Dominação tradicional nas relações de morada na região açucareira do Nordeste

June 19, 2017 | Autor: Giancarlo Zeni | Categoria: Max Weber, Nordeste do Brasil, Latin America's Peasantry and Rural Economic Cultures
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Dominação tradicional nas relações de morada na região açucareira do Nordeste1 Giancarlo Marques Zeni2

Resumo Este artigo aborda o tema das relações de morada na região açucareira do Nordeste a partir de uma perspectiva weberiana. A literatura evidencia o caráter tradicional das relações estudadas, mas não as tipifica conforme as proposições teóricas de Weber. Utilizando duas pesquisas de campo clássicas sobre o tema, analisamos elementos que oferecem grau de evidência suficiente dos sentidos que atribuem à relação de morada uma pluralidade de agentes, na média, e dois agentes historicamente dados, em um caso concreto. Aproximando esses sentidos observados na bibliografia à teoria weberiana, os resultados mostram que é possível relacionar a morada ao tipo puro de dominação tradicional proposto por Weber. Palavras-chave: Relação de morada; Dominação tradicional; Trabalhadores rurais; Nordeste

Abstract This article discusses the morada relationships in the sugarcane plantation of Northeast Brazil from a Weberian perspective. Literature highlights the traditional character of these relationships but doesn't tipify them according to Weber's theoretical propositions. Based on two classical field researches on the subject, we analyze elements that provide enough evidence of the meanings attributed to the morada relationship by a plurality of actors, on average, as well as by two historically given actors in a specific case. Approaching the actor's meanings observed in bibliography by Weberian theory, the results show it is possible to relate the morada relationship to the traditional domination pure type proposed by Weber. Key words: Morada relationship; Traditional domination; Rural workers; Northeast Brazil

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Ensaio apresentado como requisito para aprovação na disciplina Fundamentos da Teoria Política, do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná – UFPR, ministrada pelo Prof. Dr. Renato Monseff Perissinotto. 2 Graduando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná – UFPR, [email protected] 1

1. Introdução Morada3 é um tipo de relação social, peculiar à zona açucareira do Nordeste, em que um trabalhador se liga a um engenho através de contrato verbal e pessoal, de regras muito singulares, celebrado com o senhor de engenho (Palmeira 2009, p. 204). Compreender essa relação significa compreender a ordem social em que os trabalhadores rurais daquela região estavam inseridos antes da efetiva implantação dos direitos garantidos pela Lei n.º 4.214/63, o Estatuto do Trabalhador Rural, cuja eficácia corresponde à efetivação da dominação legal nas relações sociais e trabalhistas nos engenhos. De acordo com Sigaud (2004), depois da chegada da crise econômica à indústria sucroalcooleira nos anos 1990, que leva a demissões e expulsões em massa, muitos trabalhadores se sentem abandonados pelo direito e pela tradição e, segundo Palmeira (2009), passam a idealizar a antiga relação de morada. Os trabalhos de Palmeira (2009) e Sigaud (2004) são fundamentais para compreender essas relações, dada a dedicação dos pesquisadores à área e sua imersão no contexto social dessas relações em pleno momento de crise (Lopes 2009, pp. 5-6). O primeiro consiste de uma análise do tema tendo o trabalho no engenho como paradigma central das relações sociais entre senhores e moradores; no segundo, a autora se dedica a reconstituir as relações sociais no Engenho Amaragi a partir do caso do enfrentamento judicial entre o senhor e um morador. Embora ambos, e os próprios moradores, evidenciem o caráter tradicional das relações sociais estudadas e Sigaud tenha, inclusive, relatado a possibilidade de tipificar as relações de morada conforme a proposta de Weber, nenhum deles observa o fenômeno fundamentalmente a partir da óptica weberiana. Este artigo pretende identificar, na bibliografia, elementos que ofereçam grau de evidência suficiente para tipificar a relação de morada como estrutura de dominação tradicional. Para operacionalizar nossa hipótese, apresentamos, na sequência, uma resenha da conceituação do tipo puro de dominação tradicional; em seguida, relacionamos as principais características da relação de morada, de acordo com Palmeira e Sigaud, e as analisamos pelas lentes dos tipos puros formulados por Weber, tanto a partir dos sentidos subjetivamente visados por uma pluralidade de agentes, por aproximação ou na média, quanto por dois agentes historicamente dados, em um caso concreto. 2. Dominação tradicional em Weber Quando, em determinadas relações sociais, é provável que ordens dadas por determinado agente, ou por determinado conjunto de agentes, sejam obedecidas de maneira regular e estável, 3

É Sigaud (2004, p. 153) quem usa a expressão “relação de morada”, que repetimos aqui por considerarmos adequada ao espírito da teoria weberiana. 2

podemos afirmar que existe uma estrutura de dominação (Weber 1978, p. 212; Perissinotto, 2008, p. 48). Os três tipos puros de dominação legítima, para Weber, são legal, tradicional e carismática, que se diferenciam a partir da ordem em que se fundam (convencional ou legal) e da maneira com que são exercidas (Weber 1978, p. 215). A relação de dominação é tradiconal quando sua legitimidade vem da atribuição de valor, por parte de dominadores e dominados, à antiguidade e à sacralidade das normas e poderes que regem a relação. O senhor ascende a essa posição por métodos tradicionais e é obedecido justamente em razão disso. O fio condutor que liga senhores e súditos, neste caso, é a pessoalidade das relações: não há estatutos ou aparato burocrático, mas todas as relações sociais desenvolvidas entre dominadores e dominados se baseiam na fidelidade pessoal (Weber 1978, pp. 226-227). Isso não significa dizer, contudo, que o senhor goze de poderes absolutos; suas ordens são legítimas (i) quando tradições determinam diretamente seu conteúdo, sendo válidas dentro de certos limites que não podem ser ultrapassados, sob pena de ameaçar sua legitimidade e mesmo a posição do senhor, ou (ii) quando a tradição lhe faculta discricionaridade em certas esferas. Nesse último caso, o senhor pode dotar suas ordens de determinados princípios de equidade, justiça ética material ou conveniência utilitarista, mas nunca de princípios formais, como se daria em uma relação de dominação legal. A efetividade do exercício da dominação, portanto, está contida naquelas ordens que habitualmente o senhor e seu quadro administrativo podem emitir sem que haja resistência dos dominados. Quando há resistência à obediência dessas ordens, a acusação tende a ser reacionária: o senhor ou seu quadro administrativo falharam em observar os limites tradicionais de seu poder (Weber 1978, pp. 227-228). Cumpre dizer que o senhor pode, ou não, contar com um quadro administrativo para lhe assistir no relacionamento com os dominados. Os servidores deste quadro característicamente são recrutados (i) dentre pessoas já relacionadas ao senhor por laços de fidelidade tradicionais, como parentes, escravos, agregados, etc., em um tipo de recrutamento que Weber chama de patrimonial, ou (ii) dentre pessoas em relação de fidelidade puramente pessoal, como favoritos, vassalos ou homens livres que adentraram a relação de fidelidade por vontade própria, recrutamento que Weber chama de não-patrimonial. É de se notar que apesar da presença de um corpo administrativo que assiste ao senhor, não há esfera de competências claramente definidas, sujeitas a normas impessoais, nem hierarquias racionalmente estabelecidas, sistema regular de nomeações ou salário fixo e/ou pago em dinheiro (Weber 1978, pp. 228-229).

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Quando existe tal quadro administrativo, e quando a dominação, assentada na tradição, se exerce exclusivamente em razão do direito pessoal do senhor, temos, de acordo com Weber (1978, pp. 231-232), um tipo de dominação tradicional denominada patrimonialista. Os servidores patrimoniais, integrando o quadro administrativo ou não, recebem seu sustento da mesa do senhor, de mesadas (na maioria das vezes em espécie), do direito de uso de terras em troca de serviços, da apropriação de rendas, taxas ou tributos ou de feudos. Determinadas formas de sustento são conferidas sempre de novo e de maneira tradicional, apropriadas pelo indivíduo mas não hereditariamente, e são chamadas de prebenda; quando as prebendas são o meio principal de sustento dos servidores, temos o prebendalismo. Na lógica prebendalista, pode haver promoção dos servidores por idade ou antiguidade ou ainda por certa mensuração da qualidade de seus serviços (Weber 1978, p. 235). 3. As relações de morada na zona canavieira de Pernambuco Com as mobilizações políticas e a expulsão dos trabalhadores rurais dos engenhos a partir de 19634, a significação de morador foi se modificando até se tornar “pouco mais que uma denominação local para proletário rural”(Palmeira 2009, p. 203). Palmeira, contudo, se baseia na memória social dos trabalhadores e antigos moradores para recuperar como seria essa relação em seus tempos áureos (Palmeira 2009, p. 204). Morar, naquele contexto, significa(va) uma relação social estabelecida por contrato verbal e pessoal entre um trabalhador rural, cortador de cana, e o senhor do engenho em que o trabalhador seria morador. Não existe, na relação de morada, um simples morador - o morador é sempre morador de determinado engenho (Palmeira 2009, p. 204). Passa a gozar dessa denominação depois de celebrar o contrato verbal particular com o senhor, momento a partir do qual sabia que poderia contar com o patrão, que o protegeria nos momentos mais difíceis como de doença ou morte, e daria presentes ao morador e sua família: “roupas no natal, peixe na páscoa e, eventualmente, carne fresca” (Sigaud 2004, p. 134). Quanto mais generoso era o patrão, maior era seu prestígio entre os moradores e os outros senhores de engenho (Sigaud 2004, p. 135). Em contrapartida, o morador deveria trabalhar apenas para seu senhor e lhe devia lealdade. Essas regras não eram expressas, mas implícitas, e todos as conheciam (Sigaud 2004, p. 134). Ao pedir morada a um determinado senhor de engenho, contudo, mais que trabalho e presentes, o trabalhador procura casa: não uma simples residência, mas “uma casa que permita o sustento dele e de sua família e lhe assegure certas vantagens no engenho, além de lhe abrir certas 4

Ano de promulgação da Lei 4.214/63 - Estatuto do Trabalhador Rural, “que impunha aos patrões numerosas obrigações e, em caso

de conflito, a mediação da Justiça trabalhista” (Sigaud 2004, p. 136). 4

possibilidades como a de usufruto de um sítio” (Palmeira 2009, p. 205). Com a casa, o morador também recebe trabalho (o que o faz morador de condição) ou terra (o que o faz morador-foreiro), mas em qualquer dessas situações a casa, em si, inclui um terreiro, chão de terra ou fundo de casa, de onde o morador e sua família podem tirar ao menos parte de sua subsistência. Isso é visto como óbvio pelos moradores e não precisa ser explicitado no contrato com o senhor de engenho; aqueles senhores que desrespeitam essa regra estão violando a relação de morada, e o respeito a essas regras consiste em um “imperativo absoluto” (Palmeira 2009, p. 206). Embora as casas sejam inerentes ao contrato de morada, os sítios não são, sendo antes uma forma de retribuição do senhor de engenho aos melhores trabalhadores – o prêmio mais importante na hierarquia do estabelecimento. Segundo Sigaud (2004, p. 138), “no ato de dar um sítio já feito ou de autorizar o morador a fazê-lo em uma extensão de terra determinada, o patrão também dizia simbolicamente que o apreciava, que o queria bem e que desejava que ele ficasse.” No sítio, o morador faz o seu roçado e pode se ligar de maneira permanente à propriedade. Esse mecanismo de diferenciação entre moradores pode ser reforçado através de concessões como o direito de plantar cana, produto principal e mais valorizado no engenho (Palmeira 2009 , pp. 206-207). Enquanto os moradores sem sítio dependem diretamente do barracão do patrão para seu sustento, e por isso moram no pátio do engenho, próximos aos trabalhadores de menor status como os solteiros, retirantes e trabalhadores recém-chegados de outros engenhos, os moradores com sítio moram nos corgos ou grotas dispondo de maior autonomia por terem interiorizado as regras de morada e serem, portanto, dignos da plena confiança do senhor. O morador do corgo é o morador pleno, pois sua agricultura é símbolo de sua autonomia e fidelidade ao senhor, e sua presença nos locais mais afastos do engenho, além de demonstrarem a ligação à propriedade, também lhe possibilita viver a plenitude da morada: só se relaciona com sua família e com o senhor, sem qualquer vizinhança indesejada (Palmeira 2009 , pp. 206-207). É de se notar que a produção do morador pertence “de direito” ao senhor, seja da casa ou do sítio; se o morador pode dispor livremente dessa produção, ele o faz porque “a complacência e o espírito de equidade do senhor lhe outorgaram” (Bello 1939, p. 136, apud Palmeira 2009, p. 207). Para manter essa liberdade, o morador busca agradar o senhor a cada ciclo agrícola ou colheita, presentando-o “com a primeira carga de suas fruteiras ou com a primeira cria de seus bichos, ou simplesmente, no caso-limite, encontrando sua 'liberdade' na alienação total e voluntária do que lhe fora concedido. Abrir mão do fruto de seu trabalho, de seu lucro (para usar uma categoria dos próprios moradores) pode significar aqui, em vez de renúncia, uma tentativa do morador de alterar a posição relativa em que se encontra perante o senhor de engenho” (Palmeira 2009, p. 208). 5

Em contrapartida aos benefícios recebidos, o morador e sua família devem trabalhar para o engenho por um número mínimo de dias, ou por uma certa produtividade, sem receber salário – os excedentes são pagos com adicionais em dinheiro. No caso do morador-foreiro, uma vez por ano, por períodos que vão de dez a vinte dias, deve trabalhar na manutenção do engenho ou mesmo no corte de cana (Palmeira 2009, p. 208). Os moradores que contam com a confiança do senhor são, muitas vezes, integrados ao quadro de empregados, se tornando cabos ou administradores, que têm funções difusas e pouco claras mas que, em geral, fiscalizam o trabalho no corte da cana e nas outras lides do engenho, ou recebem encargos como os de vaqueiro e cargueiro, voltando para perto da casa grande – o que é percebido como vantagem e desvantagem simultaneamente, já que o símbolo maior da autonomia do morador é viver distante, no corgo, mas ser empregado ou morador de confiança é sinal de grande distinção social no engenho (Palmeira 2009, pp. 212-213). 4. O caso de Amaro Pedro e José Bezerra, do Engenho Amaragi José Bezerra nasceu em Vitória de Santo Antão, filho primogênito de um senhor de engenho que tinha outros 21 filhos. Como dificilmente seria senhor do engenho paterno, que seria dividido entre todos os herdeiros, mudou-se para Rio Formoso, município da zona da mata pernambucana, em 1952, aos 32 anos, para arrendar um engenho. Arrendou o Engenho Amaragi, praticamente inexplorado, da Usina Central Barreiros (Sigaud 2004, p. 134). “Em Amaragi, Bezerra encontrou apenas alguns homens, e ele precisava de muitos mais para explorar um engenho de 1.200 hectares: a produção da cana era feita — e ainda hoje o é — com grandes contingentes de mão-de-obra. Com os que lá se encontravam e as centenas de outros que fez vir, Bezerra reproduziu o mesmo tipo de relações sociais que conhecia desde a infância no engenho do pai: as relações de morada” (Sigaud 2004, p. 134). Amaro Pedro, tal qual José Bezerra, também havia nascido em um engenho, pertencendo, contudo, a uma família de moradores. Conforme Sigaud (2004, p. 135), “a rigor, os moradores provinham sempre de famílias que, de geração em geração, se punham a serviço dos patrões da cana-de-açúcar”. Com a entrada em vigor do Estatuto do Trabalhador Rural, já referido, os trabalhadores sindicalizados passaram a eleger delegados sindicais nos engenhos, para que vigiassem o respeito às novas normas trabalhistas pelos patrões; Amaro Pedro foi, nessas circunstâncias, eleito delegado sindical do Engenho Porto Alegre. (Sigaud 2004, p. 137).

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Em todos os engenhos da região, a chegada da nova lei e a eleição de delegados sindicais eram fatores problemáticos, a que os senhores empregavam grande resistênciam, exceto em Amaragi. José Bezerra, sendo reputado como um “bom patrão”, procurava zelar por essa imagem, e por isso assinou as carteiras de trabalho dos moradores, passou a respeitar as novas obrigações preconizadas pela lei e não se opôs que eles elegessem delegados sindicais (Sigaud 2004, pp. 135137). Amaragi era o engenho mais produtivo de Rio Formoso. Era comum, na região, que quando um engenho já havia terminado suas atividades de corte de cana da temporada, permitisse que seus moradores trabalhassem em outros engenhos. Assim, Amaro Pedro passou a trabalhar, eventualmente, em Amaragi e conheceu José Bezerra. Quando se encontraram pela primeira vez, em um dia em que Amaro Pedro voltava do trabalho, José Bezerra, provavelmente tendo ouvido falar de qualidades de Amaro Pedro, que era reputado como um bom trabalhador, convidou-o para morar em Amaragi, onde podia fazer seu roçado e criar vacas – oferecendo-lhe, portanto, um sítio. Amaro Pedro não aceitou nem declinou a proposta, possivelmente porque quisesse continuar a desenvolver as atividades sindicais em Porto Alegre (Sigaud 2004, pp. 138-139). Com o golpe de Estado de 1964, os sindicalistas passaram a ser perseguidos, e o patrão de Amaro Pedro em Porto Alegre o denuncia como “comunista” e “agitador”. Tendo tomado conhecimento que estava sendo procurado pelo Exército, Amaro Pedro corre a Amaragi e pede abrigo – pede casa - a José Bezerra, que lhe permite morar no engenho com sua família. Quando um oficial do Exército aparece em busca de Amaro Pedro, José Bezerra lhe diz que não lhe entregaria o homem por ser um homem pobre, indefeso, que merecia sua proteção. Depois disso, tem de ir diversas vezes ao Recife para responder a inquéritos para justificar seus atos. O caso se tornou célebre em Rio Formoso e reforçou a fama de José Bezerra como homem bom e patrão que protegia seus moradores (Sigaud 2004, pp. 139-142). O tempo passa e, uma vez instalado em Amaragi, Amaro Pedro havia ganhado um sítio, onde cultivava um roçado com sua família, e trabalhava para o engenho no corte da cana. Em 1965, os sindicatos, que haviam sido fechados por ocasião do golpe, são reorganizados e sua atuação passa a ser majoritariamente judicial, já que as greves haviam sido proibidas. Tendo José Bezerra, nesse ano de 1965, atrasado algum direito trabalhista previsto pela nova legislação, Amaro Pedro procura o sindicato, com o qual havia reatado relações, e é orientado a processar José Bezerra, exigindo o cumprimento da obrigação em mora (Sigaud 2004, pp. 143-144).

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De acordo com Sigaud (2004, p. 132), “o patrão mal pôde acreditar ao receber a intimação judicial. Mandou chamar o morador, que confirmou ser ele quem o estava processando. No dia da audiência, ambos se encontraram diante do juiz. Bezerra foi condenado e pagou sua dívida na Junta. De volta a Amaragi, mandou o administrador dizer a Amaro Pedro que não queria mais vê-lo e nem que o cumprimentasse. Na manhã seguinte, o trabalhador foi ao encontro do patrão na casa-grande: com lágrimas nos olhos pediu-lhe perdão e lhe devolveu o dinheiro ganho na véspera. E a paz se restabeleceu entre eles.” 5. Considerações Finais Recuperando as características da relação de morada, relatadas a Palmeira e Sigaud por trabalhadores canavieiros e antigos moradores, verificamos, primeiramente, que existe uma regularidade entre os informantes no que diz respeito à concepção das características e regras da morada, ou seja, o sentido atribuído à morada, o que permite aos autores sistematizar essas características e criar, eles mesmos, um “tipo puro” de relação de morada. Esta “tipificação” da morada parece um paralelo perfeito ao tipo puro de dominação tradicional patrimonial formulado por Weber, pois o senhor de engenho é obedecido em razão da tradição e comanda o engenho sem resistência às suas ordens, estabelecendo relações pessoais com seus moradores, contanto com um quadro administrativo (os empregados e moradores de confiança) e estabelecendo um sistema de sustento e recompensa de seus servidores pautado em uma lógica prebendalista. O caso de Amaro Pedro e José Bezerra, por sua vez, nos permite conhecer concretamente a mecânica de uma relação de morada. Amaro Pedro, quando perseguido, apelou à convenção em que se fundava a morada ao pedir abrigo – casa – a Bezerra, provavelmente porque reconhecia em Bezerra o espírito do bom patrão cuja imagem o próprio Bezerra fazia questão de cultivar, que não se furtaria de cumprir com sua palavra e suas obrigações de senhor – oferecer proteção aos moradores em situações difíceis, ao passo que o próprio Amaro cumpriria também suas obrigações de morador ao ser um bom trabalhador. De acordo com Sigaud (2004, p. 153), “o mundo havia mudado, mas Bezerra continuava a se comportar como 'antes do direito' (...). Acolheu um 'comunista' para honrar sua palavra, tratou-o como um de seu moradores porque não podia agir de outro modo e o perdoou porque Amaro Pedro se humilhou perante ele. O episódio é uma demonstração extrema deste que foi o modo pelo qual Bezerra geriu as relações com seus moradores. Sobre os moradores de Amaragi, sempre exerceu uma dominação personalizada: sua autoridade era pessoal e ele se fazia obedecer graças ao respeito à tradição, na qual ele soube incluir os 'direitos'”. 8

As regras do jogo estavam tão “internalizadas” em Amaro Pedro e José Bezerra que mesmo quando Amaro Pedro processa o senhor, quebrando sua parte no contrato de lealdade celebrado entre os dois, parecia, de alguma forma, saber que a humilhação e o pedido de perdão resolveriam o assunto e restaurariam os laços entre ele e o patrão, sugerindo que ambos atribuíam sentidos homogêneos à relação em que estavam engajados e partilhavam de uma dimensão consesual das regras de mando (Perissinotto 2008, p. 48). Resulta, assim, que a literatura consultada nos fornece suficientes evidências de que tanto uma pluralidade de agentes, por aproximação ou na média, quanto dois agentes historicamente dados, em um caso concreto, atribuem à relação de morada sentidos homogêneos, em que determinadas ordens são obedecidas, de maneira estável, em razão da atribuição de valor à sacralidade da tradição que as legitima. Isso permite caracterizar, em outras palavras, a relação de morada peculiar à região açucareira do Nordeste como uma relação de dominação tradicional de acordo com a tipificação weberiana.

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Referências bibliográficas BELLO, J. Memórias de um senhor de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. LOPES, J. S. L. Lygia Sigaud (1945-2009). Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 24, n. 71, p. 5-8, Oct. 2009. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2015. PALMEIRA, M. Casa e trabalho: nota sobre as relações sociais no plantation tradicional (1977). In: WELCH, C. A.; MALAGODI, E.; CAVALCANTI, J. S. B.; WANDERLEY, M. N. B. (Org.). Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássicas. Volume 1. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. PERISSINOTTO, R. M. Poder: imposição ou consenso ilusório? Por um retorno a Max Weber. In: NOBRE, R. F. (Org). O poder no pensamento social: dissonâncias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. SIGAUD, L. Armadilhas da honra e do perdão: usos sociais do direito na mata pernambucana. Mana, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p.131-163, Abr. 2004.

Disponível em: . Aceso em: 29 out. 2015. WEBER, M. (1921-22). Economy and Society. Volume 1. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1978.

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