DOIS HOMENS BONS. Texto teatral (2016)

May 26, 2017 | Autor: Marcus Mota | Categoria: Creative Writing, Dramaturgy, Teatro, Textos Teatrais
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1 DOIS HOMENS BONS

Marcus Mota Novembro 2016

HOMEM 1 Homem de 50 anos, advogado, vestindo terno, camisa para fora, barba por fazer, cabelo oleoso, pele oleosa, acima do peso. HOMEM 2 Homem de 50 anos, revisor de textos, calça jeans, camisa simples, tênis, cabeludo, óculos, cara de intelectual, acima do peso. MULHER Jovem lésbica de 20 anos, piercings, cabelos pintados de vermelho, toda de preto, calça justa, coturnos, e camisa de banda de rock, vestida para a balada. Um violão nas costas, sacola a tira colo.

Primeiro movimento Eles estão em um bar. Esperam ser servidos. HOMEM 2 (Levantando a cabeça, procurando um garçom) Não sei por que a gente continua a vir aqui. HOMEM 1 Calma, temos a noite inteira. HOMEM 2 Olha ali: tão todos em reunião, de costas pra nós. HOMEM 1 É sempre a mesma coisa. Deixa quieto. HOMEM 2 Vamos embora. Não aguento mais isso. HOMEM 1 Calma, neném: tu aguenta sim. Não vamos sair daqui tão cedo. Essa é a nossa noite. Toda semana a gente vem aqui, é mal servido, come a merda dessa comida e faz o que a gente quer. Tu queria algo mais divertido? HOMEM 2 Tava me esquecendo. Olhe lá, sabem que a gente tá falando deles. HOMEM 1 Toda hora aparece um assim lá no escritório, com uma historiazinha dessas de dar pena (riem) HOMEM 2 E como foi a semana? HOMEM 1 Muita desgraça, muita gente feia. Área trabalhista é igual doença venérea: pipoca uma coisa ali, outra aqui. Sempre pingando.

2 HOMEM 2 Pelo menos é agitado. Você faz algo mais útil que eu. Imagine passar o dia lendo o textos dos outros. Uma merda! HOMEM 1 Mais útil… Nós tamos é fodidos, mesmo. Essa coisa de lidar com gente não tem futuro mesmo. Eu tinha é que ter estudado outra coisa. HOMEM 2 Pior se fosse professor. HOMEM 1 Aí tu me sacaneando! (riem) HOMEM 2 Sério, se eu pudesse voltar no tempo teria feito outra coisa. Porra, quando eu ficava doente ou quando alguém lá em casa tinha alguma coisa, eu não sabia o que fazer. HOMEM 1 É uma merda mesmo. Mas se acontecer agora, tu vai na farmácia, fala com a bosta de um atendente que sabe mais que tu, e sai com uma sacola de remédios. HOMEM 2 Eu devia é ter sido químico, ou engenheiro, em vez de revisor de textos. Isso por acaso é profissão de homem?”O que tu faz?” Eu fico o dia inteiro lá no tribunal sentado em uma cadeira corrigindo textos de leis, normas, procesos e atas”. Puta merda! HOMEM 1 Ô empreguinho de merda! Pior é ser uma lata de lixo, e ficar ouvindo o problema dos outros, a bosta da merda alheia dessas vidas insignificantes. Ninguém vai lembrar de ninguém desses aí, ó, em pé, de costas pra nós, cochichando, rindo, nos evitando. HOMEM 2 Se eu tivesse sido um químico ou um engenheiro nada disso estaria acontecendo. HOMEM 1 Como assim? HOMEM 2 Primeiro, eu não estaria aqui perdendo meu tempo contigo e com esse bando de vagabundos. HOMEM 1 (rindo) HOMEM 2 Eu teria inventado algo que preste, ficado rico. E me livrado dessa merda toda. HOMEM 1 E depois? HOMEM 2 Depois o quê? HOMEM 1 O que tu ia fazer depois de se livrar de mim e dos garçoms? HOMEM 2 Como assim? Do que tu tá falando? HOMEM 1 Você mesmo quem disse. Eu não tô entendendo é você me juntar com esses caras. HOMEM 2 Quando você for alguém como um químico ou um engenheiro ou um médico você vai entender. HOMEM 1 Era só o que me faltava. Um bosta como tu me dizendo o que tá certo ou errado. Volta pra merda dos teus livros, seu bosta!

3 HOMEM 2 (rindo) HOMEM 1 A coisa que mais me irrita é ser comparado com essa gente. Não é por que trabalho com eles, não é por que preciso deles para pagar as contas que sou como eles. HOMEM 2 Cuidado com o que você diz, cuidado. Agora tudo é Direitos Humanos, politicamente correto. HOMEM 1 Tô cansado desse mundo! Agora ninguém pode dizer o que quer, o que é justo?! Agora ninguém pode expressar sua opinião?! HOMEM 2 E qual é essa sua opinião mesmo? HOMEM 1 A verdade é que eu estudei, eu me preparei, fiz o meu melhor e não posso ser igualado a essa gente. E mesmo depois de tudo isso, você vem aqui e me coloca no mesmo lado dos garçoms, e dos atendentes, dos serviçais, dos porteiros de bloco. HOMEM 2 Poderia ser pior: professores. HOMEM 1 Aí tu estaria de sacanagem! Aí eu teria que me matar! (riem. pausa. Vem um dos garçoms e traz o menu. Os dois homens o observam) HOMEM 2 Viu a casa de superior? Eu não tô dizendo?… HOMEM 1 Pior que esse puto teve a semana lá no escritório… HOMEM 2 Como é que é?! E o cara nem te reconheceu? (gargalhada) HOMEM 1 E daí? Pra que esse escândalo todo? HOMEM 2 ( Se recompondo) Tu tá mal mesmo: ou o cara te ignorou ou nem lembra de ti. HOMEM 1 E tu acha que eu faço questão de ser fazer alguma diferença pra bosta de um cara como esse? O patrão dele propôs um acordo trabalhista. Vai demitir todo mundo pra economizar em divídas trabalhistas. E o nosso garçom esperto aí quer mais. Daí me procurou para montar um esquema. HOMEM 2 E tu vai fazer isso? HOMEM 1 Claro! E já até negociei com o patrão dele também. Todo mundo sai ganhando. Todo mundo. Faço isso o dia inteiro. Todo mundo faz isso. HOMEM 2 Mas se todo mundo for demitido, o bar vai fechar! Isso não pode acontecer! HOMEM 1 Não esquenta: é só manobra contábil. Depois o cara recontrata esses merdas. Isso aqui nunca vai fechar. Nunca. As pessoas precisam sobreviver. E o mundo é cheio de miseráveis. Já escolheu? HOMEM 2 Vou no de sempre. O melhor é sempre a mesma coisa. HOMEM 1

4 Bora: a gente racha essa carne de sol. Tô com uma fome. HOMEM 2 Agora é esperar algum deles virar a cara pra cá. HOMEM 1 E lá no tribunal? Mesma merda? Mesma merda. Ler aquelas bostas de processos e revisar, revisar. HOMEM 1 Se tu fosse um engenheiro… HOMEM 2 Ou um químico… (RIEM) Olha, vou te falar: tem hora que dá vontade de fazer umas mudanças nos procesoss, sabe. HOMEM 1 Como assim? HOMEM 2 Mudar sentenças, alterar nomes de beneficiários, fazer uma baguncinha. HOMEM 1 Baguncinha? HOMEM 2 Li o caso de uma mulher indenizada quinze anos depois da morte do marido. O marido entrou com a porcaria de um processo e morreu esperando. Então a mulher dele recebeu a grana. HOMEM 1 E era sobre o que o processo do cara? HOMEM 2 Não me lembro, não me interessa. Só sei que não gostei disso, da mulher ganhar no lugar do cara. Me pareceu meio estranho, senti a vontade de mexer nisso, de fazer alguma coisa. HOMEM 1 Que bobagem! A gente nunca fez nada por ninguém. HOMEM 2 Não tô falando em ajudar, em ser bonzinho. Eu tô é pensando em mim, no que eu senti. Não queria essa grana toda pra ela. Quem é essa mulher? O que ela fez pra receber todo esse dinheiro? HOMEM 1 (rindo) HOMEM 2 Estou cada vez mais com ódio de ver tudo isso passando pelas minhas mãos, todo mundo ganhando alguma coisa e eu nada, nada. A gente precisa fazer alguma coisa. Tá tudo mudando, as coisas indo pra pior. Eu sinto que cada dia mais e mais gente como essa aí e outras, todos estão numa boa, falando, aparecendo, se dando bem. E a gente cada vez mais prá trás, largados. HOMEM 1 Então volta lá e altera o processo. Corrige, senhor revisor! Corrige! HOMEM 2 Por isso eu queria ter estudado algo que preste, algo útil. Acho que meu ódio vem disso, dessa vida nossa, dessa situação. Antes eu não era grande coisa, mas hoje eu tô lá em baixo, longe dessa gente. Nunca me esqueço quando eu vi quem eu era, o quanto diferente eu era deles. Agora virou isso, essa bagunça. Essa mulher inútil que ganhou o processo às custas do marido morto é muito, mas muito melhor do que eu. HOMEM 1 Calma, velho, calma. Nesses novos tempos a gente tem que ser mais cuidadoso. Ódio é uma coisa muito séria. Todo mundo tá de olho em todo mundo. A gente tem que ser esperto.

5 HOMEM 2 Olha lá os caras, o grupo unido. Como eles são unidos. Dá vontade de ir e meter uma faca nas costas deles! EU tô com fome! HOMEM 1 Deixa disso! Se controla. Vou te contar uma coisa que aconteceu comigo. HOMEM 2 Tudo culpa daquela viúva de merda! Aquela puta! HOMEM 1 Olha, me escute: eu tava essa semana em casa, no quintal, brincando com os cachoros. A mulher lá dentro com as crianças. Então escutei uma gritaria na rua, um barulho de sirene da polícia. Isso acontece toda hora lá no bairro. HOMEM 2 Se tudo tivesse estudado medicina… HOMEM 1 Foi aí que me apareceu no portão um garoto apavorado, todo sujo e ensanguentado, o miserável de um garoto pedindo ajuda, como se eu fosse largar meus cães e abrir o portão pra ele. HOMEM 2 (risada de desdém) HOMEM 1 FIcamos assim um de olho no outro por alguns segundos, eu quase soltando os cachorros pra cima do desgraçado. Ouvi uma freada, a porta de um carro se abrindo, e gente correndo. O moleque saiu correndo. Depois tiros e gritos. E eu ali firme. A mulher veio correndo apavorada pra cima de mim, as crianças atrás. Eu me virei pra ela e a empurrei as berros, falando que as crianças estavam descalças, que podiam machucar os pés ou pegar alguma gripe, que ela era irresponsável, que toda a nossa vida sempre foi assim, essa correria inútil dela, essa perturbação, e eu tendo que fazer tudo, trabalhar e cuidar da casa, dela e da rua e da cidade, pra que tudo acabe bem um dia, e que eu tô de saco cheia dela, e das noites mal dormidas, e da falta de tesão dela, e dos gastos, e das barulho das crianças, do cheiro das crianças, da bagunças das crianças, que a gente não devia ter tido filhos, que a gente não devia nem ter se casado, pois gravidez não é doença ou condenação, que a gente bota filho no mundo e depois cresce e acaba com a gente, e a gente acaba num portão pedindo ajuda pra morrer com uma bala na cabeça e outra nas costas. HOMEM 2(Batendo Palmas) Solta essa língua, homem! Solta! HOMEM 1 Tava entalado, tava entalado! HOMEM 2 Maravilha! Ao fim tudo serviu pra você falar dela, da vaca! Tava demorando. HOMEM 1 Não me fala o nome daquela mulher! Não me fala! (Gesto de puxar descarga do banheiro. O HOMEM 2 repete o mesmo gesto em resposta) Agora deu fome mesmo! (para o Garçom) O Garçom! Garçom ! HOMEM 1 (olhando para o relógio) Pára! Pára! Agora já foi. Você tinha que se controlar: mais dez minutos e a gente batia o record. HOMEM 2 Depois dessa sua história eu me empolguei. Toda essa confusão apenas pra dar um esporro na tua mulher. (rindo) Pensa que me engana? Há quanto tempo a gente vem aqui? O mesmo lugar, os mesmos garçoms… o dia mais esperado da semana. Garçom! Garçom!

6 HOMEM 1(olhando para o relógio) Se tu fosse um engenheiro ou químico tu se segurava mais. A gente tem muito tempo, a noite inteira. Esse caras tão aí pra isso pra nos provocar, pra nos fazer mais fortes. HOMEM 2 Pelo menos não sou professor . Ou músico. (Riem) HOMEM 1 Pois a porra do moleque que veio me pedir ajuda lá no portão de casa era músico! HOMEM 2 Não acredito! Um a menos. Se eu fosse químico ou médico inventava uma jeito pra nunca nascer alguém assim. Eu acabava com a música do mundo. HOMEM 1 Seria uma das maiores contribuições para a paz mundial. Ninguém mais quer ouvir os outros. HOMEM 2 Então tu conhecia o cara? Aí ficou melhor tua história. HOMEM 1 Conhecia desde pequeno, o garoto do violão. Ô moleque chato! Eu falava pros meus filhos pra ficar longe daquilo. Lá em casa não tem música, pra não contaminar. Já basta minha mulher falando o tempo inteiro. HOMEM 2 Não sei como você aguenta. HOMEM 1 Quando eu olhei no portão e reconheci o desgraçado, ah.. pra mim foi mais fácil, uma felicidade. Ganhei o dia. Veio na minha mente todas as vezes que esbarrei por ele no caminho de casa, ele tocando umas porcarias e pedindo dinheiro. HOMEM 2 A rua tá cheia de gente assim. Cheia… HOMEM 1 Eu conhecia o garoto, o pai, a mãe, e os irmãos - toda a família. Meu pai deve ter brincado com o pai dele. Eu cresci vendo aquela família na rua. Nunca fizeram nada além de pedir ajuda, a vida inteira na esmola e na cantoria. HOMEM 2 Eu tenho um ódio dessa gente! Ódio. Eu indo pro tribunal, e eles no caminho. CHego no tribunal e eles brotam nos processos, todos eles pedindo e recebendo coisas. HOMEM 1 A mãe dele sempre grávida, cercada por papelões e filhos no chão. Olha, eles se reproduzem como animais: toda semana uma ninhada nova. HOMEM 2 Nem me fala, a cidade, o mundo tá cheio deles. Eles estão em todos os lugares. HOMEM 1 Quando minha mulher ficou grávida, eu via na minha casa aquela porca suja enorme da rua. Eu tinha certeza que eles se mudaram lá pra casa. Era o mesmo cheiro, a mesma musiquinha, o mesmo olhar de pedinte na cara. Um horror! E tudo de novo com o segundo filho. Quando vi o moleque doido no portão me pedindo ajuda, eu sabia o que fazer. HOMEM 2 Esse garçons aí são filhos da porca. A rua miserável e desgraçada nos devorando. A gente tem que reagir, a gente tem que fazer alguma coisa. HOMEM 1

7 Viu, não estudou algo de bom, algo útil? Agora só sabe reclamar, reclamar. Que pai no mundo deixa um filho fazer Letras? “Ah meu filho, que lindo. Você quer passar 4, 5 anos de sua vida lendo, lendo, sem fazer nada, pra depois passar a vida toda lendo, lendo? Dou o maior apoio. Seja feliz e ganhe muito dinheiro com sua profissão” HOMEM 2 Um pai desses devia ser enforcado, o corpo esquartejado, as partes do corpo jogadas pra porca que mora na rua com seus filhos. HOMEM 1 Pior foi eu, que nunca gostei de ninguém, que nunca estendi um braço, que nunca dei ou recebi um abraço, e agora me meti na merda de um escritório resolvendo problemas dos outros. É uma tortura! Parece que minha mulher e as merdas das crianças correm nos procesos, bagunçam minha mesa e minha cabeça, trazendo suas queixas, seus ganidos, seus pedidos. E o idiota aqui é quem tem que resolver, o idiota que estudou leis e documentos, e tudo de mais inútil do mundo. E pra quê? Pra quê? HOMEM 2 De novo a tua mulher… (rindo). A gente sempre volta nela. Olha que ela pode vir te visitar aqui.. HOMEM 1 Mas nem brinca com isso! Não me assusta! HOMEM 2 E por que não? Até a porca velha gorda e grávida lá da rua vem aqui pedir água e uns trocados… HOMEM 1 Tu tem cada ideia. Volta pro teu kitinete alugado e cheio de livros. Volta pra merda do teu refúgio. HOMEM 2 Ia ser engraçao ela aqui, entrando por aquela porta. Eu queria ver a tua cara. HOMEM 1 Mas que brincadeira estúpida é essa?! Eu já combinei lá em casa. Hoje é meu dia. Todo homem precisa de uma dia só seu. Ela lá com as crianças, e eu aqui longe, com os da minha espécie. Também eu tô pouco me fudendo com o resto, se é certo, se é errado, se ela concorda ou não. Só sei que eu mereço esse lugar, que ela até adora quando eu saio. Pois o pior é quando eu volto. Sempre foi assim, com meu pai, com o pai do meu pai. E vai continuar sendo, pelo menos lá em casa. HOMEM 2 Tudo bem, concordo. Parece que tá falando com ela… (riem) HOMEM 2 Olha, Nas minhas horas vagas, que são muitas, eu tenho inventado umas coisas na minha cabeça… HOMEM 1 Sério? Nada importante, não é? HOMEM 2 Eu vejo que cada vez mais tudo tá tão errado, tão fora do lugar , que não adianta mais consertar. HOMEM 1 Gênio!!! E o que você sugere - uma bomba, uma guerra, uma revolução ? HOMEM 2 Há uma outra maneira. Quando você era criança, você brincou de “Quem é o mais forte?” HOMEM 1 Não brincava de nada, nunca brinquei. Nem deixo meus filhos perderem tempo com jogos e diversão. HOMEM 2

8 Era assim: eu odiava um gato que tilha lá em casa. Toda a atenção do mundo era para o pobrezinho do bicho. Todos preocupados com a saúde do animal. Até que um dia ficamos ele e eu sozinhos na sala. HOMEM 1 Tu matou o gato? Essa é a brincadeira? Só isso? HOMEM 2 Não: eu encarei o bicho, olhos nos olhos, eu e ele, frente a frente, sem piscar. Movi todo meu ódio para aquela bola peluda, sem dizer uma palavra. Apenas desse jeito, eu mostrei que era o mais forte, que mandava ali. HOMEM 1 Que besteira! Perda de tempo mesmo Só isso? HOMEM 2 Calma. Toda vez que a gente se encontrava, era a meesma coisa - o tempo parava, o mesmo silêncio, o duelo afinal. HOMEM 1 Mas… mas… que duelo?!! Era só a porra de um gato! Um gato de merda! HOMEM 2 Espera.. Dias depois o gato foi ficando doente, doente. Nenhum remédio ou comidinha especial adiantavam. Até que sumiu, derreteu: virou ossos, baba e pó. HOMEM 1 Então tu matou o gato! Resume! HOMEM 2 Enquanto ele definhava, eu me sentia melhor, mais esperto, mais cheio de mim. Isso mudou minha vida. Meu ódio me libertou. Não tô nem aí pro gato, pros aleijados, pros vendedores de loteria, pra mulheres grávidas e afins. Especialmente pros garcons! ELe são a coisa que eu mais odeio, o gato em minha frente. E basta eu olhar com todo meu ódio que eles somem, pele e osso, um vazio escorrendo pelo canto da sala. HOMEM 1 Se você fosse um engenheiro ou algo parecerido ia inventar algo melhor para se livrar desse bichano. O fato é que nenhum garçom até agora nos atendeu. E vamos ficar assim a noite inteira nesse bar de merda. HOMEM 2 Vou resolver isso agora (Olha firme para onde estão os garçoms) HOMEM Não me diga que você… HOMEM 2 “Eu te odeio, miserável peludo! Te odeio! Estamos agora frente a frente, mas tudo isso é por acaso. Eu sou mais um cliente pra você, você que trabalha por salário, de olho no relógio e no fim do mês. Sua mulher sozinha em casa, na merda do quartinho apertado da merda do bairro que você mora. Todos esses anos vindo aqui, se sujando do suor dos outros, da mesa suja dos dos outros, da comida e da bebida que os outros pedem e bebem e comem. Todas as noites você aqui, a sua prisão, a sua bem peluda e imunda prisão. Sai daqui, bichano! Morrra, fera estúpida! Morra! Morra!” HOMEM 1 (rindo) Se eu não te conhecesse, se não soubesse que tu mora sozinho na porra de um kitinete de merda ia achar que tua mulher e teus filhos tavam de enlouquecendo. (rindo) HOMEM 2

9 Viu? o garçom tá vindo. Quem é o bosta agora? O bichano tá vindo nos servir. Essa vai ser uma noite maravilhosa. Eu vou colocar em ação alguns experimentos. A gente vai vencer a porca! A gente vai vencer. HOMEM 1(vendo o Garçom em sua direção) Tu é um cara muito doido! Eu não acredito! Eu não acredito (rindo)

Segundo movimento A mesa está posta, um prato enorme de carne de sol. Duas jarras de suco. Dois copos. Uma mulher parada em pé diante deles. Após um tempo ela fala.

MULHER Fogo? (Eles se olham apavorados). Eu perguntei se tem fogo, tio! Vocês não são daqui? Speak english? Parle français? Hablas espanhol? (Eles continuam congelado) Posso me sentar? Já to sentando. Minha carona pra balada vai passar aqui na frente. É rapidinho. Vamos pruma baita festa LGBT. Pra relaxar. Ficamos a semana inteira em uma ocupação na universidade, sabe. Coisa política, entenderam. E essa comida, ninguém vai tocar não? (Pega um pedaço de carne). Tô com uma fome. (Pega outro pedaço e fala com a boca cheia) E o que que tá pegando? Qual é a de hoje? Vocês são o quê? Deixa ver se eu adivinho: (pro advogado) você é casado, tem dois filhos homens e odeia sua mulher. Odeia seu trabalho e vem aqui uma vez por semana pra se regenerar com seus amiguinhos. Tá com as veias todas entupidas, exame de próstata vencido, e não consegue dormir há meses. Vai estourar a qualquer momento e cair morto indo pro banheiro vomitar a comida entalada nessa sua enorme barriga de porco. E você? Vocé é a outra parte do casal: o coitadinho que passa a noite inteira esperando catando as migalhas de atenção de seu amor. Não tenhum muito que falar de você. (Coloca as duas pernas na mesa). Vocês pertencem àquela raça de gente que nunca morre, que insiste contrariar o progresso da humanidade. Há muito tempo as coisas mudaram e vocês continuam a agir e pensar como nas tribos ou nos currais. Pra vocês há sempre uma escolha, a verdade, o que se impõe pela força. Mas olhem em volta, pra longe desse bar vazio: estamos nas ruas, nas casas, nas escolas, na mídia, no poder. E viemos pra ficar. Ninguém vai nos fazer voltar pro buraco de onde saímos. Meu pai me queria de vestidinho e cabelo preso. Eu calcei uma bota, vesti minha capa e vazei. Vazei. (Levanta-se e gira em torno deles) E beijei todas as bocas, e me abri pra todas as ideias e mãos. E eu gosto de carne, porra! Eu adoro a noite, caralho! E vou onde eu quiser, cacete! Ninguém vai dizer que uma mulher não pode, não deve, não é! Puta que pariu! (rindo. Senta-se. Pega a bebida deles. Entorna. Dá um tapa nas costas deles) E aí, viadinhos, qual é a boa hoje? Tem fogo? (Levanta-se arrumando a calça apertada, como se fosse um homem). Aí ó: vou ali dar uma mijada e já volto, meninas. (Sai rindo) HOMEM 2(apavorado) Ela vai voltar, ela vai voltar! HOMEM 1 Mas como é que ela sabe tudo isso? Ah, Ela deve estar estudando engenharia. Tenho certeza! Certeza! HOMEM 2 O que a gente faz? O que a gente faz? HOMEM 1 Isso é que mulher! Queria uma filha assim. Trocaria aqueles dois moleques por ela. Na hora.

10 HOMEM 2 Como é que é? HOMEM 1 Eu sempre falo pra mim mulher que ela tá estrangando os meninos. Parecem duas bichinhas. Não pode isso, não pode aquilo. Tem que ser assim, pé na mesa, coçando o saco, batendo no peito: “Aqui quem manda sou eu! “ HOMEM 2 Tu tá maluco? Tu não viu que… HOMEM 1 Só não gostei muito dos palavrões. Achei desnecessário ficar falando desse jeito. Isso pode ofender as pessoas de família. HOMEM 2 Vamos embora antes que ela volte. A noite acabou pra nós. HOMEM 1 Acabou pra ti. Eu vou ficar aqui até o fim. Gostei dela. Eu gosto é de mulher assim, pingueluda. Tenho horror a mulher mulher, mulher mulherzinha. Horror! Vou me bater com ela, vamos nos amar e nos ferir. HOMEM 2 Mas tu não come nem tua mulher! Há anos a gente vem aqui e a única coisa que tu pegou foi gastrite. HOMEM 1 E quem é a porra do solteiro punheiro aqui da mesa, hein? Quem é que nunca fala de mulher, que vive reclamando da vida igual uma dona de casa viadinha? HOMEM 2 Pelo menos não peguei a gorda lá da rua, a porca. HOMEM 1( indo com as mãos na boca do amigo) Cala a boca! Cala a boca! HOMEM 2 Tira as mãos de mim! Todo mundo sabe! Acho até que os filhos da porca são teus! HOMEM 1 Mas que loucura! Alguém pode ouvir essa merda! HOMEM 2 Vive falando dos desgraçados, vive falando dessa mulher! HOMEM 1 Pare com isso! Pare! Ela pode chegar HOMEM 2 Quem? Tua mulher? A porca? HOMEM 1 Olha ali. Tá voltando. Quieto. Não me estraga essa. (Ela vem chegando) MULHER Então é só eu sair que o clima esquenta?!! Tiozinhos viadinhos! Por mim tudo bem. Eu tô de saída. Tô só esperando minha carona. (pega mais da carne). O seguinte: Tá tudo tomado, o mundo é nosso agora. Não mais esse negócio de pobre, rico, homem, mulher. A gente pode tudo, tudo. É a liberdade. Lá na universidade a gente não aprende, ensina. Em casa ninguém obedece - todo mundo fala. E tem muita música, música. (Tira o violão do saco) Eu vou mostrar um pouco do meu trabalho (Começa a cantar músicas de paz mundial, contra o capitalismo e pela liberdade) Gostaram? Eu sei que vocês amam música. Quem é que não ama música? E maconha? (Tira da sacola a tira-colo o material para enrolar maconha. Enquanto fala, enrola os cigarros) Olha, as

11 coisas são mais fáceis do que a gente pensa. E eu não tô aqui pra convencer ninguém. Eu falo isso o tempo inteiro com a Luciana e o Prensa. Eu tô ficando com eles agora. A gente fode, fode onde der: na biblioteca, no banheiro da faculdade, atrás da lixeira do restaurante universitário. A gente fode, fuma e troca uma ideia. Puta que pariu! Eu já tô me cansando deles. Eu hoje a noite vou pegar um traveco, desses bem produzidos, que chamam a atenção. Um traveco com um caralho enorme. Eu aguento, eu quero. Eu já aguentei muita coisa nessa vida. Eu já sou experimentada. Tinha um namoradinho que me dizia pra me afastar de umas amigas, que elas iam me estragar. Porra, era eu quem comprava a droga, era eu quem fudiava com todas elas. Cacete, será que nunca vão me dar crédito? ( Fuma. Depois oferece) Bora, dá um trago? Não vem me dizer que os viadinhos nunca fumaram? Não me vêm com essa ( Olha pro HOMEM 1). Tu que é o mais escroto daqui, tu já fumou, tu já pegou traveco que eu sei. (Eles se entreolham). Tu é daquele cara certinho que não se aguenta, tomas umas e faz de tudo: chupa pau, lambe as bolas, se enlameia todo com a porra na boca, na cara toda. (Para o HOMEM 2) E tu, bicha doida, passa horas na internet, a madrugada avançando no teu rosto que reflete o pisca pisca da agitação das busca nos sites pornôs. E teu cardápio não é tradicional: você com a mão no pau assistindo fotos de grávidas, de estupros, de velhas e anães. Quanto mais doente, quanto mais bizarro melhor. Ah, esse dois homens bons, os melhores que a gente possa encontrar, irmãos do caralho, porra de merda de um casal escroto. Peguem o baseado, peguem (Passa pra eles. O HOMEM 1 segura o baseado, olha para o HOMEM 2. Ficam sem saber o que fazer). Pois eu vou ajudar vocês a encontrar a felicidade. Pronto, essa é minha boa ação de hoje. Meu pai sempre me dizia pra eu me comportar bem, pra ajudar as pessoas, pra ser um ser humano. Então eu vou ser um ser humano pra vocês.(tira da bolsa um enorme de um vibrador) Surpresa! ( Eles se apavoram com o tamanho do vibrador) Vai me dizer que nunca sentiram um desses? (Ela faz o movimento de colocar e tirar de sua vagina). Caralho! (Dá uma risada, dá uma tragada no baseado e volta a pegar o vibrador. Fala pro HOMEM 1). Você primeiro. Vem. Vira a bundinha. Deixa eu te examinar( eles se entreolham. O HOMEM 2 se afasta e faz o sinal de que o outro se deu mal) É assim, eu vou fazer uma terapia com vocês. Vamos chegar no 'eu profundo' de vocês, curar os viadinhos. ( arrasta o HOMEM 1 pra si. Se senta, e coloca ele no seu colo). Senhoras e senhores, esse é um ritual extraordinário. Vamos remover desse corpo todos os obstáculos, todas os vincos, dobras e rugas que impedem a irrupção da mais plena liberdade. Vamos desentupir essas veias(um tapa na bunda dele), desoprimir(liga o vibador), arrombar esse prisão que te devora (abaixa as calças. aparece uma cinta-liga). Eu estou aqui na condição de um exorcista, de um guru, de um torneiro mecânico. Eu faço isso por ele, por mim, por todas as pessoas do mundo, como eu digo na música que compus. E sem ódio, sem ódio. Apenas cumprindo minha missão (abaixa a calcinha do cara. Bebe um trago, puxa o baseado e vai com o vibrador pra bunda do cara. Quando vai enfiar, dá um tapa na bunda dele e o joga no chão. E começa a rir. Desliga o vibrador. HOMEM 2 vai ajudar o HOMEM 1. Este recusa e o empurra. HOMEM 1 vai se recompondo e olha com ódio para a MULHER, ódio como o do HOMEM 2 contra os gatos e garçons. Depois de algum tempo ela volta a falar, após pegar a carne toda com um garfo e enfiar na boca, olhar firme para eles e cuspir no prato. Ela fala para o HOMEM 2) Agora é a tua vez. (liga o vibrador). Eu vou cantar outra música. E no fim dela eu quero que você pegue essa máquina de desovar o rabo e enfie no seu cu, entendeu? Quero que você se sente na porra do vibrador e escorregue bem devagarinho nele. (Entrega o vibrador nas mãos do HOMEM 2. O HOMEM 1 fica de costas para a cena, bufando de raiva. A MULHER começa a cantar. Enquanto isso o HOMEM 2 tira a roupa, fica de cuecas, com o vibrador na mão. Ela canta todas as desgraças do mundo, uma lista infindável. Ao fim, quando ela pára de cantar, vira-se para o HOMEM 2 e o olha atentamente. Ele pega o vibrador, faz gesto de se sentar, perde o equiblio e cai. Depois tenta se levantar e fazer de novo, mas cai novamente, e assim por diante.Até que começa a chorar. Então ela fica em pé, coloca uma perna na mesa, as mãos na cintura, toma um copo de bebida, fuma um baseado, dá um arroto e fala: Semana que vem a gente

12 continua o tratamento. Minha carona tá lá fora. Aqui tá ocupado agora. (Ela vai embora, brincando com o som do vibrador.)

Terceiro movimento HOMEM 1 e HOMEM 2 no chão fumando maconha e olhando para o teto HOMEM 2 Mas… mas o que foi que aconteceu? Como a gente deixou isso… HOMEM 1 Cala boca, me deixe. Não aconteceu nada… HOMEM 2 Os garçons.. todo mundo viu. Todo mundo riu da gente. A gente agora acabou. HOMEM 1 Ninguém viu nada, não aconteceu bosta nenhuma. Tu que é fraco. HOMEM 2 Eu?! Como assim? Eu… HOMEM 1 Tu mesmo. E ainda me atrapalhou. Eu tava quase conseguindo, quase… HOMEM 2 Conseguindo o quê? HOMEM 1 É sempre assim: toda vez que pinta uma mulher tu atrapalha… Fica me dizendo que sou casado, que tenho família, que não posso fazer isso ou aquilo. Tudo culpa sua. HOMEM 2 Mas… mas… não foi isso… HOMEM 1 A mulher tava na minha, porra! Aquela vagabunda! Toda cheia de si… Mas é uma vagabunda! Vagabunda! HOMEM 2 Então fala na cara dela? Fala! Otário!!! HOMEM 1 Olha, não dá mais, vamos nos separar: cada um segue seu caminho. Você é a desgraça da minha vida. HOMEM 2 (rindo) HOMEM 1 Desde que a gente se conheceu eu só me dei mal. Fiz a merda de um curso de leis e passei o curso inteiro sem comer ninguém. Daí me casei com nem sei quem direito, tava bem bêbado e quando acordei tinha dois moleques chatos pulando no meu saco toda manhã. HOMEM 2 (começa a cantalorar a segunda música da MULHER) HOMEM 1 E você sempre ali do meu lado, tudo passando, acontecendo, e você como a única coisa sem se mover e falhar. HOMEM 2 (continua a melodia sem palavras da segunda música da MULHER)

13 HOMEM 1 Mas hoje pra mim tudo ficou claro. O método da vagabunda funciona. Eu pude entender tudo, tudo. HOMEM 2 (Ergue os braços como se quisesse alcançar algo longe, distante, no mais infinito do céu) HOMEM 1 Você tem me distraído com todas as suas bobagens, com toda a sua necessidade de ficar perto de mim. Não preciso de alguém me lembrando de todas as merdas que eu fiz, como minha mulher. Você é a porra de um fracasso, de um erro. Eu querendo lutar contra toda essa loucura, e você sempre fugindo, fraco, como o gato, como a porca encostada no muro da rua e o filho dela maconheiro fujão. HOMEM 2 (ainda deitado ele se vira, coloca a mão no meio das pernas e começa a esfregar as genitais, sentido prazer) HOMEM 1 Eu precisava do meu lado era a porra de uma mulher escrota como a vagabunda! Ela podia ter sido minha mãe, minha amante. Pra ela eu dava o cu, as pregas todas! Com ela eu seria um homem mais forte, bom de briga. HOMEM 2 (seus movimentos pélvicos contra o chão vão aumentado, como se ele estivesse fazendo sexo) HOMEM 1 Pare com isso e me escute! Olhe pra pra mim, seu merda! Me respeite! Olhe pra mim! Olhe pra mim! HOMEM 2 (Arfando ainda, ele se vira) O que tu quer, empata foda, o que tu quer? HOMEM 1 Eu? Eu quero que você vá lá em casa e avise que eu não vou mais voltar. Eu quero quero que você vá lá, durma com minha mulher, e seja feliz. HOMEM 2 Tu tá maluco? A gente não tinha combinado que… HOMEM 1 Passa essa semana na escritório. Vou fazer uma procuração transferindo tudo pra você: meu nome, minha família, minha casa. Agora tu conseguiu o que sempre quis. HOMEM 2 Beleza. Deixa que eu reviso o texto. E o que tu vai fazer depois? HOMEM 1 Eu vou estar livre pro meu talk-show. HOMEM 2(explodindo, como que engasgado com a fumaça e riso) Como é que é?!!! HOMEM 1 Todo idiota tem o seu programa na tv. Agora vou ter o meu. HOMEM 2 Essa maconha é da boa mesmo. HOMEM 1 Eu sou minoria oprimida. Quero meu espaço. Pra falar o que eu quiser. Agora com vocês o SHOW DA VERDADE. Tá tudo ocupado! Agora é nóis! (Introdução música de abertura do SHOW. Enquanto isso o HOMEM 1 tira a toalha da mesa e enrola no corpo do HOMEM 2, como um

14 vestido. Os dois dançam. O HOMEM 2 canta o tema da música de abertura que é a hora e a vez dos mamutes, dos sexistas, dos misóginos, dos preconceituosos. Ao fim da música blecaute ). Quarto movimento Sessão de entrevista do SHOW DA VERDADE. O HOMEM 1 sentado em uma cadeira de frente ao público. Ao seu lado o HOMEM 2 amarrado na cadeira, com a boca amordaçada. HOMEM 1 fumando e bebendo. HOMEM 1 Temos o prazer de receber aqui conosco nosso convidado especial dessa noite: minha mãe, a nossa mãe, a mãe de todos. (Batendo palmas. Levanta-se. Canta uma música em homenagem à sagrada mãe, a mãe de todos os bens e males. Depois de cantar, o HOMEM 1 volta a se sentar) Muito obrigado pela oportunidade de falar com todos vocês, trabalhadores fudidos do meu país de merda. Chegou a minha hora, chegou o meu momento. Eu sei que todos aí podem estar pensando o que esse merda aqui grosseirão, intolerante,ultrapassado vai aprontar. Pois tenham paciência ou chamo os Direitos Humanos. Não se pode negar que eu exista, que muitos como eu estejam por aí prontos pra falar. HOMEM 2 (se remexe, grunhindo em concordância, tentando bater palmas) HOMEM 1 Eu vou mostrar um pequeno vídeo pra vocês, que explica tudo isso. (passa um vídeo com momentos da vida do HOMEM 1, quando no trabalho, no supermercado, nas ruas, em casa, ele é acusado de ser intolerante) . Viram? Ondem estavam os Direitos Humanos quando aconteceu isso?!! E a diversidade? O mundo ficou pior e perigoso. Por isso eu tenho as seguintes propostas: (sessão de powerpoint) 1- todas as leis são abolidas, todos os tribunais fechados, todos os advogados perdem sua licença. 2- todos os cursos de letras, leis, artes, ciências sociais e humanides são fechados. Ninguém mais precisa ler nada. Tudo vai vir do meu show: notícias, entretenimento, confusão. 3- no meu show, todo mundo tem cinco minutos pra xingar e espancar minha mãe. Ele me fez assim, ela nos criou. Deixa eu começar essa porra ( dá um tapão no HOMEM 2, que cai. A venda da boca cai e HOMEM 2 começa a falar). HOMEM 2 Que merda é essa? HOMEM 1 Cala boca, mãe: estamos no ar! HOMEM 2 Mãe, o caralho! Acabou a brincadeira! HOMEM 1 A senhora é a culpada! Alguém tem que ter a culpa. Eu sou assim por tua culpa. HOMEM 2 Vai se fuder, seu cavalo! Tá doendo pra caralho! HOMEM 1 Doeu mais em mim, mamãe, em mim. Mas o sofrimento ensina (Dá outro tapão no HOMEM 2). HOMEM 2 Socorro! Socorro! Cadê os garçons! Alguém me ajude! HOMEM 1 Eu sou um homem livre! Livre! (Dá mais outro tapão no HOMEM 2, que cai no chão, com a mãos na cabeça se protegendo. HOMEM 1 se lança sobre o colega, em uma brincadeira-briga. Acabam um em cima do outro, rindo. Entra a MULHER)

15 MULHER Puta que pariu!!! (Blecaute) Quinto movimento Mulher terminando de amarrar os dois homens nas cadeiras Não posso sai uma horinha que vocês dois já querem se matar! Ô raça, Ô desgraça! (finalizando as amarrações) Toda vez a mesma coisa. Antes, ficavam aí nos cantos, olhando, a cabeça cheia de ideias e julgamentos. Agora não: têm que aparecer, causar escândalo. Pois eu vou ajudar vocês. As moças quem brilhar? Pois vai ser o maior bafão ( tirar roupas de drag queen da sacola e começa a vestir os dois) Ai, coisinhas da mamãe! Tão lindinhas! (Tapa na cara de HOMEM 1). Arruma essa posta! Tira essa tristeza da cara, piranha! Não é assim que vocês me chamam? Não é assim que vocês gostam? (Tapa na cara do HOMEM 2) Essa bicha aqui é a mais complicada, raivosa… Tá me olhando assim por quê? Não tá gostando? (acaba de colocar as roupas). Isso. Agora vamos maquiar (Eles abanam a cabeça, grunhindo que não) Não?!! Como assim? Tem que ser serviço completo. E vocês vão comigo pra balada, arrasar! (começa a passar o batom neles, com força, segurando o rosto deles) Vocês não tão se sentido empodeiradas, perigosas? Dois homens bons! Todos os dias eu passando pelas ruas e vocês me querendo… esse desejo e nojo… Essa cabecinhas cheias de mistérios… (Coloca uma tiara cheia de brilhantes em cada um). Lindas! Rainhas! Depois da balada, a gente vai pra ocupação na facu. Vai ser um show! Minhas meninas vão ficar comigo pra sempre. Precisamos de todos. A luta continua, companheiras! Abaixo o ódio! O preconceito! A luta é nossa! ( Música de discoteca anos 1980. Eles andam de patins com a mulher. Blecaute).

Sexto e último movimento Tudo como no início. Eles estão em um bar. Esperam ser servidos. HOMEM 2 (Levantando a cabeça, procurando um garçom) Não sei por que a gente continua a vir aqui. HOMEM 1 Calma, temos a noite inteira. HOMEM 2 Olha ali: tão todos em reunião, de costas pra nós. HOMEM 1 É sempre a mesma coisa. Deixa quieto. HOMEM 2 Vamos embora. Não aguento mais isso. HOMEM 1 Calma, neném: tu aguenta sim. Não vamos sair daqui tão cedo. Essa é a nossa noite. Toda semana a gente vem aqui, é mal servido, come a merda dessa comida e faz o que a gente quer. Tu queria algo mais divertido? HOMEM 2 Tô escrevendo um livro, tô colocando no papel tudo que me acontece. HOMEM 1 Tu tem tempo, todo o tempo do mundo. Não tem mulher, filhos, toda essa merda. HOMEM 2 Não sei pra que alguém escreve um livro hoje, mas tô gostando.

16 HOMEM 1 Olha, hoje eu não vou demorar. Prometi chegar em casa mais cedo. A patroa quer vez uma série no netlix comigo. HOMEM 2 Netflix? Tu tá fodido: isso não acaba nunca.(Entra a MULHER. Ela se dirige ao balcão e espera ser atendida) HOMEM 1 Olha lá, carne fresca. HOMEM 2 E gostosa (riem) HOMEM 1 vai lá, seu puto, vai lá. HOMEM 2 (Pega um caderno) Eu vou, eu vou. Eu tenho que ir.Já vou. Deixa eu… HOMEM 1 Porra! QUe merda tu tá anotando aí! HOMEM 2 Tive uma ideia, caralho! Uma ideia! HOMEM 1 Se tu tivesse feito engenharia ou medicina não tinha tanta ideia! Já tava lá na cola dela. HOMEM 2 (anotando) Calma, calma ela não vai embora! Me deixa! HOMEM 1 Vagabunda… Essa tá fácil, fácil! Porra, vai perder? HOMEM 2 Vai lá tu, então? Merda! não enche o saco. Perdi! Merda! HOMEM 1(MULHER vem na direção deles) Caralho ela tá vindo pra cá. E agora, o que a gente faz? HOMEM 2 o gato… a história do gato. Eu olhava o gato… como é que era? MULHER Fogo! Alguém de vocês tem fogo? Fuma? BLECAUTE

FIM

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