Do Ventre ao Corpo: considerações sobre corporeidade, dança do ventre e gênero

June 13, 2017 | Autor: C. Nepomuceno Xavier | Categoria: Género, Dança do Ventre, Corporeidade
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Do Ventre ao Corpo: considerações sobre corporeidade, dança do ventre e gênero Cínthia Nepomuceno Xavier1 Roberta K. Matsumoto2 É interessante notar a curiosidade que a dança do ventre suscita a respeito de sua presença em um contexto onde, muitas vezes, limitações severas são impostas à conduta sexual. Sabe-se que essa manifestação artística está relacionada à cultura árabe, que é apontada, pelo senso comum, como uma cultura misógina que oprime e regula as mulheres, em especial as muçulmanas, impedindo-as de atuar livremente, cobrindo com véus seus cabelos, rostos e corpos (LOPES & SÁ, 1997: p.87). Não se deve esquecer, porém, que a prática dessa dança pode existir em um país como a Grécia, que possui outras características culturais e religiosas (MOURA, 2001: p.44). Apesar de serem poucos os registros históricos sobre dança do ventre, há um consenso entre os artistas envolvidos nessa prática, de que suas raízes são pré-islâmicas. As mulheres árabes desempenharam papéis importantes “na sociedade tribal daqueles dias” ocupando lugares proeminentes “na literatura, cultura, amor e sexo e na vida econômica de seu povo” (SAADAWI, 2002: p.183). A participação das mulheres na vida econômica, ao lado dos homens, no período pré-islâmico, lhes propiciava independência dentro e fora do lar, incluindo a liberdade para escolher seus maridos. “Antes do Islã, costumava até acontecer que uma mulher praticasse a poliandria e desposasse mais de um homem”, num regime chamado zawag el mosharaka, que significa “o casamento compartilhado” (p.186). Num contexto como esse, o surgimento da dança do ventre não causa tanto estranhamento. Sua resistência durante tantos anos após o advento do Islã é uma questão que fica pendente.

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Cínthia Nepomuceno é Mestranda em Artes pela UnB, Bacharel e Licenciada em Dança pela UNICAMP, bailarina profissional e professora de dança. Atuou como docente na Universidade Católica de Brasília, ministrando aulas de dança contemporânea em curso de extensão. É coreógrafa e diretora da cia Aiua! Tribo de Dança, em Brasília, que teve uma obra premiada pelo projeto Bienal Sesc de Dança de Santos – SP, em 1998. 2 Doutorado em Documentaire Ethnographique na Universite de Paris X (França). Mestrado em: Cinéma Télévision Audiovisuel Documentaire Ethnogr, Université de Paris X (França); Comunicação e Semiótica, PUC-SP (Brasil). Graduação em Comunicação Social Jornalismo. 1999-2004: professora do Departamento de Artes Cênicas e da Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

Dança do ventre é um termo da língua portuguesa utilizado para caracterizar e definir um conjunto de danças que, em seus países de origem possuem outros nomes como, por exemplo, cifte telli, na Grécia, que significa “ritmo turco” e raqs shaqê, no Egito, que significa “dança do leste” (LA REGINA, 1998: p.11). A dificuldade em se estabelecer uma trajetória histórica para essa dança, deve-se tanto às controvérsias apresentadas nos textos escritos sobre o assunto, que são em sua maioria manuais para a prática ou biografias de bailarinas desse estilo, quanto à escassez de estudos acadêmicos que a contemplem. Dança, enquanto manifestação cultural, tem sido um tema pouco considerado por estudiosos que se interessam pelas atividades humanas. Paul Spencer, no prefácio de seu livro Society and the Dance (1985), aponta a negligência dos antropólogos, que exploram tópicos como a linguagem corporal, experiências religiosas, oposição sexual e interação simbólica, sem imprimir à dança o papel significativo que ela exerce no contexto social. Embora se possa perceber atualmente um esforço crescente no sentido de inserir a dança no âmbito dos estudos das ciências humanas e das artes, as abordagens realizadas mais freqüentemente no Brasil, focalizam o ballet clássico, as danças moderna e contemporânea e danças populares e tradicionais advindas, em sua maioria, direta ou indiretamente, do continente africano. As danças árabes são reportadas apenas superficialmente e ainda de modo fragmentado. Maria Izilda S. de Matos utiliza o termo “invisibilidade feminina” ao se referir às dificuldades enfrentadas por historiadores desde a década de 1970 para registrar dados sobre as mulheres (2000: p.7). Pode-se pensar a escassez de pesquisas sobre a dança do ventre em termos de uma “invisibilidade acadêmica” que parece persistir a despeito da expansão dos estudos de gênero e das abordagens sobre dança em geral. Mesmo em livros que tratam questões específicas das mulheres árabes e da opressão feminina são raros os trechos que remetem à dança. No livro A Face Oculta de Eva: as mulheres do mundo árabe (2002), Nawal El Saadawi descreve diversos aspectos das vidas de mulheres árabes. Entretanto, em todo o livro, encontramos apenas uma passagem, no capítulo intitulado “Amor e Sexo na Vida dos Árabes”, referente à dança: “As mulheres árabes, por sua vez, são retratadas retorcendo-se e girando em danças serpentinas ostentando seus ventres nus e agitando seus quadris, seduzindo os homens com a promessa de misteriosas paixões.

Esta é a imagem jocosa, reticente e integrante tirada dos palácios de As Mil e Uma Noites e das escravas do Califa, Haroun El Rashid” (p.194).

De fato, a autora não reflete sobre a dança, mas utiliza-se desta para exemplificar como as mídias ocidentais representam as mulheres. Apesar disso e da brevidade do trecho, compreende-se que os meios de comunicação ocidentais têm se apropriado das representações da dança feminina no sentido de cristalizar a imagem da mulher árabe como objeto sexual. Esse equívoco costuma acontecer freqüentemente. Ao longo de minha experiência como professora e dançarina do ventre pude, diversas vezes, observar as bailarinas sendo abordadas durante suas apresentações. Pouco estudada, a dança do ventre permite levantar uma série de questões diretamente relacionadas à dança ou não. Uma delas, que parece ser fundamental, refere-se à contradição existente entre as representações da mulher árabe como objeto de opressão e também de desejo. No trabalho, aqui apresentado, não se pretende esclarecer essa contradição, mas procura-se simplesmente apontar, a partir de uma reflexão sobre corporeidade, dança (do ventre) e gênero, alguns caminhos possíveis para sua compreensão.

O interesse sobre corpo parece ser crescente na contemporaneidade. Nos últimos quarenta anos do século XX as descobertas do corpo tornaram-se inusitadamente importantes. Essa voga corporal favoreceu a criação de uma “antropologia da expressão corporal” e de uma “sociologia do corpo”, como aponta Denise Sant’Anna em seu artigo “Descobertas do Corpo” (2000). Sobre esse mesmo interesse, Kátia Moura, em sua dissertação de mestrado, coloca: “Nunca se falou tanto em corpo quanto em nossos dias. A todo momento, em todas as mídias e no cotidiano, o corpo é objeto de estudos, adoração, culto, apreciação, depreciação, fragmentação e observação. Em todos os veículos, o tema encontra espaço específico para discussão e debate” (2001: p.5).

No artigo “Corpos Reconfigurados” (2000), Elizabeth Grosz afirma que o corpo é “um ponto cego conceitual” na teoria feminista contemporânea e no pensamento filosófico ocidental, onde o sujeito humano aparece dividido entre a mente e o corpo, com uma polarização que torna a mente privilegiada e o corpo algo negativo (p.47). Esse tipo de

desvalorização pode ser uma das causas de a dança, como arte corporal e área de conhecimento, ter sido uma disciplina incorporada tardiamente aos currículos universitários, permanecendo ausente dos quadros da Universidade de Brasília e da maioria das universidades brasileiras ainda em 2004. Reconhecendo que o papel do corpo foi amplamente discutido por praticamente todos os estudiosos importantes da história da filosofia, Grosz ressalta que essas discussões não conseguiram sair da estreiteza de conceitos problemáticos e dicotômicos. Além da divisão corpo e mente, há a correlação com a oposição homem e mulher, na qual o homem pode ser relacionado à mente e a mulher ao corpo. Esse tipo de pensamento agrega à mulher o conteúdo negativo associado ao corpo (p.49-50). Diz, ainda, que na filosofia o corpo: “[...] é entendido em termos que tentam minimizar ou ignorar completamente seu papel formativo na produção de valores filosóficos – verdade, conhecimento, justiça, etc. Acima de tudo, a especificidade sexual do corpo e as maneiras pelas quais a diferença sexual produz ou afeta a verdade, o conhecimento, a justiça, etc., nunca foi pensada. O papel do corpo masculino específico como corpo produtivo de um certo tipo de conhecimento (objetivo, verificável, causal, quantificável) nunca foi teorizado” (p.51 - parênteses da autora).

Assim, também o corpo da mulher não está inscrito no discurso como agente da produção de conhecimento e, como efeito disso, danças de caráter feminino talvez nunca tenham sido pensadas em termos de área do saber. Quando as teorias feministas aceitam esses conceitos filosóficos acerca da corporeidade, reforçam a opressão das mulheres, por compactuar com a desvalorização social do corpo (p.51-67). Assim, aspectos práticos como a dança se arriscam a ficar no obscurantismo, porque lidam diretamente com questões sobre o corpo. A partir da visão de Elizabeth Grosz sobre a relação entre corpo e a teoria feminista, podem ser traçados paralelos que desenvolvam uma primeira tentativa de fazer uma aproximação analógica entre a teoria feminista e algumas linguagens de dança. Essa visão, apresentada sem a intenção de ser definitiva ou rígida, se divide em três categorias que contém conjuntos de posicionamentos abstratos ou possibilidades. A primeira categoria é denominada feminismo igualitário. Inclui as feministas liberais, conservadoras e humanistas e algumas eco-feministas, dentre as quais destacam-se Simone de Beuvoir, Shulamith Firestone e Mary Wollstonecraft. Para essa categoria o

corpo feminino, com suas especificidades, pode ser visto tanto como um empecilho aos direitos e privilégios concedidos aos homens pela cultura patriarcal, quanto o único meio de acessar modos de vida e conhecimentos. Essa categoria parece acreditar que o corpo da mulher limita sua capacidade para a igualdade. Como saída para a opressão feminina, essas feministas sugerem modificações e transformações que eliminem os efeitos biológicos da reprodução (GROSZ, 2000: p.70-2). Esse pensamento se aproxima das concepções de corpo adotadas pelo ballet clássico, que desenvolve treinamentos ostensivos para superar as limitações físicas do corpo, numa luta constante entre o ideal de corpo para a performance contra os obstáculos biológicos. Esse treinamento é praticado por homens e mulheres, mas reconhece-se que o padrão firmado por George Balanchine, em meados do século XX, foi definido por causa de uma grande competição entre as profissionais de dança daquele período. Assim, a mulher é mais duramente atingida por um padrão que é o “da bailarina magra, de linhas elegantes e definidas, leve, frágil, delicada” (MOURA, 2001: p.110). A segunda categoria, construcionismo social, é formada por grande parte das teóricas feministas da contemporaneidade, das quais cita “Julia Kristeva, Michèlle Barret, Nancy Chodorow, as feministas marxistas, as feministas psicanalistas, e todas aquelas envolvidas com a noção de construção social da subjetividade” (GROSZ, 2000: p.73). O corpo aqui se apresenta como uma forma de representação, um organismo que funciona biologicamente e distingue socialmente o feminino e o masculino. Esse grupo se diferencia do anterior por objetivar a atribuição de outros valores a esse corpo e sua biologia, em vez de propor a superação do corpo ou do determinismo biológico, acredita que a opressão feminina é fruto do modo como o sistema social ordena e significa a biologia (p.73-5). Essa categoria poderia conter os esforços de Isadora Duncan que, ao rejeitar os padrões estéticos e artísticos do ballet clássico, dispensou as sapatilhas e os espartilhos, passando a dançar descalça com roupas esvoaçantes, abrindo caminho para a criação da dança moderna e suas vertentes. Essa atitude trouxe questionamentos e ressignificações para o corpo na dança e o papel feminino na performatividade. O terceiro grupo, integrado por Jane Gallop, Luce Irigaray, Judith Butler, Naomi Schor, Gayatri Spivak, Hélène Cixous, Moira Gatens, Monique Wittig, Vicki Kirby, entre muitas outras, caracteriza-se pela diferença sexual. Para essa categoria a compreensão da existência social e psíquica da mulher prescinde de um corpo, agora pensado como cultural, vivido e representado, significado e significante. Essa categoria não aceita o dualismo

corpo e mente, mas reconhece que há diferenças fundamentais e irredutíveis entre os sexos, que precisam ser valorizadas e reconhecidas (GROSZ, 2000: p.75-7). Pode-se inferir que as pesquisas contemporâneas de dança, fomentadas pelas rupturas de Isadora Duncan, se aproximam dessa terceira categoria, pois têm sido freqüentes os esforços na direção de se considerar as vivências dos bailarinos, de se valorizar o corpo que dança e localizar as especificidades culturais e sexuais dos indivíduos dançantes. Os intérpretes profissionais de dança, desde o surgimento dos primeiros professores dessa área, quando da fundação da Academia Real de Dança, na França, em 1661 (MOURA, 2000: p.81), eram tratados como instrumentos, cujos corpos necessitavam ser treinados e educados para que pudessem responder às necessidades das composições coreográficas. Essa visão vem sendo questionada e a figura do bailarino passou a ser, recentemente, valorizada como agente da dança, um ser que pode contribuir como cocriador, junto ao coreógrafo, um ser capaz de pensar, expressar e sentir. Porém, ainda existem padrões que regulam os corpos desses bailarinos, exigências relacionadas aos aspectos físicos, peso e desempenho. Os padrões estéticos e os estereótipos relacionados ao corpo estiveram bastante em voga na década de 1980. Para falar sobre essa fase, Denise Sant’Anna utiliza o termo “culto da performance”, vinculado aos jovens musculosos e aeróbicos, que eram apontados como passivos e alienados diante da mega-indústria da beleza e da moda. Tendo o “corpo liberado em sua versão atlética” como álibi para sua alienação e passividade, foram acusados de transformar todas as atividades em performances, incluindo o ato sexual (2000: p.243). Uma alternativa aos códigos estéticos socialmente aceitos e estabelecidos e às velhas formas de se pensar corporeidades é a opção por danças orientais (MOURA, 2001: p.186-7). “Em sua gênese, essas danças dão tratamento diferenciado ao corpo: na dança do ventre, o corpo é sagrado, o princípio feminino é expresso em cada movimento e nas formas do corpo. Os atributos físicos femininos relacionados à mulher são exacerbados: quadris largos, curva dos seios, movimentos que evidenciam as partes do corpo relacionadas à procriação” (p.187).

Essa opção também pode estar associada a um investimento em fantasias de identidade. Esse conceito é discutido por Henrietta Moore no artigo “Fantasias de poder e

fantasias de identidade: gênero, raça e violência” (2000). Segundo a autora, as fantasias de identidade ocorrem quando indivíduos passam a investir em personalidades que gostariam de ter ou aparentar ter. Essas fantasias têm significação e estão conectadas, no mundo, às fantasias de poder e agência. Segundo Moore, agência (agency) é um termo apresentado por Anthony Giddens para teorizar sobre a capacidade que os indivíduos têm de serem agentes de suas ações e posicionamentos, às vezes com obediência, outras com resistência aos padrões sociais (p.15-7; 37-8). A partir de minhas experiências como intérprete e professora de dança do ventre, pude observar que muitas aprendizes, ao iniciarem o contato com a dança do ventre, acreditam que se tornarão mais femininas e sedutoras, que irão exercer suas sexualidades de maneira mais integrada. Outras se sentem numa atmosfera de as mil e uma noites, envoltas em véus esvoaçantes como odaliscas em um harém. As mulheres, com as quais convivi, eram profissionais das mais diferentes áreas e pertenciam a classes sociais e faixas etárias diversas. Em pouco tempo de prática, observei que os grupos, independentemente da idade e das características sócio-culturais de seus componentes, vão se tornando mais uniformes: as aprendizes passam a adotar penteados, maquiagens e acessórios parecidos acreditando, com isso, enfatizar a aparência feminina. Não é incomum que alterem a decoração de suas casas, comprando tapetes, cortinas e almofadas bordados em arabescos, quadros com papiros e objetos dourados. Esse fato pode estar conectado às fantasias de poder: a intenção dessas mulheres seria alcançar uma maior satisfação em seus relacionamentos afetivos em troca de tal investimento. As colocações de Moore apresentam uma noção de investimento desenvolvida por Wendy Holloway, que aparece nos discursos sobre gênero e subjetividade. Moore afirma que, para Holloway, investimento é um mecanismo, algo que poderia estar localizado entre um interesse e um compromisso emocional, como um “poder relativo, concebido em termos da satisfação, retribuição ou vantagem que uma posição particular de sujeito promete, mas não necessariamente realiza” (MOORE, 2000: p.36). Um mesmo indivíduo pode adotar múltiplas posições de sujeito, construindo sua identidade e subjetividade, suas posturas diante das outras pessoas, suas intersubjetividades (p.28-36). Sabendo-se que nem sempre a adoção de determinadas posições de sujeito garante as recompensas que se acredita, torna-se interessante discutir aspectos práticos da dança do ventre, porque pensar sobre agência e construção da identidade de gênero pode ser um

caminho elucidativo e revelador para estudar um tema polêmico e pouco explorado. As bailarinas parecem estar muito pouco conscientes dos mecanismos por meio dos quais suas identidades se constroem. É mais comum que haja obediência aos padrões esperados de comportamento do que resistência. Bailarinas que resistem correm o risco de ter suas reputações colocadas em dúvida ou passam a ser desconsideradas e boicotadas no meio profissional. Um simples corte de cabelo pode ser motivo para que uma apresentação seja cancelada. À primeira vista, pode-se pensar que essa tendência à obediência seria o resultado da socialização e da aceitação das especificidades de uma categoria cultural. Porém, como explicita Moore, na perspectiva antropológica, atualmente, a identidade de gênero passou a ser um enigma, um conceito problemático, pois recentemente os antropólogos perceberam que as suposições a respeito de uma identidade de gênero determinada por entendimentos normativos e categorizações culturais, sem ambigüidades, estavam inadequadas (2000: p.21-2). Discursos sobre raça e gênero esbarram nas limitações dos formadores de opinião que constroem generalizações, definindo marcadores de agência para um conjunto de pessoas, que como indivíduos, muitas vezes não se identificam com as características que são atribuídas ao grupo do qual fazem parte. Esses discursos muitas vezes criam ou influenciam comportamentos e produzem padrões definidos e categorizações de gênero, como efeito da divulgação dessas afirmações (MOORE, 2000: p.15-7). No início do trabalho que aqui se apresenta, foram citados aspectos relacionados às mulheres árabes e muçulmanas. Referir-se a essa coletividade supondo se tratar de um todo homogêneo é um equívoco. É necessário estar alerta para se perceber que se está falando de subjetividades e individualidades que compõem o conjunto denominado mulheres árabes. E, retornando ao artigo de Moore, é preciso “teorizar como os indivíduos se tornam sujeitos marcados por gênero; isto é, como vêm a ter representações de si mesmos como mulheres e homens, como vêm a fazer representações de outros e a organizar suas práticas de modo a reproduzir as categorias, discursos e práticas dominantes” (p.18).

Portanto, pensar sobre dança do ventre e as mulheres que a praticam, torna-se algo muito mais complexo, por se tratar de uma dança performada em contextos culturais diversos e por mulheres com histórias de vida singulares. É possível considerar, porém, que essa tendência que leva às generalizações ocorre na área da dança e reforça o preconceito

dirigido àqueles que a praticam. Se, provavelmente pela associação aos aspectos da corporeidade, profissionais de dança já sofrem com juízos de valor que menosprezam sua atividade e sua capacidade de usar atributos mentais, no caso das bailarinas de dança do ventre, os julgamentos tendem a ser mais perversos. Essa perversidade talvez seja fruto da conotação sexual atribuída a essa linguagem artística e, provavelmente, por ser uma prática feminina.

Os estudos de gênero são de um valor inestimável para abordar um tema como a dança do ventre. Partindo de uma curiosidade a respeito de sua prática em países onde se supõe que a mulher seja oprimida, passando por uma consideração sobre sua origem préislâmica, foi possível traçar alguns panoramas relativos a essa linguagem corporal. Na tentativa de diminuir sua “invisibilidade” como objeto de pesquisa, essa dança foi apresentada aqui como uma alternativa aos padrões estéticos estabelecidos pelo culto ao corpo e foram discutidas as noções de investimento e agência aplicadas ao contexto das bailarinas. A análise pretendeu desenvolver uma linha que incorporasse a dança a algumas considerações sobre corpo apresentadas sob a ótica dos estudos de gênero. Pode-se concluir que é necessário um estudo mais minucioso a respeito de uma prática que está inserida em diferentes contextos, onde é preciso considerar as singularidades de quem a desenvolve. Ficou claro que não é possível falar em um todo chamado “dançarinas do ventre”, porque se trata de um conjunto de subjetividades. Logicamente não é o caso de se desconsiderar a coletividade que existe e a partir da qual é possível perceber questões como a da construção da identidade, uma vez que o individual se desenvolve no cultural. As noções de investimento e agência se mostraram significativas, podendo criar um fio condutor para um aprofundamento no sentido de se tentar compreender como as mulheres investem no papel de dançarinas e como são agentes desse papel, avaliando quando obedecem e quando resistem aos padrões estabelecidos. Seria necessário levantar mais dados e questões, pois se tem a impressão de que é mais freqüente a obediência do que a resistência. As reflexões apresentadas aqui deixaram evidente que a construção das identidades de gênero é algo de uma complexidade maior do que se pensava. Assim, seria necessária uma investigação mais elaborada para se estudar, com método apropriado, as formas como são adotados posicionamentos na dança do ventre e as

implicações decorrentes disso. Essa iniciativa poderia contribuir para os estudos de dança e de gênero, e é um caminho ainda a ser iniciado, cujo primeiro passo acaba de ser dado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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