Documento: \"Os Salmos de Stefan Dias\" de Edson Nery da Fonseca

July 4, 2017 | Autor: S. Stojanovic | Categoria: Academia Brasileira De Letras, Stefan Dias, Edson Nery da Fonseca
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Os Salmos de Stefan Dias

Edson Nery da Fonseca Um poeta sérvio que já obteve dois prêmios literários em seu país - no qual, entretanto, continua inédito - casou-se com uma pernambucana e veio morar no Recife. Como o ensaísta austríaco Otto Maria Carpeaux, aprendeu rapidamente o português e passou a escrever seus poemas em nossa “última flor do Lácio inculta e bela”, como diria Bilac. Sob o pseudônimo de Stefan Dias, o poeta sérvio já concorreu, sem sucesso, a mais de um prêmio no Recife. Ele ignora que aqui os concursos literários são, com honrosas exceções, jogos de cartas marcadas. Nas academias e em outros órgãos públicos ou privados os prêmios estão previamente reservados para amigos das comissões julgadoras. Digo-o por experiência própria, pois tendo concorrido a um concurso de ensaios sobre Assis Chateaubriand, caprichei na redação de um texto contendo informações inéditas que nem Fernando Moraes revelou em sua monumental biografia do jornalista: biografia - diga-se de passagem - muito mais merecedora do Prêmio José Ermírio de Moraes do que as volumosas mas presunçosas e cansativas memórias de Roberto Campos. Quanto a meu ensaio, soube depois do julgamento, por um membro da própria comissão julgadora, que o prêmio já estava previamente destinado a outro concorrente. Aconselho Stefan Dias a não desistir, pois ele está vivendo agora como certos missionários de antigamente, enviados pela Santa Sé e pelo Bizâncio para exercerem atividades pastorais in partibus infidelium. A mesma resistência ocorreu com Otto Maria Carpeaux. Judeu convertido, fugiu da Europa para o Brasil favorecido pela Santa Sé. Recomendado ao intelectual católico Alceu Amoroso Lima, foi por este encaminhado a uma colônia agrícola no Paraná!... Inconformado, Otto Maria Carpeaux mudou-se para São Paulo, onde a intelectualidade paulistana o ignorou. Desanimado, escreveu a Álvaro Lins e começou a colaborar no Correio da Manhã, então o maior jornal brasileiro. Mudou-se para o Rio de Janeiro e foi acolhido com respeitoso carinho pela nata da inteligência brasileira, embora alguns invejosos de sua cultura européia procurassem rejeitá-lo. Até outro exilado insigne - o grande romancista Georges Bernanos escreveu contra Carpeaux, mal informado por intransigente e mesquinho grupo de esquerda.

Considero a presença de Stefan Dias no Recife como altamente benéfica para nossa vida intelectual, tão fechada em sua mediocridade, malgrado os esforços da U.B.E.. Em vez de o repelir, os donos de nosso establishment cultural deviam acolhê-lo, como Otto Maria Carpeaux foi acolhido por gente do nível de Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Lins, Augusto Frederico Schmidt, Jorge de Lima, Otávio Tarquínio de Sousa, Lúcia Miguel Pereira, Aurélio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos e outros. Stefan Dias assimilou rapidamente os segredos da língua portuguesa, tendo como um de seus projetos literários a organização de uma antologia de poemas marcantes da literatura lusobrasileira. Seus poetas preferidos são, no Brasil, Mário de Andrade e, em Portugal, Sophia de Mello Breyner Andresen. Quanto a mim, já escolhi para essa antologia o “Momento num Café” de Manuel Bandeira e “Epitáfio que não foi gravado”, do hoje esquecido Felippe d’Oliveira. A poesia de Stefan Dias, embora formalmente uniforme - versos brancos inspirados no Saltério - é tematicamente muito variada. Há poemas por assim dizer históricos, como alguns de Kaváfis, do Fernando Pessoa da Mensagem, ou do nosso César Leal de Os Heróis. Destaco, neste grupo, aqueles dedicados a Sócrates, Amílcar e Aníbal. Outros poemas são pictóricos, como os que falam de seus artistas preferidos: Jan Steen, Van Gogh, Edvard Munch, Piet Mondrian, Marc Chagall e Akira Kurosawa, cujo filme Sonhos inspirou cinco admiráveis salmos. Ele também envereda pela meta-poesia, como João Cabral de Mello Neto em seus poemas críticos. Inserem-se nesta linha os poemas do grupo “Cantos do Ser”. Destaco, ainda, os poemas políticos, inspirados pela tragédia da guerra civil na Iugoslávia; os religiosos, como o admirável salmo no qual parafraseia o Sermão da Montanha; além dos delicadamente eróticos dos ciclos “Flores do Tigre” e “Paixão”, sendo talvez o último deste tríptico a obra prima de Stefan Dias. Dele reproduzo as duas últimas estrofes: Lembro-me do vestido primaveril que acordou o bosque do canto dos rouxinóis nas madrugadas de maio da suave fragrância da macieira em flor que orientava as abelhas e da noite da erupção que devastou o verde da nossa ilha A vegetação ardia sob a poeira do enxofre o magma em fúria cobria as encostas E lá onde resvalava o beijo mais forte do mar sobre a desolada areia as aves esvoaçavam às revoadas à procura de uma outra terra

Há, ainda, cinco impressionantes salmos dedicados ao épico sumeriano Guilgamech, quase desconhecido entre nós. Até por isso, devemos ser gratos ao autor. Com tanta versatilidade, Stefan Dias tem um futuro assegurado na poesia de língua portuguesa, como já aconteceu com os poemas escritos em sua língua materna. Não adianta fecharem-lhe as portas: ele as arrombará com seu próprio valor. Com metáforas belíssimas como, por exemplo, “centelha da lembrança”, “muralha do esquecer” ou “janela do acordar”. Estamos diante de um poeta bilingüe, como Gil Vicente e Sá de Miranda (tão bons poetas em nossa língua quanto na castelhana), Fernando Pessoa dos poemas ingleses, o grego Kaváfis, que também poetou em língua inglesa.

Hotel Barramares, Piedade, Carnaval de 1997

EDSON NERY DA FONSECA

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