Do sistema de justiça ao cárcere: o patriarcado do Direito

July 1, 2017 | Autor: Marcelli Cipriani | Categoria: Criminology, Gender Studies, Prisons, Criminologia, Género, Prisão
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DO SISTEMA DE JUSTIÇA AO CÁRCERE: O PATRIARCADO DO DIREITO

Marcelli Cipriani1 Tamires Garcia2 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O sistema Jurídico como Sistema Patriarcal. 3. As mulheres e o Cárcere. 4. Conclusão. Referências Bibliográficas. RESUMO: O presente trabalho visa a analisar de que forma aspectos de gênero se apresentam no sistema de justiça brasileiro, repercutindo na vivência da população feminina encarcerada. Para tanto, se apresenta uma explanação geral acerca da incidência de fatores que recuperam a desigualdade entre homens e de mulheres no interior do Direito e, então, se aponta a presença de algumas dessas manifestações em instituições carcerárias. Pretende-se, com isso, tanto ressaltar a invisibilidade da situação de apenadas, quando destacar o ambiente prisional como sistema reprodutor de assimetrias sociais tradicionalmente constituídas a partir de corpos sexuados. Palavras-chave:Gênero. Sistema de Justiça. Prisões. ABSTRACT: This work aims to analyze how gender aspects are presented in the Brazilian justice system, reflecting in the experience of incarcerated female population. Therefore, it provides a general explanation about the incidence of factors that recover the inequality between men and women within the law, and then points the presence of some of these demonstrations in prison institutions. Thus, it is intended to highlight the invisibility of incarcerated women, and to point the prison environment as a reproductive system of social asymmetries traditionally based on sexed bodies. Keywords:Gender. Justice System. Prisons.

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Estudante de Ciências Jurídicas e Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC - PUCRS), coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional (PRISMAS PUCRS).

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Estudante de Ciências Jurídicas e Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista de Iniciação Científica PROBIC/FAPERGS. Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC - PUCRS), coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Integrante da Comissão de Combate à Opressão do DCE PUCRS (Gestão 2015).

1 INTRODUÇÃO São diversas as transformações observadas no sistema penitenciário brasileiro nos últimos anos. Dentre elas, provavelmente uma das explícitas seja a intensificação do encarceramento, que atualmente aloca o país como dotado da quarta maior população carcerária do mundo. Nesse sentido, de acordo com informações advindas do mais recente relatório do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), existia, em 2014, 607.731 indivíduos integrando a população prisional nacional – o que significa, em termos comparativos, um crescimento de 575% do número de sujeitos desprovidos de liberdade entre a década de 1990 e a data referida3. Inúmeros são os recortes possíveis à análise do fenômeno carcerário. Desde a elevada presença de presos provisórios nos estabelecimentos prisionais pátrios, até sua superlotação expressiva, a situação das prisões (com seus adendos quanto às instituições penais e de segurança pública) permanece sendo uma das questões mais complexas da realidade social brasileira. Tal imbróglio, assim, abre espaço à necessidade de investigações multifacetadas, posto que também é composto por uma sobrecarga de aspectos que não pode ser ignorada quando se enfocam seus objetos ou dimensões (CHIES, 2013), e considerando-se que se trata de um âmbito sobredeterminado, ou seja, atravessado por uma variedade de causas, bem como entabulado por questões historicamente percebíveis, que podem ser acompanhadas de uma multiplicidade de funções (GARLAND, 1990). Um desses fatores, que incidem na dinâmica das experiências penais e de segurança, usualmente afastado em sua relevância no interior de ambientes acadêmicos, é a influência de aspectos de gênero na temática em tela. Seja pelo número inferior de mulheres apenadas em relação a homens em mesma situação, seja pela tradicional invisibilização da mulher criminosa mediante a caracterização do delito como fenômeno relacionado ao essencialmente masculino – o que sustentou, durante muito tempo, a noção dos chamados “delitos de gênero”, como infanticídio, aborto, homicídios passionais, prostituição e furtos – “é consenso entre

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Para mais informações acerca do levantamento nacional de informações penitenciárias, desenvolvido pelo DEPEN e vinculado ao Ministério da Justiça, ver relatório disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2015.

os pesquisadores a falta de visibilidade das condições vividas pelas mulheres no sistema carcerário brasileiro” (ALVES e CORRÊA, 2009, p. 201). Entretanto, ainda que as mulheres permaneçam representando parte minoritária da população prisional pátria, sua captura pelo sistema penitenciário tem se adensado sensivelmente: segundo o Mapa do Encarceramento, vinculado à Secretaria Geral da Presidência da República e tornado público em 2015, entre os anos de 2005 e 2012 “o crescimento do número de mulheres presas superou o crescimento do número de homens presos: a população prisional masculina cresceu 70% em sete anos, e a população feminina cresceu 146% no mesmo período” (BRASIL, 2015, p. 29). Frente a isso, ressaltar de que forma as intersecções do gênero apresentam-se no cenário jurídico brasileiro, influindo nas condições materiais de mulheres encarceradas e atentando-se às particularidades enfrentadas pelas mesmas, representa uma maneira de exaltar a produção da existência em oposição à da não-existência, que ocorre “sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível” (SANTOS, 2004, p. 12). Assim, considerando-se o já exposto, o presente trabalho se ocupará do exame da influência de aspectos de gênero no sistema de justiça do país, especialmente mediante suas consequências nos âmbitos penais e penitenciário. Para tanto, se apresentará a influência do patriarcalismo jurídico na constituição do direito local para, então, apontar consequências promovidas pela imbricação desse marcador social da diferença no que abarca o cenário da prisão, destacando-se as microrreproduções da desigualdade entre homens e mulheres que se expressam nesses espaços, e que terminam por reproduzir aspectos de um sistema mais amplo que permanece, a despeito de visíveis avanços, legitimando a assimetria de poderes no que diz respeito a homens e mulheres. 2 O SISTEMA JURÍDICO COMO SISTEMA PATRIARCAL O tratamento diferenciado conferido às mulheres brasileiras no interior do ambiente carcerário apresenta-se de forma preocupante, já que remonta iniquidades tradicionalmente constituídas no seio comunitário como um todo. Nesse sentido, ainda que criticável mediante um recorte de gênero, a situação da população feminina no cárcere não surpreende, posto que também decorrente do atual sistema

de justiça no qual estamos inseridos – o qual, mesmo que regido pela noção da igualdade formal entre homens e mulheres, não impede a persistência fática de muitas formas de discriminação e de opressão vivenciadas pelas sujeitos de gênero feminino. Exemplo ilustrativo de tal ocorrência é o tardio reconhecimento ao direito de voto às mulheres, observável somente em 1932 no país – o que implicava que, antes disso, as mulheres não podiam votar ou ser votadas e, logo, não apenas tinham sua participação afastada da elaboração de leis, como também por elas não eram minimamente representadas (SABADELL, 2013). A despeito da distância temporal que abarca a introdução da mulher como sujeito da política representativa – o que abre espaço progressivo à sua participação institucional – mantêm-se resquícios do tardio reconhecimento feminino como passível da participação do espaço público, inclusive pelo exercício da cidadania que perpassa a prerrogativa do exercício do voto. Disso, temos que a participação da mulher no campo eleitoral e em cargos de elevado escalão permanece reduzida, ainda que com a implementação da lei de cotas eleitorais há quase 20 anos (PINTO, s/d), possuindo o país, segundo a União Interparlamentar (IPU), apenas cerca de 10% de deputadas e 13% de senadoras4. É possível pensarmos o espectro jurídico – que se imbrica, por óbvio, com a produção legislativa e produz consequências na vida material dos sujeitos de uma dada localidade – a partir da Teoria Feminista do Direito, a qual indica que este estaria imbuído de sexo, sendo determinado por um lógica dualista de pensamento a partir do qual se distingue aquilo que é tomado como bom e como ruim, o tido enquanto racional e irracional e o relegado à seara do ativo e do passivo, atribuindose as primeiras características elencadas ao sexo masculino. Ao mesmo tempo, aspectos como irracionalidade, sentimentalismo e passividade seriam relacionadas ao sexo feminino – o que entabula a afirmação de Sabadell (2013) sobre o Direito ser essencialmente masculino, por se apresentar enquanto sistema que se propõe a

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Para mais informações sobre a mulher no Parlamento brasileiro, ver Boletim Observa Gênero, promovido pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, vinculado à Secretaria de Políticas para Mulheres do governo federal. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2015.

ser democrático, racional e ativo e, na lógica por ele mesmo constituída, proteger os interesses masculinos. Tais assertivas vão ao encontro da noção de que o gênero seria “um elemento constitutivo de relações baseadas nas diferenças percebidas entre sexos” (SCOTT, 1995, p. 86), além de “uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). Isso significa dizer que “gênero” não apenas enfatiza o caráter fundamentalmente social das distinções feitas a partir de corpos sexuados, como também aponta o aspecto relacional entre os mesmos (como as usuais afirmações de que mulheres seriam “naturalmente” mais frágeis e dóceis, enquanto homens seriam mais agressivos e impositivos, dentre outros apontamentos possíveis). Como consequência de tanto, e enquanto constitutivo de relações de poder, é que o gênero permearia instituições, estruturas, práticas cotidianas, normas, redes de significados e rituais, os imbuindo de uma perspectiva que opõe o que deve ser feminino ou masculino, normalmente com estes aspectos alocando-se em pontos radicalmente opostos e profundamente desiguais. Ademais, destaca-se que o próprio histórico da normativa penal no Brasil revela que as mulheres sempre foram discriminadas na (e pela) elaboração das leis. O Código Penal de 1830 não abordava especificamente a prostituição, por exemplo, mas diferenciava as mulheres “boas” das “más”, o que adquire contornos mais explícitos quando se atesta que a pena de estupro era aplicada de forma distinta quando se falava em “mulheres honestas” ou em “mulheres públicas”. Além disso, os crimes de posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude só eram considerados consumados quando a vítima se tratasse de “mulher honesta”, redação que se manteve em vigor até o ano de 2004. Somente em 2005 o referido termo foi retirado do Código Penal, através da promulgação da Lei nº 11.106 (BARRETO, 2008). Destaca-se

que,

no

presente

trabalho,

ressaltar

algumas

redações

legislativas, assim como as formas como estas foram desenvolvidas no cenário brasileiro faz-se relevante tendo em vista que é possível perceber a criação de categorias que polarizavam as mulheres por um tratamento que as diferenciava enquanto sujeitos de direitos, já que algumas figuras criminais só se enquadravam no sistema penal quando a conduta fosse perpetrada contra “mulheres honestas”, podendo-se concluir, a partir disso, que nem todas eram dignas de ser destinatárias da proteção do estado. Diferentemente disso, os homens nunca foram submetidos a

uma classificação pela legislação, e somente as mulheres eram condicionadas a um julgamento em relação à sua “honestidade” (SABADELL, 2013). Disso se coloca que, ainda hoje, o sistema jurídico – apresentado, especialmente, por sua face penal – não julga os sujeitos de forma igualitária, mas seleciona autores e vítimas de maneira diferencial e de acordo com sua reputação pessoal (ANDRADE, 1997). No caso específico das mulheres, essa segmentação se dá, especialmente, de acordo com sua reputação sexual, com o estabelecimento de uma grande linha divisória entre as mulheres que se enquadram na moral sexual dominante, podendo ser consideradas vítimas pelo sistema, e aquelas que dela divergem “[...] (das quais a prostituta é o modelo radicalizado), [e] que o sistema abandona na medida em que não se adequam aos padrões de moralidade sexual impostas pelo patriarcalismo à mulher” (ANDRADE, 1997, p. 47). Poder-se-ia citar, de forma a corroborar o já trazido, outro fator vinculado ao julgamento moral imposto aos corpos femininos no interior das instituições judiciárias: se a mulher que sofreu violência “[...] usa álcool ou outra substância, ou se gosta de sexo, a violência é menos grave ou punível já que o comportamento da mulher justificaria a violência” (VILLELA et al., 2011, p. 119). Ainda, em caso de julgamentos de mulheres autoras de homicídios, as figuras que fogem da noção de “boa mãe” e, portanto, aquelas encaradas como desviantes, são tomadas como mais passíveis à punição (FACHINETTO, 2012). É preciso considerar-se as limitações inerentes à burocracia da atuação institucional sem esquecer-se do permanente patriarcalismo jurídico que marca os tratamentos dados às mulheres no âmbito do sistema de justiça brasileiro, ao ter como parâmetro de análise que as estruturas do direito são, além de masculinas, construídas para homens. Sendo o Judiciário uma estrutura institucional na qual as soluções de conflitos são guiadas por atores sociais, tem-se que o patriarcado se manifesta, dentre outras maneiras, nas formas de tratamento concedidas a cada processo, no atendimento efetuado pelos agentes sistema de segurança pública e nas formas de (des)acolhimento observáveis no sistema penitenciário, que marcam o predomínio de valores masculinos, fundamentados em relações de poder que são caracterizadas pela dominação do gênero feminino pelo masculino (SABADELL, 2013). Um fenômeno, neste âmbito, que precisa ser destacado é o já elucidado considerável menor número de mulheres privadas de liberdade em relação ao

número de homens. Ainda que sejam múltiplas as tentativas de explanação dessa questão, destaca-se a desenvolvida por Elena Larrauri, que propõe, em face de tal fato, a hipótese de que sobre a mulher recai um controle social diverso, que a autora denomina de controle social informal 5 , muito mais ocupado com suas condutas pessoais e com as expectativas que as mesmas despertam no contexto social (LARRAURI, 2008). Nessa esfera, faz-se necessário compreender a relação entre o aludido controle e a aplicação fática das penas, os atendimentos concedidos às mulheres e mesmo sua situação carcerária. Larrauri (2008) acredita que, social e moralmente, a mulher é cobrada por inúmeros papeis: o emprego da força de trabalho (doméstico e, eventualmente, de complementação de renda da família), uma suposta reprodução biológica coercitiva como mãe – o que se confunde mesmo com a naturalização de uma função social materna – e de cuidado doméstico e familiar como esposa e dona de casa. Todas essas vetoriais indicam a influência do patriarcado nos marcadores sociais impostos às mulheres, para que estas sigam determinados padrões e, dessa forma, não se envolvam em condutas que são consideradas transgressoras não só pela limitação legislativa, mas também pelo papel de mulher moralmente adequada para conviver em sociedade. Nesse sentido, percebe-se a construção do corpo feminino como corpo docilizado, aquele “[...] que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1977, p. 126). Frente a tanto, e havendo um contexto histórico-cultural no qual a mulher é inserida e imbuída a exercer esses papeis – frequentemente atribuídos, ainda que idealmente, ao espaço privado – é de se reconhecer que seria muito mais difícil participar ativamente da organização um grupo criminoso carregando filhos no colo, cozinhando ao pé de um fogão, lavando roupas na frente de um tanque e limpando janelas – o que, entretanto e por óbvio, não afasta a possibilidade de tal ocorrência, mas concede outros contornos para a própria dinâmica criminal feminina. Por tudo isso, que abre espaço à consideração das normas sociais e à cobrança de um imaginário comunitário à figura feminina em paralelo à normativa legal, a autora

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A autora explica: “utilizo la expresión ‘control informal’ para referirme a todas aquellas respuestas negativas que suscitam determinados comportamientos que vulneran normas sociales, que no cumplenlas expectativas de comportamento asociadas a um determinado género o rol. Estas respuestas negativas no están reguladas en um texto normativo, de ahí que se hable de sanciones informales” (LARRAURI, 2008, p. 01-2).

também destaca que as mulheres que têm maior probabilidade de ser privadas de liberdade são as não casadas, mais jovens e sem família (LARRAURI, 2008). Nesse sentido, compreende-se que os marcadores de gênero estão inseridos em estruturas institucionais que atuam como legitimadoras das relações de poder de corte patriarcal, as quais implicam um direito moderno que produz e reproduz essas relações de poder e de dominação. Em tal sistema, no qual a norma é pensada e construída considerando o perfil de mulher que se visa a tutelar e, assim, pautandose quais são as mulheres reconhecidas (e também as marginalizadas) pelo sistema jurídico (BUTLER, 2003), é inegável que se constitui um invólucro social de exclusão incapaz proporcionar formas de desenvolvimento social para as mulheres inseridas no sistema criminal. As assimetrias calcadas no gênero, para além de influenciar a seletividade penal das mulheres cooptadas pelo sistema carcerário e subdividir a categoria feminina mediante padrões de moralidade e de normalidade, igualmente incidirão, consoante se poderá perceber, no trato experimentado por aquelas que se encontram sob regime de privação de liberdade. Assim, as violências carcerárias, quando se expressam sob corpos femininos, remontam iniquidades como as já apontadas, se configurando enquanto microssistemas de invisibilidade das mulheres e reforçando a desigualdade social feminina como um todo. 3 AS MULHERES E O CÁRCERE A obliteração da mulher presa no Brasil foi tradicionalmente acompanhada de uma, conforme já explanado, construção do direito entabulada a partir de conceitos masculinos – tomando o homem como sujeito universal – e, assim, inserindo em seu fundamento distorções tipicamente androcêntricas (BARATTA, 1999). Em tal seara, não é de se surpreender a ausência de maiores preocupações para com a experiência no cárcere de mulheres recolhidas em regime de privação de liberdade, na medida em que “o sistema prisional foi criado por homens e para homens” (CERNEKA, 2009, p. 165). Nesse sentido, no país, ressalta-se que, consoante o mais recente diagnóstico nacional sobre mulheres encarceradas desenvolvido pelo Ministério da Justiça, em abril de 2008 havia 508 estabelecimentos penais contendo mulheres encarceradas. Destes, apenas 58 eram exclusivamente femininos, sendo todos os

demais compartilhados entre homens e mulheres 6 . Portanto, na ausência de unidades suficientes para o acolhimento da população feminina, assim como frente à falta de vagas naquelas que já existem, muitas mulheres são enviadas para presídios mistos, nas quais as prisões são tidas como masculinas “[...] não simplesmente por ter a presença de um número pequeno de encarceradas diante de uma massa carcerária composta de homens, mas porque ‘a medida de todas as coisas’ é o corpo masculino” (COLARES e CHIES, 2010, p. 410-11). Tal espectro – que se calca, por excelência, naquilo que é relacionado ao homem – implica violações, constrições e humilhações próprias para essas apenadas, usualmente tomadas como meros lócus de sexualidade e de servidão. Se, por um lado, às mulheres casadas é resguardada a possibilidade de afastamento por parte de outros homens, já que as regras do “proceder”7 masculino no cárcere impõem o respeito àquela que possui um companheiro, as que estão solteiras se encontram sujeitas a inúmeros assédios, com seu comportamento sendo condicionado a uma sexualização orientada para o viril, da qual decorre a satisfação dos desejos masculinos no interior desse padrão (COLARES e CHIES, 2010). Em tal cenário, percebe-se que a condição de menor vulnerabilidade (representada pela segurança de não ser vitimada por assédios) não diz respeito à estima para com a mulher, mas sim à consideração face seu companheiro – o que é respaldado pelo fato de que o mero afastamento da relação abra espaço a plurais manifestações de violência. No entanto, para as que são alocadas em espaços propriamente femininos, a questão de gênero também incide: até a menos de uma década atrás, por exemplo, os presídios sul-rio-grandenses não continham em suas listas de produtos autorizados (a ser levados por eventuais visitantes) calcinhas, sutiãs e absorventes, ainda que a permissão da entrada de cuecas, obviamente, estivesse prevista (CERNEKA,

2009,

p.

165).

Ademais,

as

particularidades

femininas

são

reiteradamente desconsideradas em muitos estabelecimentos – os quais olvidam suas necessidades de exames pré-natais, quando grávidas, e de Papanicolau, que 6

Para mais informações acerca do diagnóstico nacional sobre mulheres encarceradas, vinculado ao Ministério da Justiça, ver relatório disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2015. 7 O “proceder” diz respeito, em termos simplificados, aos regramentos e às etiquetas prisionais. Para maiores informações sobre o “proceder” nas prisões, ver: MARQUES, 2009.

precisa ser feito uma vez ao ano em mulheres com vida sexualmente ativa, como forma de prevenir o câncer do colo de útero (QUEIROZ, 2015). A questão relacionada à saúde é ainda dificultada por as mulheres apresentarem maiores problemas de saúde física e mental quando desprovidas de liberdade – e, dado que muitos estabelecimentos não possuem médicos o suficiente, estas frequentemente sofrem com o abandono institucional também quanto à sua integridade (CERNEKA, 2009). Adicionalmente, destaca-se que o abandono de mulheres recolhidas em penitenciárias apresenta-se de forma sistêmica: quase três quartos das apenadas do país declaram-se solteiras, viúvas ou separadas, lidando sozinhas com a manutenção da casa ou da família – o que se alia à hipótese de Larrauri (2008), anteriormente referida. Ainda, enquanto 90% dos casais que têm a figura paterna em situação carcerária mantêm seus filhos sob a guarda da mãe, apenas 20% das crianças ficam sob os cuidados do pai quando a mãe adentra o sistema prisional – o que, caso as mesmas sejam destinadas a abrigos ou a outras instituições, ainda impõe maiores dificuldades às mulheres, considerando-se que as egressas precisam provar renda e uma casa para retomarem a guarda de seus filhos (CERNEKA, 2009). Esses dados vão ao encontro do trazido por Biondi (2009) que, ao desempenhar trabalho de campo em filas de visitação de apenados em estabelecimentos paulistas, ressalta que as mesmas são majoritariamente femininas, e que muitas dessas mulheres, que chegam a se dirigir aos presídios nas vésperas dos dias de visita, “[...] dormem em colchões, dentro de seus carros, em barracas armadas ao longo das calçadas ou embaixo do viaduto, do outro lado da rua” (BIONDI, 2009, p. 13). Ainda, estão de acordo com a busca, efetuada por muitas mulheres presas em estabelecimentos mistos, por um parceiro que divida o ambiente consigo, o que serve como estratégia para suprir as carências materiais geradas pelo abandono familiar. Isso se dá não apenas porque a condição econômica de homens presos é usualmente mais elevada, mas também por estes “[...] serem mais assistidos (menos abandonados) pelos seus grupos externos” (COLARES e CHIES, 2010, p. 418). Nesse sentido: [...] o ato de amor é, da parte da mulher, um serviço que presta ao homem; ele toma seu prazer e deve em troca alguma compensação.

O corpo da mulher é um objeto que se compra; para ela, representa um capital que ela se acha autorizada a explorar (BEAUVOIR, 1980, p. 170).

Em adição, é necessário considerar-se as diferenças calcadas em corpos sexuados quanto as normas relativas à visita íntima – que, para mulheres, são restritas e dependem de inúmeros entraves moralistas, aspecto que se apresenta como discriminação institucionalizada de gênero (BORGES e COLOMBAROLI, 2011). Assim, não apenas homens encarcerados possuem essa prerrogativa garantida administrativamente por intermédio das unidades prisionais, podendo dela fruir após o mero preenchimento de requisitos variados (como agendamento e apresentação de documentos), como, em presídios mistos: [...] as visitas íntimas ocorrem, via de regra, nas celas dos homens; exceção apenas quando o marido é um homem livre e casado legalmente, situação que implica a utilização da cela da esposa, denotando que a sexualidade feminina das casadas deve se expressar no espaço análogo ao ambiente doméstico (COLARES e CHIES, 2009, p. 418).

Já no caso de mulheres em estabelecimentos exclusivamente femininos, a mesma questão é tratada de forma diferente: além de ser encarada como espécie de benesse conferida pelo estabelecimento prisional – e não como direito assegurado – se demanda o atendimento a uma pluralidade de fatores calcados na normativa sexual feminina: [como a] exigência de comprovação da relação de convivência; restrição a visitas íntimas de pessoas de sexos opostos, institucionalizando a homofobia no sistema penitenciário; imposição de estágio de observação, findo o qual o direito à visita é ‘dado’ como ‘recompensa’ pelo ‘bom comportamento’, etc.) (COLOMBAROLI, 2013, s/p).

Frente a todo o exposto, percebe-se que a dinâmica carcerária, quando confrontada com recortes de gênero, engendra dois movimentos paralelos, aparentemente opostos. Um deles se refere à equalização do tratamento de mulheres e de homens, encarando-os de forma semelhante (QUEIROZ, 2015), o que tem como consequência a precarização da vida material de apenadas, abandonadas no que tange às suas particularidades de gênero, como as referentes a necessidades de saúde e a implicações maternais, por exemplo. Por sua vez, o

outro diz respeito à diferenciação dos corpos femininos e masculinos no interior dos presídios, o que implica, dentre outros fatores, a objetificação de mulheres em unidades mistas – comumente sujeitas a assédios – e as restrições institucionais relativas às visitas íntimas. 4 CONCLUSÃO Pensar um sistema de justiça sem analisar as complexas associações existentes entre os regulamentos, as práticas jurídicas e a posição da mulher no (e através do) direito nos leva a ignorar uma parte significativa dessas mesmas conexões, que reverberam na facticidade das experiências de mulheres afetadas pelos tratamentos divergentes que são causados pelos marcadores de gênero e de sexualidade. O cárcere, nesse contexto, se mostra como mais uma estrutura institucional que sustenta, produz e reproduz uma lógica patriarcal, condicionando apenadas femininas a tratamentos desiguais e excludentes, o que muitas vezes acaba por violar seus direitos e garantias individuais. Ainda que os presídios brasileiros sejam espaços, em termos gerais e por excelência, violentos, é relevante a percepção de que algumas dessas manifestações de violência são agravadas, para as mulheres, simplesmente por as mesmas serem mulheres – como a partir de diferenciações morais específicas, ou da objetivação e hipersexualização dos corpos femininos. Em sentido mais amplo, é necessário tecermos críticas a ideologias que colocam o direito como um instrumento de igualdade, considerando que, apesar de serem inegáveis os avanços no que diz respeito à representatividade, à posição e ao tratamento material das mulheres no sistema de justiça nos últimos anos, não há como se reconhecer que exista, de fato, um “verdadeiro direito humano sem distinção entre homens e mulheres” (SABADELL, 2013, p. 237). Isso se dá na medida em que o suposto fenômeno de uma igualdade universal de tratamento entre homens e mulheres no sistema de justiça jamais será possível em sociedades patriarcais, onde existe, de plano e como aspecto amplamente naturalizado, um marco misógino inserido culturalmente e imbricado em cada relação decorrente desse ambiente. Sendo assim, pensar quais situações de desigual tratamento se dão no interior dos presídios – o que também decorre, como colocado, de um Direito

androcêntrico – como a dificultosa visitação íntima ou as especificidades que dizem respeito a materiais de higiene, deve ser um exercício que compreenda tais ocorrências – dentre tantas outras – como relacionadas a um fenômeno macroestrutural, que não produz atos isolados ou aleatórios, mas que tem como consequência inúmeras manifestações que remontam seu mesmo alicerce. Portanto, para além de apontamentos como os aludidos, faz-se também relevante a problematização sistemática de disposições, práticas, discursos e normas sociais mais gerais de uma sociedade que, na atualidade, permanece constituída sob valores que legitimam, frequentemente, assimetrias calcadas no gênero – que se manifestam, por óbvio, do sistema de justiça ao cárcere.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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