre cheios e vazios nos vários setores de modo a permitir a visibilidade da cumeada da bacia hidrográfica de diferentes pontos e proporcionar visadas de um horizonte de 360º. Deste modo, o desenho urbano da capital brasileira organiza-se a partir das condicionantes geográficas do sítio natural na qual a cidade seria hasteada, tendo a bacia hidrográfica do Paranoá e o lago homônimo como elementos referenciais e fundamentais para a definição do partido urbanístico. A ideia de cidade-parque deriva da intenção de incorporar os elementos da paisagem natural à cidade de modo que as áreas livres dos vazios estruturam os diferentes setores urbanos. Assim, enfatiza-se a importância da interação da escala bucólica com as demais escalas, onde as áreas construídas se distribuem de maneira discreta e esmaecida nos vazios urbanos que constituem as áreas verdes, livres e públicas. A escala bucólica constitui-se, portanto, como elemento essencial na estruturação do desenho urbano da cidade-parque, conforme explicita Jucá (2005): A escala bucólica, limitando a cidade no conjunto com as demais escalas, é constituída, prioritariamente, de áreas livres de edificações e densamente arborizadas, cuja manutenção é fundamental para o estabelecimento da relação visual entre cidade e entorno. A partir da cidade, a vegetação leva o olhar ao amplo espaço e ao horizonte que a circunda. Essa estratégia, largamente empregada no 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

planejamento de parques, é inclusive apresentada por Lucio Costa para a preservação da Praça dos Três Poderes. Por sua vez, vista do entorno, essa área arborizada, livre de edificações em altura é essencial para ressaltar a silhueta da cidade, destacando sua condição de monumento. Dessa posição, é evidente como o verde da vegetação continua atravessando a cidade, partilhando seus vazios com o céu. Essas características fundamentais para a cidade-parque destacam a importância da vegetação como elemento estruturador de sua composição urbana. (Leitão, 2009, P.245-246)

Figura 03: Vista aérea do Plano Piloto. Fotografia: Alba Bispo (Março, 2012).

Nas superquadras, por exemplo, as massas construtivas são distribuídas sem subordinar-se ao traçado das vias, pois as massas vegetativas definem o desenho: os volumes construtivos são distribuídos no pátio interno delimitado pelo cinturão verde de modo que a permeabilidade entre os volumes edificados (cheio) e as massas vegetais (vazios) geram diferentes composições e ambiências a partir de arranjos urbanos diversificados. Em contraponto à padronização de gabarito e tipologias construtivas de cada superquadra, Costa incentiva a adoção de diferentes espécimes vegetais no cinturão verde que a emoldura, de modo a promover uma diversidade estética pontual, contudo sem ferir a unidade do conjunto. A urbanidade singular das superquadras inaugura um novo modo de morar em sociedade ao mesmo tempo em que estrutura a escala residencial ao longo das asas Sul e Norte, a partir de uma sequência contínua de unidades de vizinhança, cuja ideia consiste em adotar serviços 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

básicos para cada conjunto de quatro superquadras a fim de atender à população dos blocos residenciais com comércio, lazer, instituições educacionais, religiosas, desportivas e culturais. Assim, os equipamentos constituiriam pontos de encontro e todos os serviços necessários à vida cotidiana estariam acessíveis a pé. A intenção era justamente promover a sociabilidade a partir das relações de vizinhança, resgatando as articulações do bairro das cidades tradicionais, onde os residentes se conhecem, compartilham dos mesmos espaços e realizam atividades conjuntas. Ao definir os pilotis (área térrea dos blocos residenciais) como área pública, Costa confere condições inovadoras de habitabilidade, pois “morar em apartamento na superquadra significa dispor de chão livre e gramados generosos contíguos à “casa” numa escala que um lote individual normal não tem possibilidade de oferecer”. (Costa, 1989). Esta simbiose entre ambiente natural e construído constitui a paisagem cultural da capital, marcada por uma série de atributos que a configuram como cidade-parque, cujas principais características arquitetônicas, urbanísticas e paisagísticas dependem da manutenção de escalas urbanísticas defendidas pelo próprio Costa, sobretudo no processo de preservação de Brasília como patrimônio cultural.

Escalas de Preservação do Plano Piloto como patrimônio cultural Atualmente, o Plano Piloto de Brasília encontra-se protegido em três instâncias: pela UNESCO, integrando a Lista do patrimônio Mundial, em 1987; por tombamento distrital pelo Governo do Distrito Federal, através do Decreto nº 10.829/1987; por tombamento federal pelo IPHAN, através do Processo nº 1305-T-90, regulamentado pela Portaria nº 314/1992 e pela Portaria nº 68/2012. Em 1980, vinte anos após a inauguração da capital, na ausência de um código urbano detalhado e de um plano regulador que considerasse o planejamento territorial do Distrito Federal, Brasília já se encontrava ameaçada por uma série de alterações que comprometiam a paisagem urbana e as qualidades da cidade moderna idealizada por Costa. Essas ameaças incluíam a privatização de espaços públicos por meio de construções irregulares em espaços livres; a privatização da área pública dos pilotis residenciais, a pressão pela verticalização em alguns setores do Plano Piloto inclusive nas superquadras, a forte especulação imobiliária resultante do rápido crescimento populacional da capital prevista para 500 mil habitantes e modificações no traçado urbano original, alterando o funcionamento da rede rodoviária. Nesse contexto, a inscrição da cidade moderna na Lista do Patrimônio Mundial surgiu como resposta às pressões por modificações no Plano Piloto conduzindo ao estudo para o tombamento do conjunto urbano como garantia de preservação. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Segundo Peralva (1988), o Dossiê de Candidatura de Brasília para UNESCO elaborado pelo GT-Brasília4 apresentou uma proposta de proteção bastante detalhada, considerando não só a cidade derivada diretamente do Plano Piloto concebido por Costa, mas também vestígios dos usos e ocupações decorrentes do processo de implantação e construção de Brasília, incluindo as antigas fazendas, acampamentos e cidades satélites. Esta abordagem aproxima-se da noção de paisagem que é ao mesmo tempo matriz e marco, defendida pelo geógrafo francês Augustin Berque: “Paisagem Matriz na medida em que as estruturas e formas da paisagem contribuem para a perpetuação de usos e significações entre as gerações; Paisagem Marco, na medida em que cada grupo grava em seu espaço os sinais e os símbolos de sua atividade”. (BERQUE, 1984, p. 33 apud Winter, 2007, p.30) Nesse ponto, ressalta-se a permanência de núcleos urbanos como Vila Planalto, Vila Telebrasília e Candangolândia, derivados de assentamentos e acampamentos dos operários que participaram da construção de Brasília, conhecidos como “candangos”, cujas construções deveriam ser destruídas após a inauguração da capital. Cabe destacar também outros setores urbanos ou regiões administrativas 5 , como Cruzeiro Velho, Cruzeiro Novo, Octogonal, Sudoeste e Noroeste, Setor de Grandes Áreas (SGAN/SGAS), não previstos no Plano Piloto e incluídos no conjunto protegido, embora não sejam contemplados com diretrizes específicas de preservação por não decorrer do Plano Piloto original. Portanto, as escalas de preservação não se aplicam a estes núcleos urbanos visto que estes apresentam configurações arquitetônica, urbanística e paisagística distintas do Plano Piloto, especialmente quanto ao uso e ocupação do solo, tipologias construtivas e morfologia urbana. De fato, a proposta do GT-Brasília incorporava a noção de cidade-documento (Sant'anna, 1995), ou seja, considerava o desenvolvimento processual da urbe, cuja abordagem se aproxima da noção de paisagem cultural: Brasília era entendida como testemunho dos processos de ocupação do território brasileiro e de produção do espaço urbano, como fonte de informações sobre os processos sociais, econômicos, políticos e culturais vigentes na época da implantação de Brasília como capital do país. Entretanto, o Dossiê do GT-Brasília foi considerado adequado apenas “para uso interno” pelo autor da cidade e pelo governador, pois a proposta de candidatura a patrimônio mundial não visava incorporar os aspectos socioculturais condicionantes à ocupação do Plano Piloto ou as ocupações “antes de Brasília” como áreas de interesse de proteção.

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Grupo de Trabalho para a Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Brasília (GT-Brasília), criado em 1981, composto por representantes da Secretaria da Cultura/SPHAN/Pró-Memória (atual IPHAN), Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) e Governo do Distrito Federal (GDF). 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

[...] a partir dos anos 60, a cidade patrimônio deixa de ser concebida somente como cidade-monumento, passando a ser vista também como testemunho da evolução da organização social, fazendo jus ao nome de ‘cidade histórica’. Aos antigos valores histórico e artístico agrega-se o valor paisagístico como um critério predominante na seleção de áreas urbanas. A noção de paisagem, de resto, sempre presente em todos os tombamentos extensos, ganha agora maior força, incluindo cada vez mais o aspecto ambiental e cada vez menos a questão arquitetônica. [...] A hegemonia do valor paisagístico é também, naturalmente, reflexo do discurso de contextualização do objeto patrimonial no seu entorno. (SANT’ANNA, 1995: 170-171)

Por fim, outros estudos geraram o Decreto Distrital 10.829/1987, elaborado a partir de uma minuta de Ítalo Campofiorito, então presidente do IPHAN, com apoio de Lucio Costa. De fato, na defesa da candidatura de Brasília ressaltam-se as qualidades da cidade moderna, destacando a singularidade da capital em contraponto às edificações históricas das cidades tradicionais. Tratava-se de proteger um conjunto urbano vulnerável e de valor excepcional, pois era a única cidade moderna construída “a partir do nada” para ser a capital de um país, constituindo um exemplo histórico e singular do urbanismo moderno derivado dos princípios expressos na Carta de Atenas de 1943 e do “Modo de pensar o Urbanismo” de 1946, de Le Corbusier. A preservação de Brasília foi argumentada inclusive considerando sua contemporaneidade, pois conforme destaca Peralva (1988), se antes havíamos “preservado, para o presente, monumentos do passado”, naquele momento, deveríamos pensar “em preservar para o futuro um monumento do presente”. Diante dos argumentos apresentados, o Conselho do Patrimônio Mundial aprovou a inclusão de Brasília na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO em 07/12/1987, considerando os critérios de (I) representar uma obra notável do gênio criativo humano e (IV) ser exemplo destacado de um tipo de construção, ou de conjunto arquitetônico, tecnológico ou paisagístico que ilustre uma ou mais etapas significativas da história da humanidade. Conforme o quinto artigo da Convenção de 1972, os bens patrimoniais culturais da humanidade são de três tipos: os monumentos, os conjuntos e os lugares notáveis. Nos três casos, valoriza-se o caráter universal de excepcionalidade de tais bens. Erguida em lugar notável e feita de monumentos, Brasília foi preservada como CONJUNTO, ou seja, “grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência”.6 (SCHLEE, 2006, p.145)

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O Distrito Federal divide-se em 29 Regiões Administrativas (RA), sendo que a área sob proteção patrimonial engloba parcialmente a RA I – Brasília (Plano Piloto), RA XIX – Candangolândia, RA XI – Cruzeiro e RA XXII – Sudoeste/Octogonal. 6

Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972). 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Já o processo de tombamento de Brasília como patrimônio nacional, movido pelo IPHAN em 1990, destaca a cidade moderna como grande monumento de arte genuinamente brasileira: Brasília é sem dúvida, o grande monumento histórico nacional. Mas, Brasília é também o grande monumento artístico brasileiro. (...) Os edifícios projetados por Oscar Niemeyer, considerado internacionalmente como o maior arquiteto vivo da atualidade, são considerados marcos da arquitetura contemporânea. As avenidas, as praças, os bosques, as quadras residenciais são reconhecidas como propostas revolucionárias da arquitetura contemporânea. Em qualquer local do mundo civilizado um indivíduo é capaz de reconhecer, por sua beleza plástica, a fotografia da Praça dos 3 Poderes, do Ministério das Relações Exteriores, do Palácio da Alvorada e de todos vultos como monumentos arquitetônicos que representam a renovação arquitetônica que se operaram no século XX. (Processo nº 1305-T-90)

Quanto à legislação de proteção distrital em 1987 e federal em 1990, “tombava-se a cidade de forma inovadora - fixando-se a sua ‘escala’ no essencial, liberando-se as edificações em geral, com exceção dos monumentos excepcionais, para qualquer modificação que não rompesse com a escala em que se inseria”. (Campofiorito, 1990) A legislação incorporava, portanto, as diretrizes do documento “Brasília Revisitada” (Costa, 1989) onde o urbanista enfatiza a importância da volumetria paisagística na interação das escalas urbanas da cidade: A escala monumental comanda o eixo retilíneo – Eixo Monumental – e foi introduzida através da aplicação da “técnica milenar dos terraplenos” (Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios), da disposição disciplinada porém rica das massas edificadas, das referências verticais do Congresso Nacional e da Torre de Televisão e do canteiro central gramado e livre da ocupação que atravessa a cidade do nascente ao poente. As superquadras residenciais, intercaladas pelas entrequadras (comércio local, recreio, equipamentos de uso comum), se sucedem, regular e linearmente dispostas ao longo dos 6 km de cada ramo do eixo arqueado – Eixo Rodoviário-Residencial. A escala definida por esta sequência entrosa-se com a escala monumental não apenas pelo gabarito das edificações como pela definição geométrica do território de cada quadra através da arborização densa da faixa verde que a delimita e lhe confere cunho de “pátio interno” urbano. A escala gregária surge, logicamente, em torno da interseção dos dois eixos, a plataforma rodoviária, elemento de vital importância na concepção da cidade e que se tornou, além do mais, o ponto de ligação de Brasília com as cidades satélites. No centro urbano, a densidade de ocupação se previu maior e os gabaritos mais altos, à exceção dos dois Setores de Diversões.

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E a intervenção da escala bucólica no ritmo e na harmonia dos espaços urbanos se faz sentir na passagem, sem transição, do ocupado para o não-ocupado – em lugar de muralhas, a cidade se propôs delimitada por áreas livres arborizadas. (COSTA, 1989)

Figura 04: Mapa de escalas predominantes. Fonte: Grupo de Trabalho de Revisão do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), IPHAN, 2013.

Para Jucá (2005), as escalas urbanas “são identificadas nos distintos jogos de cheios e vazios, de volumetrias edilícias, de tratamento vegetal que, estruturando diferentes ambiências, ganham identidade fisionômica e social e potencializam a percepção da cidade-parque como paisagem”. (Leitão, 2009, p. 245) A preservação do Plano Piloto, portanto, estaria condicionada à manutenção da volumetria paisagística na interação das quatro escalas urbanas da cidade. Trata-se de um tombamento é inovador, pois não impede a 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

inserção de novas construções na cidade, mas delimita parâmetros relacionados à conservação das características de cada escala, enfatizando alguns limites construtivos como, por exemplo, a manutenção do gabarito de seis pavimentos na escala residencial das superquadras do Plano Piloto, a manutenção da ampla permeabilidade visual e livre circulação de pedestres na área dos pilotis residenciais. O tombamento da cidade moderna considera critérios urbanísticos, de uso, gabarito e volumetria, evidenciando uma estratégia de preservação paisagística que se aproxima da noção de paisagem cultural. Entretanto, a legislação de proteção distrital, nacional e mundial não abrange aspectos de composição arquitetônica e paisagística, embora a noção das escalas urbanísticas ressalte a integração simbiótica entre elementos naturais e construídos que perfazem a paisagem cultural de Brasília. No acautelamento do Plano Piloto de Brasília como bem cultural, em suma, o sítio urbano é compreendido como um só monumento, composto por uma coleção de obras de arte moderna, valorizadas especialmente pelo caráter monumental e pela homogeneidade estilística. Entendida como cidade-monumento, a proteção de Brasília prioriza critérios estéticos de preservação, ignorando a proposta inicial do GT-Brasília que procurava traduzir a visão de cidade-documento e que se aproxima da noção de paisagem cultural, recentemente incorporada aos critérios da UNESCO para inscrição de bens na lista do patrimônio mundial e também pelo IPHAN através da chancela como instrumento de proteção complementar.

Perspectivas e desafios de Brasília enquanto paisagem cultural Ao exaltar a cidade-monumento e não incorporar os processos de uso e ocupação que já interferiam na dinâmica urbana da cidade, as legislações de proteção patrimonial ignoram o crescimento de setores urbanos não previstos no Plano Piloto original que já interferem na leitura da paisagem citadina. Além disso, o caráter urbanístico do tombamento de Brasília, em meio à diversidade de intervenções espontâneas gera uma série de dificuldades para a gestão da área tombada, sobretudo derivadas da desarticulação institucional e da insuficiência de ações de conscientização quanto à valorização do patrimônio recente. Nesse caso, vale citar a experiência de elaboração do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB7) cujo processo de elaboração tem revelado uma série de conflitos políticos e técnicos quanto aos diferentes interesses na gestão do sítio tombado.

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O PPCUB foi definido no Plano Diretor do Distrito Federal (PDOT - Lei Complementar 803/2009) como “instrumento de planejamento e gestão do Conjunto Urbano Tombado” devendo considerar “a legislação federal e do distrito competente, observando a especificidade do sítio urbano e a singularidade de sua concepção urbanística e sua expressão arquitetônica”. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Diante do exposto, há de se considerar que o reconhecimento de Brasília como paisagem cultural pode contribuir para promover uma melhor integração entre as instituições e definir o compartilhamento de responsabilidades entre os principais agentes sociais envolvidos: GDF, IPHAN, UNESCO, sociedade civil e demais entidades. Nesse quesito importa ressaltar que a chancela propõe integrar os instrumentos de promoção e proteção existentes e enquanto instrumento complementar pressupõe a instituição de um pacto visando a gestão compartilhada, conforme previsto na Portaria 127/2009 do IPHAN: Art. 4º. A chancela da Paisagem Cultural Brasileira implica no estabelecimento de pacto que pode envolver o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada, visando a gestão compartilhada da porção do território nacional assim reconhecida. Art. 5º. O pacto convencionado para proteção da Paisagem Cultural Brasileira chancelada poderá ser integrado de Plano de Gestão a ser acordado entre as diversas entidades, órgãos e agentes públicos e privados envolvidos, o qual será acompanhado pelo IPHAN.

A preservação da paisagem cultural de Brasília pode ser assegurada pela chancela enquanto instrumento complementar ao tombamento, sobretudo considerando que a atual legislação de proteção delimita diretrizes de intervenção somente ao conjunto urbano diretamente derivado do Plano Piloto, sem abarcar outros setores não previstos no plano original, mas incluídos na área tombada. A chancela, portanto, complementaria o tombamento ao abarcar a cidade processada ao longo do tempo, a partir de uma perspectiva paisagística do território delimitado pela bacia hidrográfica do Paranoá que se transformou em lugar através das diferentes apropriações e relações, físicas e afetivas, da população residente na cidade-capital. Através da chancela de Brasília como paisagem cultural há de se promover uma gestão compartilhada sob a área inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da Humanidade que compreende a área tombada e seu entorno (buffer zone), cujos limites coincidem com o contorno da bacia hidrográfica do Paranoá. Na prática, trata-se de complementar a proteção vigente para as diferentes fisionomias da capital a serem preservadas às gerações futuras: Brasília derivada dos sonhos de Cruls, Polli Coelho, Becher, Dom Bosco, José Bonifácio e JK, constituída pela cidade-parque projetada por Lucio Costa, resultante de diversificados processos de usos e ocupações pelos candangos e composta por diferentes biomas que integram a paisagem cultural brasiliense.

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Referências Bibliográficas CAMPOFIORITO, Ítalo. Brasília Revisitada. Revista Eletrônica do IPHAN, 1990. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2011. COSTA, Lucio. Brasília Revisitada, 1985-1987: complementação, preservação, adensamento e expansão urbana. In: GDF. Código de obras e edificações. Brasília: GDF, 1989. COSTA, Lucio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília, cidade que inventei. Brasília: ArPDF, Codeplan e DePHA, 1991. CURY, Isabelle (org.). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004 JUCÁ, Jane Monte. Les realités et potentialités des paysages de Brasília: des mythes fondateurs oubliés à l’invention d’un patrimoine mondial. Tese de doutorado, École de Géographie, Panthèon-Sorbonne, Paris I, Paris, 2005. Disponível em: http://bdtd.ibict.br. KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch, 1975. Processo nº 1305-T-90 – Dossiê de Tombamento do Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico de Brasília. LEITÃO, Francisco (org.). Brasília 1960-2010: passado, presente e futuro. Brasília: Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, 2009. 272p. PERALVA, Osvaldo. Brasília Patrimônio da Humanidade (um relatório). Brasília: Ministério da Cultura, Coordenadoria de Comunicação Social, 1988. RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro: Iphan, 2007. 152p. SANT'ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a trajetória da norma de preservação de áreas urbanas no Brasil (1937-1990). 1995. 268 f. SCHLEE, Andrey Rosenthal. A preservação do moderno: o caso de Brasília. In: PESSÔA, José. Moderno e Nacional. Niterói: EdUFF, 2006. p. 141-155. SEDHAB. Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. Relatório Diagnóstico – Subproduto B – Relatório Consolidado. RSP Arquitetura e Consultoria e Governo do Distrito Federal. Brasília, 2011.

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SILVA, Ernesto. História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realidade. Brasília: Charbel Gráfica e Editora, 2006. UNESCO. Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial. Lisboa: Comité Intergovernamental para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, 2014.

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