Dobletes e formas divergentes no português. Estudo histórico e comparado

May 23, 2017 | Autor: Fernando Venancio | Categoria: Historical Linguistics
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Dobletes e formas divergentes no português. Estudo histórico e comparado

Fernando Venâncio Universidade de Amsterdam [email protected]

No português, abundam os dobletes lexicais de tipo dorido/dolorido ou soante/sonante. Esses dobletes originaram-se sobretudo entre 1300 e 1550, um período em que numerosas formas patrimoniais passaram a ser acompanhadas, ou até substituídas, por formas novas, de feição latinizante, particularmente por uma recuperação dos l e n intervocálicos latinos, que haviam sido sincopados na fase galega do português. Esta 'relatinização' do português constituiu, na realidade, uma convergência com os modelos vigentes em Castela, num processo indistinguível duma contemporânea importação, também ela volumosa, de vocabulário de estrita feitura castelhana. O português adquiriu, assim, um carácter eminentemente híbrido, tanto no incremento de dobletes lexicais como na acumulação de derivações de soluções quer patrimoniais quer inovadoras. Palavras-chave: português, castelhano, galego, história do léxico, dobletes, formas divergentes. In Portuguese, lexical doublets of the type dorido / dolorido or soante / sonante are abundant. Those doublets originated mostly between 1300 and 1550, a period in which many patrimonial forms have been accompanied, or even replaced, by new forms with Latinizing traits, particularly due to recovery of intervocalic Latin l and n that had been syncopated in the Galician period of Portuguese. This 'relatinization' of Portuguese constituted, in fact, a convergence with existing models in Castile, a process indistinguishable from contemporary import, voluminous as well, of strictly Castile made vocabulary. Portuguese thus acquired an eminently hybrid nature, both in the growth of lexical doublets as in the accumulation of derivations from both patrimonial and innovative solutions. Key words: Portuguese, Castilian, Galician, lexicon history, doublets, divergent forms.

Provavelmente nenhuma língua natural é dotada dum léxico inteiramente 'regular', isto é, um léxico em que todas as famílias vocabulares fossem de radical uniforme. Nos idiomas surgidos do latim, a diversidade de radicais é, mesmo, corrente. Dentre eles, e nesse domínio, o português distingue-se não só pela profusão dessas irregularidades, como também pela sistematicidade que apresentam. A complexa génese da língua portuguesa explica-o cabalmente. Tendo herdado o léxico e a gramática forjados na Galécia Magna, o português abriu-se, com alguma avidez mas reconhecido ganho, às fortes sugestões do prestigioso idioma de Castela. Neste trabalho, vamos focar-nos em dois processos, distanciados no tempo, que se provaram determinantes: a síncope precoce de l e n intervocálicos e a tardia reconfiguração latinizante do léxico. Observemos um primeiro exemplo, o do conjunto cor. As datações correspondem à primeira atestação escrita. Nelas, '1280' é datação global para as Cantigas de Santa Maria, redigidas entre 1264 e 1284. O cenário castelhano serve, aqui, de elucidativo contraste.

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Castelhano color colorado colorar descolorado descolorido colorido colorir colorear colorante coloración incoloro

Português 1140 1215 1250 1240 1240 1270 1563 1527 1791 1853 1849

cor corado corar descorado descolorido colorido colorir colorear corante coloração incolor

1269 1280 1280 1280 1847 1531 1548 1609 1862 1881 1858

As datações dos cast. colorir, colorido e descolorido poderiam criar perplexidade. Tudo indica que o verbo colorir teve, durante séculos, uma existência virtual mas produtiva, acabando por emergir na escrita a meados de Quinhentos, e primeiro no português, como italianismo técnico. O port. colorido, documentado por primeira vez numa peça de Gil Vicente, seria pois um mero castelhanismo. Já os novecentistas coloração e colorante (1813) serão devedores imediatos ao francês coloration e colorant, sabendo-se o forte influxo de soluções francesas a que, já então, o português estava submetido. Até cerca de 1550, outras formas coincidentes com as castelhanas tiveram razoável circulação em textos portugueses: color, colores (1262), colorar (XV) e colorado (XIV). Elas conviveram, pois, longamente com as patrimoniais cor, corar e corado, de que eram outras tantas alternativas. Na sua Ortografia, de 1734, o doutrinador Madureira Feijó anota no verbete colorado: «Alguns duvidam usar deste adjectivo em lugar de corado, entendendo que é palavra castelhana: mas como no latim é coloratus, não tem dúvida que também no português podemos dizer colorado, e colorar do latim colorare, e não colorear» (Madureira Feijó 1734: 162). Do ponto de vista histórico, é significativo o que se segue: «E quem diz corado e corar é porque deriva estas palavras da portuguesa cor, e não das latinas». O filólogo setecentista não tinha meios de conceber a síncope do -l-. Ajunte-se a tudo isto a curiosa forma colorau (cast. pimentón), decalcada na realização colorao do cast. colorado. Um segundo exemplo, algo mais complexo, é o do conjunto de dor. dolor doler dolido dolorido

1140 1230 1325 1230

adolecer doloroso

1237 1284

dolencia

1237

doliente

1230

= indoloro

1890

dor doer doído dorido dolorido adoecer doroso doloroso doença dolência doente dolente doentio indolor

1280 1280 14... 1280 13... 1280 1280 14... 1280 18... 1280 1817 XIV 1919

A forma doroso, ou dooroso, foi corrente até cerca de 1500, mas em produções do Cancioneiro de Resende convive já com doloroso, a partir de então forma única. Diferentemente, dorido e dolorido permaneceram e, após um predomínio de dolorido, o quadro actual apresenta cerca de 70 'doloridos' contra cada 100 'doridos'. As duplas

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doença / dolência e doente / dolente são doutro teor. Doença e doente foram sempre predominantemente associados a estado físico, enquanto os cultismos oitocentistas dolência e dolente sugerem disposições anímicas. Anote-se, à margem, que os paralelos dolencia / dolência e doliente / doente são, aqui, estritamente formais e não semânticos. Já o autóctone doentio nunca teve equivalente lexical em castelhano. São cenários recorrentes, estes. Enquanto o castelhano realiza modelos uniformes (aqui color-, dol(or)-), o português tolera a hibridez formal, acumulando os resultados de sucessivos processos. No conjunto de cor, coexistem dois modelos sucessivos (com um extemporâneo corante). O conjunto de dor vai mais longe, e expõe a convivência tanto histórica como actual de produtos de dois modelos. Na dupla dorido/dolorido temos, mesmo, um caso nítido de 'formas divergentes' contemporâneas. Veremos que elas são em mais vasto número. Essa regular geometria do castelhano, aliada à rebarbativa 'desordem' do português, terá sido decisiva no fascínio, cedo visível na produção literária portuguesa, pelo idioma da Meseta. O baixo teor de hibridez do castelhano, gerador duma incomum previsibilidade de formas, tornava-o idioma presumivelmente estabilizado, e por isso modelar e justo alvo de emulação. Numerosas formações patrimoniais foram, assim, 'remodeladas' sob influxo do castelhano. Deste modo (vê-lo-emos já em mais pormenor), muito daquilo que tradicionalmente passa por uma 'relatinização' do português foi, na realidade, uma profunda castelhanização formal.

Um idioma aprimorado O panorama lexical do romance ocidental peninsular apresentava, em finais do século XII, ao iniciar-se a sua escrita, uma conformação peculiar, mas definida. A síncope de -le -n- latinos conduzira a soluções largamente regulares. Ilustramo-lo com alguns verbos, sublinhando que as primeiras realizações documentadas permitiam inferir uma já ancestral padronização destas formas. -l-

colare molere pulire salire vigilare volare

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coar moer puir sair vigiar voar

-n-

cenare coronare donare generare sonare tenere venire

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cear coroar doar gerar soar ter vir

De facto, desde os primeiros textos galegos e portugueses, as inúmeras formas verbais, infinitas ou finitas, traçam um cenário convincente: de -l- ou -n- não ficou rasto. São já residuais, e talvez mera contaminação castelhana, as formas em que figura um l («a hora que a alma sal do corpo») ou que sugerem a articulação dum n («aquelo que deve e sona seu nome»). No entender de Veiga Arias (1983: 279-283), foi o substrato celta que pôs em marcha, na Galécia, a simplificação das consoantes geminadas latinas -ll- e -nn-, fenómeno que imediatamente desencadeou a eliminação definitiva das simples -l- e -n-. Um e outro processo foram eficazes, já que não se confundiram. Isto pressupõe que se hajam desenrolado em época muito recuada e, mais, num período relativamente curto.

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Irregularidades do período escrito só podem, pois, ser atribuídas a tiques hiperlatinos ou a interferências do castelhano. De facto, o crescente contacto com esse idioma prestigioso, 'bem estruturado' e de patente compleição latina, virá exacerbar, no português, essas interferências, reconfigurando um sistema que crescera autónomo. Dentre os numerosos resultados dessa remodelação, destacaremos, como dito acima, aqueles que descrevem uma recuperação de -l- e -n-. Português

Castelhano

ciada estimo fuã/fuão piar

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cilada estímulo fulano pilar

aprisoar baroíl descomual doairo gaança louçaĩa manteedor meoscabo moimento paação temoeiro

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aprisionar varonil descomunal donaire ganância louçania mantenedor menoscabo monumento palaciano timoneiro

cp. celada estímulo fulano pilar aprisionar varonil descomunal donaire ganancia lozanía mantenedor menoscabo monumento palaciano timonero

É sobretudo no decorrer de Quinhentos que estas transformações, que se vinham cimentando, se tornam definitivas. Quando, já no século XIII, o castelhano formara varonil, o português servia-se da forma sincopada varoíl, ou baroíl, atestada até 1601 («Fazer irreparável resistência / Ao claro Jorge, baroíl e forte», Bento Teixeira, Prosopopeia). É em Gil Vicente, numa peça de 1521, que vemos uma primeira recuperação do -n- («E vereis homens de prol / Gente esforçada e baronil»). Também o arabismo fulán aparece desde o início da escrita como fuã («don Fuã que era demandador»), o que configura uma dupla síncope, de -l- e -n-, face à forma castelhana fulano. Esta situação mantém-se até finais de Quatrocentos, quando deparamos com um primeiro fulano português («conheço Fulano feitor de tal»). E a forma doairo, encontramo-la já alternando com donairo, até que, a partir de 1450, donaire vai dominar sozinho. Paralelo a este processo castelhanizante, outro se desenvolveu, atingindo materiais de origem latina. Exemplificamos, de novo, com alguns daqueles em que -l- e n- se viram recuperados, e comparamos o conjunto com as soluções castelhanas. fiiz geo maíça mua nevooso paadar seenço soidade

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feliz gelo malícia mula nebuloso paladar silêncio soledade

absteença geralidade liviám

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abstinência generalidade leviano

cp. feliz hielo malicia mula nebuloso paladar silencio soledad abstinencia generalidad liviano

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lumioso mõimento matutĩo opoente remãescer romão rumiar saar sazoado sobĩo terreo

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luminoso monumento matutino oponente remanescer romano ruminar sanar sazonado supino terreno

luminoso monumento matutino oponente remanecer romano ruminar sanar sazonado supino terreno

Poderia supor-se (e é, mesmo, geral convicção) que se está, aqui, perante um 'regresso ao latim'. Muito mais provável é que, na mente do utente tardo-medieval, os dois conjuntos ‒ o que relacionámos com o castelhano e o que se supõe relacionável com o latim ‒ se inscrevam num único esforço de correcção do idioma, para a qual o castelhano oferecia um modelo sempre disponível. E, assim, onde o castelhano investe em formas latinas, o português abandona as próprias e segue-o. Não percamos de vista que, a partir de cerca de 1430, sob o estímulo dos dinâmicos e cultivados Príncipes de Avis, Portugal entra na órbita cultural de Castela, e aí se manterá por três séculos. O castelhano faz, desde então, parte decisiva da formação 'culta' dum português: pela leitura religiosa e profana, pela obras de consulta, pela pregação, pelo ensino, pelos contactos pessoais na corte e sua órbita. O século XVI, e mais precisamente meados dele, marca o ponto de não retorno dessa inflexão 'correctora'. Um só exemplo: é na obra, a muito títulos informativa, Diálogos de Roma, do humanista Francisco de Holanda, de 1548, que encontramos os últimos usos sistemáticos de fuão, romãos e outras formações medievais. Tem razão o medievalista José Mattoso quando, no artigo «Perguntas dos historiadores aos linguistas», escreve: «Para mim é surpreendente a influência linguística que uma minoria culta teve em Portugal no século XVI, e que se revela na difusão de vocábulos eruditos que acabam por expulsar da linguagem corrente termos correspondentes já mais evoluídos do ponto de vista etimológico» (Mattoso 1997: 616). Facto é que a sedução das soluções castelhanas já vinha de longe. Formas como pino, manhana e louçana, encontráveis nos Cancioneiros, merecem a Francisco da Silveira Bueno esta ponderação: «Ou são castelhanismos, ou arcaísmos. O sentir mais generalizado é que sejam castelhanismos. E assim também pensamos» (1958: 88). Existiu, sem dúvida, uma notável latinização portuguesa original e exclusiva, da qual, contudo, ainda não se fez o adequado levantamento. Houve, igualmente, alguma latinização portuguesa pioneira, de que o castelhano tirou, por sua vez, proveito. É o caso de vocábulos cuja primeira atestação peninsular se acha nos Lusíadas de Camões, como sejam os qualificativos esquálido, hirsuto, horríssono, ovante e sibilante. As traduções da epopeia para castelhano, feitas a partir de 1580, tiveram nessa difusão algum papel, embora modesto. Mas uma autêntica relatinização foi, como já dito acima, bastante limitada. Não podemos admirar-nos. A quase totalidade dos materiais 'relatinizadores' do português eram já correntes no castelhano, e o utente português culto, com eles em assíduo contacto, servia-se deles com naturalidade. Esses materiais latinos instalaram-se, pois, no português, de mistura com aqueles outros, também úteis e cultos, que o próprio castelhano produzira. A 'relatinização' do português é, assim, um mito cultural, uma extrapolação nacional da vera história de idiomas próximos. Se virmos bem, os produtos duma autêntica ‒ isto é, original e exclusiva ‒ relatinização do português são escassíssimos, não indo muito além dos casos de grasnar vs. grazinar, lagoa vs. lacuna, padroado vs. patronato, tíbio vs. tépido, este último com alguma circulação no castelhano de Quinhentos.

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Um apontamento intervalar que porventura já tardava. Neste trabalho, continuarão a ser escassas as referências ao galego. Poderia estranhar-se isso, uma vez que as mais determinantes peculiaridades do idioma (entre elas, as síncopes de -l- e -n-) estavam estabelecidas, e a funcionar já em pleno, na Galécia Magna, em recuadas épocas pré-portuguesas. O português herdou a configuração lexical galega, essa que depois submeteria a uma reconfiguração castelhana. Acontece que o galego desenvolveu uma hibridez própria, nem sempre normativa, mas factualmente dicionarizada (aa/ala, abandoar/abandonar, bieito/bendito, crego/clérigo, creto/crédito, dioivo/diluvio, ladroízo/latrocinio, lumioso/luminoso, persoa, persoal / personalidade, saa/sala, sereo/sereno, terreo/terreño, xeo/xélido etc.) e são-lhe estranhas certas oposições portuguesas (tem celo/celoso, mas não cio/cioso). Não menos apreciável é a quantidade de formações galegas sincopadas que o português desconhece, como os substantivos cóengo
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