Do Primeiro ao Último Wittgenstein - Observações sobre o Descartes, Wittgenstein e Bento Prado Júnior, entre outros

June 6, 2017 | Autor: Marcelo Carvalho | Categoria: Wittgenstein
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DO PRIMEIRO AO ÚLTIMO WITTGENSTEIN Observações sobre o Descartes, Wittgenstein e Bento Prado Júnior, entre outros (Lido na UFPE em 16.12.2015)

Marcelo Carvalho Universidade Federal de São Paulo

Bento Prado Júnior tematiza a maneira como Wittgenstein se posiciona com relação ao argumento do sonho de Descartes, colocando em questão a identidade e originalidade de sua filosofia. Pretende-se retomar esta questão a partir do mesmo caso, o comentário aos últimos fragmentos escritos por Wittgenstein, e, a partir de uma breve exposição de seu percurso, explicitar que sua filosofia madura se organiza a partir da ruptura com um dos elementos centrais da investigação filosófica da linguagem desde o contexto grego: a suposição de uma relação direta entre linguagem e ontologia. Em oposição a isto, Wittgenstein recusa de modo radical qualquer referencialidade da linguagem e a apresenta integralmente situada no contexto de nossas práticas. A recusa da referencialidade e da possibilidade de desdobrar a estrutura da linguagem em uma ontologia se situam na base da posição de Wittgenstein sobre o equívoco de Descartes na formulação do argumento do sonho. O que se encontra ao final é uma identidade muito clara e conhecida para aquilo que Bento Prado chamou de “terreno selvagem e pré-gramatical” no qual “mergulhamos quando enlouquecemos, sonhamos e... filosofamos”.

1. Não posso admitir seriamente que sonho neste momento. Quem, sonhando, diz Eu sonho, mesmo se o diz de maneira audível, tem tão pouco direito [recht] de fazê-lo quanto quem, sonhando, diz Chove, enquanto de fato chove. Mesmo se seu sonho está efetivamente associado ao ruído da chuva. [UG, 676 – 27.04.1951] Nessa passagem o último Wittgenstein retorna ao argumento do sonho. Literalmente o último: não se refere com isto a última fase de sua obra, o segundo ou o terceiro Wittgenstein, conforme se prefira periodizar seu itinerário intelectual. Entendo literalmente essa expressão, como designando a última página escrita pelo filósofo, às vésperas de sua morte. Trata-se do parágrafo 676 do livro póstumo Sobre a certeza. [77-8] Essa caracterização irônica e sagaz da contraposição de Wittgenstein a Descartes é de Bento Prado Júnior, em seu texto “Descartes e o último Wittgenstein: o argumento do sonho revisitado”, publicado em 1998 (Analytica, Vol III, n. 1), no qual ele retoma um outro trabalho, muitíssimo precoce, sobre o tema, de 1966. Seu projeto neste texto é, em suas palavras, investigar nesse parágrafo terminal



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a maneira curiosa pela qual é reapresentado - para ser imediatamente neutralizado ou bloqueado em seu rendimento analítico - o argumento cartesiano do sonho.1 O tema tratado por Bento é de enorme interesse: avaliar o argumento de Wittgenstein contra o pano de fundo do longo debate sobre o argumento do sonho com o objetivo de identificar o que há de novo na posição de Wittgenstein, caso haja algo de novo. A dúvida quanto à originalidade da posição de Wittgenstein se apóia no início do parágrafo 676 de Sobre a Certeza: “No entanto, se não me posso enganar em tais casos, não é possível que eu esteja drogado?” Se estou [se estou drogado] e a droga rouba-me a consciência, então não falo ou penso realmente. Nos termos de Bento, o déficit de significação que a investigação lógica do tema pretenderia explicitar seria “descrito como déficit de consciência”, uma caracterização “escandalosa”, pois a filosofia de Wittgenstein se estrutura, desde seu início, em contraposição ao recurso à consciência e à psicologia na constituição do sentido de uma proposição. Em um percurso que não acompanharemos aqui, Bento explicita que uma longa tradição que vem dos primeiros leitores, de Descartes, Malebranche, Espinosa e Locke, e que se estende a Husserl, Ryle e Sartre, incluindo, em certa medida, também Kant, concebe que a fragilidade do sonho está em sua incapacidade de competir com outras representações, e que o sonho apresenta “um sujeito sem horizonte”. Essa argumentação seria semelhante àquela apresentada pelas leituras tradicionais do argumento de Wittgenstein, que caracterizam o sonho como uma perda de horizonte lingüístico, explicitando assim o mecanismo através do qual a concepção wittgensteiniana de que o erro e o engano pressupõem um horizonte de certeza se desdobra em uma recusa do argumento cartesiano. Mas, então, a retomada deste argumento por Wittgenstein, longe de ser uma revolução teórica, se apresentaria como um lugar comum venerável, incansavelmente revisitado desde o século XVII, Espinosa e Locke, até as fenomenologias alemã e francesa.

Nessa conferência apresento uma perspectiva a partir da qual compreender a filosofia madura de Wittgenstein, ao mesmo tempo em que explicito meu reconhecimento e homenagem a diferentes professores, todos centrais, alguns em minha formação, outros no amadurecimento de minha leitura da filosofia de Wittgenstein: o professor Oswaldo Porchat, marco fundamental de minha formação, com quem, desde que o conheci, e ao longo de muitos anos, tive a oportunidade de debater o “argumento do sonho”; o professor Bento Prado Júnior, de quem acompanhei um curso sobre o tema do artigo que comento aqui, interlocutor perspicaz a quem retorno regularmente, em seus textos e em minhas memórias; o professor Luiz Henrique Lopes dos Santos, que me auxiliou em minhas primeiras leituras de Wittgenstein, em particular de Sobre a Certeza; e também aos professores João Vergílio Cuter e Bento Prado Neto, que insistentemente me explicitaram a imensa relevância da compreensão do percurso “intermediário” da reflexão de Wittgenstein, sem a qual sua filosofia madura é bastante obscurecida, e ao professor Mauro Engelmann, sempre armado para o debate, autor daquele que é, talvez, o mais importante trabalho atual sobre o percurso da filosofia de Wittgenstein.

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A exposição da formulação kantiana do argumento, que, na descrição de Bento, faz a “consciência de si depende logicamente da consciência do objeto - noutras palavras, que o cogito só pode ser operado sobre o fundo da experiência possível”2, reforça ainda mais essa conclusão negativa e paradoxal de que o argumento de Wittgenstein, conforme interpretado por parte importante de seus leitores, em particular por Norman Malcolm, não poderia reivindicar qualquer originalidade (para não falar do paradoxo de encontrar nele o reiterado recurso seja à consciência, seja a uma fenomenologia do sonho). É contra essas leituras, que evidenciam graves equívocos na compreensão da filosofia de Wittgenstein, que Bento constrói seu percurso. Sua estratégia se volta para a explicitação da transformação da filosofia de Wittgenstein, em sua passagem do Tractatus para as Investigações: O transcendental mistura-se com o empírico (soberanamente desprezado no Tractatus) e o filósofo, que cuida essencialmente de “análises gramaticais”, nem por isso despreza inteiramente a “história natural”, já que o estilo de uma forma de vida tem raiz na implantação bio-social da humanidade que a “vive” ou pratica. O ceticismo cartesiano, assim como a filosofia do senso comum de Moore, são desqualificadas por não compreenderem que A base de um jogo de linguagem não é constituída por proposições susceptíveis de verdade ou de falsidade, corresponde apenas a algo como uma escolha sem qualquer fundamento racional. A indicação geral apresentada por Bento, em suas várias dimensões, aponta para uma alternativa muito profícua de aproximação do texto de Wittgenstein, seja em sua valorização da transformação da filosofia de Wittgenstein, seja no lugar central que atribui a nossas vidas e a nossas práticas. O comentário daquele último parágrafo de Wittgenstein, entretanto, parece requerer mais precisão. Afinal, como relacionar a recusa de que se possa dizer “eu sonho agora” com a caracterização geral de que a base dos jogos de linguagem não pode ser dita verdadeira ou falsa? E como evitar a leitura que vê nessa estratégia, certamente diferente das respostas tradicionais a Descartes, a afirmação de que a proposição “não estou sonhando agora” deve ser simplesmente colocada de lado e isolada da possibilidade de qualquer dúvida? Para respondermos a isso, proponho que sigamos a indicação de que se deve encontrar a resposta no percurso de Wittgenstein de uma perspectiva bastante específica: tentando compreender o termo de comparação proposto por Wittgenstein para explicar a impossibilidade do sonho: tem-se tão pouco direito de dizer “eu sonho”, quanto de dizer, sonhando, “Chove, enquanto de fato chove. Mesmo se seu sonho está efetivamente associado ao ruído da chuva.” “... a experiência interna só é possível mediatamente, e apenas através da experiência externa” [CRP, frase final da Estética Transcendental, Obs 1]

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Uma breve descrição desse percurso nos oferecerá os elementos necessários para compreender o sentido da centralidade da prática apontada por Bento e para retornar àquelas últimas palavras de Wittgenstein e encontrar nelas não uma versão gramatical de antigos dogmatismos, mas uma concepção de linguagem purgada de pressupostos, alguns deles com mais de dois milênios de história.

2. Porque, afinal, a afirmação “Chove”, enquanto chove, não é perfeitamente adequada? O contraponto é oferecido pelo “primeiro Wittgenstein”, pelo Tractatus: a verdade ou falsidade de uma proposição consiste em uma relação entre a figuração ou proposição e o fato por ela figurado. Não se trata justamente disto aqui? A proposição “Chove” figura um fato que é o caso e, assim, é verdadeira. No Tractatus não parece haver lugar para ressalvas ou exceções nesse ponto. Não há lugar para nenhuma consciência que conhece ou compreende aquilo que se fala. Mesmo que se suponha um sujeito transcendental no Tractatus3, esse sujeito não sonha, não se engana, não tem ilusões, não vai para a América e não usa drogas! Como também não há lugar para circunstâncias estranhas à mera nomeação: o contextualismo do Tractatus, do qual falaremos mais adiante, não pode ser confundido com a descrição do contexto de elocução de uma proposição. A compreensão da passagem dessa análise do Tractatus para o parágrafo final de Sobre a Certeza pressupõe que se explicite o que se altera na filosofia de Wittgenstein ao longo desse percurso. Aquilo que se encontra envolvido na concepção tractariana (e em toda a tradição a que ele se liga, de Parmênides, Platão e Aristóteles a Russell) só se evidenciará para nós a partir do próprio percurso crítico de Wittgenstein e da explicitação do que ele deixa para trás. O passo fundamental desse percurso é dado em 1929, quando Wittgenstein retorna a Cambridge e revê suas concepções no Tractatus. Ainda que a base sobre a qual o Tractatus se estabelece seja bastante modesta, fica claro nessa revisão que ele não consegue evitar grandes dificuldades em sua descrição do uso da linguagem. Os problemas com as quais Wittgenstein se depara em 1929 estão associados à “solução tractariana” para a regressão ao infinito da análise e para a garantia da independência do significado: a suposição de que há nomes simples que significam objetos simples. O problema da incompatibilidade das atribuições de cores, tema de Wittgenstein em Some Remarks on Logical Form, de meados de 1929, juntamente com um conjunto mais amplo de problemas, menos lembrados pelos comentários da obra de Wittgenstein, mas que são talvez mais relevantes e anteriores ao problema das cores,4 acabam por se desdobrar em uma ruptura contundente e radical com algumas das principais características do Tractatus. 3 4



J.V. Cuter, “xxx”. Cf. JV, B. Prado Neto, M. Carvalho, M Engelmannxxxx 4

A dificuldade inicial5 consiste em explicitar como a incompatibilidade da atribuição simultânea de duas cores ao mesmo ponto do espaço visual deve ser analisada de modo a que se chegasse a proposições elementares independentes entre si, como exige o Tractatus. Trata-se de mostrar que este caso específico pode ser resolvido sem que se abandone as concepções de análise e, principalmente, de necessidade do Tractatus (que a restringe a necessidade às operações lógicas: só há necessidade na lógica). Não sendo isto possível, ou se constrói uma outra concepção de análise, uma alternativa ao Tractatus, ou seríamos colocados na posição de reconhecer uma relação de necessidade (a exclusão das cores, por exemplo) “no fenômeno”, no “mundo”, independente da lógica. Isto nos levaria, por sua vez, em direção à velha contraposição entre uma metafísica pré-kantiana e um empirismo psicologista à maneira de Hume. Some Remarks on Logical Form ainda procura uma alternativa para resolver o problema no domínio das concepções do Tractatus.6 Mas rapidamente Wittgenstein reconhece a impossibilidade de fazê-lo.7 O passo dado por ele, então, consiste em reconhecer que sua concepção anterior apresentava pressupostos que não se realizam e que devem ser abandonados. Estes pressupostos se concentram ao redor da ideia de que os nomes, ainda que de maneira mitigada e apenas no final da análise, referem a objetos. A isto se associa, de modo incontornável, a própria concepção de análise do Tractatus. É impossível abandonar a pressuposição de que há objetos simples significados por nomes simples sem rever, simultaneamente, a concepção de análise do Tractatus (e mesmo, de certo modo, a suposição da independência do sentido). Trata-se, então, nas PhB, de explicitar o sentido em que se poderia reconstruir a análise de modo a garantir que só há necessidade na lógica, sem para isto recorrer à pressuposição (que se revela agora extremamente problemática) de que há objetos simples e proposições elementares.8 A estratégia de Wittgenstein em 1929 consistirá em rever suas posições a partir daquilo que resta do Tractatus, excluídas as suposições sobre objetos simples e proposições elementares, sem para isto recorrer a nenhum outro pressuposto. O Tractatus reconhecia como seu Grundgedanke a explicitação de que as constantes lógicas não referem.9 No caso dos nomes, entretanto, apesar do contextualismo explicitamente sustentado e defendido por Wittgenstein, ao final da análise os encontramos “referindo a objetos” (xxx). A caracterização da relação entre o contextualismo do Tractatus e esta afirmação de algum tipo de referencialismo não é simples e demanda um comentário cuidadoso. De maneira breve e preliminar podemos observar aqui que a semântica do Tractatus, apesar de supor a referência de nomes simples a objetos simples, se constitui de maneira contextualista, na medida em que referir um nome a um objeto consiste em colocar este nome nas mesmas relações que o objeto referido mantém com outros

Consideraremos aqui, por brevidade, unicamente o problema das cores a estratégia tentada em SRLF 7 ref abandono linguagem fenomenológica 1929 8 A descrição impiedosa destes pressupostos do Tractatus nas PU, 89 e segs. 9 4.0312 5 6



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objetos. Em certo sentido, o que refere é a rede de relações mantidas pelo nome com outros nomes.10 Mesmo esse referencialismo “minimalista” ou “residual” se revelaria, entretanto, frente aos problemas tratados por Wittgenstein em 1929, uma suposição insustentável. A reformulação apresentada nas PhB consiste, então, em um “passo atrás” em relação aos pressupostos do Tractatus, abandonando qualquer resíduo de referencialismo e, nos termos de J. Medina, estendendo a todos os nomes o tratamento estritamente contextualista dado pelo Tractatus às “constantes lógicas”.11 E, então, em um procedimento que desta perspectiva é estritamente negativo,12 na medida em que não se pode mais supor que nomes referem, só resta a possibilidade de dizer deles as relações que mantêm com outros nomes, só resta apresentar seu “uso”, ou melhor, sua gramática (termo que passa a ocupar uma posição central nos textos de Wittgenstein a partir de 1930). Em contrapartida, a gramática, ou o sistema de regras que caracteriza uma linguagem, se apresenta como autônoma e arbitrária. Ela não pode ser justificada por qualquer referência a algo “exterior” ao próprio sistema de regras. Não se pode mais conceber que as regras, a linguagem, se ajusta a fatos, a um “mundo” independente dela. A compreensão de que os usos de um termo constituem uma rede de relações, uma gramática, é residual do Tractatus, que concebia o espaço lógico como um sistema definido e fechado de possibilidades (de fatos e, então, de proposições) que definiam a semântica dos nomes.13 Na ausência de referências, todo o significado passa, então, a ser estabelecido unicamente por meio desta rede de usos, inicialmente concebida (de maneira bastante formalista) como um sistema rígido de relações. Ao descrevermos esse passo do percurso de Wittgenstein é importante enfatizar que as PhB não buscam uma nova alternativa para resolver os problemas do Tractatus, não buscam “outros pressupostos”. O “conceito de gramática” não é propriamente uma novidade que vem resolver o problema com o qual Wittgenstein se deparara em 1929. A “revisão” do Tractatus se dá por meio de uma abordagem unicamente negativa: abandonase a suposição da referência a objetos simples e o que resta é a gramática. O trabalho consistirá, a partir de então, em explicitar que ainda se pode dar conta da linguagem sem recorrer à pressuposição de que há objetos simples e proposições elementares. A concepção de análise, por sua vez, é ajustada a este novo contexto, em que não se pode supor proposições finais que interrompem seu regresso. Ela se restringe agora ao mero esclarecimento dos usos, da gramática dos termos.14 Do ponto de vista de nosso objetivo específico, o mais relevante é explicitar que a passagem da concepção tractariana de análise para o conceito “intermediário” de gramática é associado à suposição de que se abandona qualquer pretensão, ainda que a simples afirmação de que um nome significa um objeto não constitui, por si só, uma definição semântica do nome, pois o próprio objeto é dado unicamente por meio de relações. xxx 11 Medina 12 Há uma outra perspectiva: a opção por manter a suposição de que toda necessidade é lógica, e a recusa do psicologismo. 13 Espaço lógico no Tractatus. 14 Refs. PhB. 1 – análise 10



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mitigada, de referencialidade da linguagem. E, de modo preliminar, podemos deixar claro que a suposição de que a linguagem refere a objetos (como quer que se compreenda isto) é o que possibilita a suposição de que ela envolve compromissos ontológicos (para usar o vocabulário de Quine) e que, em última instância, se associa ou se desdobra em uma ontologia. O percurso iniciado por Wittgenstein em 1929, no sentido de eliminar qualquer referencialidade da linguagem, se desdobrará, ao final, na dissociação entre linguagem, ou lógica, e ontologia. Este tema está no coração de nosso debate e retornaremos a ele adiante. 3 O foco da reflexão de Wittgenstein a partir de 1930 se volta para a compreensão das regras, que estariam por detrás do uso dos termos, e da gramática, concebida como sistema de regras. O Big Typescript concentra esse esforço. Segundo o vocabulário que marca esse período do trabalho de Wittgenstein (e que ainda se faz claramente presente na PG, de 1933), o significado de um termo é dado por seu uso. Mas, na medida em que o uso é determinado por regras, e como o que se considera aqui não é um uso particular, e sim todas as possibilidades de uso do termo15, o significado é dado, ao final, pelas regras que se encontram por detrás, que determinam, o uso. Essas regras, por sua vez, constituem um sistema (um cálculo ou gramática), que define a identidade específica de uma linguagem. A análise (a tarefa da filosofia) consistiria em explicitar o sistema de regras por detrás dos usos.16 A caracterização da gramática e das regras neste período passa por um processo contínuo de pequenos ajustes que não consideraremos aqui. Em linhas gerais, o que marca esse conjunto de textos é o reconhecimento de que as regras se relacionam entre si e constituem um sistema. As concepções iniciais de Wittgenstein a este respeito são mais “formalistas” e passam por um processo rápido de crítica e transformação. A outra característica central atribuída às regras e à gramática é sua arbitrariedade, o reconhecimento de que não é possível qualquer justificação de um conjunto específico de regras para uso de um termo (isto pressuporia a referência a um critério externo à linguagem e, portanto, o retorno ao tipo de referencialismo abandonado no início de 1930). A gramática é autônoma.17 18 A elaboração da concepção de gramática neste período envolve várias dificuldades. Em primeiro lugar, no Tractatus a caracterização do significado como todos os usos de um nome19 tem como contrapartida a determinação extensional do significado dos termos.20 A associação do significado a uma extensão, entretanto, representaria uma forma tímida de manter algum referencialismo, além de envolver dificuldades próprias, pois nos termos de J. Medina, “xxx” / Como no Tractatus (uso) tribo 17 autonomia nas PU, o uso do termo, a tradição do idealismo alemão 18 Incluir: relativismo e gramática 19 ref tract 20 À maneira de Frege (ref xxx), o significado de um conceito como “vermelho” é dado pelo conjunto de tudo aquilo que é chamado de vermelho. 15 16



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pressuporia o que Wittgenstein chama nas Investigações de “regras para todos os casos” (algo difícil de garantir sem o recurso a alguma referência). O que encontramos aqui é um modelo “inverso” de referencialismo, mais adequado ao gosto kantiano da filosofia dos dois últimos séculos21: o rompimento com um referencialismo em algum sentido “realista” se desdobra não na recusa da associação entre linguagem e ontologia, mas na formulação mais radical da concepção de comprometimento ontológico. Cada linguagem, cada gramática, na sistematicidade por meio da qual se constitui, se desdobra em uma ontologia (que é, então, em certo sentido, posta pela própria linguagem), e a diferença entre várias linguagens passa a se apresentar como uma contraposição entre diferentes mundos.22 Não havendo um mundo ao qual a linguagem se ajusta, em lugar de se desfazer da suposição de que a linguagem figura um mundo, supõe-se que ela põe como existente o mundo de que é figuração (que ela pressupõe a posição de uma ontologia que figura). Esse passo não é exclusivo de Wittgenstein. Ele se situa na base da construção da maior parte das concepções relativistas dos dois últimos séculos. Para tentar evitar as dificuldades da exigência de que se descreva as “regras para todos os casos”, bem como o retorno ao referencialismo, Wittgenstein dissocia o conceito de regras de uma extensão “claramente delimitada”. A exigência de que as regras delimitassem de modo claro e exato a aplicação de um termo pressuporia que estes termos (claro e exato) tivessem significado independente do contexto de seu uso. O reconhecimento de que este não é o caso, de que não há “superconceitos”, e de que eles, como qualquer termo, não têm significado fora de um uso circunstanciado e específico, é suficiente para que se elimine a exigência de uma delimitação conceitual precisa e para que se atribua limites “difusos” para os conceitos.23 Uma outra dificuldade que marca este debate, e que se caracteriza como um dos elementos de mudança de posição de Wittgenstein ao longo desses anos, é o formalismo que marca sua concepção inicial de regras e de gramática. Na medida em que o significado de um termo é dado pelas regras que determinam seu uso (e, de modo correlato, que uma linguagem é dada por um sistema de regras), qualquer alteração no uso, por menor que seja, resulta em uma outra regra e em uma outra linguagem (e, para alegria de quem defende concepções relativistas, em um outro conjunto de compromissos ontológicos24). Não parece possível sequer dizer que o uso de um termo passou por uma mudança. Só se poderia dizer que há agora um outro termo, com novas regras. A cada nova casa que se acrescenta ao cálculo de Pi, e que não havia sido calculada antes, tem-se Cf. M. Carvalho. Teoria e Experiência. Encontramos exemplo mais explícito dessa concepção em Quine, From a Logical Point of View. “One’s ontology is basic to the conceptual scheme by which he interprets all experience, even the most commonplace ones. (...) Ontological statements follow immediately from all manner of causal statements of commonplace facts.”(p.10); “We can easily involve ourselves in ontological commitments by saying, for example, that there is something (bound variable) which red houses and sunsets have in common.” (p. 12); “In so far we undertake to speak of ontological commitment on the part of discourse (...) we are of course involved in the theory of meaning.” (p. 131) 23 Refs e importância deste movimento / já presente em BT (contra Hacker); cf. carvalho 24 ref. BT 21 22



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um novo conceito, não um ajuste em um conceito anteriormente existente.25 Ainda que o problema seja evidente, ele não encontra uma solução simples, pois em que sentido se poderia dizer que temos, neste segundo momento, uma nova versão de um conceito anterior sem, para isto, pressupor que o conceito é dado de modo independente do uso? Afinal, o que permaneceria o mesmo, já que o uso passa por uma mudança? A flexibilização dessa concepção se efetiva por meio de um procedimento semelhante ao reconhecimento de que os conceitos não têm limites claros, e que se desdobra no uso do termo “semelhança de família”. Esta metáfora visa justamente explicitar que os nossos usos assimilam variações de maneira fluida. Mas a plena assimilação deste ajuste pressupõe que antes se deixe de lado a concepção rígida inicial de que a linguagem se caracteriza por meio de um sistema de regras que determinam o uso. A fluidez que a metáfora dos jogos de linguagem identifica nos usos não é conciliável com uma concepção em que uma regra ocupa o papel de determinação do uso.26 Mas a questão que se revela central e determinante da profunda revisão e crítica a que Wittgenstein submete essa concepção “intermediária” de gramática é a suposição inicial de que há uma relação de determinação do uso, das ações, a partir das regras. Em que consiste reconhecer que uma certa prática segue uma regra?27 O que é uma regra e qual a relação que se supõe existir entre regra e ação nestes casos?28 Em The Big Typescript Wittgenstein constrói sua descrição da operação da linguagem sobre uma suposição que se revela envolvida em dificuldades incontornáveis: a afirmação simultânea de que a regra determina o uso (e, então, o precede, em um sentido lógico, como a estética transcendental de Kant precede a experiência, ainda que só se apresente por ocasião dela)29 e do contextualismo que associa o “significado” da regra ao seu uso (a sua aplicação). Como conciliar a suposição de que o significado da regra é seu uso com a concepção do Big Typescript sobre “seguir regras”, que identifica a regra na origem de nossa ação? A suposição inicial de que há regras e de que elas determinam o uso conduz a dificuldades

casas de Pi Engelmann – de cálculo a jogos 27 Sobre a relação deste problema com a Crítica do Juízo de Kant, cf. H. Ginsborg, xxx. O problema para Kant é o reconhecimento de um evento particular como um caso do geral. Sobre o problema de seguir regras em Wittgenstein, cf. xxx 28 O problema colocado por Wittgenstein a sua própria concepção de regra não é propriamente uma novidade. Encontramos em Kant tanto a formulação do significado dos conceitos como uma regra (KRV xxx), quanto a explicitação de que não se pode inferir o ajuste de um caso (de uma aplicação) a uma regra (KrU xxx); sobre Kant, cf. xxx. É interessante observar que as críticas a Kant, em particular à (pseudo-) suposição de que a coisa-em-si seria causa do fenômeno (ref) se desdobra no projeto de Fichte, de uma “passagem à prática”, que entende que nenhum fato poderia fundar os juízos xxx e que o único fundamento da atribuição de significado xxx plausível é um ato normativo, uma ação. A famosa frase do Faust de Goethe, que refere à Wissenschaftlehre xxx de Fichte, “In Anfang war die Tat”xxx, é citada por Wittgenstein em UG; e Wittgenstein atribui “autonomia” à gramática. [parece haver mais do que simples coincidência de vocabulário, projetos e referência – e a relação do percurso da investigação de Wittgenstein parece mais relacionada à filosofia alemã do XIX do que a princípio se poderia supor, dada a falta de referências diretas a autores e obras. 25 26

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semelhantes àquelas identificadas na concepção referencialista do Tractatus, na medida em que hipostasia uma estrutura dada (as regras) à qual o significado (o uso) deve se ajustar.30 Nos termos da descrição do percurso de Wittgenstein que se propõe aqui, o Big Typescript31 recorre a uma concepção de gramática e regras que ainda traz consigo pressupostos problemáticos que, quando identificados, são abandonados por Wittgenstein: de delimitação exata do conceito, de sistematicidade (formal) do conjunto de regras e, mais grave, de que as regras determinam os usos (de que a linguagem é um “cálculo com regras fixas”).32 Esse conjunto de concepções tem como contrapartida o último instantâneo de referencialismo wittgensteiniano, que dá margem a se supor que uma linguagem envolve um conjunto de comprometimentos ontológicos. 4 O abandono da suposição de uma determinação do uso pelas regras não representa um abandono do conceito de regra, mas a passagem da caracterização do significado como o “conjunto de todos os usos possíveis” de um termo, na versão do Big Typescript (que se revela, então, em certa medida, “idealista”), para os usos efetivos que fazemos destes termos.33 A descrição do sistema de regras não pode “substituir” a descrição do uso efetivo, pois não há nada além deste uso. Sem ele não é possível associar a regra a nenhuma ação. A constituição do significado de um termo pressupõe, então, não a estruturação de um sistema de regras, mas um conjunto de práticas [ele próprio eventualmente caracterizado como um “sistema”34, mas em um sentido bem distinto] em meio às quais este termo significa. O trabalho levado a cabo por Wittgenstein entre o ditado do Blue Book e a redação das Investigações se propõe, assim, a reconstruir a concepção contextualista de significado inicialmente formulada em 1930 sem recorrer à pressuposição inicialmente presente de que há uma relação de determinação do uso por regras. Novamente, da perspectiva do percurso da investigação de Wittgenstein, trata-se de dar um passo “atrás” e de abandonar pressupostos injustificáveis aos quais ele anteriormente teria recorrido. O núcleo desta revisão da concepção de gramática e regra, não obstante sua presença central ao longo de todo o texto, é o debate sobre seguir regras (iniciado no parágrafo 134 das PU e que se estende até o parágrafo 242).35 Esse debate é talvez a maior novidade das Investigações em relação aos temas tratados antes por Wittgenstein, e redefine de maneira profunda o sentido de suas demais observações sobre uso e regras.

Um modo recorrente na filosofia tardia de Wittgenstein, em particular nas PU, é explicitar que sempre que uma dicotomia equivalente a esta se abre, as objeções às tentativas de conectar os dois lados separados pelo hiato se revelam incontornáveis. / modelo: definição ostensiva 31 (e a PG) 32 Cf. Carvalho / Hacker 33 Ref. Mauro e Medina 34 ref. UG 35 refs. Sobre seguir regras 30



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O contextualismo de Wittgenstein, levado às últimas consequências, produz a “passagem à antropologia”36, o anti-intelectualismo radical das Investigações, a afirmação da impossibilidade de conceber regra e aplicação da regra como duas coisas distintas37 e, em síntese, a compreensão da linguagem como um conjunto de práticas, em meio a uma forma de vida. Nossas palavras e expressões não têm significado, têm uso, em contextos específicos. Não há mais sentido em associar essas práticas a uma ontologia do que teria em associar o fato de que nós ou algum outro ser vivo nos alimentamos ou reproduzimos a uma. A radicalização do não-referencialismo de Wittgenstein, que no Tractatus se restringia às constantes lógicas e que ao final torna desconfortável o próprio conceito de significado [PU, 5], se desdobra em uma compreensão da linguagem como prática em meio a formas de vida específicas que rompe o elo, herdado de Parmênides, Platão e Aristóteles, entre linguagem e ontologia. Como a linguagem não refere, a descrição de suas estruturas não se apresenta como descrição do mundo por ela figurado, mas como descrição da forma de vida em meio à qual ela se estabelece. A linguagem se relaciona a nossas ações e práticas, a nossas formas de vida, não à estrutura última do mundo. Na filosofia tardia de Wittgenstein, a “antropologia” (ou melhor: a descrição de nossas complicadas formas de vida) substitui a ontologia. Curiosamente esse último passo dado por Wittgenstein atenua ou desmonta o “relativismo” característico do “período intermediário”: não se pode mais falar de uma arbitrariedade da linguagem em sentido estrito. Uma linguagem se constitui apenas em meio a uma forma de vida. E o que se pode dizer, então, é que há diferentes formas de vida. E dizemos isto a partir desta forma específica que é a nossa.38 A idéia de simples arbitrariedade, de que as regras para uso de um termo seriam o último passo de nossa descrição, é substituído pelo reconhecimento de que não são regras, mas práticas, usos, que se encontram no fim da cadeia de explicações: fazemos assim. Ao final, toda constituição de sentido se estabelece por meio de nossas ações. No princípio está a ação e é ela que cuida de si própria.39 O percurso “negativo” da filosofia da investigação de Wittgenstein conduz a uma descrição da linguagem que pretende ter aberto mão de toda forma de dogmatismo e de qualquer pressuposição para além da constatação de que fazemos coisas com a linguagem. Só há linguagem no contexto de nossas práticas, das quais ela é parte.

5 Retornemos, então, ao último Wittgenstein e à última observação do parágrafo 676 de Sobre a Certeza. A suposição tractariana de que a verdade ou falsidade de uma proposição depende unicamente de sua relação com o fato que figura e da ocorrência ou não deste fato se revela dependente de uma suposição nada trivial sobre a referencialidade da linguagem e sobre sua relação com uma ontologia. No vocabulário de Platão, no Crátilo, a 36

Mauro

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UG – leão

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linguagem se apresentaria como espelho, como imagem (verdadeira ou falsa) do mundo. Nos termos do Tractatus, a figuração tem sentido caso apresente um fato possível, uma relação possível entre objetos (simples, necessariamente existentes). Ela é verdadeira se este fato ocorre. A recusa na filosofia tardia de Wittgenstein de que a linguagem opere desta maneira se deve não a uma recaída na filosofia da consciência, mas a sua pretensão de abandonar qualquer metafísica da linguagem e ao reconhecimento da linguagem como parte de nossas ações: não se pode falar de sentido ou verdade fora do contexto efetivo de nossas práticas. O problema da proposição “Chove” dita em meio ao sonho não é sua dissociação da consciência, mas sua dissociação completa de qualquer contexto, de nossas práticas e de nossos jogos de linguagem. Poderíamos dizer que a suposição de que estou sonhando agora não tem lugar no sistema de nossas crenças, que não é um exemplo adequado de algo de que duvidamos, etc. Mas com isto apenas explicitamos que uma suposição como esta não tem lugar em nossas práticas, em meio a nossas formas de vida. E se ela não tem lugar ali, em meio a nossas vidas, nada lhe resta, nenhuma ontologia a que ela remeteria à nossa revelia. Wittgenstein não nos está propondo que se isente algumas proposições da possibilidade de duvidar. Pelo contrário, ele nos mostra o enorme preço a ser pago quando se supõe que se pode falar de verdade e significado de uma afirmação fora do contexto específico de nossas experiências. Nos termos de Bento, o estilo de uma forma de vida tem raiz na implantação bio-social da humanidade que a “vive” ou pratica. Fora dessa implantação não há linguagem. E, então, no que depender de Wittgenstein, não será mais a linguagem que sustentará o projeto de uma ontologia ou os debates entre realismo e idealismo, entre relativismo e anti-realismo, que florescem no terreno criado por estes projetos.40 O resultado é um perspectivismo, que pode mesmo ser chamado de relativismo, desde que claramente diferenciado do modelo ontológico de Resta-nos a tarefa de compreender a linguagem assim caracterizada: demasiado humana; mas também que esse humano de que se fala aqui é demasiado ação, demasiado vida (a vida cotidiana, vulgar, singular, que, paradoxalmente, faltava ao sujeito da Primeira Meditação, pelo menos a partir de um certo momento – e que, se me permitem dizer, sobrava ao Prof. Bento Prado Júnior).

Obrigado!

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Quine 12

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