Dois tipos de entidade e dois modelos de \"sistema\" em Ferdinand de Saussure

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CAPÍTULO 8

DOIS TIPOS DE ENTIDADE E DOIS MODELOS DE “SISTEMA” EM FERDINAND DE SAUSSURE

Estanislao SOFÍA Université de Paris X-Naterre

1. INTRODUÇÃO

A primeira questão que temos de nos colocar na linguística estática é precisamente a das entidades ou das unidades F. de SAUSSURE

A questão da determinação das unidades linguísticas sempre esteve no centro da atenção de Saussure. A linguística, dizia ele, tem “por tarefa determinar quais são essas unidades” que, em sua época, permaneciam “mal definidas” 1. E “não somente essa determinação das unidades que ela maneja será a tarefa mais premente da linguística como, fazendo isso, ela terá cumprido inteiramente sua tarefa” (Cours II, Riedlinger, p. 21). Essas passagens provêm da aula de 30 de novembro de 1908, uma das primeiras do segundo curso de linguística geral. Dois anos mais tarde (6 de maio de 1911), durante uma entrevista com Léopold Gautier, Saussure admitia ainda que seu “sistema de filosofia de linguagem” não estava “elaborado o bastante” (SM, p. 30) e até garantia que, embora esses temas o tivessem ocupado fazia muito tempo, numerosíssimas dúvidas subsistiam ainda para que ele imaginasse expô-los a seus ouvintes. Dito isso, ele avançava que “o essencial é o problema das unidades” (SM, p. 30) 2. Em 5 de maio de 1991, na véspera, Saussure tinha se perguntado sobre o fato de saber “quais são as entidades concretas que compõem a língua” (Cours III, Constantin, A, p. 78), questão sobre a qual retornará no momento final do curso, em 27 de junho de 1911 (ver epígrafe). Essa questão das unidades ou entidades o preocupou (de maneira “quase obsedante”, segundo Raffaele Simone [2006, p. 41]) ao longo de toda a sua reflexão. O tema, portanto, é complexo e comporta vários aspectos. Nosso propósito é abordar um desses aspectos e mostrar que é possível formular duas respostas a essa questão – ainda que nos limitemos somente ao corpus das notas que têm a ver com os três cursos de linguística geral (1907-1911). A primeira, sugerida talvez a Saussure pelo hábito dos estudos indo-europeus de outrora, requer a observação de um sistema de valores puramente diferenciais, expressão que conhecerá seu maior desenvolvimento no quadro da fonologia, sobretudo em Praga, e que fará nascer o conceito de “fonema”. A outra entidade postulável, no

René Amacker estimava ainda, em 1975, que o problema permanecia inteiro (Amacker, 1975, p. 129). 2 Já em 1891, durante a redação de De l’essence double du langage (veremos mais adiante as razões por que atribuímos essa data a esse manuscrito), Saussure afirmava que “todo o trabalho do linguista que quer dar-se conta, metodicamente, do objeto que estuda consiste da operação extremamente difícil e delicada da definição das unidades” (ELG, p. 26, itálicos no original). 1

caso o “signo”, não é redutível a caracteres puramente negativos e diferenciais e exige, assim, que se considere um sistema outro que não o das puras diferenças; esse sistema Saussure pode apenas esboçar.

Aqui não nos alongaremos em torno dos motivos que presidem a essa divergência. Nosso único objetivo é mostrar que existem (e não como Saussure chegou a eles, nem por quê) dois esquemas conceituais diferentes – e de certa maneira opostos – a partir dos quais é possível ordenar as teses saussurianas, e que cada um desses esquemas supõe um protótipo diferente de unidade linguística. 2. NA LÍNGUA SÓ EXISTEM DIFERENÇAS

2.1. Durante a segunda aula do segundo curso, em 12 de novembro de 1908, Saussure sustentava que “antes de tudo a língua é um sistema de signos” e empreendia a seguir uma comparação com a escrita, que é, dizia ele, um “sistema de signos similar ao da língua”:

Suas principais características são: 1) O caráter arbitrário do signo [...]; 2) Valor puramente negativo e diferencial do signo [...]; 3) O valor do signo é opositivo e só vale dentro de um sistema [G] [...] 2) e 3) são uma consequência necessário de 1). Basta dizer que os signos são arbitrários. (Cours II, Riedlinger, pp. 7-8) 3

Embora, propriamente falando, essas “principais características” se apliquem, no exemplo, aos sistemas de escrita, Saussure acrescenta, três linhas mais adiante, que “encontramos todas essas características na língua” (Cours II, Riedlinger, p. 8). Somos autorizados, portanto, a deduzir daí que a língua é, ela também, considerada como um sistema de entidades – aqui chamadas “signos” – definidas como “arbitrárias” e “puramente negativas e diferenciais”.

Deixemos de lado, por enquanto, o fato de o caráter puramente diferencial dessas entidades – aqui chamadas “signos” – ser para Saussure uma “consequência necessária” da arbitrariedade. Vejamos num primeiro momento em que pode consistir tal sistema de valores puramente negativos e diferenciais. 2.2. Se o valor de um termo é “puramente negativo e diferencial”, a afirmação de que ele “só vale dentro de um sistema” é pleonástica: assim definido, um termo só pode existir ao lado de outros aos quais se opõe, “dentro de um sistema” 4. Aquele

O terceiro item é reproduzido aqui da versão de L. Gautier, mais bem adaptada ao nosso objeto. Riedlinger tinha anotado: “3) Os valores de escrita só agem como grandezas opostas elas são opositivas, só são valores por oposição. (Não é completamente a mesma coisa que 2) mas se resolve bem finalmente no valor negativo”. Bouchardy e Constantin dão versões semelhantes e perfeitamente concordantes (ver CLG/E1, p. 269, par. 1933) 4 Se por “valor” Saussure se refere às propriedades atribuídas a um termo por sua participação num sistema, às propriedades que são, diz ele, “a contrapartida dos termos coexistentes” (Cours III, Constantin, A, p. 135), o conceito de “sistema” está então implicado no de “valor”. A fórmula “valor puro” (que todavia não figura nos manuscritos que devemos a Bally e Sechehaye [ver CLG, p. 155]) deveria ser compreendida como elemento cujas propriedades todas lhe são conferidas por seu pertencimento a um sistema. Nesse sentido, a ideia de “valor puramente negativo e diferencial” equivaleria à ideia de “valor puro”. (Para uma discussão sobre os limites dessa equivalência, ver Sofía, 2008). 3

termo só poderá ser definido – e até mesmo identificado – a partir das diferenças que o separam do resto. Assim, se imaginássemos, para essas entidades diferenciais e negativas, um sistema com quatro elementos, A, B, C e D, as perguntas “que é o termo A?”, “quais são as propriedades do termo A?”, “onde reside a identidade do termo A?” etc. receberiam uma única e mesma resposta: “A é o que não é nem B nem C nem D” 5. O valor de A consiste nisso e é aí, e somente aí, que reside sua identidade e se esgotam suas propriedades 6, o que poderia ser representado da seguinte maneira (onde o símbolo ¬ significa “o que não é”):

Essa noção de um sistema de diferenças idealmente puras, onde não há nenhum traço positivo, é de uma extrema precisão. Os termos pertencentes a tal sistema mantêm uma relação de solidariedade, por assim dizer, perfeita: qualquer variação que incida sobre qualquer elemento tem que repercutir sobre o conjunto, sem exceções. Assim, por exemplo, o hipotético desaparecimento do termo C teria por consequência direta, automática e imediata uma modificação, digamos, do valor do termo B, que não seria mais “¬C, ¬D, ¬A”, mas “¬D, ¬A”. E de igual modo para o resto:

Ora, se, na passagem citada, Saussure afirma que o “signo” é uma entidade desse gênero, e uma entidade desse gênero implica o conceito de “sistema”, a asserção de que “a língua é um sistema de signos” deve então ser compreendida no sentido muito preciso exposto acima. Eis então que a língua, nessa primeira aproximação, é

Troubetzkoy (1939, p. 74) definia o r alemão desta maneira: “não é uma vogal, não é uma plosiva determinada, não é uma nasal, não é um l”. Essa definição, em Troubetzkoy, diz respeito ao plano da expressão, mais precisamente aos fonemas. Esse também o caso, no mais das vezes, em Saussure (cf. Cours I, Riedlinger, B, pp. 116 sqq.; ELG, p. 71; etc. [ver nota 9, abaixo]). Há porém trechos em que Saussure aplica o mesmo princípio ao plano semântico. Assim, por exemplo, nesta nota sobre a morfologia: “σoτóς, considerado com relação a seus contemporâneos, é o portador de uma certa ideia, que não é a de σoτηρ, que não é a de δωσω, δoτóη assim como das partes de σoτóς” (ELG, p. 182 [ver também, no mesmo sentido, as considerações a propósito do grego “λεγoνται” (Cours II, Riedlinger, p. 55) e as que figuram em De l’essence double du langage a propósito de “sol” (ELG, p. 72)]. O procedimento lembra a teoria do Apoha (ou “teoria do significado por exclusão” [Sidertis, 1985, p. 140]), formulada pelo lógico indiano Dignaga no século V-VI de nossa era (ver Scharma, 1968; Sidertis, 1985, Gupta, 1985). Para uma análise da questão e das possíveis influências das teses indianas sobre o pensamento de Saussure, ver principalmente o trabalho de D’Ottavi, neste mesmo volume (capítulo 9), e os de Rastier (2002) e Atlani-Voisin (2003). 6 Saussure afirmava assim que, “para o fato linguístico, elemento e característica são eternamente a mesma coisa. É próprio da língua, como de todo sistema semiológico, não admitir nenhuma diferença entre o que distingue uma coisa e o que a constitui.” (ELG, p. 263 [Negrito nosso, ES]). Daí esta “consequência” deduzida por Milner: “só existem propriedades diferenciais” (Milner, 1994, p. 15). 5

considerada como uma espécie de conjunto, chamado “sistema”, de entidades puramente negativas, opositivas e diferenciais, aqui chamadas “signos”. Se a isso acrescentamos o fato de que, segundo Saussure, esse estado de coisas “é uma consequência necessária da arbitrariedade”, resulta que, neste ponto da argumentação, a língua é um “sistema” porque o signo é arbitrário 7. Voltaremos a isso (ver § 4 e § 7).

2.3. A pergunta que cabe fazer, neste momento, tem a ver com o tipo de entidade linguística resultante somente da consideração dessas características diferenciais, opositivas e negativas. Pois, apesar da opinião de Saussure, parece que essa tripla exigência não pode se aplicar a “todas” as entidades existentes numa língua. A crer em Jakobson, a única entidade linguística suscetível de preencher essa exigência seria o que ele chama, no quadro da fonologia de Praga, de “fonema”. “Só o fonema é um signo diferencial puro e vazio. O único conteúdo linguístico [...] do fonema é sua dessemelhança com relação a todos os outros fonemas do sistema dado” (Jakobson, 1976, p. 78). Desse ponto de vista, a língua, definida como um sistema de valores puros, seria, segundo Jakobson, nada mais que uma “língua de fonemas” (ibid., p. 78), e Saussure, que tinha “compreendido perfeitamente o caráter puramente diferencial e negativo dos fonemas” (ibid., p. 75), teria “generalizado precipitadamente sua conclusão ao tentar aplicá-lo a todas as entidades linguísticas” (ibid., p. 76). Ora, de fato, para além dos problemas terminológicos (sabemos que “fonema” remete a conceitos diferentes para Saussure e para os fonologistas de Praga) 8 e de que tenha sido precipitado ou não, Saussure se baseou, na passagem citada, na consideração de uma parcela restrita dos fenômenos linguísticos, no caso os sistemas de escrita, para tentar em seguida “encontrar” todas as suas características na língua inteira (ver § 2.1) 9. Este ponto tem estado na origem de uma pequena controvérsia, indício, talvez, de uma dificuldade. Gadet e Pêcheux (1981, p. 52) a formularam com clareza: “Se for absolutamente necessária uma pedra de toque da teoria, onde se deverá buscá-la? Na arbitrariedade do signo ou no valor?”. Amacker (1975, p. 81) acreditava que é o conceito de “arbitrariedade” que constitui “a espinha dorsal” da teoria; Mounin (1972, p. 51) e De Mauro (CLG, p. 464) também. Os editores do CLG, porém, observaram que é a tese de que a língua seria um sistema de “valores inteiramente relativos” que conduziria à edificação do conceito de “arbitrariedade do signo” (CLG, p. 157), o que De Mauro, com razão (ao menos filologicamente), contestou (CLG, p. 464). Engler (1964, p. 31) e Normand (2000, p. 73) afirmaram, com prudência, que há determinação recíproca entre esses dois conceitos (cf. também CLG, p. 163). Bouquet (1997, p. 235, p. 279 e p. 291) e Arrivé (2007, p. 67), mais recentemente, defenderam o ponto de vista dos editores. Frei se limitou a assinalar, por seu turno, que a teoria saussuriana, neste ponto, “encerra contradições” (1974, p. 124). 8 Ver Troubetzkoy (1939/1949, p. 9), Jakobson (TLCP II, p. 103 [citado por Troubetzkoy]), De Mauro (CLG, p. 433, n. 111]), Marchese (1985 e 1999). 9 Esse gesto generalizador aparece muitas vezes no corpus saussuriano. Nós o encontramos, por exemplo, neste trecho das anotações feitas por Riedlinger no final do primeiro curso: “A verdadeira maneira de se representar os elementos fônicos de uma língua não é considerá-los como sons que têm um valor absoluto, mas com um valor puramente opositivo, relativo, negativo. [...] A língua só pede a diferença. [...] Nessa constatação, seria preciso ir muito mais longe e considerar todo valor da língua como opositivo, e não como positivo, absoluto” (Cours I, Riedlinger, p. 116). Sechehaye, que conhecia os desdobramentos de Praga, também era partidário dessa generalização: “Por via de consequência ou de analogia, o que é verdadeiro para o fonema parece ser verdadeiro igualmente para qualquer outro elemento funcional do sistema linguístico” (Sechehaye, 1942, p. 46); “Somos [...] forçados a pensar que o que os fonologistas disseram do fonema deve ser generalizado e aplicado a todas as entidades linguísticas igualmente” (ibid., p. 48). 7

Pouco importa, por conseguinte, para nossa reflexão, saber se o modelo em que Saussure pensa naquele instante e ao qual consagra seus exemplos lhe fora inspirado pela consideração dos fonemas (ver Jakobson, 1976, p. 76 e passim) ou, como pensava por exemplo Buyssens, “sugerido pelo estudo do sistema primitivo das vogais” (1961, p. 21). O certo é que essa concepção de que só existem diferenças não se aplica, no caso, a todas as entidades linguísticas, pois já não é aplicável sequer ao conceito de “signo”. Desse conceito, e para efeitos da argumentação, só destacaremos uma única característica: o signo é, segundo Saussure, um “ser duplo” (Cours II, Riedlinger, p. 12), a associação de um conceito e de uma imagem auditiva ou, segundo a terminologia introduzia em 19 de maio de 1911, “o elo que une o significante ao significado” (Cours III, Constantin, A, p. 93). Ora, assim definido, como veremos, o conceito de “signo” é incompatível com a noção de “sistema de puras diferenças”.

Para defender essa tese, e para não repetir reflexões conhecidas 10 – que, aliás, subscrevemos –, ofereceremos apenas um argumento. 3. NA LÍNGUA NÃO EXISTEM SOMENTE DIFERENÇAS

Em sua aula de 30 de junho de 1911, Saussure introduz um capítulo intitulado “Valor dos termos e sentido das palavras. Em que as duas coisas se confundem e se distinguem” (Cours III, Constantin, A, p. 134). Trata-se ali de uma distinção a ser estabelecida entre o conceito de “valor” e uma outra noção, no caso a de “sentido”: “É talvez uma das operações mais delicadas a se fazer em linguística, ver de que modo o sentido depende e entretanto permanece distinto do valor” (Cours III, Constantin, A, p. 134). Além dessa dependência do “sentido” com relação ao “valor” (questão de que não nos ocuparemos aqui 11) e da ocorrência pouco rigorosa, nessa passagem, dos termos “sentido”, “significação” e “conceito”, o que nos interessa sublinhar é o fato de haver duas noções que “permanecem distintas”. Para ilustrálas, Saussure introduz inicialmente este esquema:

E o comenta nestes termos: “Nesta visão, a significação [sic (= conceito, ES)] é a contrapartida da imagem auditiva e nada mais” (Cours III, Constantin, A, p. 135). Trata-se da representação de um “signo”, tal como foi definido mais acima: um conceito ligado a uma imagem auditiva. Em seguida, Saussure assinala um “paradoxo” e põe seus ouvintes em alerta contra o que poderia constituir “uma armadilha”: “a significação [sic (= conceito, ES)] que nos aparece como a

Ver entre outros Martinet, 1957; Prieto, 1964, p. 34; Frei, 1974, p. 126 e passim; Godel, 1975, p. 89; Jakobson, 1976, p. 76 e passim; Harris, 1987, p. 231; Harris, 2000, p. 302 e passim; Harris, 2003, p. 12 e passim; Arrivé, 2007, pp. 72-73; etc. 11 A relação entre “significação” e “valores” se inclui entre as noções menos transparentes da teoria saussuriana. Sobre essa dificuldade, ver entre outros Godel (SM, pp. 236-242), Gadet (1987, pp. 6566), Harris (1987, pp. 37-43), Badir (2000, pp. 36 e sqq.). 10

contrapartida da imagem auditiva é na mesma medida a contrapartida dos termos coexistentes na língua” (Cours III, Constantin, A, p. 135). Saussure insere então um segundo esquema:

E acrescenta: “À primeira vista, nenhuma relação entre flechas a) e flechas b). [...] O valor é a contrapartida dos termos coexistentes. Como é que isso se confunde com o que é contrapartida da imagem auditiva[?]” (ibid.). Esses dois tipos de “relações” permanecem, insiste Saussure, “difíceis de distinguir” (ibid.), “a significação como contrapartida da imagem [i. e. o conceito, ES] e a significação como contrapartida dos termos coexistentes [i. e. o valor, ES] se confundem” (ibid.). E, com efeito, as notas de Constantin se revelam particularmente confusas nesse ponto. A aula termina e não se compreende realmente “em que essas duas noções se confundem” nem em que elas “se distinguem”. Ao que parece, Saussure teve dificuldade em discernir essas duas noções ou, pelo menos, em expor claramente a seu auditório a diferença entre elas. A questão, sem dúvida, está longe de ser anódina. Trata-se, de fato, de saber se é possível ou não endossar a postulação de que as propriedades das entidades linguísticas podem ser reduzidas a seu valor, definido, aqui, como “contrapartida dos termos coexistentes”. Em caso afirmativo, seria preciso poder afirmar que só existem valores, e nada mais; isto é, valores puros; isto é, puramente diferenciais (ver nota 4). Era o que ele tinha encontrado no nível dos sistemas de escrita e tentado, em seguida, generalizar “para todo valor da língua” (ver nota 9). Agora, ao menos segundo o que sobressai das anotações de Constantin, ele não parece muito persuadido da validade dessa operação.

Em suas notas pessoais, no entanto, a coisa é bem diferente. Após ter experimentado alguns esquemas 12, Saussure representa, desta vez de maneira conjunta, aqueles dois tipos de relações:

Saussure parece ter se empenhado em traçar um esquema satisfatório. As anotações manuscritas (BGE, Ms. Fr. 3951, fólios 27 e 28), muito mais rascunhadas e repletas de rasuras do que a transcrição oferecida nos Écrits deixa transparecer (ver ELG, pp. 335-336), oferecem ainda mais dois esquema. A preocupação de Saussure parecer ter sido mostrar que o conceito de “valor” que pouco antes tinha sido identificado à “contrapartida dos termos coexistentes” (= relações de tipo “a”), dizia respeito, na realidade, a duas noções diferentes ao mesmo tempo: “É próprio do valor pôr em relação essas duas coisas. [...] A única coisa indiscutível é que o valor vai nestes dois eixos, é determinado segundo estes dois eixos simultaneamente:” 12

(ELG, p. 335). É essa leve (mas significativa) mudança de posição que nos interessa enfatizar: ou o conceito de “valor” pode ser reduzido somente à “contrapartida dos termos coexistentes” (relações “a”), ou ele concentra em si os dois tipos de relações que estamos analisando (“a” e “b”): as entidades que decorrem de um e do outro modelo não podem ser do mesmo tipo.

Saussure acrescenta então, sem hesitação alguma, que “a relação simile : dissimile é uma coisa perfeitamente diferente da relação simile : similia” (ELG, p. 336). E isso se revelará de capital importância.

Com efeito, sendo a relação b) (simile-dissimile) 13 “uma coisa perfeitamente diferente” da relação a) (simile-similia), disso se deduzirá que estamos diante de entidades “duplas” (isto é, “complexas” [Cours II, Riedlinger, p. 2]) e, por conseguinte, não definíveis exclusivamente a partir de diferenças. Se só existissem diferenças, como foi possível sustentar mais acima, as relações “a” e “b” deveriam “se confundir” numa única noção. As únicas propriedades toleráveis por um termo puramente diferencial e negativo só existem – por assim dizer – fora dele, e toda eventual propriedade interna – que seria distinta da pura soma das puras relações diferenciais – fica excluída pela premissa de partida. Se retomarmos o exemplo do sistema de quatro termos analisado mais acima (ver § 2.1), poderíamos representá-lo assim:

A identidade, o valor e as propriedades de cada termo equivalem, nesse exemplo, à soma das relações “a” que constitui o sistema. O valor do termo A, como se viu, se reduz a ele não ser B nem C nem D, e eis toda a informação pertinente, concebível e possível para esse termo e por esse sistema. Assim, se desejássemos representar, tratando-se desse mesmo exemplo, uma suposta relação “b”, só se poderia atingir um resultado perfeitamente equivalente:

A pretensa dualidade do termo se revela assim, para um sistema de diferenças puras, abolida: num tal sistema, não há disjunção possível entre relações “a” e relações “b”. Portanto, se essa distinção merece ser considerada, como Saussure pretende perto do final de seu terceiro curso (ver ELG, p. 336), é porque já não estamos confrontados a um sistema de diferenças puras, é porque existem propriedades outras (e, por conseguinte, entidades outras) que não puramente diferenciais. Ora, para que elas existam, é preciso que exista uma espécie de concessão, estranha a um sistema de puras diferenças, que possa vir justificar que uma entidade receba marcas que se inscrevem além. 4. NA LÍNGUA EXISTEM SIGNOS

A dessemelhança própria aos elementos que constituem um “signo”, enunciada aqui em latim, é explicitada em De l’essence double du langage sob uma fórmula de reminiscências um tanto gregas: ali Saussure fala, com efeito, de “associação de dois elementos heterogêneos” (ELG, p. 18). Esses “dois elementos heterogêneos” serão posteriormente identificados, por meio de parênteses, à dupla “signos-ideias” (ver ELG, p. 20). 13

Essa ideia de um eventual sistema de signos (concebidos como entidades duplas) exige, com efeito, a adesão a uma noção – que Saussure chama de conceito, significação, sentido, ideia ou significado, pouco importa – que se distingue necessariamente da noção de “valor puramente diferencial” 14 . O feixe de informação linguística pertinente veiculado por um signo excede, necessariamente, o que pode estar implicado no “valor puramente negativo e diferencial” 15. É nesse sentido que Saussure admite, no extremo final do terceiro curso (4 de julho de 1911), ser possível, na realidade, falar de “algo que pode se assemelhar a termos positivos” e “portanto sustentar que só existem diferenças ” (Cours III, Constantin, A, p. 142 [ver também ELG, p. 64). Essa combinação de um conceito com uma imagem auditiva poderá, sem dúvida, não responder a nenhum critério e, por conseguinte, ser arbitrário – o que era bem a opinião de Saussure –, mas convém notar que para que haja combinação, seja ela arbitrária ou não, é preciso admitir o caráter “duplo” das entidades tratadas, caráter duplo que implica, repitamos, que à entidade chamada “signo” possam ser conferidas propriedades distintas das que decorreriam de um sistema puramente diferencial, onde somente haveria diferenças (ver § 2). Essas entidades que são os signos consistem, portanto, numa ligação indissolúvel e arbitrária de “dois elementos heterogêneos” que, afirma Saussure, se tornam “qualidades” um do outro: “o conceito se torna uma qualidade da substância , tal como a sonoridade se torna uma qualidade da substância conceitual” (Cours III, Constantin, A, p. 79). Em maio de 1911, Saussure introduz, porém, um elemento inédito:

Postulávamos como uma verdade evidente que a ligação do signo [sic (= imagem auditiva), ES] para com à ideia representada é radicalmente arbitrária. [No entanto], em toda língua, é preciso distinguir o que permanece radicalmente arbitrário e o que se pode chamar de arbitrário relativo. Somente uma parte dos signos em toda língua serão radicalmente arbitrários. (ibid., p. 85)

O que era uma “verdade evidente” se vê, na realidade, limitado pelo fato de que a língua é “um sistema”: “Tudo o que faz de uma língua um sistema exige ser abordado sob esse ponto de vista [...]: limitação da arbitrariedade com relação à ideia” (ibid., p. 87). Esse trecho, interessantíssimo, mostra que até 5 de maio de 1911, data em que introduz a ideia da limitação da arbitrariedade, Saussure tinha se permitido definir a entidade “signo” sem considerar o fato de que ela pertencia a um sistema. O que ele sempre tinha ensinado como “uma verdade” não o é mais – e pede, então, que seja redefinida – a partir do momento em que é considerada do ponto de vista do sistema. Mas de que “sistema” se está falando? De um “sistema” diferente, é claro, daquele que decorria do primeiro trecho examinado. No primeiro modelo, concluíramos, a língua era um sistema (de valores puramente diferenciais) porque o signo é arbitrário: o caráter

14 E isso apesar das fórmulas repetitivas do manuscrito De l’essence double du langage, onde Saussure garante que esses termos são sinônimos: “Não estabelecemos nenhuma diferença séria entre os termos valor, sentido, significação, função ou emprego de uma forma, nem mesmo com a ideia como conteúdo de uma forma; esses termos são sinônimos” (ELG, p. 28). Autores como Boquet (2000, p. 13) e Rastier (2002, p. 24) defendem esta sinonímia. 15 Assim, Louis de Saussure fala do “caráter inoperante do critério do valor sozinho” (Saussure [L. de], 2004, p. 290) e da “sub-informatividade […] gritante” da noção de “sistema de valores puros” (Saussure [L. de], 2006, p. 187).

sistemático da língua era uma “consequência necessária” da arbitrariedade (ver § 2.2). Neste segundo modelo, o argumento se inverteu. Também se diz que a língua é um “sistema”, mas, agora, do caráter sistemático da língua resulta, ao contrário, que o signo não é radicalmente arbitrário. Os conceitos de “arbitrariedade” e de “sistema” não são mais correlativos, eles agora entram em concorrência. Haveria, assim, duas afirmações antagônicas: a) a língua é um sistema porque o signo é radicalmente arbitrário (§ 2)

b) o signo não é radicalmente arbitrário porque a língua é um sistema (§ 4) 16

Trata-se, evidentemente, de duas noções distintas de “sistema”. Analisamos brevemente as propriedades do “sistema” que decorria do primeiro trecho submetido a exame, onde a consideração de um elemento qualquer implicava a consideração do sistema e era, em última instância, uma espécie de resumo desse sistema; onde dizer “A” equivalia a dizer “¬B, ¬C, ¬D”; onde isso era mesmo tudo o que se podia dizer do termo A (ver § 2). Tentemos, agora, ver em que pode consistir esse segundo modelo de “sistema” cuja existência implica, diz Saussure, uma limitação da arbitrariedade. 5. A LÍNGUA É UM SISTEMA DE SIGNOS 17

Os primeiros exemplos de limitação da arbitrariedade que Saussure oferece dizem respeito somente a signos analisáveis e têm a ver, portanto, com a sintagmática. Vinte será “absolutamente imotivado”, já que inanalisável; dezenove, ao contrário, sendo composto, pereira, sendo derivado e, em geral, todo termo que “evoca” um “termo coexistente” na língua será “relativamente motivado” (Cours III, Constantin, A, pp. 85-86). No último instante da última aula, Saussure introduz porém um elemento que se revelaria, segundo Frei (1974, p. 123), “decisivo”. Ele afirma ali, de fato, que “a solidariedade dos termos no sistema pode ser concebida como uma limitação da arbitrariedade, seja [a] solidariedade sintagmática, seja [a] solidariedade associativa” (ibid., p. 143).

Essa ideia de uma limitação da arbitrariedade pela “solidariedade associativa” dos termos – uma ideia “insuficientemente amadurecida”, segundo Godel (SM, p. 227) – era somente, tudo bem considerado, o desenvolvimento lógico do que já comportava a limitação sintagmática. Como afirmou Frei nitidamente numa nota, “nenhuma porção [...] pode constituir um sintagma se não for dividida em unidades menores, divisão que só é possível se cada uma delas fizer parte de uma classe de substituições” (Frei, 1974, p. 125). Assim, Saussure explicava que “é na medida em que essas ouras formas [refazer, perfazer, fazer, desordenar, deslocar, ES] flutuam em torno de desfazer que é possível analisar, decompor ‘desfazer’ em unidades”

16 Daí se poderia tirar este divertido argumento: se o signo fosse radicalmente arbitrário, a língua seria um sistema; ora, acontece que, efetivamente, a língua é um sistema, eis por que o signo nao é radicalmente arbitrário. Este sofista lembra a anedota freudiana do caldeirão furado: “A pediu emprestado um caldeirão de cobre a B. Depois que o devolveu, B levou A ao tribunal acusando-o de ser responsável pelo grande buraco que se acha ali agora e que torna o utensílio inutilizável. A apresenta sua defesa nestes termos: Primeiro, jamais pedi um caldeirão emprestado a B; segundo, o caldeirão já tinha um buraco quando B me deu; terceiro, devolvi o caldeirão em perfeito estado”(Freud, 1905, p. 131). 17 Este parágrafo extrai sua essência dos artigos de Frei (1974) e de Godel (1975).

(Cours II, Riedlinger, p. 53). A noção de “sintagma” supõe a de “série associativa” – como também Sechehaye, aliás, depreendera muito bem (CLG/E1, p. 300, par. 2105) 18. Ora, se “a divisibilidade do sintagma, e por conseguinte sua própria existência, é inconcebível sem classes”, compreende-se então por que “a arbitrariedade relativa sintagmática pressupõe a arbitrariedade relativa não táctica” (Frei, 1974, p. 125), o que acarretaria uma consequência curiosa: se, como admitia Saussure, há “série associativa” mesmo no fato de “um substantivo estar em relação com os outros substantivos” (Cours III, Constantin, A, p. 130) e se, desse ponto de vista, “todos os signos da língua entram em classes de substituição e em paradigmas” (Frei, 1974, p. 125), será obrigatório então concluir, com Frei, que “não existem signos linguísticos cuja arbitrariedade não seja limitada” (ibid., p. 124).

Além dessa conclusão, cujo caráter “peremptório” Godel ressaltou (1975, p. 88), mas que é acessória, na realidade, a nosso objeto, o que nos interessa focalizar é essa espécie de rede de relações sintagmático-associativas – chamada “sistema ” (Cours III, Constantin, A, p. 87) –, cuja existência limita, afirma Saussure, o fato da arbitrariedade radical. Essa noção de “sistema” contrasta de maneira significativa com a noção de “sistema” extraída do primeiro trecho analisado. No primeiro caso, havia somente diferenças e o exame de um elemento qualquer implicava a consideração da totalidade das relações (puramente diferenciais) que constituíam o “sistema”. O “sistema” que se acaba de evocar comporta uma sorte de organização de elementos, os “signos”, em classes e paradigmas 19. Ora, e insistimos nisto, só é possível admitir essa organização se se admitir a existência de caracteres positivos que a autorizam e a partir dos quais ela se realiza. No interior de uma classe ou de um paradigma, cada elemento deve ser o representante de pelo menos “um traço comum, que é a identidade da classe” (Frei, 1974, p. 127):

[...] a associação que se faz na memória entre palavras [ou qualquer outro gênero de signos, ES] que oferecem algo de comum cria diferentes grupos, séries, famílias no interior das quais reinam relações muito diversas : são as relações associativas. (Cours III, Constantin, A, p. 132)

Reencontramos assim, por um percurso totalmente outro, aquele caráter “não puramente diferencial” que nos permitira discernir que um signo, enquanto entidade dupla, não podia fazer parte de um sistema de valores puros. Esse mesmo traço que o impedia de participar daquele sistema é a condição de possibilidade de um outro tipo de organização, muito mais complexa, que acabamos de desvelar sucintamente. 6. CONCLUSÃO

Sobre este ponto de vista, ver entre outros Frei (1974), Godel (SM, pp. 226-227 e pp. 244-245) e Amacker (1974, p. 25). 19 Do primeiro exemplo de “sistema” (ver § 2), assim, poderíamos dizer que ele constitui em si uma única classe e um único paradigma: todos os elementos mantêm relações com os outros elementos e não temos critérios segundo os quais ordenar ou classificar os elementos de qualquer maneira que seja. 18

6.1 Os dois esquemas teóricos que quisemos assinalar poderiam ser reduzidos, em primeiro instância, à presença/ausência de um traço não puramente negativo e diferencial no nível das entidades que abordamos. Se partirmos da premissa de que na língua só existem diferenças, chegaremos necessariamente a entidades de uma face, simples, do tipo das que se encontram (exclusivamente, segundo Jakobson) nos sistemas fonológicos. A determinação do valor de cada termo exige a consideração da integralidade do sistema e as propriedades dos elementos se esgotam na noção de “valor” (considerada então como “contrapartida dos termos coexistentes na língua”). Se, ao contrário, afirmarmos que a língua é um sistema de signos, definidos, por seu turno, como entidades duplas, a coisa fica bem diferente. Existe, na premissa, a introdução de um caráter que precede a (e difere da) pura e simples consideração do conjunto. Trata-se, de fato, de um procedimento inverso: parte-se da definição das unidades cujo jogo, a definir, constituirá talvez um “sistema” (entendido então como “organismo” [ver Cours III, Constantin, A, p. 87]). Os efeitos dessa distinção repercutem sobre a integralidade das noções que formam o “sistema de geometria” que Saussure via na “linguística geral”(SM, p. 30). Mesmo as relações sintagmáticas e associativas, que nos permitiram definir o “sistema” que acabamos de examinar sumariamente (mas que agem também, evidentemente, no nível fonológico) terão um alcance muito diferente conforme os apliquemos a um ou ao outro dos modelos de entidade.

Assim, se as razões que sustentam este argumento forem justas, deveríamos estar em condições de formular alguns princípios essenciais a toda “teoria geral das oposições” (cf. Troubetzkoy, 1939/1949, p. 70). Sugerimos três: um princípio de não-complexidade das entidades puramente diferenciais, segundo o qual toda entidade definível de maneira exaustiva a partir das diferenças puras será necessariamente uma entidade simples (não composta de “dois elementos heterogêneos”); um princípio de não-pura diferencialidade das entidades duplas, correlativo do primeiro e segundo o qual toda entidade dupla (composta de “dois elementos heterogêneos”) não poderá jamais ser exaustivamente descrita a partir de diferenças puras; enfim, um princípio de não-negatividade das entidades duplas, segundo o qual toda entidade dupla (composta de “dois elementos heterogêneos”) será necessariamente uma entidade não puramente negativa. Esses princípios, se estiverem corretos, permitiriam rejeitar alguns lugares comuns da teoria saussuriana, como por exemplo a opinião, tantas vezes repetida, de que o caráter fundamental do “signo”, entidade dupla por definição, seria o de ser “puramente diferencial” 20.

6.2. Retomaremos, para terminar, a problemática do conceito da “arbitrariedade”, pois parece que a distinção dos dois modelos de entidades linguísticas levanta alguns problemas, e deveríamos poder dissipá-los.

Se houvesse somente diferenças, de fato, seria completamente absurdo falar da arbitrariedade: as entidades suscetíveis de constituir um sistema de diferenças puras seriam necessariamente simples (ver § 2 e § 6) e não haveria “ligação” que

Sechehaye, Bally e Frei, num artigo publicado no número 2 de Acta Linguistica, afirmam isso tal e qual: “As unidades da língua, ou seja, os signos […] Seu caráter próprio é o de serem puramente diferenciais…” (1941/1968, p. 191). 20

pudesse (ou não) ser arbitrária. É somente no nível dos signos, entidades de duas faces, que o conceito da “arbitrariedade” pode ter sentido (cf. Arrivé 2007, p. 47). Ora, como vimos, no nível do sistema dos signos a arbitrariedade é limitada e os signos – todos, segundo Frei (1974, p. 124) – seriam então “relativamente motivados”. Pareceria assim que o conceito da “arbitrariedade radical”, “prius” da “sistematização dos teoremas da teoria linguística” segundo De Mauro (CLG, p. 443, n. 138) não teria aplicação possível nos sistemas linguísticos 21.

Essa abordagem, no entanto, é simplistas e por conseguinte, segundo toda probabilidade, errônea. A plena compreensão do conceito saussuriano da arbitrariedade implica as duas noções de sistema que analisamos. Não é que “os signos, porque são arbitrários, só podem existir por suas diferenças” – conforme compreendia Frei (1974, p. 126), apoiando-se no texto do CLG (ver p. 159) ou mesmo nas notas de Riedlinger (Cours II, Riedlinger, pp. 7-8). Quando Saussure evoca o “caráter arbitrário do signo” e do “valor puramente negativa e diferencial do signo”, sendo isto “uma consequência necessário” daquilo, é preciso dar ao termo “signo” dois alcances diferentes. No primeiro caso se trata, sem dúvida alguma, do vínculo que une um significante e um significado. Na segunda ocorrência, a nosso ver, se trata de um das ocasiões em que o termo “signo” desliza – a metáfora é de Saussure (ver Cours III, Constantin, A, p. 93) – e designa só uma parte da entidade dupla chamada “signo”. O que Saussure queria dizer, em nossa opinião, equivale ao seguinte: porque o vínculo que une o significado ao significante (i. e., o “signo”) é arbitrário, o significante (que Saussure aqui também chama – e desastradamente – de “signo”) e o significado, tomados separadamente e cada um de seu lado, consistem só de diferenças. Ora, a aliança dessas duas faces comporta algo de positivo; ou, se se preferir, desta aliança resulta algo de positivo (as duas formulações servem igualmente a nosso argumento). A partir desse elemento positivo, torna-se então possível organizar as unidades (aqui, os “signos”) em classes de paradigmas, e é essa organização que se inscreverá na origem da limitação da arbitrariedade. O conceito da “arbitrariedade” opera como uma espécie de nó em que se conjugam as duas noções de sistema que quisemos destacar. Talvez seja verdade, portanto, que, desse ponto de vista, esse conceito seja uma espécie de “espinha dorsal” (Amacker, 1975, p. 81) ou “epistemologicamente a noção central” (Mounin, 1972, p. 51) da linguística saussuriana. POST SCRIPTUM: SOBRE DE L’ESSENCE DOUBLE DU LANGAGE (1891)

Conforme tínhamos anunciado na introdução, a base filológica das considerações aqui expostas se limitou exclusivamente às anotações atinentes aos três cursos de linguística geral. A vantagem inerente dessa escolha é que essas anotações representam (ou supostamente representam) o último estado do pensamento de Saussure (1907-1911). Seria possível objetar que a desvantagem reside no fato de que essas anotações, que no fim das contas decorrem somente de um curso universitário, são lacunares (sobretudo quando vêm da mão de Saussure) e

“A conclusão que parece se impor”, admitia Godel, “é que a ideia da arbitrariedade absoluta do signo linguístico é incompatível com o fato de que as línguas são sistemas cujos termos são solidários. […] Ele [Saussure, ES] talvez tenha se equivocado ao insistir no caráter ‘radicalmente arbitrário’ do signo linguístico” (Godel, 1975, pp. 88-89). 21

possivelmente imperfeitas (em particular quando se trata dos ouvintes). Que teria acontecido com nosso trabalho se tivéssemos optado por levar em conta outras fontes filológicas? Isso teria feito modificar-se a natureza de nossas conclusões? O manuscrito De l’essence double du langage (ELG, pp. 17-89), redigido vinte anos mais cedo que as anotações analisadas acima 22 , se revela particularmente adequado a este exercício de revisão.

Viu-se que as anotações sobre as quais concentramos nossos argumentos apareciam, em Constantin, confusas. Por isso, adotamos a fórmula encontrada nas anotações pessoais de Saussure (ELG, p. 336; ve § 3), segundo a qual há dois tipos “perfeitamente diferentes” de relações concernentes às entidades linguísticas: de um lado, relações existentes entre os termos pertencentes a um mesmo sistema (relações que, em Constantin, eram indicadas por meio de um “a”); do outro, relações existentes entre os “dois elementos heterogêneos” (simile-dissimile) que compõem uma mesma entidade (relações que, em Constantin, eram designadas por meio de um “b”). Por causa dessa distinção, concluímos que estávamos, neste caso preciso, diante de entidades “duplas” e, assim, não suscetíveis de serem exaustivamente definidas a partir de diferenças puras, como tinha podido ser o caso no modelo examinado no segundo parágrafo (ver § 2) e como Saussure parece ter querido definir todas as entidades linguísticas (ver § 2.2 e nota 9).

O que se passa com essa distinção no manuscrito De l’essence double du langage? À primeira vista, parece que essa distinção não se sustenta:

As identidades neste domínio [ele fala do “estado da língua em si mesmo”, ES] são fixadas pela relação da significação e do signo, ou pela relação dos signos entre si, o que é não diferente. (ELG, p. 21)

A relação entre os dois elementos heterogêneos que fazem parte de um “signo” é concebida aqui, com efeito, como uma noção “não diferente” da soma das relações entre os “signos” 23. Essa ideia – que sustenta a maioria dos argumentos do manuscrito – é contudo, em outras passagens do mesmo texto, sensivelmente atenuada. Como neste fragmento, por exemplo, em que Saussure se declara (com um toque de amargura, como se percebe) incapaz de resolver a questão:

Somos sempre reconduzidos aos quatro termos irredutíveis e às três relações entre eles formando um todo único para o espírito: (um signo / sua significação) = (um signo / e um outro signo) e ademais = (uma significação / uma outra significação). [...] Talvez não tenhamos razão em desistir de reduzir essas três relações a uma só; mas nos parece que essa tentativa começaria a ultrapassar a competência do linguista. (ELG, p. 39)

22 O fólio 118 deste manuscrito – fólio cujas primeiras palavras são “paralelia ειμι-δωσω” (ver ELG, p. 62) – traz, no alto e à direita, menção da data de “6 dez. 91”, claramente escrita pela mão de Saussure (BGE. Arch. de Saussure, f. 118). Esse detalhe, desconsiderado na edição dos ELG, foi assinalado por Harris (2003, p. 217). Num outro fólio, Saussure tinha anotado “15 dez.” (datação igualmente ausente dos ELG [ver p. 40]). 23 Cabe notar que a terminologia saussuriana não opera distinção, nesta época, entre o “signo” enquanto entidade “dupla” – composta, segundo a terminologia introduzida em maio de 1911, de um “significante” e de um “significado” – e o “signo” enquanto contrapartida do “conceito” – e homólogo, neste sentido, ao conceito de “significante” de maio de 1911.

Saussure aqui, contrariamente ao que escrevia quinze páginas antes e para além das dúvidas que alega, desiste dessa operação de redução. A questão, visivelmente, não estava totalmente clara para ele. Seria em razão de reflexões do tipo que nós percorremos aqui? Jamais saberemos. De todo modo, vinte anos depois, no trecho final de sua carreira, ainda o vemos deliberar sobre essa mesma dificuldade (ver § 3 e nota 12). A leitura de De l’essence double du langage, aqui apenas encetada, não nos obrigaria portanto a modificar a natureza de nossas conclusões, mas viria, antes, confirmá-la: Saussure parece de fato ter querido tornar equivalente o alcance desses dois tipos de relação, mas não estava, no mesmo movimento (seja em 1891, seja em 1911), totalmente convencido da validade dessa operação. Sua última palavra, em todo caso, foi admitir que essas relações eram perfeitamente diferentes. BIBLIOGRAFIA

Corpus saussuriano

Outras referências

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