Dor e Compreensão Psíquica

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Neuralgia do trigêmeo é uma das maiores dores que um ser humano pode experimentar. É lancinante, para dizer o mínimo. Não é uma dor de cabeça, é algo muito maior. E pode ser contínua. Dos setenta e oito anos aos oitenta e três, aquele senhor havia tido um agravamento progressivo dessa síndrome, a ponto de ficar depressivo, perder a fome, ter medo de não dormir [pelo fato da dor vencer qualquer hipnótico], passar uma semana sem tomar banho ou duas sem sair de casa, abandonando compromissos e atividades rotineiras. Por ser muito centralizador [sequer sua mulher possuía a senha de seu cartão de crédito, por exemplo, e não se mudava para um apartamento menor por querer preservar sua biblioteca de milhares de volumes], temia morrer e perder o controle. Sua mulher poderia recorrer a uma única pessoa da família: o filho mais velho dos dois, o único a estar no país.


Este filho passou a ouvir as pendências emocionais do pai [desde rompimentos acadêmicos de décadas atrás, por disputas de vaidades], a fazer ligações para filhos de ex-colegas já mortos, para restabelecer laços rompidos [com as famílias, no caso], a ouvir-lhe os remorsos por abandonos de amigos e medos futuros, além de rebocá-lo para todos os médicos possíveis: geriatras, neurologistas, acupunturistas. Pelo grau de sobrecarga, seu sistema imunológico [do filho] caiu e ele teve manifestações dermatológicas típicas de quem tem a imunidade rebaixada. No caso dele, foliculite capilar, com a formação de três abscessos que precisaram de intervenção cirúrgica. Tendo passado por uma analista junguiana meio "standard" e lhe contado "que sonhara comprar analgésicos para o pai de um dentista durante a madrugada" [por não haver qualquer opção por perto], ouviu da analista essa pergunta-pérola: "o que significa a dor de cabeça de seu pai para você? Jung diz que precisamos matar o pai para começar a viver!". No caso do indivíduo que rebocava o pai aos médicos e o consolava do medo da loucura, só se a questão fosse de "morte" ou "assassinato" literais. Curiosa a "intervenção interpretativa" desses literalistas. E aqui faço uma observação: se um analista precisa citar seu mentor [qualquer que seja] em qualquer interpretação clínica, é um sub-intérprete e um papagaio subalterno e devoto. Sem exceção. Ainda não aprendeu a ter mente própria. Carece de muita análise, portanto. E de boa análise, não de "análise didática" para aprender a citar algum mestre como "escritura".

A acupuntura ajudou no alívio da dor, bem como o uso de antidepressivos mais direcionados ao caso. O medo de não dormir não mais imperou no pai idoso, bem como houve o retorno da capacidade de reassumir a rotina diária no prazo de seis meses. Pai e filho não precisaram mais de ajuda psicoterápica. Não houve mais somatizações ou diminuição da imunidade por parte do filho: epidérmicas ou gastrointestinais. A "analista junguiana pietista" continua com seus dogmas, não muito distintos dos de Freud e seus pupilos. Talvez não saiba distinguir, clinicamente, uma dor de cabeça de uma neuralgia do trigêmeo. E pense em clichês do tipo "ter fé na vida" como substitutos adequados [em qualquer caso] para as necessidades de analgesia ou até, eventualmente, de cirurgia. Essas são as alternativas para questões extremas e toda neuralgia do trigêmeo é uma questão extrema em se tratando de dor.

Simplismos pós-modernos e indistinções "brabas" dos muitos subníveis de relação pai-filho, muito para além do Édipo.







Marcelo Novaes

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