Do Tema/Objeto ao problema, passo-a-passo

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Este texto foi redigido a pedido, em 2003, como parte do material de apoio disponibilizado no website do PPG de Ciências da Comunicação da Unisinos.

Do Tema/Objeto ao problema, passo-a-passo Suely Fragoso Sejamos realistas: a maioria dos candidatos a uma vaga de mestrado ou doutorado não tem idéia do que os programas de pós-graduação esperam receber quando solicitam a apresentação de um 'projeto de pesquisa'. Eu mesma, ao tentar uma vaga para o mestrado, não sabia por onde começar a escrever o tal projeto – e olhe que eu dispunha da rara vantagem de ter 'alguma idéia' do que constituía uma pesquisa, já que fui privilegiada com duas experiências de iniciação científica durante diferentes cursos de graduação. Este texto pretende auxiliar eventuais candidatos ao mestrado ou doutorado a ultrapassar as barreiras iniciais e dar início à formulação de um projeto de pesquisa 'de verdade'. Comecemos pelos casos mais freqüentes, que corresponderiam a patamares aos quais vou dar os nomes provisórios de 'TCG' e 'Tema ou Objeto'. 1. TCG Diante da necessidade de redigir um projeto de pesquisa para ingressar no Mestrado, uma saída que ocorre a quase todo mundo é retomar o próprio Trabalho de Conclusão da Graduação (TCG) e enviá-lo como uma proposta nova. Para os candidatos a Doutorado, vale o mesmo raciocínio – apenas o que se redige tende a ser uma reproposição da Dissertação de Mestrado e não do Trabalho de Conclusão. Apesar de que não se poderia chamar de 'boa fé' propor uma pesquisa que já foi feita, alguns candidatos realmente não o fazem com má intenção: de fato acreditam que estão propondo avançar o conhecimento adquirido no TCG (ou na Dissertação) e não apenas repetir a receita. Com honrosas exceções, no entanto, o resultado costuma ser um projeto de mera reedição da pesquisa já realizada e que, apesar das esperanças de seu autor, não aponta para maiores conquistas. Para o aluno, esse tipo de projeto pode parecer perfeito: está tudo lá, no lugar certinho, sem maiores dúvidas, sem contradições, começo, meio e fim. Fechadinho. Para os olhos de uma banca examinadora minimamente experiente (e ninguém chega a fazer parte da banca de seleção de um programa de pós-graduação sem experiência) esse mesmo caráter 'resolvido' indica que se trata de uma 'pseudo-proposta' e que, caso aceito, aquele candidato terá que construir um outro projeto de pesquisa porque o atual não o levará muito longe. Evidentemente, um projeto de Mestrado ou Doutorado pode muito bem ser inspirado em um TCG ou Dissertação, mas não pode se limitar a repetir o que já foi feito. Ciente disso, o candidato que pretenda dar continuidade ao seu TCG ou Dissertação estará em situação bastante similar ao 'meio do caminho' do outro patamar mencionado no início deste texto, o do 'Tema ou Objeto'. Mas voltemos um pouco para o início para discutir essa outra situação desde seus prováveis pontos de partida. 2. Tema e/ou Objeto Bastante lúcido é o candidato que compreende a solicitação de um projeto de pesquisa como uma declaração de 'intenção de vínculo'. Trata-se, de fato, de fazer opções que deverão permanecer para além da mera aprovação para o programa de pós-graduação: apesar de que o projeto apresentado por ocasião do ingresso no curso raramente é o mesmo com que o aluno chega ao final, é através do projeto inicial que o candidato sinaliza seus interesses para os possíveis orientadores. O primeiro movimento em direção a um projeto de pesquisa com boas chances de sobrevivência 1

Este texto foi redigido a pedido, em 2003, como parte do material de apoio disponibilizado no website do PPG de Ciências da Comunicação da Unisinos.

consiste, portanto, em refletir sobre a seguinte pergunta: 1. O que é o que é... que lhe interessa o suficiente para que você ache boa a idéia de passar os próximos dois anos (ou quatro, no caso do Doutorado) pensando a respeito? Não é exagero: uma pesquisa começa pela escolha de dedicar os próximos dois (ou quatro) anos a uma curiosidade, uma dúvida, uma paixão. Entre tanto ler e pensar sobre seu tema, mais cedo ou mais tarde todo pós-graduando acaba brigando com alguém por causa da pesquisa, sonhando ou tendo pesadelos com seu trabalho. Chorar quando todas as hipóteses iniciais vão para o espaço é bem mais comum do que se imagina. No entanto, quando a pesquisa é mesmo a sua praia, nada é mais entusiasmante do que reconstruir as hipóteses e começar tudo de novo, quantas vezes for preciso, só para saber mais, para ir mais longe, para entender melhor. Pensando sobre o que é que a gente gosta tanto assim, chega-se (comumente) a um entre dois tipos de resposta: um Tema ou um Objeto. Para decidir qual será, entre as milhares de possibilidades, o tema/objeto da sua futura pesquisa, ou pelo menos aquele com o qual você gostaria de se fazer representar perante os possíveis orientadores, só há um jeito: a auto-reflexão. As perguntas básicas são sempre decisivas e sempre muito difíceis de responder: Do que você gosta? Sobre qual tema já se pegou pensando (com algum viés acadêmico) gratuitamente, sem que ninguém pedisse? Do que tratavam as aulas da graduação ou mestrado das quais você se lembra com mais prazer? A busca do Tema/Objeto é individual, mas vale buscar ajuda nos amigos, nos livros, nos ex-professores. É muito importante consultar e buscar inspiração nas ementas das áreas de concentração, linhas de pesquisa e disciplinas do programa de pós-graduação para o qual o projeto está sendo elaborado – afinal, é preciso casar o que o candidato gostaria de fazer e o que é possível fazer em um determinado curso e instituição. Também é importante olhar as publicações dos orientadores em potencial, conhecer seus interesses, ler os textos que eles escreveram e os que estão em suas bibliografias, ou seja, aqueles que eles mesmos leram. Aqui, é importante destacar que não se deve fechar as portas em um só nome, nem escrever o projeto tentando acertar o que o orientador preferido quer ouvir. Esse é o tipo de 'esperteza' que sai pela culatra, de um modo ou de outro. Na maior parte das vezes, os candidatos erram, e erram feio: acabam dizendo a última coisa que deviam e desagradando o pesquisador escolhido. Além disso, podem afastar outros possíveis orientadores, que talvez fossem mais adequados. Mesmo quando 'dá certo' e termina em aprovação, essa estratégia de dizer o que o outro quer ouvir será o primeiro passo de um calvário de anos carregando essas escolhas falsas (e suas consequências). Voltemos para os caminhos que levam ao sucesso: esforços genuínos pela identificação dos próprios interesses geralmente resultam em um tema bastante genérico, sobre o qual parece que valerá a pena debruçar-se nas futuras noites em claro como aluno de pós-graduação (que ninguém me acuse de ter feito parecer que era fácil!). Nesse ponto, os candidatos que 'começaram do zero' e os que haviam resolvido continuar o percurso do TCG ou Dissertação encontram-se no mesmo patamar. Como prosseguir? 3. Além do Tema/Objeto Quando, depois de muito pensar, o candidato-pesquisador ultrapassou a fase um e agora sabe qual é o tema (genérico) sobre o qual quer fazer o projeto de Mestrado ou Doutorado, é hora de dar o segundo passo. Este é um pouco mais fácil (talvez seja realista dizer que é menos difícil): o desafio 2

Este texto foi redigido a pedido, em 2003, como parte do material de apoio disponibilizado no website do PPG de Ciências da Comunicação da Unisinos.

agora é escrever em poucas palavras e com clareza qual é o Tema ou Objeto de pesquisa escolhido. Alguns exemplos típicos podem ajudar a compreender o que eu quero dizer com 'um assunto ainda genérico' e 'poucas palavras, com clareza': Os sites de leilão na Internet As revistas brasileiras para mulheres O programa de rádio que a empregada da prima da minha mãe ouve pela manhã As fotografias da primeira página dos jornais de grande circulação De posse de uma descrição sucinta e imprecisa, como as transcritas acima, já é possível começar efetivamente o trabalho: o terceiro passo é 'afinar' esse interesse amplo para que seja possível problematizá-lo e construir um verdadeiro projeto de pesquisa. (Que ninguém se iluda: não será possível formular perguntas inteligentes sobre o tema/objeto sem aproximar o foco). É hora da segunda pergunta: 2. O que é que torna esse tema/objeto particularmente interessante (para você)? Um bom truque para encontrar uma resposta para a questão acima é pensar no que o tema ou objeto escolhido tem de diferente (e de igual) em relação a outros, semelhantes a ele. Por exemplo, se o Objeto fosse o programa de rádio que a empregada da prima da sua mãe ouve pela manhã, o caminho seria perguntar-se porque esse programa e não algum outro, que o próprio candidato ouve todos os dias, ou porque estudar um programa de rádio e não de TV, etc. Assim, na mesma linha, o processo para encontrar os focos dos temas anteriores poderia começar com perguntas como: por que os sites de leilão na Internet e não os anúncios classificados? Por que as revistas para mulheres e não para homens? As respostas a essas perguntas dificilmente poderão ser expressas de maneira tão sucinta quanto a descrição dos temas. Não há como explicar 'porque as fotografias e não as tipografias' em 140 caracteres. As respostas precisam ser claras, bem estruturadas, objetivas, mas já tomarão algumas linhas – e eis aí as primeiras palavras do projeto de pesquisa! (Essas não serão necessariamente as palavras que o leitor verá primeiro, mas as primeiras que o autor do projeto está escrevendo e que já podem ser consideradas parte do projeto). Tendo chegado a uma elaboração (e redação) que o satisfaz, o candidato-pesquisador pode passar para a terceira fase, respondendo:

3. O que você já sabe sobre esse Tema ou Objeto? O maior perigo aqui é enveredar por caminhos que levem para longe do foco de interesse localizado nas etapas anteriores. A resposta para a pergunta 2 (aquela bem curtinha) deve estar sempre no horizonte, como referência. Sem perdê-la de vista, pode-se escrever em itens as coisas que parecem mais importantes sobre o tema ou objeto escolhido (por exemplo: as capas das revistas femininas são retratos de mulheres jovens, as primeiras páginas dos grandes jornais têm fotos coloridas em lugar de destaque, os sites de leilões na internet são mal projetados mas são muito utilizados). 3

Este texto foi redigido a pedido, em 2003, como parte do material de apoio disponibilizado no website do PPG de Ciências da Comunicação da Unisinos.

Definidos os itens, é hora de estender-se um pouquinho sobre cada um deles: vale notar que, por incrível que pareça, para escrever com alguma consistência sobre o que já se sabe, será necessário consultar algumas fontes e referências. Afinal, não se trata de escrever sobre o que se pensa, acha, gostaria, mas sobre o que se sabe a respeito daquele Tema ou Objeto. Vencer essa etapa é uma questão de dedicação e esforço – é normal que o processo seja um pouco chato, mas se for insuportável, é hora ligar o sinal de alerta e lembrar-se que o pós-graduação requer horas e hjoras procurando referências, noites em claro revisando dados e reescrevendo análises, pular da cama no meio da noite para escrever o insight que interrompeu o melhor dos sonos. Feito com o devido cuidado, o conjunto das descrições e explicações de cada um dos itens assinalados deve equivaler, ao final do processo, a uma razoável introdução ao Tema ou Objeto. A próxima fase é crucial e um tanto difícil – embora pareça muito simples. A pergunta-chave é: 4. O que você NÃO sabe – e gostaria de saber – sobre esse Tema ou Objeto? O maior empecilho para encontrar a resposta a essa pergunta vem da crença generalizada de que o trabalho de pesquisa significa demonstrar (espera-se que cientificamente) as coisas nas quais a gente acredita. Nada disso – para escrever um projeto 'de peso' é preciso superar a expectativa de fazer uma 'profissão de fé' reafirmando crenças. Não se trata de apostar na alternativa verdadeira, de ter 'acertado' a hipótese. Uma pesquisa de sucesso não culmina necessariamente em c.q.d. (como queríamos demonstrar), mas em conhecimento novo: pesquisar de verdade é descobrir o que não é sabido, não demonstrar aquilo em que se acredita. Para os menos prevenidos, a idéia de registrar num projeto de pesquisa que não sabe uma determinada coisa é pura insanidade: como é que vão aceitar para o Mestrado (ou Doutorado) um candidato que já de cara entrega de bandeja o quanto não sabe? No entanto, a capacidade de reconhecer o que não sabe é um indicador fundamental de que um candidato tem 'espírito científico', e estará disposto a aprender ao longo do curso, a mudar seu percurso tantas vezes quantas for necessario. Um pesquisador precisa ter maturidade e coragem para enxergar o que a pesquisa vier a revelar (sem nunca a forçar a barra para estar certo, provar o que lhe convém). Finalmente, é bom lembrar que este texto tem como objetivo ajudar as pessoas a darem a largada em seus projetos para seleção de pós-graduação (Mestrado ou Doutorado). Pode ajudar também na redação dos projetos de TCG. É evidente que seguir o passo-a-passo não resultará em um projeto pronto. No entanto, sem pular etapas e resistindo à tentação de deixar de fora a pergunta quatro, o percurso deve apoiar o candidato a chegar com toda a munição necessária ao ponto crucial do processo: a problematização.

São Leopoldo, 01/09/2003 [revisado e atualizado em 04/11/2015]

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