DOIS FILMES E UM ÓVULO SÓ

June 6, 2017 | Autor: L. Barreto Leite ... | Categoria: Politics, Historia Social, Cinema Studies
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MOSAICOS MOURISCOS

DOIS FILMES E UM ÓVULO SÓ LUIZ ALBERTO SANZ1 Dois filmes realizados em 1971, à distância de milhares de quilômetros por cineastas que apenas se conheciam, são os principais componentes deste mosaico. Você Também Pode Dar um Presunto Legal, de Sérgio Muniz, e Não é Hora de Chorar, de Pedro Chaskel e Luiz Alberto Sanz, formam – com fragmentos da realidade (ainda viva e vigente) de confronto violento entre o estado policial e o povo, no Brasil, e o processo de transformação do Cinema, particularmente na América Latina – uma unidade de alta complexidade.

VOCÊ TAMBÉM PODE DAR UM PRESUNTO LEGAL Você Também Pode Dar um Presunto Legal, de Sérgio Muniz, é um filme essencial. Como documento, arte, jornalismo e estética. Move-se pela linguagem do documentário mas, livre de preconceitos, dá ênfase a metáforas e assume a encenação como parte da realidade. Busca no Brecht de A Resistível Ascensão de Arturo Ui e no Peter Weiss de O Interrogatório as evidências que a repressão lhe impede coletar. Explora a transdisciplinaridade e dá um salto de qualidade. Não bastasse a força dos elencos dessas pecas (Guarnieri, Othon, Zanone...), conta com a interpretação vigorosa e cirúrgica de Lafayette Galvão repetindo as falas autênticas do torturador Sérgio Fleury. Arrisco: o filme é pioneiro em duas épocas tão distintas e cada vez mais semelhantes – a passagem dos anos 60 para os 70 (quando realizado) e a atual contemporaneidade (em que é lançado), momento cada vez mais retrógrado e conservador que, ao arrepio das evidências, arroga-se pós-qualquer-coisa. Presunto vai à essência daquilo com que lida, na interseção de duas condições, de dois tempos, lembrando Baudelaire – para quem o moderno era a tensão entre o eterno e o efêmero. Sérgio Muniz age em meio a e sobre:  A atualidade e a circunstancialidade do jornalismo, território do efêmero; faz uma crônica de sua época e das gentes, sejam protagonistas ou vítimas passivas.  A eternidade e a irredutibilidade da arte; persegue a expressão do indizível nas entrelinhas do discurso jornalístico-político-social.  O realismo definindo-se forma de aproximação e revelação da vida e do mundo, rompido com a obrigatoriedade de ser escola e estilo; faz um cinema que mergulha e traz à tona a realidade, oculta pela aparência.  A violência intrínseca do Estado, vivenciada nos extremos de um regime policial.

Luiz Alberto Sanz (Rio de Janeiro, 1943), membro do Conselho Editorial de letralivre, é jornalista e cineasta, pesquisador de Artes Cênicas e professor titular (aposentado) de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Premiado no Festival de Leipzig pelos documentários “No es Hora de Llorar” (Pomba de Ouro 1971, parceria com Pedro Chaskel – Chile) e “Kommunicerande Kärl” (Menção Honrosa, 1982, com Lars Säfström – Suécia/Brasil).

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 A História como continuidade, tradição e transformação, ao mostrar que a opressão contra os pobres e os diversos é perene e fundamenta a formação de algozes que também saberão agir contra transgressores oriundos das elites, pois sua finalidade é perpetuar e proteger o poder. É um filme autoral, característica das cinematografias progressistas, rebeldes e/ou revolucionárias das décadas de 60/70/80, mas, ao mesmo tempo, expressa um rompimento com a auto-referência do documentário feito por aqui, à época, geralmente neo-realista, naturalista ou corriqueiramente “realista”. Você Também Pode Dar um Presunto Legal, penso eu, constrói sua linguagem – como toda boa obra – do contexto em que o artista exerce o ofício e dos materiais disponíveis. Trabalhando na clandestinidade e sem recursos financeiros, quer dizer, sem grande mobilidade para realizar uma efetiva pesquisa de Campo, o documentarista recupera elementos de linguagern comuns em cinematografias mais pobres que a brasileira posterior aos anos de ouro do Cinema Novo. Envereda pelos caminhos do cinema de montagem, combinando diferentes tipos de fontes secundárias: notícias de jornais e revistas, anúncios, cenas de espetáculos teatrais, encenação de transcrições de depoimentos autênticos etc. Ações que lhe permitem construir um estranho mosaico em que encontramos parentescos com o americano Robert Flaherty, o uruguaio Mario Handler, o cubano Santiago Alvarez, o holandês Joris Ivens, o chileno Pedro Chaskel e o francês Chris Marker, por exemplo. Todos, mestres em olhar a realidade com olhos de perceber e que se aproximam do que o filósofo Roger Garaudy batizou de “realismo sem fronteiras”. Mas o filme de Sérgio Muniz, parte desta variada família, não é igual a nada que tenha sido feito até ou depois de 1971. É único. E o mosaico é estranho por combinar estranheza (condição essencial da interação simultânea de múltiplos fragmentos que por vezes se opõem, mas formam, finalmente, um conjunto) e estranhamento, aquela condição em que somos capazes de olhar o rotineiro como novidade. Seria muito fácil realizar um panfleto (como alguns dos melhores filmes de Alvarez) ou um ensaio (como toda a obra de Flaherty), mas Você Também Pode Dar um Presunto Legal se apresenta como manifesto. Penso no poeta russo Maiacóvski, já que, neste filme, conteúdo e forma são revolucionários. Lançado recentemente, Presunto vai enfrentar dois graves problemas, que possivelmente encontraria em menor grau nos anos 70 e 80:  A desinformação sobre o caráter essencial da repressão, alma do Estado, e os métodos que os governantes usam para exercê-la (desinformação para a qual os meios de comunicação e o próprio cinema brasileiro têm contribuído), bem como  o fato de que a pequena burguesia, hoje como ontem, em lugar de rejeitar os esquadrões da morte, considera-os um mal necessário; a diferença está em que, nos anos 60 e 70, os “esquadrões” matavam também os filhos da pequena burguesia; então, ela se revoltava. Não basta exibir Você Pode Dar um Presunto Legal. É preciso trabalhá-lo, discuti-lo e aprofundar a essência do manifesto que é. Sinopse:

Realizado clandestinamente em 1970-1971 (reeditado em 2006), o filme defende a tese de que o Esquadrão da Morte, chefiado em São Paulo pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, foi um ensaio geral para a Violenta repressão política que veio a seguir. Utilizando reportagens de jornais e revistas e noticiários de TV; cria um painel dessa época tenebrosa de nossa História. Recorre, ainda, a fragmentos de duas peças então em cartaz – A Resistível Ascensão de Arturo Ui; de Bertold Brecht, com o Teatro de Arena e O Interrogatório, de Peter Weiss, do Teatro São Pedro –, simulacros e representações de uma realidade impossível de registrar. Na edição final, Sérgio Muniz insere documento único filmado, no qual o delegado Fleury recebe condecoração da Marinha de Guerra, por serviços prestados.

Créditos: Som direto – Sidnei Paiva Lopes Fotografia – Francisco Ramalho e Sérgio Muniz Roteiro – Francisco Ramalho e Sérgio Muniz Produção, montagem, direção – Sérgio Muniz Participações especiais – Gianfrancesco Guarnieri; Lafayette Galvão; Othon Bastos, Zanone Ferrite Contato para exibição – [email protected] (att. Sérgio Muniz)

NÃO É HORA DE CHORAR A emoção pode se manifestar no espectador sem explicitar-se na tela. Esta é uma das teses principais que orientam, em 1971, este No es Hora de LLorar/Não é Hora de Chorar. Outra, é que a estética contém a ética, quer dizer, quando escolhemos e construímos a linguagem de um filme, estamos definindo como queremos que a realidade seja percebida pelo espectador. Tomamos posição quanto aos direitos do espectador à informação e a decidir por ele próprio sobre fatos e argumentos apresentados. Nada tem a ver com tomar ou não tomar partido, com ser ou não engajado. Quando nos unimos, Pedro Chaskel, simpatizante do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), já era um dos melhores e mais importantes cineastas latinoamericanos. Eu não passava de um estreante, com muita experiência na crítica e pouca no fazer cinematográfico. Era membro da Vanguarda Popular Revolucionária e um dos banidos a quem o Governo da Unidade Popular recebera em “asilo contra a opressão”, coerente com a letra do hino nacional chileno. Não é Hora de Chorar é um filme política e esteticamente engajado, de baixo custo, identificado com as posições das organizações que lutavam de armas nas mãos no começo dos anos 70 no Brasil e no mundo. Mesmo que utilize técnicas cênicas para “esquematizar” os processos de tortura, não é obra de encenação ou de enredo. Desde o começo, formulamos que o nosso seria um filme realista 2 e assimilamos influências dos realismos de Brecht e Ivens, que recusam a catarse e recorrem ao estranhamento para revelar o que se oculta sob as aparências; que chamam à razão mas não negam as emoções. É lógico que a formulação não foi assim tão racional e organizada. Nem fruto de um mergulho acadêmico e intelectualizado. Havia uma sintonia, uma forma de ver diversa, mas semelhante. Além disso, a realidade nos mostrava o caminho: para gravarmos as entrevistas só dispúnhamos de uma câmera e um gravador pesados e difíceis de transportar. 2

Essencialmente como revelador da realidade. Nada a ver com a chamada escola “realista”.

Então, nos instalamos na sala de projeção do Departamento de Cinema da Universidade do Chile (conhecido como Cine Experimental), pusemos na parede, como fundo, uma serigrafia com imagem dupla de Lamarca e a consigna “Nos es hora de llorar”. Agachei-me sob a lente, para que os entrevistados, ao olhar para mim, olhassem a câmera. Na verdade, formamos uma unidade: a equipe fala por meio da câmera. Ela nos metamorfoseia, é nosso avatar. É o que se percebe na tela. O movimento e a composição da imagem excluem efeitos emocionais. Os entrevistados se limitam a contar o que houve com eles e a câmera a registrar seus depoimentos em duas posições de zoom – plano próximo e close – sem explorar as possíveis e raras manifestações exteriores de suas emoções. Esses dois tipos de enquadramento – “naturais na televisão”, quase íntimos pela proximidade que o zoom produz – paradoxalmente, aqui, afastam em lugar de aproximar. É que a imagem fica achatada, sem profundidade; sem tridimensionalidade. É como olhar através de um microscópio. Acho que por isso a Sergio Muniz tanto impressionou o depoimento de Dora, tentando se conter, remoendo as palavras, falando da ameaça que fizeram de cortar-lhe os mamilos e também sobre a morte, por espancamento de Chael Charles Schreier no mal afamado quartel da PE na Rua Barão de Mesquita, Rio de Janeiro. Ou Carmela Pezzutti relatando a maneira como seus filhos serviram de objeto de pesquisa em uma aula de tortura dada em Belo Horizonte por um agente da CIA, Dan Mitrione, mais tarde executado no Uruguai pelos Tupamaros, tema do filme Estado de Sítio, de Costa Gavras. Não há lágrimas, melodramas, apelações. Em alguns casos acontece mesmo o contrário: Wellington oferece uma certa arrogância, um tom de orgulho pelo martírio e a vitimização. Roque, o preso mais antigo do grupo dos entrevistados, e o único operário, parece já ter conseguido elaborar melhor as manifestações da psicose carcerária e transmite, de um jeito seguro e simples, uma convicção sobre o papel que desempenhou e o que tem a desempenhar no presente e no futuro.

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