Dois Comentários a Estetas da Paisagem: Augustin Berque e Luisa Bonesio

July 25, 2017 | Autor: Pedro Andrade Mota | Categoria: Estética, Paisagem, Filosofia Da Arte, Histoire Des Jardins
Share Embed


Descrição do Produto

Pedro Mota DOIS COMENTÁRIOS A ESTETAS DA PAISAGEM Apresentados a um Seminário regido pela professora doutora Adriana Veríssimo Serrão – 2011-12:

AUGUSTIN BERQUE A ECÚMENA – CULTURA E PAISAGEM Comentário ao ensaio de Augustin Berque “A ecúmena: medida terrestre do Homem, medida humana da Terra” in Adriana Veríssimo Serrão (Coordenação), Filosofia da Paisagem. Uma Antologia, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011, págs. 187-199. Inclui algumas notas relativas ao ensaio “O pensamento paisageiro: uma aproximação mesológica” do mesmo autor e publicado na mesma antologia, págs. 200-212. I - A tese: Augustin Berque faz da experiência da “paisagem” um sinal da vontade de recuperação da unidade orgânica entre o “meio” e o “ser humano”. Esta foi destruída no mundo ocidental no século XVII no decorrer da revolução científica que determinou a oposição entre o mundo físico e a situação activa do homem enquanto vivência integral no seu mundo. Para o autor, tal acarretou o desaparecimento da unidade do homem com a natureza, caracterizada por três níveis: 1) o em-si das coisas e da natureza (mundo físico ou objectivo); 2) as relações ecológicas entre a espécie humana e o meio ambiente; 3) a paisagem, constituída como resultado e suporte de uma ordem simbólica e como naturalizadora da subjectividade colectiva. São esses três momentos que caracterizam a harmonia entre a espécie humana e o seu ambiente, vista pela perspectiva da geografia cultural.

2

A fim de conceptualizar essa unidade perdida, Berque propõe a noção de “ecúmena” como paradigma ou modelo da interdependência original e da necessidade final de objectivação das várias dimensões da existência humana enquanto sua “casa” ou “habitação”, e, por isso, essencial, entre homem e Terra. A “ecúmena” é definida por ele como a correlatividade da medida humana da Terra e da medida terrestre do Homem. Essa sua “casa”, essa sua “habitação” não é um mero produto de uma vontade subjectiva desenraizada de um território que, à força de uma desantropomorfização completa e do acento na funcionalidade de uma Natureza entendida doravante como objecto de uso, se tornou neutro e objectivo e passou a servir apenas como material de construção para um afastamento cada vez maior dessa mesma Natureza. II- O problema: Essa é a perspectiva do pensamento surgido da ciência mecanicista do Século XVII e culminada, no Século XVIII com Newton. Trata-se do “paradigma ocidental moderno clássico”, (p. 189, 2, par. 3) que descobre uma dimensão objectiva do real, geométrica e mecânica. Este real objectivo determina-se como sendo dotado de um espaço isotrópico, radicalmente diferente das grandezas antropométricas da sua ocupação ou da ergonomia que harmoniza as necessidades do corpo com as formas do ambiente. Opõe-se, portanto, aos “meios tradicionais” (p. 188, I, 1, par. 1) com que as sociedades antigas estabeleciam correspondências entre elas e o ambiente, simultaneamente simbólicas e ecológicas. “Assim é que as medidas anteriores ao sistema métrico se referiam comummente ao corpo humano, fosse directamente (como polegadas, pés, côvados), fosse indirectamente, usando medições técnicas variadas. Na França antiga, por exemplo, o arpente correspondia aproximadamente à superfície que um homem podia lavrar num dia com uma junta de bois”. Diga-se de passagem que nas sociedade anglo-estado-unidenses ainda se usam predominantemente unidades antropomórficas de medida. “Poderíamos multiplicar os exemplos deste tipo de correspondências que fazem do corpo humano o padrão do mundo ambiente e, por sua vez, moldam o ambiente à medida do Homem” (p. 188, I. 1, par. 1). Essas medidas da Natureza, pelas quais o Homem também se mede, não são mecanicistas mas fenomenológicas.

3

O aparente, determinado pela vivência empírica e pelas projecções antropológicas, não se opõe a uma realidade substancial oculta. Estes planos são interdependentes, manifestam-se essencialmente na percepção humana como vivência do mundo de que o Homem faz parte. Tanto as medidas físicas e as correspondências entre as particularidade do Homem, da sociedade e da Natureza, quanto as interpretações simbólicas da Natureza traduzem uma comunidade de sentido que faz da “habitação”, do oikos, a sua natureza inorgânica. Husserl, fenomenólogo, em A Origem da Geometria refere precisamente o rigor absoluto e indiferente da matemática a uma padronização dos meios práticos antropomórficos de medida, chamando a atenção, como também o sugere aqui Berque, para o esquecimento da ciência e da tecnologia das suas origens humanas e sociais, um esquecimento de importância civilizacional que começou no Século XVII. Este real objectivo caracteriza-se também por um tempo linear constante medido por máquinas, indiferente aos ciclos do trabalho humano, ao lazer, às festas, aos mitos, aos rituais sociais e aos ritmos variáveis dos motivos ou móbiles morais e psíquicos dos indivíduos, assim como à energia do seu corpo, em suma, à sua subjectividade. Enfim, a tecnociência ajudou o homem a dominar materialmente a Natureza em seu proveito, embora à custa de transformar, por essa mesma via, os seus meios de domínio numa nova necessidade objectiva e incontornável, que, por sua vez, vai destruindo inexoravelmente o oikos, medida do próprio Homem. É preciso relembrar que houve sempre, por parte das sociedades e do Homem, um trabalho simbólico da Natureza, quando esta, pela sua grandeza, não se deixa controlar materialmente Assim, as sociedades estabeleciam uma correlação indissociável entre elas, o homem e a Natureza, referindo-se, em termos simbólicos, a esta e esta a elas e a ele. Tanto física quanto simbolicamente, as sociedades tradicionais estabeleciam uma medida comum com a Natureza. “Assim, os meios tradicionais formam um todo orgânico, tanto físico como fenoménico. Neste, cada ser e cada lugar são animados por uma medida comum, a do mundo ambiente, que os impregna profundamente de sentido.” (p. 189, par. 2).

4

Mas a perspectiva mecanicista separa o que não deve ser separado. As sociedades, nas quais os indivíduos se desenvolvem e se podem realizar, não podem ignorar a Natureza que lhe dá a subsistência. A Natureza não lhes fornece apenas os meios físico-químicos com os quais constroem uma nova realidade, que lhes aumenta o poder e os defende dessa mesma pátria universal. A Natureza é a “medida terrestre do Homem”. Em suma, o que sucedeu com a revolução económica (tão bem documentada por Thomas More na sua Utopia), científica (Francis Bacon e sobretudo Galileu), filosófica (Descartes) e tecnológica foi a oposição entre mundo e sujeito (igualmente bem exposta por Descartes e tornada sintomática nas obras de Montaigne e de Pascal), entre realidade objectiva (homogéneo, isotrópico, infinito, ética e esteticamente neutro) e o mundo fenoménico do indivíduo, onde, como diz Berque, “as coisas e os lugares são sempre qualificados pela sua relação com o sujeito” (p. 189, 2, par. 2) e onde, evidentemente, também o sujeito se qualifica pela sua relação com as coisas. Ora, é precisamente pela dupla causa da dualização científica da realidade e do individualismo (burguês) que se vai ver destacar o sujeito moderno, essa subjectividade individual espiritualizada, essencialmente distinta do corpo e da matéria, que – acrescento eu –, tanto no plano da ideologia quanto no do direito e no dos fins económicos, realiza a sublimação do Homem cristão como substância pensante que se serve da Natureza com arrogância. Segundo Augustin Berque, estão assim dadas as condições para o desprezo da Natureza pelo Homem, tiro que lhe vai sair pela culatra. A Natureza perde toda a medida com que se possa comparar com o Homem. Instaura-se a desmesura. Desaparece a tão conhecida correspondência humanista entre microcosmo e macrocosmo. Berque escreve que “As redes de comunicação, por exemplo, libertando-o cada vez mais dos constrangimentos da extensão e do peso das coisas, massacram, por sua vez, as paisagens que ele ama e exercem para com elas a “tirania do tempo real”.” (p. 190, par. 3), desse tempo medido e controlado pelos relógios. Na verdade, tais redes de comunicação não com a Natureza senão através dos vidros das janelas dos automóveis, abrem sulcos e feridas naquilo a que, de uma maneira talvez nostálgica, se terá começado a chamar de paisagem.

5

No início do Século XX dá-se uma espécie de ricochete científico: é a crise do objecto. Então, duas correntes do pensamento manifestam-se contra a visão cientista da ciência, contra a ideia de que o controlo mecânico da Natureza é a solução para todos os problemas da Humanidade. A fenomenologia, com Husserl e Heidegger declara que, como escreve Berque, “a Terra não pode ser considerada pelo sujeito como um corpo (Körper) entre outros objectos celeste, pois ela é o solo (Boden) que funda a existência do próprio sujeito”. Ironizando Galileu, Husserl escreverá em 1934 que “a Terra não se move”. (p. 191, 3, par. 3). Contudo, Berque considera que, em última análise, a tese fenomenológica não colhe completamente. O defeito que Berque lhe encontra não é todavia maior do que as suas virtudes, das quais muito bem se apropria, nomeadamente através da etologia de Uexküll. (p. 208, par. 1) De resto, apropria-se também, de maneira implícita, do conceito de Aufhebung (superação-conservação numa espiral ascendente de integração) de Hegel, do qual faz um uso muito próprio, procurando sintetizar as suas influências. Em O Pensamento Paisageiro, escreve que “Heidegger foi o pensador que criticou mais radicalmente esta “desmundanização” [desenraizamento] (Entweltlichung). Por mais esclarecedora que seja, esta crítica apresenta infelizmente o inconveniente de ser incompatível com a tecnociência moderna, pois contesta-lhe o fundamento para mostrar que ela mais não é do que uma aproximação à verdade do ser, que restringe ao ente (das Seiende). Visto que a tecnociência determina o mundo actual, a sua desacreditação global torna a abordagem heideggeriana pouco operatória no seu próprio princípio; como distingui-la de uma simples recusa da modernidade?”. Com efeito, “não poderemos pretender solucionar os problemas do mundo actual por um simples retorno ao passado e sem o contributo da tecnociência” (p. 207, 3. Par. 1). O paradigma ecológico também não convence Berque. A concepção ecologista do mundo submete o Homem à Natureza como valor supremo de tal maneira que esta sem ele pode muito bem, e melhor, conservar os seus equilíbrios e manter os seus ciclos. O ambiente releva apenas do mundo do objecto. É a bio-esfera desumanizada. O Homem não faz lá nada. Mas o Homem não pode ser posto de lado nem sequer ser visto como uma mera espécie entre as demais. O Homem constitui uma dimensão ontológica da realidade, com os seus

6

domínios simbólicos pelos quais, escreve Berque, “se manifesta a subjectividade humana, individual e colectiva.”, objectivada nomeadamente na expressão Paisagística da Natureza. Nem a Natureza, com os seus regimes e ciclos, deve suprimir-se em função do Homem nem a subjectividade, que o caracteriza ontologicamente, deve ser suprimida para deixar a Natureza seguir o seu destino sem qualquer interferência humana. É porque Homem e Natureza estão condenados a uma medida comum, a menos que a Natureza condene o Homem precisamente por este condenar a Natureza. O sinal de que isso ainda não acontece mas está em perigo de acontecer é a paisagem como objecto para o Homem e o pensamento da paisagem como instrumento teórico de a preservar.

III- O Paradigma Ecumenal de Augustin Berque: A “ecúmena deriva do grego oikoumenê gê (etimologicamente parte da Terra ocupada pela Humanidade, procedendo de oikos ou “casa”, o lugar do acto de habitar). O paradigma desta relação essencial designada por ecúmena baseia-se em dois conceitos de “mediância” e “trajecção”: a) A espiral trajectiva e a mediância. O termo mediância provém da tradução por Berque de fudosei (noção de Watsuji Tetsurô, 1935), ou seja, aproximadamente, do carácter de mediação do meio natural da realização histórica do homem e das sociedades. Afirma Berque que “a história não se incarna senão através do meio, noção que [Tersurô] distingue do ambiente (Kankyô); porque no meio intervém a subjectividade humana.” Como já expusemos no início deste comentário, a mediância, citamos agora Berque, conjuga os níveis do em-si, ou das coisas e da Natureza, enquanto “extensão do mundo físico e objectivo”; “o das relações ecológicas que ligam a espécie humana ao seu ambiente; e o da paisagem, onde actuam as relações de ordem simbólica, pelas quais a cultura naturaliza a subjectividade colectiva.” (p. 193, II, 1., par. 3). Ora esta mediância realiza-se no espaço, como meio, e no tempo, como História.

7

b) Por isso, a mediância é uma trajecção, o movimento de interacção entre mundo subjectivo (humano, social, tecnológico, cultural) e o mundo objectivo, movimento pelo qual se produz uma “realidade trajectiva”, ou seja, uma síntese que já não é puramente Natureza nem mera subjectividade potencial. Assim, a ecúmena aparece como a “casa”, o oikos, na qual não há apenas o Homem, com a sua actividade potencial, de tendência subjectiva e singular, ou seja, de diversificação cultural, nem apenas as matérias particulares da Natureza, que se comportam de acordo com leis universais. A ecúmena é e própria mediância entre Natureza e Homem num movimento de trajecção. É por isso que a ecúmena, a nossa “casa”, não pode ser administrada apenas nos termos da ecologia, universais e objectivos, relativos à Natureza enquanto ambiente, nem em termos meramente fenomenológicos, próprios da visão subjectiva e cultural que não tem em conta os processo universais objectivos da Natureza. A medida do mundo ambiente: Junto com os conceitos eventualmente operatórios (orientadores teóricos da acção eficiente) que caracterizam a ecúmena (mediância e trajecção), Berque reconhece a incomensurabilidade da medida dos fenómenos objectivos com a percepção subjectiva dos mesmos. Berque vai então introduzir a hipótese de que no mundo opera uma “lógica de escala” na qual um princípio lógico natural suporta e é, de algum modo, superado / conservado por um princípio lógico subjectivo, o princípio da cultural, da subjectividade. O primeiro é o princípio de identidade (A não é não-A), fundador do conhecimento científico. O segundo, que poderíamos chamar também por princípio da metáfora ou de identificação, consiste na forma: A torna-se não-A. O primeiro, predominantemente espacial, comanda o pensamento e a prática do engenheiro, o segundo, assumindo o movimento temporal da subjectividade, pelas suas funções de deslocação e de condensação, comanda o artista. Que conclusão se pode extrair desta lógica dupla? Os sistemas de conhecimento e de acção não são totalizadores mas relativos à escala e ao domínio nos quais se aplicam. E assim as regras que se usam para controlar as forças da Natureza não podem ser as mesmas que se criam para definir os lugares nos quais se realiza e se singulariza uma cultura em consonância com o meio no acto de produzir física e simbolicamente uma “habitação”.

8

Dando agora a palavra a Augustin Berque, no momento em que ele se refere ao problema da relação entre a arquitectura e o meio, ao problema dessa específica prática relacional do Homem com o meio, ao problema da conversa harmonizável das obras humanas com o meio: “Não se trata certamente de abandonar as referencias objectivas que originam a modernidade. Pelo contrário, o respeito pelos sítios e pelas situações impõe, entre outros, o conhecimento objectivo dos ecossistemas, que diferenciam o espaço físico (as construções humanas anteriores fazem aliás parte integrante desse espaço). Uma tal arquitectura não renega a modernidade; ultrapassa-a. [...] esta arquitectura, que é relacional, é aquela, simultaneamente ecológica e simbólica – uma arquitectura eco-simbólica –, que recoloca o microcosmo humano de acordo com as leis objectivas dos próprio macrocosmo.” (p. 195, par. 3) Se o Homem precisa de construir, que não o faça de uma maneira arrasadora. Tem que haver um “jogo dos limites” (p. 197, par. 2) através do qual se permita a coexistência da diversidade, campos formais e campos contemplativos e campos vegetais e animais, pois tudo isto são signos objectivos onde se espelha subjectividade do Homem. Em O Pensamento Paisageiro, Berque sumariza os traços breves deste comentário: “O que se exprimia no pensamento paisageiro de toda a sociedade humana antes da descosmicização provocada pelo dualismo e pelo mecanicismo modernos era a mediância em acto, onde concretamente as coias, os signos e os comportamentos se harmonizavam. Então podia existir qualquer coisa semelhante à composição urbana, por exemplo, ou ainda a harmonia de um belo campo.” (p. 198, par. 2). Ora bem, a paisagem é o meio dotado de um sentido. E, se é assim, este meio nos qual vivemos não é apenas uma superfície fenoménica como aparência das leis objectivas da Natureza. Ela é a objectivação do próprio sentido da vida do Homem e da existência das sociedades. A paisagem é um critério fundamental de humanismo da sociedade.

LUISA BONESIO. ANTI-HUMANISMO NA INTERPRETAÇÃO DOS LUGARES. UM COMENTÁRIO AO

9

CAPÍTULO “INTERPRETARE I LUOGHI” DO LIVRO GEOGRAFIA DEL PAESAGGIO. Luisa Bonesio, no capítulo “Interpretare i luoghi” do seu livro Geografia del Paesaggio (2001), escreve (p. 472) que “Os lugares são o rosto do nosso habitar sore a terra: o do passado, aí onde se possa ter sobrevivido ou se mantenha vivo; da ausência ou do retirar-se humano; ou marca presente do estilo cultural. Por isso, ler fisionomicamente a paisagem é cumprir uma viagem simultânea nas várias formas de actuação e de significação da cultura em âmbito natural ou histórico. Como uma espécie de sismografia, os lugares registam, muitas vezes de forma indelével, a amplitude e a profundidade da intervenção humana.” Regista-se, com efeito, neste parágrafo escrito por Luisa Bonesio, a ocorrência de dois termos que designam, sob diferentes sentidos, a acção humana: “actuação”, precisamente, e “intervenção”. Por este motivo, Luisa Bonesio declara ainda mais adiante, no mesmo parágrafo, que a via de acesso privilegiada à ontologia da paisagem não reside no sentimento, na sensação, na emoção (p. 472-473), embora a percepção estética da paisagem possa, com proveito, ser pensada com recurso à tese kantiana da “procura de uma verdade singular que não renuncie ao seu valor universal”, ou seja, a paisagem deve ser pensada como o lugar da vida do Homem no qual se opera a síntese do singular e do universal, o lugar no qual não é possível opor a presença imediata do ser na sua singularidade e a razão, com as suas pretensões suprasensíveis. Não há ciência senão do universal, escrevia Aristóteles, e esse foi durante milhares de anos o modelo científico dominante. Ora, no primeiro parágrafo deste capítulo, Luisa Bonesio manifesta um entendimento da relação entre Homem e Natureza que não pode enquadrar, por assim dizer, a paisagem como resultado tanto ontológico como estético de uma actividade imanente. A autora, em várias passagens, como a que vamos citar, afirma a necessidade de uma

10

iluminação transcendente, mesmo sagrada, para guiar os caminhos do Homem quando ele desbrava a Natureza. É que esse desbravar torna-se ele próprio um acto de selvajaria se não tiver por diante tal luminária. Interroga-se, com efeito, a autora: (p. 465) Não parecerá o tema da paisagem ser nos nossos tempos um tema menor “Um pouco como, em outro âmbito, aconteceu com a questão do divino e da teologia?” No parágrafo seguinte, continua o seu questionar, perguntando se (p. 466) “a última modernidade [...] está privada de alguma chave essencial, ou é talvez demasiado surda para perceber?”. A chave de que fala Bonesio é a resposta relativamente à coo presença de três temas, que considera os mais arriscados ou incómodos para a acomodação das pessoas à banalidade produtivista e consumista do quotidiano: o divino, o sofrimento, a beleza, a natureza. Estes temas não são heterogéneos mas interpelam-se entre si e interpelam o homem, que os ignora precisamente por questionarem no seu fundo uma existência de estilo operatório e funcional, que desatende, por isso, o fundamento e o sentido autêntico da própria vida. Por este motivo, Luisa Bonesio interroga-se (p. 466), com Jean-Luc Nancy, e de uma maneira assaz cáustica e, ao meu ver, anti-humanista, “se a um “homem” que não comparece mais perante Deus, que não reconhece mais o semblante divino, convirá ainda o nome de homem, assim como à sua sociedade o nome de comunidade. Não mais confrontado com o divino, o homem é presa da sua hybris, do crer-se medida das coisas. Enquanto tal não pode sequer reconhecer um limite à sua própria acção sobre a natureza; não pode portanto reconhecer a natureza, conhecer-lhe verdadeiramente a beleza. Na apropriação ilimitada de tudo, a beleza estrangeira da natureza perde-se na imbecilidade com a qual o homem viola sistematicamente limites e lugares, minando inexoravelmente a sua própria possibilidade de existência.” Lidas e destacadas estas passagens do artigo de Luisa Bonesio em apreciação, ficamos com uma ideia dos princípios

11

que ela defende e pelos quais faz a avaliação da relação do Homem com a Natureza. O seu manifesto anti-humanismo, expresso em frases acusatórias, pede uma resposta polémica rival. Parece que a razão humana é encurtada por Luisa Bonesio na sua autonomia e capacidade de auto-regulação e de conhecimento da verdade e dos valores que devem contar, precisando, portanto, da iluminação e da vigilância divina para regular as suas ideias e a sua actividade. A mesma autora também parece fazer da Natureza, não o meio de desenvolvimento do Homem, para o qual se deve dispor, ao mesmo tempo que, por idêntico motivo, deve ser protegida, não apenas em parques fechados à actividade humana para defesa da sua fisionomia prístina, mas por ser dotada de uma riqueza inestimável para gozo e equilíbrio humanos, dado que este é um ser que vem da Natureza e dela não pode abdicar, como em geral, nos próprios lugares onde aquela se efectua, para bem do Homem, mas um território sagrado posto pelo bom Deus e ameaçado pelo Homem. Acossado por Deus e pela Natureza, o Homem, sujeito do mal radical – bem pior do que o “mal” dualista de Kant –, nada mais pode fazer do que se penitenciar e voltar – fantasiosamente e sem o romantismo revolucionário de Rousseau – a um estado selvagem onde as malfeitorias da Civilização tenham sido arredadas. O diagnóstico é assustador, e com efeito só o pode ser, mas a solução não está à vista das capacidades humanas intrínsecas. Ora, a autora desconhece que foram as religiões do Livro, entre as quais o Cristianismo, que transformaram em dogma a crença na dualidade do Ser: o Espírito é santo e a Natureza é o mal. Espinosa, Kant e Feuerbach fazem parte de um património de emancipação da Humanidade que Luisa Bonesio põe de lado. O aforismo humanista de Protágoras “O homem é a medida de todas as coisas”, o imperativo kantiano “Ousa pensar por ti próprio”, a descoberta de Feuerbach segundo a qual a religião nada mais faz do que projectar a essência humana numa personificação sobrenatural, o próprio projecto de Husserl, prosseguido e aprofundado por Merleau-Ponty, de

12

fazer redescobrir o Mundo da Vida nessa unidade indissolúvel do Homem com a Natureza, para não falar da práxis materialista como interacção do Homem e da Natureza reais e objectivos de Karl Marx, são preteridos pela autora, que, para acautelar um mundo melhor, prefere o regresso ao passado no qual a impotência partilhava os seus medos entre as sombras da floresta e o castigo divino. Devemos dizer, contra a opinião de Luisa Bonesio, que a beleza, a bondade e a verdade não são impostos ao Homem como a mão de um sacerdote sobre a cabeça do fiel. O estranhamento consiste numa falta na apropriação pelo Homem da coisa que lhe importa, exterior ou mesmo exterior. A beleza é uma criação humana: não há uma beleza eminente que o Homem teria que respeitar como se fosse um ídolo ubíquo e sagrado. É preciso pensar o Homem como parte activa da Natureza e não como coisas que se opõem reciprocamente. E é por ele fazer parte da Natureza que transforma que a paisagem é ao mesmo tempo um facto concreto e uma percepção cultivada. A liberdade do Homem é a sua capacidade racional de agir de acordo com as suas necessidades. Uma necessidade fundamental é a de domínio, outra a de ordem e de proporção, outra ainda é a de conhecimento. Estes temas estão claramente interligados. A incomensurabilidade da Natureza prova isso mesmo – por contraste – ao despertar-lhe um sentimento de admiração e de transcendência face ao poder humano. A beleza da Natureza selvagem tem a ver com esse sentimento de uma realidade que nos supera em termos de poder e de conhecimento. Mesmo que nos sintamos confortáveis com o controlo das coisas, precisamos sempre (somos de resto obrigados) de nos por à prova, de nos testar no selvagem, até porque não deixamos de ter uma dimensão animal. A beleza não pode ser vista para além desta condição humana.

13

A beleza é a forma-sentimento da percepção, à vez dotada de sentido e de abertura, construída entre o controlo ou a ordem e a diferença ou a oposição dinâmica entre o Homem e os objectos. É um agradável frenesim, uma excitação, um entusiasmo, ou um espanto, um estado de encantamento, ou de atracção temerosa pelas magnificentes figuras da Natureza. A beleza não se reduz ao sentimento duma forma decorativa, que consiste no agradável. Vai para além deste. É uma vivificação, como diria Feuerbach, dos nossos sentidos universais. Mas para Luisa Bonesio, a beleza é uma “qualidade ontológica” (p. 470), o que diz muito do seu misticismo.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.