Dois futuros (e meio) para o projeto de lei do Carlos Ari

Share Embed


Descrição do Produto

Dois futuros (e meio) para o projeto de lei do Carlos Ari. José Vicente Santos de Mendonça.1 I - Introdução: o consequencialismo, agora por lei. O senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) apresentou, no Senado, o projeto de lei 349/2015, com o propósito de introduzir alguns artigos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil). O projeto de lei possui pedigree acadêmico: decorre de sugestão advinda do professor Carlos Ari Sundfeld (FGV-SP) e do professor Floriano de Azevedo Marques Neto (USP). Dez novos artigos seriam introduzidos na LINDB. A proposta consagra um conjunto de normas de direito público e de exegese juspublicística. Há desde exigências para o cumprimento do dever de motivação (ele seria cumprido indicando-se a necessidade e a adequação da medida, inclusive em face de possíveis alternativas [art. 20, par. único]), passando por exigência de constituição de regimes de transição quando da constituição de novos estados de direito (art. 22), e chegando, até, à criação de ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste ou norma administrativa (art. 24), de regime equivalente ao da ação civil pública. Pois bem. Considerando o evento acadêmico de que este livro é resultado, destacaria, dentre os dez artigos, o artigo 20 - o primeiro do projeto -, que parece ilustrativo dos méritos e impossibilidades da proposta.2 Diz ele, em seu caput, que "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão".3 Ou seja: caso o projeto se torne lei com a redação de seu art. 20, caput, haveria um dever específico para a motivação administrativa e judicial. Sob a provável pena de nulidade 1

Professor adjunto de Direito Administrativo da UERJ. Professor da UVA (RJ). Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. LLM por Harvard. Procurador do estado e advogado. 2

Faço referência, no título, ao "projeto do Carlos Ari", mas sei que, em sua gênese, ele conta com a contribuição do professor Floriano de Azevedo Marques Neto. Menciono o Carlos Ari porque estive na mesa de debates junto ao professor titular da FGV-SP no evento para o qual redijo este breve texto. 3

O projeto de lei, na sua redação original (ele recebeu algumas emendas, sem perder a substância, na revisão da senadora Simone Tebet), expõe sua filosofia a partir da utilização de certas palavras. Assim, por exemplo, a palavra "consequência" aparece duas vezes (no art. 20 e no art. 26); há, ainda, uso da expressão "consequências práticas" (art. 20, caput) e "circunstâncias práticas" (art. 21, p. único).

da decisão (o projeto não diz, mas a conclusão é óbvia), a sentença, o acórdão, a decisão da corte de contas, haveria que "medir" as "consequências práticas da decisão". A decisão até poderia se valer de "valores jurídicos abstratos", desde que medisse as consequências daquilo que estivesse pretendendo alterar ou manter no mundo. Há dois futuros possíveis para o art. 20, caput, do projeto. A eles.4 II - O primeiro futuro: a transformação da atuação administrativa e judicial. Este seria o resultado ótimo da lei. Neste futuro, autoridades não decidiriam o que querem, fundamentando a decisão em algum princípio da nova estação. O cenário seria menos ativista do que o atual: se julgadores estiverem vinculados à consideração e à medição das consequências práticas de suas decisões, o resultado será provavelmente menos revolto - para o bem e para o mal - do que o dos dias de hoje. Há, no entanto, dificuldades para se crer em tal futuro. A primeira é que ele consagra hipótese em que autoridades interpretativas abdicam de poderes por meio de interpretação de lei. Ora, foi justamente pela interpretação das leis, dos regulamentos e das constituições que o estado atual de coisas, pan-principiológico e ultra-ativista, consagrou-se. Numa analogia singela, seria como pretender curar um alcoólatra com um remédio à base de cachaça. E não é só isso: embora leis modernas adotem técnicas de empoderamento das autoridades decisórias (normas-quadro, conceitos indeterminados etc.), o fato é que não foi só por isso - e talvez nem especialmente por isso - que se chegou até aqui. Leis ajudam ou atrapalham, mas o que se tem é uma cultura de empoderamento simbólico de tecnoburocracias, em especial aquelas ligadas ao mundo do direito. Não é só porque a constituição fala em "melhor interesse da criança" que se criou um Ministério Público paternalista. É, antes disso, porque o promotor se percebe como alguém melhor do que o legislador, o administrador, os pais da criança. E culturas não se mudam apenas por meio de lei (mais sobre isso à frente).

4

Estou tomando o art. 20, caput, que me parece a norma mais significativa da proposta, como uma metonímia para o projeto de lei. Em todo caso, muitas das considerações aqui lançadas podem ser aplicadas para as demais alterações.

Há, ainda, dificuldades técnicas de diversas ordens. Uma lei que exige, como condição de validade da decisão, a medição de consequências, carreia problemas quase insolucionáveis sobre (i) o que é uma consequência prática, (ii) como elas podem ser expressas em unidades que permitam alguma comparação entre elas, (iii) qual será o critério que orientará essa métrica. Em outras palavras: exigir a medição de consequências práticas traz problemas de prognose, de comensurabilidade, de axiologia. Quem sabe seja, a pretexto de limitá-las, exigir demais - e daí necessariamente confiar demais - nas autoridades decisórias. III - O segundo futuro: a retórica das consequências. O segundo futuro é mais provável do que o primeiro. É o futuro do cumprimento insincero desta nova Lei de Introdução. O art. 20, caput, não traria dever real de medição das consequências práticas da decisão, mas dever de utilização de uma retórica de consequências. Deste modo, o comando não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão seria lido como não se decidirá sem incorporar, à gramática da decisão, alguma cogitação sobre consequências práticas. Aqui, a norma não gera controle da decisão, mas leva a que o estilo da decisão seja alterado. Este cenário, que não é transformador, é provável porque, em certa medida, já é realidade. Nota-se que, em algumas decisões, o STF, por exemplo, vem flertando com certo consequencialismo genérico. Na famosa decisão do habeas corpus 124306, o voto que alcançou a maioria da Primeira Turma, do ministro Luís Roberto Barroso, considerou as consequências práticas de se manter a proibição do aborto até o terceiro mês de gravidez. E é provável porque não só mantém o poder junto às autoridades decisórias, mas, também, porque supera as dificuldades técnicas de um consequencialismo consequente (afinal, bastaria mencionar consequências, e não identificá-las, medi-las, compará-las). Além disso, ele responde à necessidade, típica da prática do direito, por novidades irrelevantes. Se, ontem, a tendência era a ponderação, a proporcionalidade, Alexy e a Alemanha, hoje, talvez, o must seja o pragmatismo, o consequencialismo, Posner e os Estados Unidos. Vai-se a ponderação, entra o pragmatismo; fica, em todo caso, o decisionismo.

IV - Encerramento: o meio futuro: inclinações pragmáticas e mudanças de cultura. Mas talvez o futuro, assim como a verdade, esteja no meio. Nem uma transformação auto-abdicante de poderes, nem o inócuo acréscimo da palavra "consequências" às fundamentações. Um cenário de primeiro passo; de inclinações pragmáticas que testam caminhos. É que mudar a gramática do direito é mudar - um pouco - o mundo das decisões. O art. 20 do projeto talvez não tenha plena efetividade (isto é, não creio no primeiro futuro). A despeito disso, ele é importante, mais do que sugere o segundo cenário, pelo que sinaliza. O juiz que buscará "consequências práticas" para fundamentar seu decisionismo está sendo educado e constrangido por uma nova gramática. Além disso, uma coisa é discutir, à luz da decisão de licenciar o empreendimento, a "dimensão objetiva do direito fundamental à dignidade da pessoa humana enquanto dever de proteção"; outra é discutir se o estado de coisas A ("os peixes vão morrer na lagoa") é preferível ao estado de coisas B ("a hidroelétrica não será construída e provavelmente faltará energia na região"). Consequências práticas podem ser muita coisa, mas são menos coisas do que, por exemplo, a vis expansiva dos direitos fundamentais ou a dignidade da pessoa humana. Por isso, deve-se saudar o consequencialismo decisório de que o art. 20, caput, da LINDB alterada, promete ser expressão legislativa: se de fato culturas não mudam por leis, leis podem sinalizar zeitgeists e indicar caminhos. Oxalá a consequência deste projeto de lei sejam autoridades brasileiras obrigadas a pensar nas consequências de seus atos. ***

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.