Do pranto à questão: o grito de Medeia e a questão improvável

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Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462

DO PRANTO À QUESTÃO: O GRITO DE MEDÉIA E A PERGUNTA IMPROVÁVEL Samon Noyama Doutorando em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/bolsista CNPq Professor Assistente da FAFIUV – PR Resumo: Neste artigo pretendemos investigar a possibilidade de entender a tragédia grega enquanto representação do universal, defendendo uma interpretação do §9 da Poética de Aristóteles, com a finalidade de mostrar como a tragédia Medéia, de Eurípides, pode ser entendida como a demonstração de que a relação dos gregos com a organização da polis era na verdade muito mais conflituosa do que ordenada, e que isto nos permite mais nitidamente propor questionamentos acerca da arte e da polis grega do que chegar a conclusões a respeito da cidade e das suas primeiras instituições. Palavras-Chave: Pólis; Medéia; Julgamento. Abstract: In this article we pretend look for possibilities to understand Greek Tragedy as a representation of the universal, supporting a particular interpretation of §9 in Aristotle’s Poetics, trying to show how Euripides’ Medee can be understood as a demonstration that the relation between Greek people and a polis organized were, in truth, more problematic than ordained, and this permit us propose more questions about art and the Greek polis than reach the truth about that polis and their institutions. Keywords: Polis; Medee; Judgement.

O imaginário poético das tragédias é o solo fértil que dá origem às questões mais polêmicas acerca da significação das personagens de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, que desafiam nossa criatividade e a capacidade de encontrar possíveis sentidos para um problema que nos seduz: qual, afinal, o mérito e a justificativa para a fama incontestável de tais personagens, sobretudo das mulheres nas tragédias?

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 Evidente que, rodeados de muitas interpretações respaldadas pela crítica filosófica e legitimadas por seu valor histórico, literário, político e antropológico, cercaremo-nos daquelas que permitirem sustentar nosso método e caminho, a fim de resguardar a validade filosófica desta sugestão de interpretação e fazer valer o vigor de nossa última questão. Sabemos, por exemplo, da diferença de interpretação da tradição que vem dos helenistas alemães e da posição adotada por Vernant. Conscientes dessas diferentes visões do mundo grego, e por extensão, da cultura helênica e das tragédias gregas, valemo-nos justamente desta pluralidade para trilhar um caminho feito de sendas.

A mulher na pólis e a mulher nas tragédias

Algumas considerações a respeito da condição da mulher na Antiguidade grega formam um conjunto bastante frutífero para pensar a trajetória de Medéia e Antígona, por exemplo, e trataremos de enumerar aqui as que consideramos fundamentais para justificar a leitura que encaminhamos nesta investigação. Em primeiro lugar, e talvez a mais importante questão a este respeito, a condição de abandono ou de desgoverno da mulher que não tem o seu guardião, seu

kurios. Medéia, assim como Clitemnestra, transforma-se numa mulher abandonada; ou talvez ela mesma tenha abandonado o próprio lar para viver com Jasão. O fato crucial é que, quando abandonada por Jasão, Medéia perde seu principal e maior ponto de referência, sua proteção, sua tutela, sua segurança. Como os hábitos religiosos e familiares são deixados de lado para incorporar os hábitos condizentes com a origem do marido, Jasão, Medéia é forçada a esquecer a sua própria origem, tratando-se, portanto de uma aniquilação. No filme homônimo de Pasolini, a fala do centauro para Jasão ilustra muito bem o processo porque passou Medéia, quando ele afirma: “Você compreende a catástrofe espiritual, sua desorientação de mulher do mundo antigo

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 num mundo que ignora seus valores. A pobre mulher experimentou uma conversão ao contrário e não se recuperou.” Soma-se a isso o fato de que cabia à mulher da época algumas atividades específicas, como o lamento nos rituais fúnebres e o exercício da economia doméstica, mas fugiam da alçada da mulher quaisquer outras atividades referentes à

polis, tarefas estas destinadas aos homens. Por ser estrangeira e por ter passado pelo referido processo de submissão à costumes e hábitos anteriormente desconhecidos, Medeia se transforma em um estranho no ninho. Tudo indica que ela poderia reconhecer sua incapacidade de adaptação apesar da urgente necessidade, ainda que outras personagens, como Creonte, não acreditassem numa possível adaptação da heroína. Afinal, os gregos ainda ressentiam a presença de estrangeiros em seu território, o que ficava nítido com a restrição à sua participação política. Por natureza de gênero e por origem além mar, isto é, duplamente, Medéia jamais poderia sentir-se grega ou viver como tal. Ainda sobre a condição de nossa heroína, Rachel Gazolla nos lembra muito bem o quanto a origem de Medéia ofendia, ressentia e preocupava os concidadãos. Por si só ela representava tudo o que os gregos não desejavam: uma estrangeira, mulher sem função, descendente de deuses pré-olímpicos, mulher de hábitos misteriosos e poderes sobrenaturais que, através de sua identificação com hábitos e forças muito antigos, ameaçava a (suposta) ordem da polis, provocando os homens, indignando

as mulheres e recuperando crenças antigas e forças ocultas.

Definitivamente, Medéia não combinava com o espírito grego marcado pelo nascimento da polis, pela difusão das idéias da filosofia e pelo estabelecimento do regime de leis normativas, nomos, em substituição às leis do hábito e da natureza. Por fim, e não menos importante, nos valemos da ideia de que o princípio da ação da heroína trágica é o ultraje moral, no caso de Medéia, a traição e o abandono provocados pelas núpcias de Jasão com a filha de Creonte. A ação de Jasão equivale

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 ao pai que não reconhece um filho; não se trata de uma simples traição como entendemos no sentido cristão, mas sim no abandono do lar e das relações familiares anteriormente assumidas, o que eleva a traição ao status de aniquilação da vida da heroína. A ação de Medéia estaria parcialmente justificada, assim como o ímpeto de Antígona ao tentar sepultar seu irmão, pelo simples fato de Jasão tê-la exposto e colocado numa situação impossível. Porém, Medéia não era uma heroína qualquer, e sua trajetória se eleva ainda mais à medida que sua vingança será marcada por todas as vicissitudes que constituem seu percurso trágico.

As influências filosóficas de Eurípides

Pouca certeza temos a respeito da biografia de Eurípides, mas tudo indica que a informação de que ele teria freqüentado Sócrates e Protágoras faz todo sentido, além de constar na maioria das suas informações biográficas 1. A julgar por algumas tiradas filosóficas que saem da boca de alguns personagens de suas tragédias (que inclusive podem não ter sido bem recebidas pelos espectadores), a sofística parece ser uma influência freqüente nas suas peças, motivo que abre espaço para acreditarmos que muitas vezes o poeta revela a diversidade de opiniões e teorias que separavam filósofos e sofistas. Jeager afirma que “A sofística tem uma cabeça de Jano, da qual um dos rostos é de Sófocles e o outro é de Eurípides” 2. Se a força da sofística está presente em Sófocles através da preocupação em relação do desenvolvimento harmônico da alma humana, isto é, da formação do homem grego, a face euripidiana da sofística reside justamente no conflito com a primeira parte. Repetindo as palavras de Jeager na Paidéia, “a educação sofística revela seu parentesco com o mundo dividido e contraditório que aparece na poesia de Eurípides,

1 2

Ver: LESKY, Albin. A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1996. JEAGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p.267.

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 através da oscilante insegurança dos seus princípios morais” 3. Trata-se de retomar o argumento de que diante de uma mesma questão há pelo menos duas formas contraditórias de pensamento, ou seja, que se concebem idéias contrárias a partir de uma mesma questão. A sofística foi de fato responsável pelo incremento do relativismo, pelo qual recebeu inclusive o mérito e a má fama. Alheios à polêmica contra os sofistas, gostaríamos de poder trazer o relativismo mais ingênuo para dar voz à condição ambígua da Medéia de Eurípides. Não caberia aqui investir nas inumeráveis possibilidades de aproximar a obra de Eurípides e as principais ideias dos sofistas no intuito de apontar claramente em que termos se dá tal influência. Basta estar atento ao fato de que as decisões residem unicamente no homem, e que qualquer força externa capaz de direcionar a ação humana, como numa peça de Ésquilo, já não merece destaque entre as obras de Eurípides. À célebre frase de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são”, aproximamos o estigma que marca Medéia. Afinal, o destino da personagem já não pertence mais aos devaneios de uma divindade, tampouco aos destemperos da moira ou oráculos funestos. O homem e em última instância a pólis respondem pelas ações e decisões, e isso pode ser um forte indicador de como Eurípides pode revelar a fragilidade ou a instabilidade dos grandes valores da pólis grega. Em A tragédia grega, Albin Lesky afirma:

Nas palavras de Protágoras encontramos, como algo decisivo, a ruptura com a tradição em todos os setores da vida; há nelas a reivindicação revolucionária de converter em objeto de debate racional todas as relações da existência humana.4

É a partir dessa idéia que pretendemos conduzir nossa interpretação da

Medéia de Eurípides, a fim de salientar a importância filosófica de construir um debate 3 4

JEAGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p.267. LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1996, p.190.

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 racional sobre as relações e a condição da existência humana, portanto, para além da questão dos gêneros. Todavia, a hipótese apresentada por Martha Nussbaum em A

fragilidade da bondade, a saber, de que as tragédias podem ser uma tentativa de alertar a sociedade androcêntrica para a maneira como este tipo de sociedade marginalizada a mulher e lhe impõem um sofrimento terrível, é uma questão relevante, e acreditamos que merece nossa atenção.

Medéia como questão

Algumas personagens célebres de tragédias são, sem sombra de dúvidas, um manancial de questões a respeito do homem que ultrapassaram o tempo e a história. É o caso do Édipo, assim como o de Medéia. Se, por um lado, encontramos uma dificuldade grande em tentar ler as tragédias como um registro histórico, isto é, como um documento que nos aproxima da época e fornece elementos para diagnosticar fatos reais, por outro lado, temos nosso ofício facilitado quanto nos empenhamos em atribuir as características mais impactantes de tais personagens em nós mesmos e na humanidade como um todo. Para tanto, nos valemos de duas ideias: a primeira a partir do próprio Aristóteles na interpretação dada por Rafael Barbosa a respeito da poética, e a segunda elaborada por Manuel Antônio de Castro na sua análise do mito de Édipo. Passemos às explicações. A dificuldade que nos referimos pode ser defendida a partir de uma tese sustentada por Aristóteles no § 9 de sua Poética, quando ele afirma que “a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular” 5. Segundo o filósofo, a diferença entre a poesia e a história não passa pela forma, isto é, porque os poetas escrevem em versos e os historiadores em prosa. A forma não seria capaz de alterar o conteúdo, pois em verso 5

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.249.

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 ou prosa, permaneceria o historiador dizendo as coisas que aconteceram e o poeta as coisas que poderiam acontecer. Aristóteles continua:

Por referir-se ao universal entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamento e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens.6

De acordo com a argumentação de Rafael Barbosa no artigo “Quando o irreal é mais verdadeiro que os fatos” 7, a afirmação de que a tragédia atinge o universal ainda que represente algo irreal não configura uma contradição dentro da metafísica aristotélica. Na verdade, o que garante esse estatuto universal da poesia é a exigência (colocada pelo próprio Aristóteles nos § 8 e 15 da Poética) que ela seja imitação de ações humanas ligadas por necessidade e verossimilhança, isto é, que se cumpra o caráter imitativo da natureza. Dessa forma, a poesia é estabelecida por uma seqüência de acontecimentos que ocorrem por necessidade, assim como ocorre na natureza; e ainda que tais ações não tenham ocorrido em momento algum, o fato de serem acontecimentos possíveis atende a uma exigência da própria filosofia. Ou seja, a partir desse ponto de vista, podemos sustentar que a tragédia não seja apropriada como expediente de avaliação de como era a polis grega, e conseqüentemente, de que forma agiam ou pensavam os homens, e sim, quais as possibilidades de ação e pensamento. Com isso, exaltamos seu valor filosófico em detrimento de seu valor histórico e nos eximimos de estabelecer algum vínculo necessário entre as personagens das tragédias e as mulheres gregas da época. Em “Heidegger e as questões da arte”, Manuel Antonio de Castro exibe com rara beleza uma múltipla interpretação do mito de Édipo que nos encoraja a pensar a Medéia de Eurípides. Na sua interpretação de Édipo, indaga: 6 7

Idem, p.249.

BARBOSA, Rafael. “Quando o irreal é mais verdadeiro que os fatos”, in: Anais de filosofia clássica, volume 3, número 5, 2009.

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Que é o mito? Que é o homem? São questões. Mito, myhtos, vem do verbo mytheomai que significa manifestar pela palavra. E o que o mito faz advir, manifestar? A questão. (...) Não se trata de uma personagem substantiva nem o mito de uma narração entitativa. É mais. Os mitos, como todas as obras poéticas, propõem imagens-questões ou questões-figuras. Édipo é uma imagem-questão.8

Sendo assim, qual é a imagem-questão Medéia? Quais as possibilidades de interpretação da manifestação através da sua trajetória na obra de Eurípides? Seria interessante evitar o lugar comum e abrir mão do julgamento imediato da mulher desesperada e também da análise psíquica de uma mulher destemperada. E se Medéia for mais que uma mulher, mãe e esposa? E se ela for a questão-homem? Em outras palavras: e se se trata de uma exposição a partir do drama limite de uma mulher sem kurios e inapta para viver sua condição feminina numa sociedade em crise? Neste caso, o poeta poderia desviar o foco do sujeito e trazer à tona o problema da pólis. Recapitulando. Se recuperarmos a tese defendida por Aristóteles no §9 da

Poética, veremos que o fim universal a que a arte poética visa reside no caráter filosófico de sua representação, isto é, a poesia não pretende reunir informações pertinentes a outro tipo de conhecimento que não seja o filosófico. Portanto, descartamos definitivamente qualquer interesse psicológico, sociológico ou outros que tais. Mas, afinal, o que parece ser o conteúdo filosófico da tragédia euripidiana? Nossa argumentação nos encaminha finalmente para a ideia que provocou esta investigação desde o início: a personagem Medéia, para além de todas as questões antropológicas, sociais e históricas que necessariamente ou por ventura tenham surgido ao longo dos estudos sobre a tragédia grega a que nos referimos, é também a possibilidade de identificar em Eurípides uma questão de valor CASTRO, Manuel Antonio de. “Heidegger e as questões da arte”, in: A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7letras, 2005, p.21-22. 8

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 intrinsecamente filosófico. Se a transição de uma ordem fundamentalmente mitológica para uma complexa rede de idéias, sistemas e valores, que gradativamente foi se constituindo a partir da contribuição da filosofia, criou as possibilidades de o mundo e o homem experimentarem mudanças radicais na suas relações com o mundo, talvez a primeira e mais influente de todas elas tenha sido a possibilidade e os critérios do julgamento. Com isto, pretendemos oferecer nesta leitura a ideia de que Eurípides revela através da complexidade e da força de sua Medéia uma postura diante da Paidéia grega: a construção da polis tendo como fundamento a razão, que traz à tona não apenas a importância e a necessidade, mas sobretudo a possibilidade de haver critérios universalmente válidos para se estabelecer um parâmetro de igualdade entre os homens, isto é, a justiça; é, antes mesmo de uma solução para a polis, um problema para a filosofia. Queremos dizer com isso que Eurípides questiona a possibilidade da razão ser o instrumento e a medida da ordenação da polis, das relações entre os homens e, em última instância, da viabilidade de se fundar uma cultura universal. E Medéia é o elemento literário que nos proporciona verificar a pluralidade de questões filosóficas que residem na sua trajetória enquanto heroína trágica. A polêmica que envolve a fortuna, a týche, pode ser um elemento muito interessante para guiar nossa argumentação no sentido que pretendemos. Entendida de forma elementar como “o que simplesmente acontece” ela se transforma no elemento da vida humana sob o qual nós, homens, não podemos tomar posse e, por isso, não somos capazes de controlar. Pode ser um elemento fundamental para entender em que medida o homem empreendeu seus esforços no sentido de dominar e controlar tudo o que impede o pleno funcionamento ordenado da pólis, e nesse sentido, queremos dizer que a filosofia se apresenta como síntese de todos os empreendimentos (de caráter racional e ordenador) que envolvem a cidade, isto é o projeto da pólis grega.

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 É assim que compreendemos a seguinte afirmação de Martha Nussbaum, exposta no início do capítulo quarto de A fragilidade da bondade:

O final de século V em Atenas, o período da juventude de Platão, foi um período de aguda ansiedade e também de confiança exuberante no poder humano. Se a vida parecia mais do que nunca exposta à týche em todas as suas formas, os atenienses estavam também mais do nunca dominados pela ideia de que o progresso poderia trazer a eliminação da contingência sem controle da vida social9

O que nos interessa fundamentalmente nessa perspectiva é entender em que medida o pensamento filosófico, enquanto um projeto de formação do homem,

é

figura freqüente nas tragédias gregas, revelando a exuberância de uma proposta de ordenação da pólis e a conseqüente objetivação do mundo. Em outras palavras: queremos avaliar se Eurípides consegue deixar um registro importante da tentativa de organização política a partir da Paidéia, e se Medéia, por exemplo, manifesta pela ambigüidade da própria personagem como questão a complexidade e as dificuldades de tornar tal projeto uma realidade consumada. Ora, é possível verificar na filosofia de Platão que à razão é agregado o valor supremo diante da natureza e dos sentidos, e que se trata do instrumento que pode conduzir o homem à liberdade. E ainda mais: a história da filosofia antiga nos serve de fundamento para dizer que tal condução do homem à liberdade significa, necessariamente, um afastamento gradual e decisivo em relação à natureza, aos instintos e porque não dizer, também da fortuna. O novo homem, soberano e inserido na realidade da pólis, seguro das investidas de origem mística e mítica, é senhor de si capaz de usufruir da razão para bem conduzir suas ações, sejam elas concordantes com as leis da razão ou legitimadas pelas leis da

pólis. De uma forma geral, parece que Vernant defende a ideia de que a tragédia grega pode dar à luz a esta ambigüidade inerente aos dilemas experimentados pelos 9

NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.79.

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 gregos que, supostamente embebidos do espírito filosófico da Atenas de Platão, tenham sentido fortemente a responsabilidade de deixar a luz da razão governar a desmesura do homem trágico. De acordo com Trajano Vieira, na “Introdução à Grécia de Jean-Pierre Vernant” 10:

O homem trágico é um tipo problemático por se situar entre dois universos absolutamente contraditórios: por um lado, é fortemente tributário de valores heróicos; por outro, começa a corresponder a indagações surgidas nas assembléias e nos tribunais da pólis, fortalecida de maneira decisiva a partir do século V a. C. A crise de identidade que a tragédia manifesta só será de certo modo contornada pela articulação do discurso filosófico.11

Esta articulação do discurso filosófico é o que chamamos de ordenação lógica do mundo, cujo elemento primordial é a racionalidade. Mas quais são as características de Medéia que assombram os gregos? Ora, não é justamente o fato de ser uma heroína radicalmente diferente do que os gregos entendiam como cidadão que faz de Medéia um ser tão temido? O que afinal Eurípides quer dizer que os homens temem? Sua própria origem, seu distante passado arcaico e nada civilizado, ou o fato de que, apesar de todas as contribuições dos filósofos e legisladores, apesar de a razão e a linguagem terem suplantado o mito e a poesia, apesar de o homem atribuir um valor superior ao que é racional e evitar a incongruência e a volatilidade das sensações e da relação do homem com as divindades; apesar de toda a pressão política de procurar a unidade que pudesse garantir o equilíbrio e a justiça, ainda assim, o homem não cessa em se revelar imperfeito, sedento de poder e de desejo, carente das aparências e das fantasias, incapaz de agir estritamente de acordo com a razão e, portanto, um ser híbrido, a morada da hybris, da diferença, da discrepância, a mais volúvel e sensível das criaturas que habitam o mundo.

VERNANT, Jean Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2008. 11 VIEIRA, Trajano. “Introdução à Grécia de Jean-Pierre Vernant”, in: Mito e tragédia na Grécia Antiga, de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. XVII-XVIII. 10

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 As leis estabelecidas submetem a participação do candidato a cidadão da pólis, para manter a estabilidade e organização da polis, mas não são suficientes. Num sistema estabelecido, todos os cidadãos devem estar subjugados a esta legislação, mas os que não cabem no conceito rígido de cidadão teimam em exigir sua parte. Eurípides pode ter apresentando Medeia como elemento questionador da legitimidade e da eficiência do sistema de leis da pólis, isto é, das leis externas, de fora do homem, que pretendem determinar as ações e decisões do homem. Da mesma forma, as leis deferidas pelos deuses também são externas aos homens, e lhe infligem um estatuto para a ação. Há, provavelmente, uma migração dos deuses para a pólis, sustentando o estatuto de uma lei externa ao homem que regulamente o hábito. Lembrando Protágoras, nem a lei da pólis nem dos deuses deve determinar o comportamento do homem. Resta, então, o hábito, o foro íntimo, o seio da contradição do que é o humano. A partir dos argumentos apresentados e das hipóteses desenvolvidas, podemos formular a ideia central desta investigação da seguinte maneira: Medéia pode ser entendida como uma personagem que, se destacada das questões antropológicas e “sociológicas” que envolvem seu drama, pode ser alçada ao estatuto de problema filosófico. Seu valor intrínseco reside na possibilidade de ser entendida como a revelação de um problema que é inerente ao homem e que, uma vez relacionado com as demais questões constituintes do drama, assume uma proporção intangível. E isso reserva ao drama a magnitude da personagem trágica, atribui importância filosófica às tragédias gregas e, mais importante, permite que a tragédia se torne um expediente para questionar o estabelecimento da ordem criada pelos homens; revelar o que há de universal e humano em cada um de nós, e nos possibilita ler as obras de Sófocles, Ésquilo e Eurípides como obras primas da filosofia. E foi o próprio Aristóteles que nos forneceu a justificativa para fazer valer a potência da palavra-ação da cena trágica como um atalho para as questões universais da humanidade, ou seja, para que a tragédia seja um grande instrumento da admiração,

Revista Pontes – 2010 – nº 14 – pp.97-109 ISSN: 1808-6462 da contemplação e da reflexão que o homem exercita de forma única, sem precedentes e sem limites.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. BARBOSA, Rafael. “Quando o irreal é mais verdadeiro que os fatos” in: Anais de filosofia clássica, volume 3, número 5, 2009. CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de janeiro: 7letras, 2005. DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. Tradução de Paulo Oneto. São Paulo: Escuta, 2002. EURÍPIDES. Medéia. Tradução de Miroel Silveira. São Paulo: Abril, 1976. FOLEY, Helene P. Female Acts in Greek Tragedy. Princeton University Press: 2002. GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo: Loyola, 2001. JEAGER, Werner. Paidéia. Tradução de Arthur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1986. LESKY, Albin. A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1996. NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade. Tradução de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2008. THIERCY, Pascal. Tragédias gregas. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2009. VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga . Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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