Do primado das relações de produção à uma teoria relacional das classes sociais? Percursos a partir de Étienne Balibar

June 5, 2017 | Autor: Pedro Cazes | Categoria: Louis Althusser, Etienne Balibar, Marxismo
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Do primado das relações de produção à uma teoria relacional das
classes sociais? Percursos a partir de Étienne Balibar

Introdução
A presente comunicação parte de um interesse mais amplo sobre a
intervenção de Louis Althusser e de diversos autores relacionados ao legado
"althusseriano" no debate sobre a crise do marxismo e os múltiplos
desdobramentos realizados por eles na busca de uma renovação teórica capaz
de respondê-la. Ou seja, trata-se de um projeto que, visando discutir o
marxismo na sua crise, o que nos obriga a pensar as suas aporias internas e
os seus limites, busca trabalhar no sentido da renovação de uma prática
teórica. Buscaremos aqui abordar, mais especificamente, os desenvolvimentos
que podem ser percebidos ao longo da obra de Étienne Balibar sobre o
conceito de "classe social" e "luta de classes" a partir da crítica de
Althusser à concepção de classe como "Sujeito da história". A partir desse
recorte buscaremos indicar um percurso que, atravessando os trabalhos de
Balibar, nos permite perguntar se não haveria uma necessidade de passar de
uma defesa do "primado das relações de produção" para uma teoria relacional
das classes sociais.
É necessário, primeiro, localizar o debate mais amplo dentro do qual
intervinha Althusser e sua trupe quando do seu ataque à interpretação
"humanista" de Marx. Como esclarece Althusser no prefácio ao seu "Pour
Marx" [1965], tratava-se de se contrapor à resposta que tendia a prevalecer
dentro do PCF e de outros Partidos Comunistas europeus – logo se espalhando
pelo mundo – à crise debelada com o XX Congresso do Partido Comunista da
URSS, que trouxe à tona as denúncias dos "crimes de Stálin" e a crítica ao
"culto à personalidade". A tendência consistia, então, em recuperar o
"humanismo" de Marx, sobretudo das obras da juventude publicadas somente na
década de 1930, como modo de salvaguardar o potencial "totalitário" ou
"economicista" das concepções "dirigistas" do marxismo ortodoxo. Contra
essa solução fácil, a intervenção althusseriana iria propor outra renovação
da prática do marxismo, a partir da introdução de novos conceitos e
problemas, como a famosa discussão sobre o "corte epistemológico", que
desaguava, de certa maneira, em uma necessidade de "refundar" o marxismo.
No que nos interessa aqui, vale a pena destacar que a ideia de um corte
entre uma "filosofia da história" - presente não só no "Jovem Marx" -
teleológica, hegeliana ou feurbachiana, e uma "ciência da história", cuja
constituição não deixava de ser algo en train de se faire, implicava na
crítica à noção de classe como "sujeito da história". Contra uma concepção
corrente no marxismo "oficial", mas também nas leituras luckasianas de
Marx, se anunciava todo um debate particularmente fértil no seio do
"althusserianismo".
Podemos recuperar brevemente esse contexto lembrando a importância,
nos textos de Althusser, da defesa de um "primado das relações de
produção", estreitamente ligada – em um primeiro plano – à crítica ao
"economicismo" dominante dentro dos Partidos Comunistas, que faria do
desenvolvimento das forças produtivas a grande mola de avanço da história,
associada à uma concepção etapista da sucessão dos "modos de produção" -
tal como se via na leitura predominante nos PC's sobre o problemático
processo de "industrialização" dentro do socialismo soviético. O debate,
passava, portanto, sobre a própria definição do conceito de "modo de
produção" e da luta de classes como "motor da história" - ou seja, sobre
teses elementares do marxismo. A crítica althusseriana intervinha, assim,
articulando duas propostas: a primeira, associada à tese do "corte", sobre
a necessidade de se refundar o marxismo a partir do ponto mais avançado de
sua realização pelo próprio Marx – a partir d'O Capital -; por outro lado,
a discussão sobre a transformação das relações de produção como problema
essencial do processo revolucionário está diretamente ligada ao impacto da
"Revolução Cultural Chinesa" sobre o pensamento marxista, particularmente
importante como uma forma de crítica "à esquerda" da experiência de
construção do socialismo na URSS de Stálin. Para colocar de outro modo, se
fazia necessário pensar a luta de classes tanto na produção material,
quanto na reprodução (ideológica, política, cultural) das relações de
produção.
Acredito que seja necessário lembrar, muito rapidamente, de duas
teses decisivas trazidas por Althusser nesse contexto. A primeira consiste
na crítica da representação da luta de classes como um "jogo de futebol", a
qual Althusser remete aos "reformistas". Para eles
"as classes existem antes da luta de classes, um pouco como dois times de
futebol existem, cada um de seu lado, antes da partida. Cada classe existe
em seu próprio campo, vive em suas próprias condições de existência; uma
classe pode até mesmo explorar a outra, mas não se trata ainda da luta de
classes. Um dia, as duas classes se encontram e se enfrentam; somente então
começa a luta de classes. Trocam socos, o combate se faz agudo e,
finalmente, a classe explorada derrota a outra (é a revolução) ou sucumbe
na luta (é a contra-revolução). Que se vire e se revire a coisa à vontade,
sempre se encontrará a mesma ideia: as classes existem antes da luta de
classes, independentemente dela e a luta de classe existe somente depois"
(Althusser, 1978, p.27)[1].

Logo em seguida a essa citação, Althusser remetia, em uma nota de
rodapé, à tese de Mao Tsé-tung (sem citá-lo explicitamente) sobre o
"primado da contradição sobre os contrários", visão revolucionária que
consistia em não enxergar a luta de classes como "efeito derivado" da
existência das classes, e portanto contornável, mas como a "forma histórica
da contradição que divide as classes em classes". Trata-se, assim, de
inserir o antagonismo (a contradição inconciliável) no centro da própria
visão sobre a sociedade e sobre as classes – portanto, de colocar no centro
da análise uma relação social antagônica. Isso quer dizer que as classes
sociais não são externas umas às outras e muito menos simétricas/autônomas.
O que está em jogo é a crítica da noção de classe como "Sujeito" da
história, esquema que Marx produziu fabulosamente no Manifesto, com sua
sucessão de classes que fazem do mundo sua "imagem e semelhança".
A declaração da necessidade de repensar, assim, o que entendíamos por
"luta de classes" a partir da ideia do "primado das relações de produção"
foi uma abertura para um conjunto plural e heterogêneo de pesquisas – tanto
históricas quanto teóricas – realizadas por diversos alunos e
interlocutores de Althusser. Podemos reconhecer traços desse problema nas
pesquisas de Robert Linhart sobre as relações de produção no "sistema
soviético" ou de Jacques Rancière sobre a história do movimento operário em
suas formas de construção política e ideológica anteriores à hegemonia da
posição marxista; na crítica à definição jurídica da classe social
(Edelman, Bettelheim); nos trabalhos realizados por "antropólogos
marxistas" como Terray; e mesmo na discussão sobre a "reprodução das
relações de produção" realizadas por Michel Pêcheux no terreno da
linguística e da teoria do discurso. Mas gostaria aqui de me debruçar sobre
a obra de Étienne Balibar, um dos seguidores mais "fiéis" à Althusser,
inclusive quando ele o "ultrapassa". Sem pretender nenhum trabalho
exaustivo sobre uma obra que não só é grande mas que continua voltando
sobre esses problemas até hoje, gostaria de tentar indicar um percurso, ou
pelo menos um quadro que organize alguns desenvolvimentos possíveis desse
problema teórico. Vale lembrar que a "estratégia" de Balibar foi a de
permanecer sobretudo nos textos do próprio Marx, mesmo que seja possível
reconhecer no seu trabalho momentos distintos: o primeiro, mais
estritamente "althusseriano", ligado ao esforço de depurar uma "ciência da
história" a partir dos desdobramentos do "corte epistemológico"; a segunda,
também ela próxima ao Althusser de "Marx dans ses limites" [1978], que
digamos é mais desconstrutiva do que construtiva, e busca apontar as
aporias das quais o marxismo – enquanto teoria e enquanto movimento social
– simplesmente não pode sair.
Escolhemos Balibar pois acreditamos que podemos perceber na sua obra
os desdobramentos teóricos mais avançados da seguinte questão: mais do que
simplesmente defender o primado das RSP sobre as FP no debate sobre o
conceito de modo de produção, o que estaria se colocando não seria a
necessidade de uma teoria relacional das classes sociais e, portanto, da
luta de classes? Como repensar o marxismo para forjar, a partir dele, uma
teoria (e porque não uma epistemologia e uma ontologia?) propriamente
relacional, que inscreveria na imanência das relações sociais as próprias
lógicas de transformação social? Como veremos, ao final, o problema que se
coloca a partir desse desdobramento é diretamente político: o que estará em
jogo, através da discussão sobre a difícil ideia de uma "política de
classe" em Marx, será o próprio postulado básico do marxismo que define o
comunismo como "movimento real das contradições existentes".
Trabalhando com os textos/argumentos de Balibar não segundo um
critério cronológico mas segundo um esquema analítico[2], gostaria de
explorar essa hipótese em pelo menos duas dimensões: 1) a necessidade de
pensar relacionalmente a luta de classes no próprio processo de produção;
2) pensar o problema da sobredeterminação por outras "instâncias" sobre o
conflito e as "identidades" de classe, o que significa que a luta de
classes está sempre recortada/atravessada por outras relações, irredutíveis
à esfera da produção material.

A luta de classes na produção, ou "fundar o conceito de classe no de mais-
valia"
O primeiro "momento" dessa visada relacional pode ser vislumbrada no
trabalho, ao meu ver realizado sobretudo em "Mais-valia e Classes Sociais"
(terceiro dos Cinco Estudos do Materialismo Histórico [1974]), de refundar
o conceito de classe social a partir da teoria do modo de produção
capitalista produzida em O Capital. Obra vista como a mais avançada para a
constituição de uma "ciência da história", ela permitiria substituir os
esquemas/visões da classe legadas por uma filosofia da história de fundo
hegeliano por um conceito fundado na análise científica do funcionamento
das relações sociais de produção. Trata-se, portanto, de tirar as
consequências da análise do processo de produção de mais-valia e da "lei
geral da acumulação capitalista" não só para a definição da burguesia e do
proletariado, mas para pensar a dialética "classe" x "massa", inscrita no
problema da relação entre os próprios termos "classe operária" x
"proletariado".
Primeiro, se pensamos o capitalismo pela tese do "primado", ele se
define pelas relações sociais de produção (RSP) que o sustentam. Mais do
que isso, retomando a formulação de Marx mesmo, se o capital é uma relação
social (uma unidade contraditória) baseada na exploração da mais-valia como
forma de valorização do valor, é necessário definir as classes sociais pela
sua posição no processo de acumulação de capital, na sua relação com o
capital – como dois aspectos distintos do mesmo antagonismo. Queremos
destacar que Balibar já introduz aí uma diferenciação que continuará
retomando em todos os seus trabalhos posteriores: a partir d'O Capital
torna-se possível contrapor ao esquema simétrico de constituição/sucessão
das classes sociais na história presente no Manifesto e em boa parte dos
estudos histórico (sobretudo no 18 de Brumário) – que permite sua
personificação enquanto "Sujeitos da história" (Lukács) – a um esquema
radicalmente assimétrico (e aqui queremos dizer relacional) de definição
das classes. Esse ponto vai se construir em torno da proposta de, tomando o
capital como uma relação social baseada na exploração da mais-valia como
forma de valorização do valor, definir as classes sociais pela sua posição
no processo de acumulação de capital, ou seja, na sua relação com o capital
– como dois aspectos distintos do mesmo antagonismo. Importante, para nossa
discussão, é o fato da relação assumir não só um papel descritivo (que todo
o marxismo sempre reconheceu) mas um papel propriamente conceitual enquanto
estrutura. Gostaria de sugerir, aqui, que podemos pensar como a relação se
torna simultaneamente um princípio diferenciador (na medida em que não é a
mesma coisa ser uma classe dominante ou uma classe dominada no que tange à
própria constituição enquanto classe – tese assimetria) e um princípio
dinâmico (a relação não é, em si mesmo, estática ou fixa, mas define, pelos
seus próprios mecanismos internos, o movimento mais geral que comanda suas
"partes"). Ambos aspectos estão envolvidos, como tentaremos mostrar mais à
frente, no resultado do "encontro" entre marxismo e estruturalismo: ou
seja, na produtividade de se tomar a estrutura como uma contradição.
Assim, a relação de produção capitalista se constitui por um
processo, pelo processo de acumulação de capital que – por ser um processo
de reprodução ampliada do capital – vai colocar as balizas do próprio
processo de transformação tendencial das RSP. O movimento do capital
subordina tanto o proletariado quanto a burguesia quando analisados do
ponto de vista da sua reprodução enquanto classes sociais. Assim, as RSP
precisam ser pensadas na conjugação de uma FORMA (a mais-valia), que
engendra sua divisão inconciliável, e um PROCESSO (a acumulação
capitalista), que engendra as tendências de sua transformação histórica.
Podemos vislumbrar, assim tanto o aspecto diferenciador quanto o dinâmico
dessa definição das classes pelo "primado das relações de produção". Por um
lado, vemos que a burguesia e o proletariado não ocupam posições simétricas
no "processo de conjunto da produção social", ou seja, não há simetria
enquanto classes sociais.
"A análise marxista das classes põe em evidência a sua dissimetria
essencial, no próprio seio da relação que as une, isto é, que as opõe. A
relação do proletariado com a burguesia não é representável nem como uma
hierarquia numa escala contínua nem mesmo como um par de termos
semelhantes, colocados face a face. Uma classe, no processo de sua
constituição, não é a imagem invertida da outra. Relação de antagonismo não
é correspondência termo a termo" (Balibar, 1979a, p.55-6)[3]

Além disso, Balibar avança para chamar atenção que, se cada classe
precisa ser definida pela sua relação com a dinâmica do processo de
acumulação de capital, "cada classe não pode ser definida independentemente
do processo histórico da sua própria transformação" (Idem, p.130). Balibar
vai afirmar, assim, que, do ponto de vista marxista, o proletariado não
pode ser definido por alguma homogeneidade social captada estatisticamente
(como faz boa parte da sociologia), ou mesmo qualquer regularidade
empírica: na realidade não existe "tipo ideal" de proletariado (assim como
de burguesia) mas somente processos – contraditórios, complexos – de
proletarização (Balibar & Wallerstein, 2007, p.21), cuja base são as
divisões técnicas e sociais produzidas pela divisão do trabalho (trabalho
qualificado x desqualificado/manual x intelectual), pelo grau de
incorporação da massa proletária nas "funções produtivas" da classe
operária, etc. Se a base da proletarização é o processo de transformação da
força de trabalho em mercadoria – ela mesmo dependente do andamento
desigual e renovado da acumulação primitiva, por um lado, e pelo avanço da
subsunção real do trabalho ao capital, por outro – a base de existência do
proletariado – a "condição proletária" - não remete a nenhum passado
comunitário[4], a nenhuma homogeneidade perdida, mas à própria competição
entre os trabalhadores. Essa seria a grande novidade histórica do
capitalismo:
"A base material da existência dum proletariado não é apenas a incorporação
dos trabalhadores no sistema de máquinas e o 'consumo produtivo' da sua
força de trabalho, é também o conjunto das condições que assegurem a
concorrência entre os trabalhadores" (Balibar, 1979a, p.78)
É essa situação de insegurança generalizada pela sociedade de classes
que faz com que
"o que constitui, no próprio processo da sua transformação, a classe
operária, é pois em primeiro lugar a relação funcional que une, no seio dum
mesmo 'trabalhador coletivo' à escala social, frações cujos papéis técnicos
e posição social são diferentes, com vista a uma produtividade de mais-
valia máxima, quer no seio duma mesma empresa, quer em empresas diferentes.
É a unidade funcional que, sobre uma base determinada de meios de trabalho,
faz do trabalho de cada um o meio de explorar ao máximo o trabalho de todos
os outros." (Idem, p. 76)
Estamos, portanto, no centro do dilema encontrado por Marx n'O
Capital: a existência de um "trabalhador coletivo" – à escala social –
serve, no fundamental, para explorar ao máximo os trabalhadores
individuais, colocados na situação de vendedores da sua força de trabalho.
Agravada ainda mais pela própria tendência à formação de um "exército
industrial de reserva", que problematiza diretamente o esquema de
"simplificação dos antagonismos" proposta pelo Marx no Manifesto, a unidade
histórica do proletariado é sempre o resultado de um processo tendencial,
já que ele se define, de imediato, pelas suas divisões/frações internas. A
unidade do proletariado só pode existir no fato de que – sob todas as suas
divisões e frações internas, submetidas a uma concorrência desigual entre
si – estão todos submetidos às mesmas tendências gerais da acumulação
capitalista (tese "contradição fundamental"). Ou seja, é o Outro – o
Capital – que pode fornecer um ponto de apoio para a construção de uma
unidade política de luta proletária contra as tendências da
exploração/expropriação. Vê-se, portanto, que, mesmo no nível da chamada
"luta econômica", a "política proletária" não se faz no vazio, é sempre
construída relacionalmente de acordo com as próprias dinâmicas históricas
de expansão do capitalismo, dos movimentos engendrados pela acumulação, e,
sobretudo, dos mecanismos de absorção das demandas proletárias dentro da
constituição de algo como uma "proteção social" do trabalhador (ver tese
"legalização" da classe operária). Afinal, se cada classe precisa ser
pensada no seu processo de transformação histórica, também é absolutamente
urgente, para o marxismo, ser capaz de pensar também a historicidade das
formas de organização e de luta da classe operária, não só para ser capaz
de achar as formas adequadas às transformações em curso (caso os comunistas
queiram de fato ser uma força política real), mas também para pensar o
próprio lugar da luta de classes na definição do conflito social[5]. Aqui
Balibar (1992) não deixa de assinalar o resultado paradoxal dos achados
teóricos de Marx no Capital: ainda que assistamos à uma crítica da economia
política que toma o "econômico" como fruto de relações sociais de força que
se desenrolam no nível do todo social (subvertendo a representação liberal
do "mercado"), permanece relativamente indeterminada a ideia de uma
"política dos produtores" ou "política do trabalho", ou pelo menos da
expectativa que ela seja uma política revolucionária (já que a luta pela
limitação da jornada de trabalho não leva a uma ruptura mas à constituição
de um aparelho sindical "integrado" à ordem capitalista de regulação da
compra e venda da força de trabalho).
Além disso, a desestabilização, no seio do argumento d'O Capital, da
expectativa de uma crescente simplificação dos antagonismos[6], impede que
se derive o processo histórico da simples contradição capital/trabalho, mas
coloca em jogo um conjunto complexo de contradições que trabalham a relação
"classe" x "massa", cujo alinhamento depende de conjunturas específicas e
limitadas. Começamos, assim, a recolocar o problema da ação política das
classes exploradas, ou da classe como "sujeito"':
"A ideia do proletariado como 'sujeito' supõe, com efeito, uma identidade,
seja espontânea, seja adquirida ao fim de um processo de formação e tomada
de consciência, mas sempre já garantida pela condição de classe. O fato de
que o proletariado, que é a uma vez 'classe' e 'massa', não seja um sujeito
dado, que ele não coincida nunca consigo mesmo (...) – não significa que
ele não chegue nunca a se apresentar e atuar como sujeito na história.
Porém essa ação revolucionária está sempre ligada à uma conjuntura, durável
ou não, e não existe fora dos limites que ela prescreve. Essa tese abre,
portanto, a questão prática das condições e das formas nas quais um tal
efeito de subjetivação pode se produzir, ou mesmo daquilo que, da condição
de classe determinada, "passa" para um movimento de massas capaz de se
fazer 'reconhecer' praticamente como expressão daquela classe. Afirmar que
a emergência de uma forma de subjetividade (ou de identidade)
revolucionária é sempre um efeito parcial, nunca uma propriedade natural, e
por consequência não traz nenhuma garantia, é se obrigar à procurar as
condições que, na conjuntura, podem precipitar as lutas de classes em
movimentos de massas, e as formas de representação coletivas que, nessas
condições, podem manter nos movimentos de massas a instância da luta de
classes". (Balibar, 1997, p.248)

Sobredeterminação e teoria finita
A passagem acima nos leva diretamente ao problema da ação política do
proletariado, ao problema da classe enquanto "sujeito político". Já vimos
que a luta de classes não pode ser simples reflexo dos antagonismos da
produção, ou que, pelo menos, esses próprios reflexos não são simples, já
que distinguimos a tese do antagonismo social da expectativa de sua
progressiva "simplicação". Como avançar, na teoria, a partir desse ponto?
Me parece que é central aqui a introdução, por parte de Althusser, do
conceito de "sobredeterminação"[7]. Desde seu ensaio fundamental sobre o
tema, "Contradição e Sobredeterminação" [1962], Althusser partia da
releitura da tese leninista sobre o "elo mais fraco" que permitiria
explicar por que a revolução socialista eclodiu justamente na Rússia.
Assim, a discussão sobre a "sobredeterminação" já surge na tentativa de
substituir a abstração do "sistema fechado" do modo de produção, pela
complexidade do imperialismo, das relações de força globais, do conjunto
heterogêneo de fatores – inclusive contingentes – que intervém no curso de
um processo histórico. Como lembra Boito (1995), o marxismo
"althusseriano", munido do conceito de sobredeterminação, está melhor
vacinado contra o economicismo presente dentro das organizações marxistas –
mas também dentro das Ciências Sociais preocupadas com o fim da
"centralidade do trabalho" – que querem reduzir o ciclo revolucionário do
século XX à mera contradição capital x trabalho.
Não é a toa que o conceito de "sobredeterminação" parece ganhar maior
centralidade no momento de auto-crítica de Althusser e Balibar quanto à Ler
O Capital [1965], sobretudo quanto à tentativa de constituição de algo como
uma "teoria geral dos modos de produção". Em seu artigo de "retificação",
publicado primeiramente no La Pensée de 1973 e depois incluído como o
quarto dos Cinco Estudos do Materialismo Histórico [1974], Balibar chama
atenção para a necessidade de passar da tentativa de uma "teoria geral"
(seja dos modos de produção, seja da própria transição) para uma análise
concreta dos processos históricos, conferindo centralidade, então, ao
"conceito" (apenas descritivo) de formação social. Fazendo referência aos
textos de Althusser acima citados, Balibar afirmava que:
"não existe dialética histórica real a não ser o processo de transformação
de cada 'formação social' concreta, processo que implica a interdependência
real das diversas formações sociais (dando-lhe a forma da sobredeterminação
interna do processo de transformação de cada formação social). Por outras
palavras, as 'formações sociais' não são simplesmente o lugar (ou o meio)
'concreto' no qual se 'realizaria' uma dialética geral, abstrata (…), elas
são, na realidade, o único objeto que se transforma, porque o único que
comporta realmente uma história de lutas de classes" (1979a).
A necessidade de trabalhar com uma concepção sempre-já
sobredeterminada da contradição capital x trabalho e a impossibilidade de
dar conta dos processos históricos a partir de alguma teoria geral das
combinações formais das relações sociais de produção com as forças
produtivas, marca o que talvez tenha sido o momento mais produtivo do
marxismo althusseriano. Como sabemos, foi na tentativa de teorizar essas
outras "instâncias" (o Estado, a Ideologia, o Direito, etc.) que se
concentrou boa parte do impulso de pesquisa dos "althusserianos". É clara,
na série de trabalhos produzidos ao longo da década de 1970 por esse grupo,
a conexão entre esse problema teórico e a necessidade de refletir sobre os
problemas da construção do socialismo. Assim, a tese do "primado das
relações de produção" levava justamente ao problema de sua reprodução, que
não é simplesmente uma reprodução dos "meios de trabalho", mas uma
reprodução da força de trabalho e das relações sociais de produção. Ora,
passando a esse nível da "reprodução" chegaremos a novas formulações a
cerca de uma visão relacional das classes sociais. Comecemos pela discussão
da sobredeterminação ideológica, onde Balibar busca avançar na reflexão
aberta pela tese dos Aparelhos Ideológicos de Estado de Louis Althusser.
Contra uma problemática dualista da classe em si/para si – onde o que
está em jogo é o reconhecimento, por parte de uma consciência, de seus
próprios interesses de classe (interesses que, portanto, estão de certa
maneira "fora" da linguagem, são a pura "realidade"[8]), portanto,
problemática da "expressão" de uma essência alienada –, os althusserianos
irão lembrar que a classe está sempre já recortada por uma diversidade de
ideologias[9], que expõe desde já o modo como essa classe está
vinculada/relacionada ao conjunto daquela formação social contraditória. Ao
invés de um esquema teleológico/essencialista sobre a "identidade de
classe", Balibar relembra que a classe está sempre envolvida em relações
com o Estado, com as outras camadas populares, com a Igreja, etc – e que,
portanto, nunca pode ser a encarnação de uma "universalidade concreta", um
sujeito vazio de predicados que por isso seria a "classe universal", mas
que existe uma produção social do proletariado, em que intervém uma série
de fatores heterogêneos.
"Eu afirmaria, para começar, que aquilo que se manifestou, ao longo do
século XIX e XX, como uma 'identidade proletária', relativamente autônoma,
deve ser entendida como um efeito ideológico objetivo. (…) esse efeito
ideológico não tem nada de espontâneo, automático, invariável. Pelo
contrário, ele procede de uma dialética permanente de práticas operárias e
de formas de organização, nas quais não intervém somente as 'condições de
vida', as 'condições de trabalho', as 'conjunturas econômicas', mas também
as formas que tomam a política nacional no quadro do Estado (por exemplo, a
questão do sufrágio universal, da unidade nacional, as guerras, a questão
da laicidade escolar e religiosa, etc.). Portanto, uma dialética
constantemente sobre-determinada na qual uma classe relativamente
individualizada se constitui somente por suas relações com todas as outras,
no seio de uma rede de instituições" (Balibar, 2007, p.227-8)
O que os althusserianos parecem estar afirmando aqui é a necessidade
de fugir aos esquemas espontaneístas que, apostando em uma espécie de
"pureza" revolucionária da "base", atribui o conjunto de fracassos ou
desvios na construção do poder popular à uma traição, a uma usurpação do
potencial revolucionária da classe por algum ente externo (seja o partido
de vanguarda, seja o Estado burguês)[10]. Ao invés de ver as divisões
políticas dos movimentos populares como uma espécie de "acidente", ou
limitação histórica ("consciência possível" - Lukács) em relação à unidade
da "consciência de classe", reencontramos aqui a ideia de que a classe está
sempre dividida, já que está atravessada pelas contradições dos A.I.E. nos
quais ela desenvolve suas associações, suas formas de luta, e etc. Afinal,
na visão de Balibar o "conceito dos 'A.I.E.' é claramente destinado à
analisar o desenvolvimento das contradições e da luta de classes dentro das
redes de relações estatais" (1979c, p.88).
Por outro lado, se a ênfase na "construção" da classe poderia nos
levar, entretanto, à visão Thompsoniana, para a qual a classe é sujeita do
seu "fazer-se", a abordagem de Balibar negará a própria ideia que essa
construção possa ser imputada à um sujeito (que no raciocínio circular de
Thompson é a própria classe, ou pior, "os homens"...):
"Não devemos, com efeito, cair em um reducionismo inverso, exatamente
aquele sustenta a representação idealizada da 'classe-sujeito',
identificando cada vez mais o movimento operário com as organizações
operárias, e a unidade – mesmo relativa – da classe com esse movimento.
Entre esses três termos sempre existiu, necessariamente, um deslocamento
(décalage), uma falha produtora de contradições que fazem a história real,
social e política, da luta de classes. (…) É por isso que as divisões, os
conflitos ideológicos (reformismo e ruptura revolucionária), os dilemas
clássicos e sempre renascidos do 'espontaneísmo' e da 'disciplina' não
representam acidentes, mas a substância mesma dessa relação". (Balibar,
2007, p.228)
A construção da classe, portanto, é relacional, ela envolve um
conjunto de sobredeterminações que marcam, inclusive, a particularidade
histórica das classes em cada formação social. Isso é importante pois, se
precisamos investigar as classes através das suas transformações
tendenciais, ou seja, analisar o processo de proletarização, é
imprescindível escapar à representação economicista e lembrar que a força
de trabalho não se torna mercadoria sem uma série de mediações políticas
institucionais, tanto jurídicas quanto puramente repressivas, para não
falar nas mediações ideológicas. De certa maneira esse é um esforço de
contrapor ao esquema abstrato da ordem de exposição d'O Capital, uma outra
perspectiva que confere centralidade aos seus capítulos históricos e de
análise das transformações tanto do processo de trabalho como da própria
força de trabalho humana, para não dizer da "acumulação primitiva". Além
disso, como mostra em seu artigo "État, Parti, Ideologie" (1979b),
acompanhando as transformações do problema da "política proletária" nos
textos de Marx, também é colocada em outra problemática a ação política do
proletariado, afastando-se do problema da expressão de uma consciência para
o problema da construção do Partido que precisa "costurar" essa unidade
sempre em luta com as diversas faces da ideologia burguesa, que pode ser
surpreendida no seio das próprias organizações da classe operária.
Percebemos, portanto, de que maneira o conceito de sobredeterminação
contribui para avançarmos no sentido de uma visão relacional das classes
sociais. Se de fato elas não são externas umas às outras é porque "as
relações sociais não se estabelecem entre as classes fechadas sobre elas
mesmas, mas atravessa as classes – aí incluída a classe operária –, ou
seja, a luta de classes se desenrola dentro das próprias classes" (Balibar,
2007, p.229). Com essa posição também evitamos a ilusão "obreirista" de que
a revolução é o resultado da ação de uma classe, revolucionária por
"essência", o proletariado. Pelo contrário, por um lado, como bem mostram
as experiências revolucionárias do século XX, a revolução é sempre fruto de
um conjunto de circunstâncias que acabam "forçando" uma aliança das classes
populares, circunstâncias particulares que conseguem "agrupar a grande
maioria das massas populares no assalto a um regime para cuja defesa as
classes dominantes se acham impotentes" (Althusser, 1979, p. 85). Por outro
lado, as próprias organizações e movimentos do proletariado nunca são
"puros", no sentido de uma composição puramente operária. Na realidade,
essas organizações são sempre constituídas por uma fusão, mais ou menos
conflituosa, de frações operárias de "vanguarda" e de grupos intelectuais,
sejam quais forem suas ligações com os trabalhadores diretos (Balibar,
2007, p. 229)[11].
Nas discussões substantivas realizadas por Balibar em torno do
problema da (sobre)determinação de uma "política proletária", poderíamos
destacar o papel por ele examinado tanto do nacionalismo e do racismo
(2007), quanto do papel das guerras e do recrutamento em massa da classe
trabalhadora para os exércitos (2010). Afinal, como Marx sempre repetia, é
a própria burguesia que ensina ao proletariado a lutar, que transforma as
classes espoliadas em instrumento organizado de combate, e dessa maneira
cria seus "próprios coveiros". Não era esse o seu ponto desde o Manifesto
até a afirmação de que "Paris armada era a revolução armada" (Guerra Civil
na França)? Como não temos espaço para recuperar tais argumentos aqui,
gostaria somente indicar que essas sobredeterminações afetam tanto as
formas de organização, luta e ideologia das classes exploradas como se
infiltram profundamente na própria teoria marxista. Aqui bastaria indicar o
problema, ao qual Balibar tem retornado sistematicamente, da representação
da luta de classe (do antagonismo) pela metáfora da guerra civil, do qual
Marx nunca teria se separado, e que carrega consigo aporias incontornáveis
(2009).
Porém, analisando detidamente os trabalhos de Balibar, parece-nos que
ele persegue uma inquietação relativamente silenciada nos textos do próprio
Althusser. Com efeito, ao partir da discussão de Lênin sobre o "elo mais
fraco", Althusser parecia confiante no fato de que a contradição de classe
está sempre "trabalhando", está sempre ativa no interior das outras
instâncias que, por sua vez, possuem uma "ação de retorno" sobre ela
(Althusser, 1979, p. 86). É isso que permite ler uma conjuntura política
complexa pela lente da luta de classes, ou seja, captando de que modo a
"contradição fundamental" trabalha por dentro o conjunto das outras
instâncias. De fato, Balibar em nenhum momento questiona o caráter
incontornável da luta de classes, do antagonismo social, mas coloca sim em
discussão a defesa de Althusser quanto à "determinação em última
instância". Não poderemos aqui discutir devidamente esse gigantesco
problema da teoria marxista. Porém vale indicar um caminho de
desestabilização desse postulado.
Em certo momento de sua obra, buscando romper com os limites daquela
tópica tradicional (base x super-estrutura), Balibar passa a falar da
Ideologia como "rapports ideologiques", ao invés de uma "instância" do todo
já previamente articulada pela dominância da questão de classe. Por mais
equívoca que possa ser a utilização do termo "ideológico" para falar de
relações produzidas por processos de subjetivação distintos das RSP, me
parece fundamental a ideia de que se tratam de relações (de gênero, de
sexualidade, étnico-raciais, de nacionalidade, etc.) absolutamente
irredutíveis à luta de classes. Nesse sentido, as classes sociais estão
sempre recortadas, atravessadas não só por outras ideologias mas por outras
relações, por outras práticas que nada tem de ilusórias, e que inclusive
produzem seus efeitos sobre as próprias organização de classe dos
trabalhadores. Ora, o problema todo aqui é que parece difícil pressupor uma
homologia geral entre todas as relações heterogêneas que atravessam e
sobredeterminam a luta de classes. Para falar como Weber, parece impossível
negar a autonomia própria a cada uma dessas sobredeterminações (a
"legalidade" própria de cada uma das esferas de valor...), de modo que não
temos apenas um "efeito de retorno" à uma mesma base, mas uma pluralidade
de "bases", uma multiplicação das tópicas. Se rompemos com a representação
idealista da "práxis" como "ato puro do proletariado" já que fora de
qualquer determinação ideológica (falsa consciência) do Jovem Marx, como
sustentar a ideia da "determinação em última instância"? Refletindo sobre
os limites dessa tese que o próprio Althusser não questionou diretamente
Balibar vai perguntar: "como definir uma relação social cujos efeitos se
estendam a toda prática sem, por conseguinte, identificar a prática social
enquanto tal com o desenvolvimento dessa única relação?" (1997, p. 242).
Mas aqui o próprio Althusser já tinha anunciado o problema, ao
definir o marxismo como "teoria finita": tanto no sentido de ser "feita pra
acabar", ter uma clara delimitação histórica; quanto no sentido de ser
limitada quanto ao seu próprio objeto, não dar conta de "tudo"[12]. Ora, já
passou bastante da hora dos marxistas serem capazes de reconhecer que nem
todas as relações precisam funcionar do mesmo modo que as relações de
classe, e que portanto os próprios conceitos, teoria e lógica de análise
marxista não devem ser universalmente válidos para pensar quaisquer
relações. Se reconhecemos que não podemos fechar toda a heterogeneidade das
relações sociais em uma representação do "todo articulado com dominante"
(Althusser), talvez possamos reconhecer
"a complexidade não-totalizável (ou não representável em um ordenamento
dado) do processo histórico; enfim, que o materialismo histórico é
inacabado (e inacabável) por princípio, não somente na dimensão do tempos
(pois ele postula a imprevisibilidade relativa dos efeitos de causas
determinadas), mas na sua própria 'tópica' teórica, pois ela requer a
articulação da luta de classes com processos cuja materialidade se passa em
uma outra cena (por exemplo, o inconsciente)" (Balibar, 1997, p.278-9).
Daí a impossibilidade de fundir totalmente, de uma vez por todas, o
ponto de vista teórico e o estratégico-organizativo. Ou seja, a
impossibilidade de uma organização que se jogue, de uma só vez, no real
como um todo e em todo o real.
Nesse sentido, antes de construir uma "teoria geral" das relações
sociais, talvez seja mais interessante reconhecer um funcionamento distinto
nas diferentes relações sociais (diferentes estruturas) e se perguntar o
que, em termos de estratégia política, pode significar uma posição
comunista nesse contexto. Afinal, aqui não somos forçados a abrir mão da
própria representação idealista do comunismo como "reino da liberdade",
como "livre associação entre indivíduos", no fundo uma sociedade sem
relações sociais (pelo menos enquanto coerção)?

Considerações Finais
Todos esses problemas se precipitam na discussão das aporias do
conceito marxista de "Ideologia", levada a cabo no livro La Crainte de
Masses (1997). Infelizmente não teremos espaço para explorar esse que
parece ser o texto mais provocativo de Balibar, todo ele girando em torno
da pergunta: por que Marx nunca foi capaz de pensar a ideia de uma
"ideologia proletária"? Gostaria apenas de indicar que aqui seria
necessário levar a busca por uma "perspectiva relacional" para suas
dimensões epistemológicas e/ou ontológicas. Por um lado, Balibar reconhece
a centralidade do conceito na constituição de uma perspectiva materialista,
que aí se joga o essencial da novidade de Marx. Coloca-se claramente,
então, a necessidade de uma perspectiva relacional sobre o "real":
"Assim produzido por uma tripla determinação (crítica da teleologia e da
especulação, gênese materialista da idealização e análise dos efeitos de
dominação), o conceito de ideologia aparece como o correlato de uma
definição das relações reais que determinam o processo histórico. A
invocação do real, do empírico costuma corresponder, na filosofia, a uma
denúncia do erro, da ilusão (…). A crítica materialista da ideologia
corresponde, por sua vez, à análise do real como relação, ou como estrutura
de relações práticas." (Balibar, 1997, p.179)
Por outro lado, as "vacilações" do conceito de Ideologia no marxismo
permitiria enxergar sua própria impossibilidade, seu caráter de sintoma. De
fato, ele aparece aqui como índice da dificuldade de "fechar" sua
representação em uma totalidade dada.
Sem podermos nos estender aqui, vale destacar que Balibar parece
radicalizar a posição althusseriana de ver em todo pensamento uma
intervenção numa dada conjuntura e, portanto, sempre uma luta ou uma
tentativa de traçar novas coordenadas (transformar = produzir certos
efeitos em um conjuntura) em um espaço ideológico já dado.
"Nesse sentido nós começamos a perceber que as contradições de Marx, a
vacilação de seus conceitos fundamentais, não recobrem apenas uma
incapacidade teórica, mas sobretudo uma 'décalage' entre a realidade
histórica que ele revela e o discurso necessariamente 'impuro' no qual tal
revelação pode ser formulada." (1997, p.231)
"O que nossas análises, mesmo muito alusivamente, nos mostram de fato é que
a teoria e a ação política de Marx não possuem nenhum espaço próprio na
configuração ideológica do seu tempo. Essa configuração é ela mesma um
espaço completo, sem lacunas onde o discurso especificamente 'marxista'
pudesse se achar ao lado ou em face daqueles outros. É por isso que ele se
encontra condenado à jogar esses discursos uns contra os outros, assim
como, na prática, toda sua arte política consistiu em constituir
organizações do movimento operários cada vez mais massivas, jogando os
sectarismos uns contra os outros, neutralizando-os o suficiente para que
pudesse se inserir naquele campo." (1997, p.233)
Essa visão profundamente relacional das classes e da política parece,
de algum modo, estar na base da própria reformulação da estratégia teórica
de Balibar, que passa de uma posição mais "construtiva" para uma estratégia
mais "desconstrutiva", que visa analisar o marxismo nas suas aporias
internas. Esse ponto parece importante porque tal perspectiva "relacional"
(como a temos chamado aqui), longe de jogar fora, como uma impossibilidade
(já que estaríamos presos num jogo de espelhos), a constituição de algo
como um ponto de vista de classe, parece afirmar que 1) ele nunca está já
dado por algum nome que o reivindique (por exemplo, Partido Comunista), é
sempre fruto de um trabalho atual[13] – na teoria e na prática política –
que precisa ser capaz de revelar tal ponto de vista dentro de determinada
conjuntura; 2) ele não constitui nenhum corpo doutrinário monolítico e
perene, "imunizado" contra as próprias transformações dramáticas do
capitalismo, até por que ele própria assenta, em última instância, sobre
aporias que não pode por si mesmo resolver e que se revelam mais do que
nunca no próprio processo de construção do socialismo. Esse último ponto
traz a ligação entre a tese althusseriana da história como "processo sem
sujeito" e a ideia de "contradição infinita" (Balibar). Como sabemos, o
ponto falho da representação messiânica ou teleológica da história se
mostrou exatamente nos contragolpes e desfechos das próprias experiências
revolucionárias do século XX. De modo que mesmo os althusserianos,
preocupados com a distinção entre "ciência" e "ideologia", acabaram por
final discutindo de que maneira a doutrina oficial do marxismo-leninismo se
transformou, ela mesma, em ideologia. Como pensar esse processo? Ele não
estaria ao fim ao cabo denunciando a impossibilidade de toda oposição entre
ideologia (falsa consciência) e interesses (consciência de classe). Afinal,
permanecemos aqui na grande questão althusseriana: como desvencilhar a
representação do antagonismo social de toda teleologia?
Na sua discussão com Foucault, Balibar aponta essa questão de forma
cabal: se o conceito de relação social é o ponto de encontro entre uma
lógica da materialidade das relações de poder e uma lógica da contradição,
o problema aqui – a partir da definição da "contradição como estrutura
imanente às relações de forças" (Balibar, 1997, p.302) – é saber se seria
possível pensar uma dialética que não seria a antecipação imaginária do fim
das contradições, mas a análise de seu movimento atual, nas suas
determinações internas (Idem, p.301). Ora, seguindo pelo raciocínio acima,
Balibar parece indicar que, para começar a sair desse problema, precisamos
renunciar a ideia de uma "linguagem da vida real", essa terra prometida de
que falava A Ideologia Alemã, e compreender que "a política, aí
compreendida a da classe explorada, sendo sempre a uma vez prática e
linguagem, prática na linguagem, é sempre aquilo que se mascara e que se
desmascara nas suas próprias palavras, ou melhor, no uso que lhe fazemos"
(Idem, p.268).
Esse parece, no mínimo, um caminho de reflexão interessante de
perseguir nos debruçando futuramente na reflexão que envolveu autores como
Michel Pêcheux e Dominique Lecourt naquele mesmo contexto em que, por um
raro instante, os marxistas se permitiram encarar os limites de sua própria
teoria, sem com isso abrir mão da busca pela ruptura revolucionária, muito
pelo contrário, buscando finalmente colocá-la sobre novas bases.



Referências bibliográficas:

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Janeiro, Graal, 1978.
________. A favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
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________. "Gramsci, Marx et le rapport social" In: Tosel A. (dir.),
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________. From Philosophical Anthropology to Social Ontology and Back: What
to do with Marx's Sixth Thesis on Feuerbach? Postmodern Culture, vol. 22,
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BALIBAR, Étienne & WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Nation, Classe: les
identités ambiguës. Paris, Ed. La Découverte, 2007.
BOITO JR., Armando. O economicismo oculta a revolução. Crítica Marxista,
n.2, 1995.
-----------------------
[1] Escolhemos aqui citá-la a partir do texto "Resposta à John Lewis", de
1972, mas de certo modo seria possível reconhecê-la em textos anteriores
como Lire le Capital e Pour Marx. Mais a frente discutiremos os modos como
Balibar mostra em seus trabalhos posteriores que Marx, de certo modo, nunca
conseguiu romper com essa representação da luta de classes.
[2] Admito que, trabalhando dessa maneira, não poderemos apontar as
modificações e retificações que vão se sucedendo na reflexão de Balibar ao
longo do tempo. Antes de um estudo sobre a obra de Balibar, o presente
texto é uma tentativa de sintetizar uma ampla reflexão de acordo com nossos
próprios interesses de pesquisa.
[3] Balibar chega mesmo a dizer que "essa dissimetria teórica (abstração
do capital, concretude do trabalho) é a própria forma do 'ponto de vista'
de classe [proletária] na teoria" (1997, p.243)
[4] Vale reparar, aqui, a tensão estabelecida entre esse caminho de
conceituação da classe – a partir da dinâmica de reprodução ampliada do
Capital – e a historiografia da classe operária que opera segundo a análise
dos casos particulares de "formação" da classe onde entram outras variáveis
deixadas de fora pela análise "econômica" d'O Capital: a sociabilidade, os
costumes, a mentalidade, a identidade e etc...
[5] Algo que a própria conjuntura em que intervinha Althusser, com a
diferença entre as mobilizações políticas que ganhavam força no interior do
"Estado de bem-estar social" europeu (como o Maio de 68 e os "novos
movimentos sociais", por exemplo) e a explosão de lutas anti-coloniais,
anti-imperialistas e revolucionárias nos países do "Terceiro Mundo", não
deixava de mostrar.
[6] Como Balibar (2010, p. 275-282) sempre volta a lembrar, a lógica do
desenvolvimento do capitalismo exposta n'O Capital abre espaço para pelo
menos 2 estratégias de "luta proletária": a luta sindical e institucional
pela conquista de direitos (que não pode ser mais eliminada pela
expectativa da "agudização final" das contradições, como no Manifesto)
permitidos pelo próprio aumento da produtividade do trabalho e etc; e a
luta revolucionária pela transformação das próprias relações de produção.
Ou seja, como mostra a história do movimento operário a partir do
Imperialismo, a partir d'O Capital podemos compreender que existe uma base
material que permite o reformismo, ele não é só uma "falsa consciência".
[7] Infelizmente não temos tempo nem capacidade de recuperar o contexto
psicanalítico original dessa categoria, de onde o próprio Althusser afirma
que a recuperou para o marxismo, num movimento análogo ao que fez quanto à
ideia de "interpelação" ideológica.
[8] Como sabemos, os althusserianos foram exímios críticos dessa
linguagem empirista/positivista presente no Marx da Ideologia Alemã e
outros textos da "juventude", um Marx que identifica o proletariado com a
"universalidade concreta" de quem perdeu todas as "ilusões" da ideologia e,
pela primeira vez, pode se apropriar conscientemente do próprio fundamento
real da sua existência (o trabalho), através do desenvolvimento de sua
"consciência de classe", que nada mais é do que seu acesso imediato ao real
de suas condições.
[9] Vale lembrar que os althusserianos entendem por "ideologia" uma
"representação da relação imaginária do indivíduo com suas condições reais
de existência", dado que o mecanismo ideológico reside na interpelação dos
indivíduos enquanto "sujeitos" (Althusser, 1985).
[10] Podemos ler perfeitamente essa formulação de Althusser e Balibar como
um desdobramento da frase de Lênin em Que Fazer?: "já que não se pode falar
de uma ideologia independente, elaborada pelas próprias massas operárias no
decurso do seu movimento, o problema põe-se unicamente assim: ideologia
burguesa ou ideologia socialista".
[11] Esse ponto é extremamente caro aos trabalhos de Jacques Rancière que,
lembrando que a "condição proletária" é uma limitação, uma proibição, chama
atenção pro caráter anti-obreirista (e nesse sentido anti-identitário) de
qualquer prática realmente emancipatória: a revolta proletária é uma
revolta contra a própria condição proletária. A positivação de uma
identidade ou "cultura" proletária aqui só poderia ter o sentido de
reprodução de uma dominação/partilha desigual.
[12] Vale lembrar que esse ponto já estava em vista quando da discussão
sobre o "corte epistemológico", já que na tradição Bachelardiana é
exatamente essa limitação do objeto que permite a constituição de algo como
uma ciência, diferente da filosofia que se coloca sempre as questões do
absoluto. Aqui novamente podemos lembrar da tese weberiana do processo de
racionalização levando à maior fragmentação do mundo e do saber.
[13] "O verdadeiro se produz como efeito crítico do imprevisto que obriga
a luta de classes retornar e retificar as suas próprias representações (e
seus próprios mitos)" (Balibar, 1997, p.276).
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