Do que éramos para o que somos: Por que o nosso passado só começa em 1500, com a chegada dos europeus? Está na hora de irmos além, em busca dos primeiros brasileiros

September 13, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, Pré-História, Arqueologia Pré-Histórica, Indígenas
Share Embed


Descrição do Produto

Sala de Aula

Do que éramos para o que somos HISTÓRIA Por que o nosso passado só começa em 1500, com a chegada dos europeus? Está na hora de irmos além, em busca dos primeiros brasileiros

O

AY RTO N V I G N O L A / FO L H A I M AG E M

34

CARTACAPITAL NA ESCOLA

www.cartanaescola.com.br

O futuro e o passado Essa diversidade não existia apenas de uma comunidade para outra, mas no interior das comunidades. Uma das interpretações mais inovadoras foi proposta pela arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt para algumas sociedades pré-históricas do Baixo Amazonas. A partir do estudo das urnas cerâmicas da Ilha de Marajó, no Pará, assim como de outros vestígios arqueológicos, essas sociedades indígenas foram caracterizadas como baseadas na agricultura intensiva, com artesanato especializado, e com uma estrutura social hierarquizada e matrilinear, em que as mulheres tinham grande destaque. As imagens femininas nos vasos podem, assim, refletir um sistema social baseado na mãe, de forma que as mulheres seriam chefes de clãs ou figuras míticas fundadoras. Os vestígios induzem a pensar que poderia ter existido um sistema no qual os homens se dirigiam a lugares estabelecidos pelas mulheres. Os principais motivos decorativos eram os órgãos genitais femininos, com destaque para o útero. Essa interpretação, ainda que contestada por alguns, mostra como, também no passado, as mulheres podem ter tido papéis sociais relevantes. Nem todas as sociedades préhistóricas foram patriarcais. www.cartanaescola.com.br

FOTO S : A E

nhecimento do nosso passado pré-histórico: a liberdade de pesquisa e a legislação de proteção ambiental. A liberdade permitiu que muitas pesquisas acadêmicas fossem desenvolvidas, em consonância com as mais modernas discussões lançamento do livro O Brasil Antes dos Brasileiros, do internacionais. Muitos grupos de pesquisa se desenvolvearqueólogo francês André Prous, noticiado na matéram, diversos deles em colaboração com estrangeiros. ria “O Passado Revisto” (CartaCapital 400, republicaOutro fator que impulsionou a pesquisa arqueológica da na página anterior), mostra o dinamismo e o imenso pono Brasil foi o surgimento de uma legislação ambiental tencial do estudo do passado pré-histórico no Brasil. Outros mais rigorosa. A democratização levou, também, a que bons livros foram lançados nos últimos anos e nunca houve muitos estados e municípios criassem legislação própria de proteção, assim como órgãos de defesa do patrimônio. Tudo isso garantiu uma ampliação exponencial do nosso conhecimento. Enquanto isso acontecia no Brasil, no mundo também aumentava a consciência da importância da diversidade, tanto ambiental como cultural, para o futuro do planeta e da humanidade. As ciências humanas e sociais voltaram-se para a diversidade cultural, tanto entre os diversos povos como no interior das sociedades. As diferenças de gênero, de idade e de visões de mundo, no seio de cada comunidade, passaram a ser valorizadas e, em 2005, a Unesco, órgão da OrganizaLUZIA. O antropólogo Walter Neves examina crânio de Lagoa Santa, mesmo local onde foi encontrada a ção das Nações Unidas voltaossada de Luzia (em primeiro plano). Sua semelhança com aborígenes australianos abalou nossa pré-hitória. do para a educação, a ciência e a cultura, adotou a Convenção sobre a Diversidade Cultutantas pesquisas de campo sobre os milhares de anos de ocural. São essas preocupações que levaram a um interesse repação do território brasileiro. Mas qual a importância disso novado pelos antigos habitantes do planeta e, no nosso catudo para a nossa vida hoje e para o nosso futuro? Esse passo, do território brasileiro. sado tão longínquo teria ainda algo a nos ensinar? Sim, e muito mais do que costumamos pensar. O avanço das pesquisas arqueológicas no Brasil liga-se à Primeiros Brasileiros democratização do País. Durante a ditadura militar (1964Um dos temas mais discutidos nos últimos anos refere-se à 1985), toda a sociedade viu-se tolhida e as Ciências Humachegada dos primeiros habitantes ao território brasileiro. nas, em particular, foram extremamente cerceadas. A aberCom datações pelo Carbono 14 de mais de 10 mil anos tura do regime e o retorno dos civis ao poder permitiram (quadro sobre os métodos de datação à página XX), sabemos que os interesses dos diversos grupos sociais se expressasque havia homens por aqui e, segundo estudiosos como sem. Duas conseqüências foram fundamentais para o coWalter Alves Neves, esses habitantes mais antigos teriam Por Pedro Paulo A. Funari, historiador e arqueólogo, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

um tipo físico mais próximo dos africanos ou dos aborígines australianos do que dos indígenas brasileiros de feições asiáticas que conhecemos. Essa hipótese reforçaria o caráter variado da colonização do continente e uma presença africana muito anterior ao século XVI, quando por aqui aportaram os primeiros navios negreiros. O arqueólogo Eduardo Góes Neves constata que “os dados da Amazônia são uma contribuição fundamental, ao mostrarem que as populações que colonizaram inicialmente a região tinham economias diversificadas”. Na verdade, a explosão de pesquisas tem mostrado que esse é o quadro em todo o País e que diversas eram não apenas as economias como também as culturas. No Sul do Brasil há centenas de “buracos do bugre”, sítios arqueológicos subterrâneos que continuam a desafiar os pesquisadores, assim como são numerosos os concheiros, conhecidos como sambaquis. Esses grandes sítios, que às vezes podem atingir vários metros de altura, apresentam vestígios de enterramentos, mas também podem conter belíssimos objetos de pedra em forma de animais, os zoólitos. Há grandes discussões Nossa terra sobre esses dois tipos de sítios, os buracos e os sambaquis. Se- tinha imensa riam os buracos espécies de ca- variedade de sas primitivas, como querem alguns? Seriam os sambaquis habitantes antes grandes monumentos de socie- que os europeus dades hierarquizadas, como se fossem as nossas “pirâmides”? chegassem aqui O que importa, nessas discussões, é que havia grande diversidade, de um buraco para outro, de um concheiro para outro, a demonstrar a imensa variedade de habitantes da nossa terra antes que os europeus aqui chegassem.

PRÉ-BRASIL. Inscrições rupestres em São Raimundo Nonato (PI) e cerâmica marajoara (PA) são traços de um Brasil ainda desconhecido

O escritor britânico George Orwell dizia que “quem controla o passado controla o futuro”, e o passado mais distante, por incrível que possa parecer, pode ser tanto uma ferramenta para oprimir como para libertar. Se pensarmos que a humanidade está sujeita ao inexorável avanço da chamada “complexidade” social, das hierarquias e do conhecimento científico neutro, podemos encontrar na Pré-História grupos sociais homogêneos, sociedades em que uns mandam e outros obedecem, povos que migram e dominam outros povos, a mostrar que o presente e o futuro também serão assim. Se assim for, o passado estará a serviço da opressão e da perpetuação das iniqüidades sociais. CARTACAPITAL NA ESCOLA

35

Sala de Aula

INFOGRAFICO

36

CARTACAPITAL NA ESCOLA

www.cartanaescola.com.br

www.cartanaescola.com.br

CARTACAPITAL NA ESCOLA

37

Sala de Aula AG L I B E RTO L I M A /A E

ONDE O BRASIL É MAIS ANTIGO

38

CARTACAPITAL NA ESCOLA

AE

dirigidos por Walter Alves Neves, têm sido exaustivos, publicados nas mais prestigiosas revistas estrangeiras. Neves propôs a hipótese de que os antigos habitantes de Lagoa Santa fossem de compleição física LAGOA SANTA. Desenhos particular, diferente de 4 mil anos, mostrando dos indígenas, muito o nascimento de uma criança, mais próxima dos destruídos por vândalos aborígines australianos. Um crânio ficou famoso, batizado primeiro contato com por Neves de “Luzia”, já que um o sítio: “Achei esses restos dos mais antigos vestígios humanos em uma caverna humanos, na África havia sido que continha, misturados chamado anteriormente de com eles, ossos de diversos Lucy. Nossa Luzia causou animais de espécies muita discussão em todo o reconhecidamente extintas, mundo. Com cerca de 11.680 circunstância que devia anos de idade, o crânio e chamar toda a atenção outros ossos do corpo de para estas interessantes Luzia foram relíquias. Ademais, encontrados em apresentavam eles 1975, por todos os caracteres uma equipe físicos dos ossos franco-brasileira realmente coordenada fósseis. pela arqueóloga Eram, em parte, francesa petrificados Annette Laminge, também, Emperaire. penetrados Hoje, os restos de partículas mortais de Luzia férreas, o que se encontram dava a alguns guardados deles um no Museu lustro metálico, Nacional do imitante ao LUND. Naturalista que Rio de Janeiro. bronze, assim descobriu Lagoa Santa Esses antigos como um habitantes do Brasil teriam peso extraordinário. Sobre chegado aqui pelo Estreito a remota idade deles de Behring, entre a Sibéria e o não podia, pois, haver Alasca, mas há mais de 15 mil dúvida alguma” (extraído anos. O sítio arqueológico de do livro Pré-História Lagoa Santa foi descoberto do Brasil, indicações em 1840 pelo naturalista na seção Saiba Mais). Confira: dinamarquês Peter Wilhem http://www.lagoasanta.com. Lund, que assim descreveu o br/homem/minas_na_vangua

rda_arqueologica.htm. Outro grande patrimônio arqueológico brasileiro que pode ser visitado é a Ilha de Marajó, no Pará. Ali, em uma paisagem única, em meio a uma população local hospitaleira, é possível conhecer sítios escavados por Anna Curtenius Roosevelt (http://acroosevelt.net), como o Teso dos Bichos. Uma das grandes atrações arqueológicas são as urnas marajoaras, com suas representações femininas. Também há belas coleções para serem visitadas no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (www.mae.usp.br) e no Museu Nacional do Rio de Janeiro (http://acd.ufrj.br/museu). Essas urnas, consideradas com justiça entre as mais belas peças arqueológicas do Brasil, foram estudadas e publicadas em um livro de referência, por Denise Cavalcante Gomes, pela Editora da USP. Na rede, pode-se consultar http://www.ceramicanorio. com/artepopular/ ceramicamarajoara/cer%C3 %A2mica_marajoara.htm.

www.cartanaescola.com.br

EM SALA Competência investigação e construção de argumentações.

Habilidade reconhecer e valorizar a diversidade ambiental e cultural, identificando-as tanto no passado como no presente, visando a um futuro que inclua todos os segmentos sociais.

Passado revelado pela Química Uma atividade em sala de aula bem interessante seria congregar as disciplinas História e Química a respeito do processo de datação por Carbono 14. Há diversas formas

www.cartanaescola.com.br

de datar, em laboratório, vestígios do passado e a mais difundida é o método Carbono 14, surgido depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O método baseia-se no ritmo conhecido de decomposição dos isótopos de carbono. É por meio da medição da decomposição de isótopos de Carbono 14 que é possível datar objetos de até 60 mil anos. Esse método de datação é muito útil para o arqueólogo, pois permite conhecer a idade de pedaços de carvão, madeira, ossos, fibras, conchas e sementes. O professor de Química pode realizar uma aula expositiva sobre o processo de decomposição de isótopos do Carbono 14, estimulando a turma a investigar quais os processos químicos envolvidos na decomposição dos isótopos de carbono e como podemos, por esse meio, datar restos orgânicos?

SAIBA MAIS ■ Livros FUNARI, Pedro Paulo A. e NOELLI, Francisco Silva. Pré-História do Brasil. Ed. Contexto, 2a. ed., São Paulo, 2005. FUNARI, Pedro Paulo e PELEGRINI, Sandra. Patrimônio Histórico e Cultural. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2006. FUNARI, Pedro Paulo, ORSER, Charles E. e SCHIAVETTO, Solange Nunes de Oliveira. Identidades, discurso e poder: estudos da Arqueologia Contemporânea. São Paulo, Annablume, 2005. NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2006. REIS, José Alberione.

Arqueologia dos Buracos de Bugre: uma pré-história do planalto meridional. EDUCS, Caxias do Sul, 2002. SCHIAVETTO, Solange Nunes de Oliveira. A Arqueologia Guarani, Construção e Desconstrução da Identidade Indígena. Annablume/Fapesp, São Paulo, 2003. GOMES,, Denise Maria Cavalcante. Cerâmica Arqueológica da Amazônia - Vasilhas da coleção Tapajônica do MAEUSP. Edusp, São Paulo, 2004. ■ Na internet Sobre a Arqueologia no Brasil: www.historiaehistoria.com.br www.mae.usp.br www.sabnet.com.br

US P/ P N AS

Há muitos sítios arqueológicos brasileiros que têm produzido novidades e que podem ser visitados, pessoalmente ou por meio da internet. São Raimundo Nonato, na Serra da Capivara, no Piauí, apresenta os vestígios do que podem ser os mais antigos habitantes do Brasil. Na região de Pedra Furada, a arqueóloga Niède Guidon encontrou fogueiras e pedras que podem ter sido trabalhadas pelo homem, com datações de 20 mil, 30 mil anos e algumas mesmo com 50 mil anos. Niède propõe que esses antigos habitantes tenham vindo pelo Pacífico, navegando de ilha em ilha, há mais de 70 mil anos. Em São Raimundo Nonato está a Fundação Museu do Homem Americano, um destino turístico-arqueológico de destaque que atrai brasileiros e estrangeiros. As riquezas da Pedra Furada podem ser visitadas virtualmente no site www.fundham.org.br. A Serra da Capivara é um patrimônio cultural da humanidade, segundo classificação da Unesco (http://whc.unesco. org/en/list/606). Outra preciosidade arqueológica brasileira são os sítios de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Conhecidos desde o século XIX, foi nas últimas décadas que os estudos sobre os esqueletos humanos de Lagoa Santa causaram uma grande sensação. Os estudos feitos pelo Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (http://www.ib.usp.br/leeh), do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo,

Os estudos da Pré-História, no entanto, podem servir para a libertação, para o respeito à diversidade e para a valorização da variedade de pontos de vista. Um passo importante, tanto no mundo como no Brasil, tem sido a inclusão das comunidades no estudo e interpretação dos vestígios pré-históricos. Assim como uma mulher como Anna Roosevelt pode perceber melhor a importância da mulher no passado, no presente e no futuro, indígenas podem mostrar que uma cachoeira pode ser, também, um lugar de culto. A maior inovação da arqueologia no Brasil, sem dúvida, é sua atuação como ciência engajada, preocupada com políticas públicas e, portanto, com a inclusão dos grupos sociais. Atuar com indígenas, por exemplo, significa olhar esse passado distante com outros olhos. Mais importante ainda é mostrar a relevância da Pré-História para nós, hoje. Se pode ter havido sociedades matriarcais no passado, a mulher não precisa estar submetida em nossos dias. Se houve conflitos nas sociedades antigas, podemos observar melhor as contradições sociais que vivenciamos. Ao olharmos para as belas pinturas rupestres, para os animais pintados, para os rituais ali retratados, não estaremos apenas a admirar o esplendor artístico de nossos antepassados, mas a compreender que o nosso país, com toda a sua imensa variedade cultural, não pode construir um futuro mais justo se não se voltar, também, para esse passado mais distante. ■

FONTE. Crânio da paleoíndia Luzia, que motivou novas hipóteses sobre o povoamento do Brasil Outro aspecto dos mais relevantes refere-se à diversidade ambiental e cultural. Um debate sobre a diversidade, a partir da Convenção da Unesco, permite discutir questões como estas: 1. A população brasileira tem múltiplas origens

étnicas e culturais: qual a contribuição da Pré-História para o conhecimento dessa diversidade? 2. Quais as contribuições indígenas para o nosso modo de vida, a partir dos artefatos que utilizamos, como a rede de dormir ou de um hábito como os banhos freqüentes?

CARTACAPITAL NA ESCOLA

39

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.