Doping e o Direito Penal: algumas reflexões

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Doping e o Direito Penal: algumas reflexões Não é novidade que nossas autoridades tem frequentemente buscado a solução dos problemas sociais pela criação de novas leis, o que, muitas vezes, mostra-se equivocado porque o problema não reside na existência ou não de leis, mas na concretização de direitos já existentes. Apesar disso, pela facilidade do discurso imediatista, muitas pessoas acabam por aderir este raciocínio precipitado, para dizer o mínimo. Evidentemente que o tema “doping”, em algum momento, seria alvo dessa perspectiva incriminadora. E não falamos apenas do Brasil, mas de países como a Itália, Portugal e Espanha, que já criminalizaram a prática. Quanto ao Brasil, a Convenção da UNESCO contra o Doping no Esporte foi ratificada sem ressalvas, nos termos dos arts. 49 e 62, § 3º da Constituição Federal, tendo o texto sido promulgado pelo Decreto nº 6653 de 18 de novembro de 2008. Assim o Brasil internalizou a normativa e comprometeuse a praticar as medidas apropriadas para o combate ao doping. Nesta perspectiva e em tempos de proximidade com os jogos olímpicos do Brasil, seria importante e adequada a ampla discussão do tema até porque grandes ídolos do esporte nacional já foram pegos em testes com resultado positivo. São exemplos: -

O ex-jogador de vôlei, Giba que, em 2003 testou positivo para maconha, sendo que cumpriu 5 meses de suspensão na Itália, onde jogava;

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A saltadora Maurren Maggi que, em 2003, fez uso de clostebol, o que lhe rendeu dois anos de suspensão da prática esportiva;

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O ex-jogador de futebol Romário que, em 2008, fez uso de finasterida, acabou suspenso preventivamente, mas absolvido mais tarde;

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O nadador Cesar Cielo, que fez uso de furosemida em 2011, mas foi absolvido em razão de uma farmácia de manipulação ter admitido a contaminação do produto a ele vendido;

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A jogadora de vôlei Jaqueline, que em 2007 foi surpreendida com a presença de sibutramina em exames e alegou que havia tomado chá para combater a celulite. Ficou suspensa por três meses por isso;

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A ex-nadadora Rebeca Gusmão pelo uso de testosterona em 2006 e 2007, tendo sido banida do esporte;

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A ginasta Daiane dos Santos, que em 2003 foi surpreendida com a substância furosemida e foi suspensa por cinco meses;

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O lutador Vitor Belfort, que foi surpreendido por três vezes (2006, 2012 e 2014) por ter feito tratamento para reposição de testosterona (TRT);

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O ex-goleiro Zetti que, em 1993 quando disputava as eliminatórias para a Copa do Mundo nos EUA, teria ingerido chá de coca na Bolívia e foi suspenso por quatro dias pela FIFA (e pela primeira vez na história a entidade voltou atrás, retirando a suspensão);

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O lutador Anderson Silva que, em janeiro de 2015, foi surpreendido no exame com a presença das substâncias drostanolona, androsterona e 17-Diolum, que auxiliam no ganho de massa muscular.

Não foram poucos os atletas brasileiros que tiveram problemas com doping, e isto porque estamos apenas exemplificando alguns dos mais conhecidos. Quanto às leis existentes não há preocupações que mereçam extensos comentários à título da seara criminal já que, na verdade, há um tratamento meramente disciplinar, nos termos da Resolução nº 02 do Ministério do Esporte e do Conselho Nacional do Esporte, além do Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Vale dizer que o Conselho Nacional do Esporte tem publicado, com alguma constância, lista de substâncias e métodos proibidos buscando uma aproximação das proibições publicadas pela Agência Muncial Antidoping (World Anti-Doping Agency – WADA).

Além disso, foi criada a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), cujo objetivo é “consolidar a consciência antidopagem e defender no âmbito nacional, o direito fundamental dos atletas de participarem de competições esportivas livres de quaisquer formas de dopagem.” Então, se fosse o caso de pensar em crimes já existentes no nosso ordenamento, voltaríamos nossas atenções para o art. 129, CP (lesões corporais), mas apenas para os casos em que um atleta ou uma pessoa dopasse outra, não incidindo o tipo penal quando o próprio atleta optasse por praticar o doping por si só. Noutro giro, a lei 11.343/06 (drogas) não abrange casos de doping, podendo, excepcionalmente, uma substância proibida pela ANVISA constar também da lista da ABCD. Menos ainda poder-se-ia falar em estelionato (art. 171, CP) porque para tanto seria fundamental a obtenção de prejuízo econômico e a obtenção de vantagem patrimonial por outrem. Por seu turno, igualmente não se pode tipificar o doping no tipo do art. 41-E da lei 12.299/10 porque o mesmo exige uma fraude no resultado de competição esportiva, motivo pelo qual seria preciso demonstrar que o resultado da competição seria distinto sem o uso das substâncias ou métodos proibidos. Vê-se, então, que a lei não apresenta tipos penais específicos sobre o problema do doping, razão pela qual, ao considerar a eventual necessidade da criação de um crime para esta prática, será preciso definir o que se entende por doping. O conceito de doping é controverso em todos os âmbitos, seja ele o jurídico, da medicina ou do esporte. Incialmente é preciso esclarecer que “doping”é uma palavra de origem inglesa e que era usada para designar o uso de substância química em cavalos para estimular artificialmente o seu desempenho nas competições de turfe.

Uma definição simples é a de que doping é o uso de drogas ou de métodos específicos que visam aumentar o desempenho de um atleta durante uma competição. Mas isso não inclui o doping social, por exemplo, pelo uso de maconha. Sob a perspectiva jurídica, ao se criar um tipo penal é preciso considerar a existência de um bem jurídico a ser tutelado, o que certamente já traz problemas. Veja-se que caso se optasse pela saúde dos atletas estaríamos promovendo uma ingerência estatal duramente paternalista e que se mostra contrário ao ideal de autonomia das pessoas. Neste ponto a discussão tem semelhanças com a legitimidade da lei penal incriminar aquele que faz uso de entorpecente (já que a proibição representaria o Estado interferindo diretamente na vida das pessoas que prejudicassem a si próprias). Ademais, a própria escolha pela competição em esportes de alto rendimento, de algum modo, já significa alguma exposição a perigo. Não a toa o próprio Ministério do Esporte, em seu site, atentou para isto na matéria “Morte súbita em atletas de alto rendimento chama atenção do mundo esportivo”, tema que também foi alvo de artigo científico, de dissertação de mestrado e de texto em blog esportivo, para citar apenas uns poucos exemplos. Fosse o caso de considerar a perspectiva moral da lealdade competitiva, não teríamos dúvidas de que se dopar é uma violação. Mas não enxergamos aí um interesse do Estado que justifique intervenção punitiva. O doping, então, estaria muito mais para uma violação moral entre particulares que de interesse social. Ocorre que o entendimento de que o doping pode afetar diretamente um mercado bilionário, a afetação econômica até seria um caminho aceitável para a intervenção penal, quase que em uma toada de concorrência desleal. Mas, caso assim se entenda, será preciso muita cautela, tendo-se em vista que uma tipificação necessitaria de contorno bastante distinto das infrações desportivas tradicionais que também produzem vantagens concorrenciais, porque correr-se-ia o risco de mescla entre o injusto esportivo e o penal.

Como uma reflexão final fica o registro de que a imposição de tipo penal que criminalize o doping poderia vir a ser norma inaplicável. Isso porque se considerarmos o princípio nemo tenetur se detegere pelo qual ninguém é obrigado a fazer prova contra si, a utilização dos resultados dos exames antidoping poderia ser limitado, não sendo aceitável na instância criminal. Também seria o caso de se considerar a incidência de bis in idem na medida em que o atleta fosse punido disciplinarmente. Não vislumbramos, portanto, medidas práticas que fossem efetivas sob a óptica do direito penal. Publicado em http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/doping-e-o-direitopenal-algumas-reflexoes/.

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