Dois poetas renascentistas: Michelangelo e Da Vinci

June 14, 2017 | Autor: Rafael Voigt | Categoria: Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarroti, Arte renascentista
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DOIS POETAS RENASCENTISTAS: MICHELANGELO E DA VINCI RAFAEL VOIGT LEANDRO1

Michelangelo Buonarroti (1475-1564) marcou a história das artes escultórica e pictórica. Desta última, a Capela Sistina é, provavelmente, a principal amostra do gênio artístico desse artista maiúsculo, com seu estilo plástico-linear2. O artista e biógrafo renascentista Giorgio Vasari (1511-1574) não se exime de atribuir a Michelangelo certa magnitude celestial: [...] o Céu o mandou aqui embaixo para servir de exemplo na vida, nos costumes e nas obras, para que aqueles que se miram nele, imitando-o, possam aproximar-se da eternidade por meio da fama, da natureza por meio das obras e do estudo e do Céu por meio da virtude, do mesmo que ele sempre foi motivo de honra para a natureza e para o ceú.3

Davi (1501-04), Pietá (1498-1500) e Moisés (1513-16) representam a inatingível capacidade de esculpir o humano, em que o mestre Michele Agnolo (grafia utilizada por Vasari) adensa na peça de mármore a novidade artística de rompimento e, ao mesmo tempo, de louvor à Antiguidade. Seu “ultrahumanismo” se constitui não somente por meio do trabalho bruto com o cinzel, aliado a suor e insônia, mas também com o estudo metódico, até mesmo de anatomia. A dissecação de cadáveres por Michelangelo é uma dessas convenções renascentistas entre ciência e arte. Espelha a obsessão do artista pelo alcance da perfeição em seu ofício. E por falar neste par de complementação (ciência e arte), é que se deve recordar de Leonardo da Vinci (1452-1519), gênio de múltiplos talentos, como registra Vasari: Muitas vezes são imensos os dons que, por influxos celestes, chovem naturalmente sobre alguns corpos humanos; outras vezes, de modo sobrenatural, num só corpo se aglomeram superabundantemente beleza, graça e virtude, de tal maneira que, para onde quer que ele se volte, todas as suas ações são tão divinas, que, deixando para trás todos os outros homens, se dão a conhecer como coisas (que de fato são) prodigalizadas por Deus, e não conquistadas pela arte humana.4

Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Língua Portuguesa no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). 2 Ver LONGUI, Roberto. Breve mas verídica história da pintura italiana. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 3 VASARI, Giorgio (1511-1574). Vida dos artistas. Org. de Luciano Bellosi e Aldo Rossi. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 739. 4 Id., ibid., p. 443. 1

Leonardo pertence à geração ligeiramente anterior à de Michelangelo. Como se espalhou aos quatro ventos, eram grandes desafetos. Ao que parece, por trás dessa desafeição, havia uma admiração artística mútua, contudo não declarada. Da Vinci, não obstante praticante de várias artes, não se destacou tanto na arte escultórica como Michelangelo. Todavia, o mesmo não se pode dizer de sua habilidade no campo da pintura. Basta contemplar o afresco A última ceia (149597) ou o retrato de Mona Lisa (1503-07). Não há dúvida quanto ao grau de poesia estampada no engenho de Michelangelo e Leonardo. Tomando, porém, o caminho da arte literária, surpreende pensar que tanto um quanto o outro tenha se dedicado à poesia. Em meio a seus rascunhos e desenhos, em verdadeiros palimpsestos, Michelangelo registrava impressões cotidianas ou biográficas. Profundo admirador de Petrarca, o autor de Pietà, em particular a partir da meia-idade, dedicou-se ardentemente à escrita poética. Mais de 300 poemas, entre madrigais, sonetos, baladas, canzoni, com ânimos distintos (críticos, românticos, cômicos, políticos, de terribilità, reflexões artísticas), foram produzidos por ele nesse período. Experiências oriundas de grandes amizades, como a devotada à poetisa Vittoria Colonna ou a Tommaso de’ Cavalieri, estão entre os principais motivos de sua poética. Sua formação literária se deu com autodidatismo. O biógrafo Condivi, outro amigo e contemporâneo de Michelangelo, reporta o fato de ele ter mergulhado na literatura após esculpir o Davi: “durante algum tempo, fazendo quase nada nessas artes [escultura e pintura], mas dedicando-se a ler poetas e oradores italianos e escrevendo sonetos para seu próprio prazer”5. De acordo com Martin Gayford, foi nesse ponto da vida que Michelangelo tornou-se efetivamente um poeta6. Por outra via, Leonardo da Vinci dedicou-se à poesia musical. Tangeu de forma transcendente sua lira, fabricada por ele mesmo, como mais um indício de sua personalidade inventiva. Conjugou a lira e a declamação de versos improvisados, 5

In: GAYFORD, Martin. Michelangelo – uma vida épica. Tradução de Donaldson Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 201. 6 Uma boa edição crítica de sua poesia está em The Poetry of Michelangelo (1991), de James Saslow.

tal qual a ancestral arte dos bardos ou cantadores. Essa característica guarda relação com o espírito expansivo e aberto de Leonardo; ao contrário do espírito introspectivo, irascível, de Michelangelo. Vasari relata breve ocorrência acerca do bem dotado artista Leonardo ponteando sua lira: Lionardo [sic] foi levado a Milão com grande reputação pelo duque Francesco a fim de tocar para ele, pois o Duque muito se deleitava com o som da lira: Lionardo levou esse instrumento, feito por ele mesmo de prata, em grande parte, para que sua harmonia tivesse mais ressonância e seu timbre fosse mais sonoro. Superou todos os músicos que ali tinham ido para tocar; além disso, foi o melhor declamador de versos improvisados em seu tempo.7

Abrindo um pequeno parêntese, é possível supor como Leonardo, em sua sensibilidade, sentia o efeito estético potencial da música-poesia como complemento das cores em sua atividade pictográfica. Cada nota musical ou melodia poética representavam tonalidades únicas da vida, insubstituíveis artisticamente. Um dos episódios marcantes do destempero da relação entre Michelangelo e Leonardo deu-se em razão da poesia. Conta-se que, ao participar de uma discussão de cavalheiros sobre trecho de Dante, Leonardo da Vinci avistou Michelangelo e o convidou a elucidar a contenda. A iniciativa de Da Vinci terminou mal. Sentindo-se ofendido, Michelangelo não perdeu a oportunidade para atacar Leonardo: “Explica-a tu, que fizeste o desenho de um cavalo para ser moldado em bronze mas foste incapaz de moldá-lo”8. Essas palavras ácidas deixaram Leonardo desconcertado. Essa pode ter sido uma das causas para o afastamento definitivo entre os dois. Esse paragone poético proposto aqui em nada se assemelha ao vivenciado por Michelangelo e Leonardo da Vinci quando pintavam um painel no florentino Palazzo Vecchio, em 1504. Pena não haver registro dessas pinturas, pois não chegaram a ser concluídas. Alguns críticos e historiadores asseveram que esse paragone seria uma luz para o estudo comparativo da arte figurativa desses dois mestres. No presente caso, o aventado paragone poético levanta tão somente possibilidades estético-literárias desses baluartes renascentistas. Janeiro de 2016.

7 VASARI, 8

Giorgio. Ibid., p. 446. Cf. GARYFORD, Martin. Ibid., p. 200.

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