Do virtual à identidade: a desmobilização

May 22, 2017 | Autor: Luiz Antonio Coppi | Categoria: Education, Self and Identity, Digital Media
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Do virtual à identidade: a desmobilização1 por Luiz Antonio Callegari Coppi2 traduzido por Carolina Osorio Agudelo

Resúmen La virtualidad ofrece posibilidades numerosas de desmovilización identitaria. Inmersas en las mismas plataformas en que discursos diversos se presentan, las personas se ven en una condición tal vez inédita, que se da por medio del contacto con la alteridad, y les permite problematizarse a sí mismas y reconstruirse en esos nuevos encuentros. Delante de eso, se vuelve difícil hablar de la “formación” subjetiva, dado que es en la “transformación” donde el sujeto contemporáneo habita. El mundo pedagógico entonces, habituado a la idea formativa de un individuo, se encuentra frente a personas cuyas identidades son fluidas y que se reconocen cada vez menos en proyectos fijos/estáticos. El escenario, no obstante, no parece perturbador – en un mundo cada vez más involucrado en torno a discursos de odio, en que la diferencia o la duda desaparecen, una identidad que se reconoce como transformación acelerada señala nuevas condiciones para la vida colectiva. Así, la intención de esta ponencia no es negar ese proceso desmovilizador, lamentando aquello que seguro se habría perdido, pero si investigar su potencia. Explorar las condiciones de virtualización del mundo afuera de ese espacio virtual - en el sentido en que Pierre Lévy entiende “Virtual”, un nudo problemático de tendencias aún no inmovilizadas en una respuesta rígida - parece, entonces, proficuo. A la pedagogía, como se quiere defender, resta tal vez no oponerse a la virtualización, pero abrirse frente a la efervescencia de ese sujeto que, en adelante, no se conforma a la forma fija en que yacía hasta ahora.

Apresentado originalmente em: VI Congreso Internacional de Experiencias Pedagógicas y Didáticas en Educación Virtual. De lo virtual a la identidad - la desmovilización. 2016. 1 2

Luiz Antonio Callegari Coppi é mestrando na FEUSP na área de Cultura, organização e educação, e conta com Bolsa CAPES desde 2015. E-mail: [email protected]

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Palavras-clave: desmovilización; identidad; virtualización; educación. Resumo: O mundo virtual oferece possibilidades numerosas de desmobilização identitária. Imersas nas mesmas plataformas em que discursos diversos se apresentam, as pessoas veem-se numa condição talvez inédita de, por meio do contato com uma alteridade bastante diferente de si mesmas, problematizarem a si próprias e reconstruírem-se profundamente nesses novos encontros. Diante disso, fica cada vez mais difícil falar na “formação” subjetiva, dado que é na “transformação” potencialmente infinita que o sujeito contemporâneo habita. O mundo pedagógico, então, habituado que está à ideia formativa de um indivíduo, encontra-se frente a pessoas cujas identidades são fluidas e que se reconhecem cada vez menos em projetos fixos. O cenário, porém, não nos parece perturbador – em um mundo cada vez mais engajado em torno de discursos de ódio, em que a diferença ou a dúvida desaparecem, uma identidade que se reconhece transformação acelerada pode apontar novas condições para a vida coletiva e política. Assim, a intenção desta e-ponencia não é negar esse processo desmobilizador, lamentando aquilo que de seguro se teria perdido, mas investigar sua potência. Explorar as condições de virtualização do mundo fora desse espaço virtual, no sentido em que “Virtual” é proposto por Pierre Lévy, isto é, um nó problemático de tendências e forças ainda não imobilizadas numa resposta rígida, parece-nos, portanto, profícuo. À pedagogia, como queremos defender, reste talvez não se opor à virtualização, cristalizando as formações dos educandos, mas abrir-se para a efervescência desse sujeito que, doravante, não se conforma mais à fixa forma em que jazia até agora. Palavras-chave: desmobilização; identidade; virtualização; educação.

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Introdução Em “Um, nenhum e cem mil” (2015), o autor italiano Luigi Pirandello apresenta a desconstrução de Vitângelo Moscarda. O personagem, protagonista do romance, entra em uma crise identitária quando, ainda na primeira página da história, é confrontado por sua mulher. Enquanto ele mexe em uma das narinas na frente do espelho, ela lhe pergunta se estaria, na verdade, observando a ligeira queda que seu nariz tem para a direita. A questão basta para que o personagem nunca mais seja o mesmo. A pergunta lhe faz perceber que a imagem que até então tinha sobre si mesmo não era idêntica à que os outros faziam dele. Sendo vários esses outros, ademais, seriam, no limite, infinitos Moscardas a existirem independentemente do que ele, o verdadeiro, pudesse fazer. Mas esse “o verdadeiro” seria ainda coisa possível de se dizer? Não demora muito na narrativa para que Moscarda se dê conta de que ele próprio não correspondia à identidade com que ele mesmo se concebia: varia o tempo, variam os sentimentos, variam as experiências e o que se mantém igual? De certa forma, afirma o personagem, basta que se vacile um pouco e “adeus nossa realidade!”. “Subitamente”, continua ele, “nos damos conta de que tudo não passava de uma ilusão nossa” (id: 56). Percebê-lo, todavia, implica o quê? O que se pretende esboçar neste breve ensaio é uma reflexão acerca da potência dessa desconstrução identitária. Ao passo que o protagonista do romance italiano é puxado pela ponta do nariz para fora de si mesmo de tal forma que se inviabiliza pensar num “si mesmo” como unidade rígida e bem delimitada, talvez o sujeito contemporâneo seja confrontado com o mesmo cenário, mas a partir da ponta dos dedos. Deslizando-os pelas telas “touch” dos smartphones, a identidade bem organizada a comandá-los também não é tocada? Quando o é, quais os efeitos desse toque? Se, por um lado, as manifestações de ódio no ambiente virtual e a possibilidade de cancelamento de visualizações de tudo aquilo que é julgado como diferente apontariam para uma realidade vivida mais por Narcisos absortos em si mesmos do que por Moscardas dispostos à fragmentação; por outro, talvez não seja absurdo admitir que também há lugar para o movimento inverso. Em uma sociedade em que “vencer na vida” 3

passa a ser sinônimo de frequentar espaços cada vez mais exclusivos, em que distanciar-se do outro se torna sensação de garantia de segurança, a realidade virtual cria fissuras no bunker desse sujeito encastelado e, através dessas frestas, cria condições para que o “outro” – uma alteridade que não seria mais encontrada no condomínio fechado, na escola privada, na clínica particular, no automóvel blindado – possa entrar e convidar o indivíduo para dançar, tirando-o do lugar e fazendo-o chacoalhar as certezas a respeito de si mesmo. Se legítimo este segundo cenário, o abandono de uma ideia de sujeito “formado”, pronto, talvez não seja uma grande perda, talvez não haja razões para lamentos. Desmobilizado de si mesmo, esse sujeito abre-se ao outro, a um processo de vir a ser que não pretende mais cessar – caso pare, já não mais se creria vivo. Uma Escola, portanto, que pretenda fixar o que é movimento, dar uma cara, uma formação definitiva àquilo que é cem mil, não parece mais capaz de responder à potência vivida, primeiramente, no mundo virtual das redes sociais, mas, aos poucos, esparramada também para fora das telas dos dispositivos eletrônicos. Acompanhar esse processo de desmobilização identitária é o desafio que se coloca agora a esta instituição. Aos processos pedagógicos, como se pretende indicar ao final deste ensaio, resta não atravancar o fluxo.

Desmobilizar-se e virtualizar-se: a linha tênue entre o nenhum e o cem mil Em um texto de 1978, o filósofo francês Clément Rosset (2013), escrevendo sobre o lugar que a Filosofia, à época, poderia pleitear, afirma que, se há esse espaço, ele se deve ao potencial de “desmobilização” típico do pensar filosófico. Antes de detalhar tal potencial, no entanto, é importante situar o pensamento do autor. Rosset alinha-se à Filosofia Trágica, a qual tem Nietzsche como principal expoente. Segundo o pensador alemão (2012: 126), “o caráter geral do mundo” seria “caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos”. Em outras palavras, os sentidos com que se lida com a realidade não passariam de ficções, o que, todavia, não significa serem inócuos. Quando essas criações se esquecem de que o são, isto é, quando se deixa que a crença se cole à realidade de uma tal maneira que se torna impossível 4

enxergar que aquilo em que se crê é apenas uma invenção dentre outras possíveis, ou seja, que essa convicção não é a Verdade absoluta, os efeitos são dos mais devastadores. Tal qual Procusto (Maffesoli 1998: 192), quando se é seguro em demasia a respeito da exata medida do mundo, deita-se a realidade sobre um leito cuja forma é a mesma daquele que o concebe e se opera toda sorte de mutilações e deformações para que ela caiba perfeitamente no molde definido – este, por sua vez, já não é mais passível de questionamento. O Deus contra o qual se lança o alemão praticamente durante toda sua obra é, justamente, esse sentimento de “absoluto”. Matá-lo, nesse sentido, é condição para a liberdade criadora, inventiva, uma vez que, enquanto Ele persiste, mantêm-se os valores fixados, as verdades inquestionáveis, ainda que esses valores e essas verdades não tenham, talvez, lastro algum. Para Rosset (2013: 168), é por isso que é tão difícil desenraizar uma crença qualquer – em última análise, ela se finca no nada. É aí que entra a desmobilização. O autor defende que a Filosofia, às vezes, consegue criar as condições para esse desenraizamento. Escreve ele que “por uma mudança na disposição do espírito, que deixa então de almejar o desaparecimento de um objeto, que de qualquer modo está ausente, para apagar suas sombras por meio de um distanciamento da tendência desejante em si”, o pensamento filosófico seria capaz de descolar a invenção crente da realidade que jazia sufocada sob ela. Partindo de sua reflexão, pode-se propor, no lugar do objeto da crença, a identidade, a individualidade, o “si”: não seriam eles também, no limite, nada? O indivíduo, conforme é compreendido hoje, é uma invenção moderna. Em Corbin (1992), será construída uma linha temporal que, entre os séculos XVIII e XIX, identifica como, por meio de contingências históricas, o homem acostumou-se à individualidade – a importância dada ao prenome, identificando-o em meio a um grupo; a difusão dos espelhos, habituando-lhe à própria imagem; a popularização do retrato, fundador uma memória individual; o quarto e o leito individuais, inauguradores da intimidade: aos poucos, confere-se ao homem moderno a sensação de uma identidade rígida, a qual, todavia, não parecia estar nele mesmo espontaneamente. Por outro lado, os estudos linguísticos, os relatos etnográficos da Antropologia e a Neurociência, por exemplo, indicam cada vez mais o quanto esse indivíduo é contingente: sua forma de ver o mundo, suas categorizações reflexivas, sua compreensão sobre si mesmo parecem tão ligadas às condições externas que se pode afirmar que essa 5

carcaça orgânica, a qual existe entre o nascimento e a morte biológica, não é humano, mas humaniza-se à medida que se encontra com o lado de fora, com o “outro”. A identidade formada desses encontros, então, tampouco “é” qualquer coisa, mas “está” e torna a modificar-se conforme variem-se esses contatos. Nesse sentido, assim como o Deus enfrentado por Nietzsche tinha por intuito colonizar o real e enquadrá-lo numa única forma, a mobilização identitária parece também limitar a potência de reconstruções de si. Crente em si mesmo, é o homem quem cria Deus a sua imagem e semelhança e, por conta disso, passa a se colocar no lugar de juiz em relação a tudo aquilo que é sentido como dessemelhante. À identidade fechada, a alteridade é perturbação, ameaça, pois que lhe lembra tratar-se de uma ficção que, como tal, poderia transformar-se – o ensimesmamento constrói sobre as convicções do “eu” uma aura de coisa inquestionável; para ele, aquilo que não é ele não é mais concebível, não é mais legítimo. Mobilizada, então, em torno de si mesma, essa identidade é, paradoxalmente, imobilizada também: não há mais movimento possível para quem se fixou num quadro repleto de si mesmo. Na contemporaneidade, todavia, a tela desse quadro é touchscreen, aberta ao toque e, quem sabe, ao ser tocado. Na virtualidade, abre-se um outro contexto de contato. Pierre Lévy (2011: 16) define o virtual como o “complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama a um processo de resolução: a atualização”. A árvore, exemplifica o autor, já estaria virtualmente presente na semente, o que significa que “ela conhece exatamente a forma da árvore que expandirá sua folhagem acima dela. A partir das coerções que lhe são próprias, deverá inventá-la, coproduzi-la com as circunstâncias que encontrar”. Nesse sentido, “virtual”, como propõe o escritor, teria a ver com a potência de existência: não se opõe, portanto, àquilo que é real. Em outras palavras, continua ele: A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade (uma solução), a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático. Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular.

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Se a “entidade”, então, for a identidade, virtualizá-la implica levá-la de volta ao nó de questões que a compunham antes de resolver-se numa resposta definida. Acostumado a si mesmo, o “sujeito-resposta”, encastelado em seu mundo saturado de reflexos de si próprio, esquece-se desse nó. Virtualizando-se, reencontra a voz – ou as postagens – da alteridade, o que o confronta com o “complexo problemático” de onde surgiu ou poderia vir a ressurgir. É importante destacar, antes de mais nada, que as tecnologias não causam necessariamente uma modificação na forma de ser e de se relacionar. De acordo com Lévy (id: 101), elas condicionam, isto é, “abrem um largo leque de novas possibilidades das quais somente um pequeno número é selecionado ou percebido pelos atores sociais”. Há quem, inclusive, como Gilles Lipovetsky et Jean Serroy (2011: 79), afirmem que é preciso não ser ingênuo ao levar em consideração o potencial gregário das redes sociais. Para estes autores, elas escondem um recrudescimento da própria individualidade, “por causa da escolha livre e subjetiva, reversível e emocional de indivíduos descomprometidos, que entram e saem à vontade dessas plataformas digitais, à velocidade de um clique, sem nenhum compromisso duradouro ou institucional”. Aqui, no entanto, o nariz de Moscarda ainda não foi esquecido. O contato com o outro traz em si uma promessa de instabilidade. O processo de virtualização, dessa maneira, encontra-se com o de desmobilização, uma vez que, como pontuava Rosset, arranca das sombras do costume e do hábito a identidade em movimento que ali se estagnava. Assim como, para o pensador trágico, a Filosofia tem uma capacidade de descolar o real da crença que o sobrepõe, isto é, de desmobilizar a crença, a virtualização, nos termos de Lévy, cria condições para um movimento similar. Rever a identidade como um nó de potências na busca pela invenção de uma resposta aponta, talvez, para “uma mudança na disposição do espírito”, a qual, segundo Lévy (id: 106), faz ver que: [...] a unidade do psiquismo é a de uma multiplicidade fervilhante e sua interioridade “afetiva” não é em absoluto um fechamento. Como diz Gilles Deleuze, o interior é uma dobra do exterior. [...] os psiquismos são também máquinas darwinianas, isto é, identificam-se com um processo de transformação-tradução do outro em um si, um si jamais definitivamente fechado mas sempre em desequilíbrio, em posição de abertura, de acolhimento, de mutação; um si cuja ponta fina é talvez a qualidade singular do processo de assimilação do outro e de heterogênese. Essa abertura começa na simples sensação, passa pela aprendizagem e o diálogo, culmina com o devir: quimerização ou transição para uma outra subjetividade.

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Virtualizar-se, então, remete o indivíduo de volta ao dilema de Vitângelo Moscarda: se se desmobiliza de suas próprias crenças a respeito de si, vê-se como nenhum; fazendo-o, porém, é também cem mil, já que participa de todo “outro” a que estiver conectado e, a partir deste, pode vir a reconstruir-se em numerosas novas formas. Não é difícil ilustrar essa dinâmica a partir da observação dos movimentos nas redes sociais. Nas vésperas do natal de 2015, por exemplo, inúmeras garotas brasileiras aderiram à campanha “#meu amigo secreto”3, na qual expunham algum caso de assédio que tivessem sofrido. Em primeiro lugar, nesse fenômeno, é interessante notar que algo tradicionalmente reservado à esfera íntima é desdobrado e levado ao lado de fora, aos olhos públicos. Enquanto recluso na intimidade, esse assédio machuca, traumatiza, culpabiliza suas próprias vítimas; à mostra, no entanto, encontra eco, abre-se ao diálogo, o que permite reformulá-lo, melhor ainda: reformular-se frente a ele. O que parecia da ordem individual ganha traços coletivos, ganha historicidade, promove empatia. Vendo os relatos, num segundo momento, outros grupos começaram também a se expor. Vítimas de racismo e de homofobia valeram-se de “hashtags” similares para denunciar violências. Embora este texto não pretenda oferecer uma análise definitiva a respeito dos processos psicológicos envolvidos nessas manifestações, parece cabível descrevê-las a partir dos mecanismos de desmobilização disponíveis no ambiente virtual. A individualidade a ser resguardada expõe-se; ao fazê-lo, percebe-se multidão, pois se depara com o fato de que aquilo que a afeta afeta o “outro” também. Perceber essa comunhão, por sua vez, é chave para conceber a intimidade como coisa construída e atravessada por esse outro, é chave para perceber que ela está recheada de exterioridade e que, sob outras relações, poderia ter sido construída de uma forma diferente. Ao mesmo tempo, o “outro”, reconhecendo-se naquilo que afeta o “eu”, sente-se também mais à vontade para compartilhálo, para compartilhar-se. O abandono do “si”, coisa fixa e não atravessável, imutável, liberta de toda a solidão e rigidez dele. “Eu” e “outro”, aliás, configuram-se como instâncias cada vez menos discerníveis e, quanto mais assim o são, abrem possibilidades de reinvenção de si. Desmobilizar-se, então, talvez seja a condição para que do um faça-se o nenhum, façam-

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Sobre o movimento e seus desdobramentos, é possível ter mais informações acessando o site: http://jornalggn.com.br/noticia/quando-o-amigo-secreto-deixou-de-ser-brincadeira-e-virou-denuncia.

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se os cem mil. E, como se quer propor aqui, o ciberespaço parece oferecer as condições para esse cenário. Nas palavras de Lévy (2014: 122): Uma nova ecologia das mídias vai se organizando ao redor das bordas do ciberespaço. Posso agora enunciar seu paradoxo central: quanto mais universal (extenso, interconectado, interativo), menos totalizável. Cada conexão suplementar acrescenta ainda mais heterogeneidade, novas fontes de informação, novas linhas de fuga, a tal ponto que o sentido global encontra-se cada vez menos perceptível, cada vez mais difícil de circunscrever, de fechar, de dominar. Esse universal dá acesso a um gozo do mundial, à inteligência coletiva enquanto ato da espécie. Faz com que participemos mais intensamente da humanidade viva, mas sem que isso seja contraditório, ao contrário, com a multiplicação das singularidades e a ascensão da desordem. Quanto mais o novo universal se concretiza ou se atualiza, menos ele é totalizável. Ficamos tentados a dizer que se trata finalmente do verdadeiro universal, porque não se confunde mais com uma dilatação do local nem com a exportação forçada dos produtos de uma cultura em particular. Anarquia? Desordem? Não. Essas palavras apenas refletem a nostalgia do fechamento. Aceitar a perda de uma determinada forma de domínio significa criar uma chance para reencontrar o real.

O cenário está dado, e a “nostalgia do fechamento” não é a pedra de toque deste texto. Fazendo coro às palavras de Lévy, ainda que as parafraseando um pouco, aceitar a perda de uma determinada forma de domínio identitário, isto é, de um “eu” mobilizado em torno de uma crença em sua existência absoluta, significa criar uma chance para reencontrar o real: o movimento subjetivo. É essa, aliás, a condição trágica abordada por Rosset, por Nietzsche e por tantos outros. O real é a ausência de sentidos duros e imutáveis, é a morte de um Deus que se pretendia único. O trágico – e, talvez, cada vez mais, o internauta – não se lamenta: a morte do Criador cria na criatura a potência criativa.

Na escola Embora, até aqui, este texto tenha se orientado, sobretudo, em torno das possibilidades de virtualização e nos efeitos de desmobilização identitária no ciberespaço, o encaminhamento final, em que é prevista uma breve discussão a respeito da Educação, não tem como foco a educação virtual ou à distância. O que se pretendeu até agora foi a apresentação de determinadas condições propiciadas pelos dispositivos digitais e pela conectividade cada vez mais expandida – a motivação, porém, é refletir acerca de como essas condições alteram a percepção de si para fora da rede e como a escola pode lidar com essa concepção. Não se 9

intenta, é bom deixar claro, fornecer um programa pedagógico ou respostas exatas. Frente ao cenário movediço e incerto do virtual, isso até pareceria loucura. Ignorar esse ambiente no debate pedagógico, porém, é insistir numa ideia de sujeito presa à mobilização identitária. Se fizer sentido o que foi por ora desenvolvido, o aluno que chega à escola não se enquadra mais em um programa formativo que tenha currículos rigidamente definidos, os quais tomam por justificativa o sujeito que se pretende ter formado ao final do processo educativo. Educa-se, tradicionalmente, para formar alguém: cidadão, mão-de-obra, vestibulando – o ponto de chegada do currículo escolar é que serve de orientação para toda a sua organização: a transformação à qual se submete o aluno, assim, é ilusória, já que a forma já está pronta antes mesmo de ele aparecer. Para enquadrá-lo a ela, no entanto, toda a sorte de delimitações se operará. Jorge Larrosa (2014: 24), analisando as possibilidades contemporâneas para a experiência, afirma que o sujeito da modernidade seria crente em sua própria onipotência, em si mesmo. Por conta disso, escreve o autor, esse indivíduo “se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação”, isto é, ele deseja mudar o real “independentemente de este desejo estar motivado por uma boa vontade ou uma má vontade”. Larrosa segue defendendo que “nós somos sujeitos ultrainformados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos”, por conta disso, enfim, “estamos sempre querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados”. É em torno desse gênero de identidade que a Escola ainda parece orbitar. Tentando mobilizá-la em um quadro prédefinido, a instituição perde de vista que as vivências online do aluno contemporâneo o predispõem a uma outra realidade formativa. Esse aluno acostumou-se à virtualização – não é mais sobre respostas prontas que ele caminha, mas navega diariamente sobre os nós problematizadores de própria elaboração de si mesmo. Talvez, dessa forma, ele não se enquadre mais no modelo de sujeito moderno sobre o qual falava Larrosa. Neste sujeito habituado à virtualização, a onipotência e a crença demasiada em si potencialmente dão lugar à incerteza e a uma reconfiguração identitária acelerada. O cenário, todavia, parece mais com oportunidade do que com motivo para lamentações. Numa outra obra, Larrosa (2010: 156), questionando-se sobre os efeitos autoritários que a crença em uma Verdade absoluta produz, defende que (de forma muito

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similar ao que se encontra no final da última citação de Lévy) “a perda do sentido da realidade talvez não seja, afinal, uma grande perda porque, talvez, a realidade tenha funcionado como um poderosíssimo princípio totalitário”. Suas palavras podem ser úteis para pensar a identidade: enquanto definida ou a definir, ela facilita o trabalho escolar, mas a que preço? Frear a efervescência subjetiva – redescoberta agora em meio ao ciberespaço – é, de certa forma, matá-la. Nietzsche (2005: 146), nessa mesma linha, condena esse refreamento: o ambiente em que se educa tende a tornar o educando cativo, “ao lhe pôr diante dos olhos um número mínimo de possibilidades. O indivíduo é tratado por seus educadores como sendo algo novo, mas que deve se tornar uma repetição”. Mais à frente (id: 261), é na mesma obra do alemão que encontraremos a razão de sua crítica. Para ele, enriquecer o conhecimento tem a ver com não uniformizar, “mas escutar a voz suave das diferentes situações da vida; elas trazem consigo suas próprias maneiras de ver”. Seria dessa forma, continua ele, que “participamos atentamente da vida e da natureza de muitos, não tratando a nós mesmos como um indivíduo fixo, constante, único”. O aluno que chega à escola hoje, hiperconectado a todo instante, talvez esteja mais ciente disso do que os próprios programas escolares. Ele é frequentador assíduo de um ambiente em que suas certezas sobre si têm uma possibilidade de serem virtualizadas a cada novo clique. Suas convicções morais, políticas, sexuais, religiosas são colocadas em xeque a cada novo esbarrão com o outro no mundo online – esbarrão esse que as escolas físicas talvez tenham pouquíssimas chances de propiciar, presas que estão a um determinado público cativo, a uma determinada tábua de valores. Esse aluno, aliás, talvez esteja mais próximo do que Larrosa (2014: 25) chama de “sujeito da experiência”, ou seja, “algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns efeitos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos”. Esse educando, potencialmente mais território de atravessamentos do que monumento ensimesmado e endeusado, quando se permite virtualizar (não mais apenas no contexto online, mas tomando o processo de virtualização como modo de vida), está, provavelmente, mais próximo dos ideias de convivência, de respeito, de empatia do que qualquer modelo curricular jamais chegou. Desmobilizado, virtualizado, ele é nenhum, o que lhe permite ser também cem mil – o problema, afinal, era o “um”, intocável, crente, parado frente ao espelho e embriagado de si mesmo. 11

E ao educador? O que resta fazer? Larrosa (2010: 165), concluindo seu ensaio a respeito do poder da Verdade, após desconstruíla como conceito norteador da vida, sugere: E se a realidade não é a realidade, mas a questão; se a verdade não é a verdade, mas o problema; se perdemos já o sentido da realidade e se [...] desconfiamos da verdade, teremos, talvez, que aprender a viver de outro modo, a pensar de outro modo, a falar de outro modo, a ensinar de outro modo. Talvez tenhamos que aprender a nos apresentar na sala de aula com uma cara humana, isto é, palpitante e expressiva, que não se endureça na autoridade. Talvez tenhamos que redescobrir o segredo de uma relação pedagógica humana, isto é, frágil e atenta, que não passe pela propriedade.

O caminho para esse reaprendizado talvez já esteja mesmo dado. Se é a um aluno habituado a virtualizar-se que se quer falar, por que não também deixar-se virtualizar? Por que não abandonar as respostas cristalizadas que já se tem acerca do que é o ensinar, do que se quer formar, de quem é o aluno, do que é o conhecimento, a verdade, e voltar-se ao caldeirão virtual de onde saíram essas soluções? Em última análise, afinal, porventura já seja isso mesmo o que se observa: este novo aluno, se provoca questionamentos, se aponta as falências de um modelo alicerçado na certeza, já está, de certa maneira, a chamar a uma realidade mais “palpitante e expressiva”, indiferente às formas fixas em que se pretende delimitá-la. Esse modelo escolar, talvez, já tenha notado, como Vitângelo Moscarda, seu nariz caído – não foi a esposa quem o avisou, foi o próprio sujeito a quem se queria educar. Já há aí, quem sabe, um princípio de desmobilização. Resta à escola, então, decidir: ao iminente naufrágio das bases sólidas sobre as quais se ergueu, ela vai agarrar-se a um pedaço de madeira e continuar a bradar o que o aluno deve ser, o que o conhecimento é e o que é a verdade, ou vai se permitir ser mar, ser espuma, ser universo – ser nenhum e, por isso, cem mil?

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Referências Bibliográficas CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle (Org.). História da vida privada (vol. 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra). São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 413-465. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. _______________. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2010. ___________. O que é o Virtual? São Paulo: Editora 34, 2011. LIPOVETSKY, Gilles et SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil; trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2015. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ___________________. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ROSSET, Clément. “Démobiliser”. In: Faits Divers: textes réunis et présentés par Nicolas Delon et Santiago Espinosa. Paris: PUF, 2013. p. 161-168.

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