DOS ARQUIVOS E DO SEU NOMOS NA EQUAÇÃO DO DEVE E TER A HAVER, Newsletter do CEHA. Cultura e Conflito, n.14

August 4, 2017 | Autor: Ana Salgueiro | Categoria: Conflict, Culture Studies, Newsletters
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setembro 2012

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COORDENAÇÃO: Ana Salgueiro Rodrigues

sumário 02 Cultura & conflito. Uma questão actual

UMA QUESTÃO ACTUAL 1

Cultura & Conflito... Madeira 05 Poder e conflito no Funchal setecentista: uma vereação municipal zelosa das suas prerrogativas 06 A Igreja Britânica da Madeira: um caso de gestão de conflitos no início do séc. XIX 10 Arquipélago da Madeira/metrópole: Culturas e conflitos. Breve incursão nos debates parlamentares da Monarquia Constitucional 12 Britânicos e madeirenses na História da Madeira: conflito e/ou colaboração? 15 Quando a arte fala do que “(re)pele” 18 Conflito e cultura organizacional: os verdadeiros motores do desenvolvimento 20 Galeria dos Prazeres…Que futuro? Testemunho de um encontro entre espaço rural e arte contemporânea 22 Entre a pedra e as águas

CULTURA & CONFLITO

Cultura & conflito... outros lugares 23 A bem da Nação: a cultura popular como elemento apaziguador e remediador de conflitos nos primeiros anos do Estado Novo 25 A (in)visibilidade do olhar colonial em Vera Cruz de Rosângela Rennó 27 Desastres (não) naturais: o ‘gene cultural’ 28 32 35 37 40

Cultura & conflito... reflexões teóricas e/ou de abrangência translocal Do conflito latente ao conflito manifesto: nas organizações e nas sociedades Project Paperclip A Divisão e vinculação no nome As contradições da era global Dos arquivos como lugares de conflito e do seu nomos na equação do deve e ter a haver

Pawla Kuczynskiego (http://capu.pl/node/271?page=2)

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Ana Salgueiro Rodrigues*

Cultures are continually co-produced in the interactions I call ‘friction’: the awkward, unequal, unstable, and creative quality of the interconnection across difference Anna Tsing, Friction. An Ethnography of Global Connection (2005)

This geography of mobility and interculturality is not a utopian fantasy of peaceful integration, but rather recognizes that the contact zones between cultures often involve violence and conquest as well as reciprocal exchange Susan Stanford Friedman, “Periodizing Modernism: Postcolonial Modernities and the Space/Time Borders of Modernist Studies” (2006)

Fotografia de um ataque alemão ao Funchal (Dez. 1916)

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erá hoje facilmente aceite, sem grandes polémicas, a ideia de que pensar a(s) cultura(s) exigirá, sempre, pensar conflito(s). Porventura menos consensual, na retórica de superfície que aceleradamente vai tolhendo o quotidiano de muitos, é, no entanto, a afirmação, invertida em quiasmo, de que pensar o conflito (qualquer que ele seja) deverá sempre pressupor uma também necessária reflexão sobre as culturas implicadas num determinado encontro. Na verdade, assumindo um sentido bem mais lato do que aquele que lhe foi atribuído pela Antropologia ou pela Etnografia ocidentais do século XIX, o conceito de cultura ultrapassou, no presente, os limites estreitos das Artes e

Efeméride: Dia Nacional da Cultura Científica no Funchal

das Humanidades, passando também a constar no discurso conceptual de áreas tão diversas como a Economia e a Gestão (cultura organizacional; cultura da empresa), as Ciências e as Tecnologias (cultura

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CULTURA & CONFLITO. UMA QUESTÃO ACTUAL

3 Caricatura de Evans (Disponível em http://covenantoflove.Net/category/feminism/) científica; cultura tecnológica), ou até o Desporto (cultura desportiva; cultura futebolística). Um alargamento conceptual legitimado pelo habitus, embora por vezes adoptado inconsciente e acriticamente, e que já levou diversos autores a considerar a cultura como o grande paradigma do século XXI (Gil, 2008: 138). Os novos modelos epistemológicos e culturais que se afirmaram na transição do século XX para o século XXI, e cuja génese não pode deixar de ser associada aos diversos post que marcaram a cena cultural e académica a partir da década de 1970 (p. ex., os ditos pós-colonialismo e pós-modernismo), estimularam fortemente a ruptura com o modelo iluminista da dicotomia asséptica entre eu/outro, ciência/arte, homem/mulher, centro/periferia, local/global, teorização/praxis, razão/imaginação-emoção. Esses novos modelos procuraram desconstruir uma cartografia do mundo que arrumava, insulando dentro de fronteiras estanques, quer espaços étnico-culturais, quer áreas do saber, da praxis político-social ou da experiência artística, hierarquizando-os de forma míope e, afinal, de acordo

com valores histórico-culturalmente bem marcados: quase sempre eurocêntricos e estruturados a partir de perspectivas masculinas e racionalistas. Na verdade, tratou-se de uma desconstrução perturbadora que esteve fortemente implicada no questionar de pré-conceitos como o da existência de culturas puras ou o da existência quer de saberes e poderes absolutos, quer de áreas do conhecimento totalmente insuladas e omnipotentes (ver, p. ex.: Said, 2004 e Latour, 1993). À luz dessa nova concepção de cultura(s) mais abrangente e plural, não-essencialista e sobretudo (inter)relacional, o conflito passou a ser entendido como algo intrínseco a qualquer fenómeno cultural e, por conseguinte, como algo estruturante do modo como as sociedades, as famílias, as organizações ou até as áreas do saber funcionam, se representam a si mesmas e às outras, ou como gerem a complexidade das suas relações, negociando as diferenças e dissensões. A análise e o conhecimento culturais tenderam,

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então, cada vez mais, a ser entendidos como processos de especial relevância na prevenção e resolução de conflitos, sendo percepcionados como acções capazes de fomentar ora a questionação de estereótipos acríticos, ora o desarmar de dicotomias cristalizadas que apenas contribuíam (e continuam a contribuir) para o perpetuar da disrupção, obstaculizando a negociação nos mais diversos sectores da vida social, política, empresarial, artística, desportiva, académica ou até familiar.

Na verdade, pesem embora os novos modelos epistemológicos e culturais anteriormente referidos, nos últimos tempos tornou-se cada vez mais notória uma crescente dicotomização discursiva (e os incidentes associados ao 11 de Setembro de 2001 podem aqui ser apontados como marco simbólico desta tendência) entre eu/outro, natureza/tecnologia, ética/política, centro/periferias, norte/sul, lucro/direitos humanos, economia/artes e humanidades, racionalismo secular/fundamentalismo religioso. Um crescimento preocupante, por quanto ele pode indiciar e/ou ser gerador de uma agudização conflitual.

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A contemporaneidade tem assistido a um acentuar da itinerância humana (empírica ou virtual) e este processo globalizador – e por conseguinte, conflituante - não será certamente alheio à visibilidade que os discursos públicos têm atribuído a conflitos de vária ordem. De sublinhar, porém, é o papel manipulador (e quantas vezes reificador) que os media e as novas tecnologias desempenharam na disseminação dessas imagens de conflito (cf. Appadurai, 1996).

nares, há problemas e objectos de investigação que atravessam diferentes campos de estudo, e que, longe de se confinarem aos laboratórios das Academias ou aos ateliês dos artistas, têm particular incidência na vida quotidiana dos cidadãos; e, por fim, (4) sublinhar como a resolução salutar de conflitos exige (como sempre exigiu) quer o desenvolvimento de um agudo espírito crítico, quer a análise rigorosa das questões culturais que lhes estão subjacentes. Referências: Appadurai, Arjun, 1996, Dimensões culturais da globalização. A modernidade sem peias, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema. Gil, Isabel Capeloa, 2008, “O que significa Estudos de Cultura? Um diagnóstico cosmopolita sobre o caso da cultura Alemã”, Comunicação & Cultura, nº 6, Lisboa:UCP, pp. 137-166. Latour, Bruno, 1993, We have never been Modern, trad. Catherine Porter, Cambridge Mass.: Harvard University Press. Said, Edward, 2004 [1978], Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente, Lisboa: Livros Cotovia. * Ana Salgueiro Rodrigues é doutoranda em Estudos de Cultura na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (FCH-UCP) e mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela FLUL. É investigadora júnior do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da FCH-UCP. Tem desenvolvido investigação sobre os sistemas literários e culturais das Ilhas Atlânticas e sobre as problemáticas do exílio e da mobilidade humana. Esteve destacada no CEHA nos anos lectivos 2010/2011 e 2011/2012.

Importa, pois, indagar das razões desses conflitos, mas também das implicações culturais que fundam e sustentam a difusão dessas imagens nos discursos políticos, artísticos, nos discursos dos media, das ciências, da religião, etc.. Em última análise, urge igualmente discutir quais as consequências que a circulação, quase sempre acrítica, dessas (e não de outras) representações pode assumir na intensificação ou apaziguamento desses conflitos. Assim, apresentando-se como espaço científico-cultural de encontro entre sujeitos e visões do mundo provenientes de diversas áreas geográficas, científicas, artísticas e sociais – i. e. de diversas culturas -, o presente número da Newsletter do CEHA procurou, mais do que dar respostas, levantar problemas, partilhando com os leitores algum do trabalho mais recente desenvolvido por artistas e investigadores que aceitaram colaborar com o CEHA. Pretendeu-se, acima de tudo: (1) mostrar como cultura e conflito, ontem como hoje, sempre estiveram fortemente implicados; (2) dar visibilidade a conflitos que, tendo sempre na sua génese questões culturais, muitas vezes permanecem na obscuridade; (3) demonstrar como, para além das fronteiras discipli-

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Cultura & Conflito... Madeira

Poder e conflito no Funchal setecentista: uma vereação municipal zelosa das suas prerrogativas Ana Madalena Trigo de Sousa*

1 Arquivo Regional da Madeira (em diante ARM), Câmara Municipal do Funchal (em diante CMF), Vereações, Livro 1361, fl.25vº-26. 2 ARM, CMF, Vereações, Livro 1362, fl.32vº-35vº. 3 MAGALHÃES, Joaquim Romero de, 1997, “Os Concelhos” in José Mattoso, História de Portugal, Volume III, Lisboa, Estampa, pp.161-169. 4 ARM, CMF, Vereações, Livro 1365, fl.46vº-49.

seus territórios, ou seja, os próprios governadores5. Um outro momento, da maior importância para a vereação municipal, atendendo à sua carga simbólica, era a festa processional do Corpo de Deus, um momento propício à projecção do poder e prestígio do município junto da comunidade. Daí o confronto latente com outras esferas de poder. A grande questão que se colocava era, precisamente, quem tinha a prerrogativa de se posicionar logo atrás do palio. Com efeito, e na sequência do pedido de parecer régio solicitado pelo Senado do Funchal, determinou o rei D. José, por provisão de 11 de Maio de 1763, que “aos oficiais da Câmara e Corpo dela é que toca na função do Corpo de Deus o lugar imediato atrás do Palio sem outra pessoa que lhe aja de por de premeio, por fazerem a sua Real Representação”6. Com esta exposição, dirigida ao monarca, a vereação pretendia demonstrar que não estava disposta a ceder da pose, honra e respeito com que devia ser publicamente tratada7. Contudo, logo em 1764, a procissão do Corpo de Deus foi marcada pelo conflito com o bispo da diocese que, segundo os vereadores, tinha tratado o corpo de câmara com “a menor atenção”, mandando posicionar, diante do próprio Senado, um clérigo que teria assumido uma postura “ufana”8. Em relação ao corregedor, o relacionamento também não se teria revelado fácil, por ocasião desta festa processional. Na celebração realizada no dia 14 de Junho de 1770, o então corregedor, Francisco Moreira de Matos, introduzira-se no lugar de preferência, isto é, entre o palio e a vereação e ignorara, ostensivamente, o reparo feito pelo juiz de fora. Além disso, o corregedor não cumprimentara a vereação com o protocolo necessário: “não a cortejando ao entrar para o lugar que tomou, nem ao despedir (…) saindo quando ainda estava presente a Câmara formada”9. A vereação funchalense revelou-se, de igual modo, profundamente zelosa das suas prerrogativas no âmbito do 5 Sousa, Ana Madalena Trigo de, 2004, O Exercício do Poder Municipal na Madeira e Porto Santo na Época Pombalina e Pós-Pombalina, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, pp.244-245. 6 Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, Maço 999, Documento nº21. 7 ARM, CMF, Vereações, Livro 1357, fl.18vº-20. 8 ARM, CMF, Vereações, Livro 1357, fl.18vº-20. 9 ARM, CMF, Vereações, Livro 1359, fl.29-30vº.

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xercendo o poder ao serviço do rei e da causa pública, a vereação da câmara do Funchal do Antigo Regime entendia a instituição municipal como representante do monarca na Madeira. Isto é, a jurisdição que detinha fora conferida pelo rei “sendo imanada imediatamente do régio trono”1. Tal era assim entendido em virtude do disposto numa ordem régia, com data de 24 de Julho de 1586, dirigida ao então governador Tristão Vaz da Veiga, pela qual o rei “declarou representar esta Câmara a sua Real pessoa”2. A questão do município ser, no Antigo Regime, o representante do monarca na esfera do poder local foi levantada por Romero de Magalhães que chama a atenção para o facto de, ao transferir e delegar tantas competências no poder municipal, a monarquia estar a utilizar uma importante rede de transmissão de ordens por si emanadas, ao mesmo tempo que fortalecia o grupo social que dominava a vida municipal e que representava, em simultâneo, a autonomia da comunidade e a jurisdição régia3. A assunção de um estatuto privilegiado por parte do município do Funchal revelou-se uma realidade susceptível de gerar um clima de conflito com outras instâncias de poder presentes na ilha ou com outras instâncias de poder com assento na vereação municipal. Tal foi visível com o governador e capitão – general, com o corregedor, com o bispo da Diocese e, no âmbito da vereação, com os procuradores de mesteres. Era nos Paços do Concelho e perante a vereação que os governadores, recém-chegados à Madeira, exibiam as suas cartas patentes, ficando estas registadas nos tombos do município, e tomavam posse do dito cargo. Foi uma realidade que só seria alterada com D. José Manuel da Câmara que, nomeado governador em 1802, exigiu a deslocação da vereação funchalense ao palácio de São Lourenço para assistir à cerimónia de tomada de posse. Os vereadores reagiram exigindo ao novo governador a apresentação do documento justificador de tal procedimento4. Este episódio é revelador da tentativa de subordinação do município face ao governador, algo que se vinha a manifestar há já algum tempo. Com efeito, entendiam os governadores que as câmaras municipais do arquipélago deviam dar o exemplo de subordinação àqueles a quem o rei confiara o governo dos

Cultura & Conflito... Madeira

* Ana Madalena Trigo de Sousa é Investigadora Auxiliar com provas públicas equivalentes a doutoramento. Desenvolve actividade de investigação científica no Centro de Estudos de História do Atlântico, no âmbito da temática dos Poderes e Instituições na Madeira nas épocas moderna e contemporânea.

10 ARM, CMF, Correspondência do Senado, Livro 167, fl.93vº-94vº.

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funcionamento das reuniões municipais. Tal manifestou-se quando os procuradores dos mesteres tentaram reivindicar o direito de assinar, juntamente com os vereadores, os despachos emitidos pela vereação. A posição do senado foi contundente: os procuradores dos mesteres iam às reuniões unicamente para requererem a bem dos povos, não havendo nenhuma ordem régia que justificasse semelhante pretensão. Ao recusarem linearmente o pedido dos mesteres, os vereadores invocaram a defesa da sua jurisdição face a uma eventual tentativa de usurpação por parte dos governadores ou do bispo da diocese: “Os homens de que se compõe a Casa dos vinte e quatro são pobríssimos e do mais inferior trato (…) motivos que os fazem inconstantes e por isso fáceis para a revelação dos segredos mais importantes às pessoas de maior poder”10. Numa época em que o exercício do poder municipal esteve intimamente associado à honra e ao dever público, ao serviço do rei e do bem comum, a vereação do Funchal não hesitou em exigir o reconhecimento das suas prerrogativas, não cedendo na pose, honra e respeito com que reclamava ser publicamente tratada pelos restantes poderes insulares. Desta forma, as situações de conflito em torno das prerrogativas revelam o carácter simbólico do exercício do poder. Logo, a sua contestação deu-se, também, pela via simbólica, pela ofensa pública às formas de exercício do poder municipal.

Edifício da Igreja Britânica no Funchal

A Igreja Britânica da Madeira Um caso de gestão de conflitos no início do século XIX Paulo Miguel Rodrigues*

1. A partir de 1822, a comunidade britânico-madeirense (e todos os britânicos que estivessem de passagem pela Madeira ou nela apenas residissem temporariamente) passou a dispôr de uma igreja, um edifício, construído de raiz, para funcionar como espaço de culto, que embora então ainda não totalmente concluído, foi inaugurado por já se terem reunido as condições necessárias para que nele se albergassem serviços religiosos. O principal mentor da sua edificação foi Henry Veitch, o perspicaz e sagaz cônsul geral, decano dos representantes consulares britânicos na Europa, que também logo se encarregou de a denominar - destaque-se - de igreja britânica (e não inglesa, como mais tarde se tornou conhecida - hoje Holy Trinity Church). Na verdade, este aparente pequeno artifício vocabular encerrava, de uma forma consciente, um profundo significado. A construção da igreja iniciou-se em 1812, impulsionada pelos termos dos Tratados luso-britânicos de 1810. No entanto, até 1822 - e mesmo nos anos seguintes - a sua edificação foi algo atribulada, tendo de ultrapassar diversos problemas, financeiros, religiosos e políticos, relacionados quer com as próprias vivências da comunidade residente, quer com a ingerência (não desejada e até combatida) das autoridades (religiosas e políticas) sediadas

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Cultura & Conflito... Madeira

2. As guerras napoleónicas representaram, como se sabe, um momento de charneira na afirmação do poder e da influência globais britânicos no século XIX, num processo em que o domínio sobre o Atlântico foi fundamental e a capacidade e o desenvolvimento tecnológicos funcionaram como pedras-de-toque para o êxito geral das políticas emanadas a partir de Londres. Neste panorama, a Madeira representou um pequeno mas importante - ponto no chamado império informal britânico, tendo em vista tanto o domínio naval sobre o Oceano, como o controlo sobre o Mediterrâneo. Era, portanto, nesta perspectiva, um espaço vital para a Inglaterra e assim se manteve - com alguns ajustes e independentemente da cor política dos sucessivos governos de St. James - até pelo menos à Guerra de 1914-1918 e, no extremo, em aliança com os EUA, até à Segunda Guerra Mundial. Não será necessário escrever muito mais para que se perceba o quanto interessava à Inglaterra afastar do espaço insular madeirense, para além da guerra, qualquer 1 Não pretendemos traçar, neste brevíssimo apontamento, a História das Igrejas não católicas na Madeira durante a primeira metade do século XIX. A nossa intenção é apenas, a partir de uma das dimensões da igreja britânica, chamar a atenção para alguns elementos que consideramos relevantes para uma melhor compreensão da presença dos britânicos e, em particular, da comunidade britânico-madeirense na Ilha. 2 Rodrigues (2008). Em 1826, por exemplo, as despesas fixas da Igreja estavam calculadas em 520 libras, sendo metade desta quantia assegurada pela comunidade, graças ao rendimento proveniente da renda cobrada pela ocupação dos lugares. 3 FO 63/313, Veitch para Canning, 5/1/1826 e AGC Lº 202, SXB para Arcos, nº 28, 19/8/1829 – com este ofício, o governador Xavier Botelho enviou para o Rio de Janeiro uma Planta do edifício, esclarecendo que estava conforme o Tratado (de 1810), “porque o frontspício não é de templo, quais os que usam no rito católico e não tem torre, nem sinos que anunciem a sua religião”. O governador solicitava que S.M. o informasse se aprovava ou reprovava a continuação da referida construção.

outro tipo de conflito (de carácter político, social ou religioso), com causas internas ou externas (neste caso eventuais contágios do Reino, da Península ou, inclusive da GB e Irlanda), que pudessem provocar uma ruptura na harmonia geral desejada. Neste quadro, um dos potenciais focos de instabilidade no seio do(s) Império(s) britânico(s) (formal e informal) estava na questão religiosa, tendo em conta não só as relações dificieis entre protestantes e católicos, mas também (e por vezes ainda mais) as relações, muitas vezes tensas, entre as diversas dissensões protestantes e os anglicanos, a que também se juntavam as questões identitárias nacionais. 3. A expansão ultramarina no século XIX continuou a ser tão britânica como até então havia sido. Ou seja, em proporção ao tamanho das populações, a emigração escocesa e irlandesa continuaram a ser mais elevadas que a inglesa, mantendo-se imbatíveis os níveis de procura de trabalho e de oportunidades por parte dos primeiros4. Para o caso madeirense, interessa-nos de sobremaneira a emigração escocesa, de reconhecida importância na expansão do Império, existindo mesmo alguma tradição quer nos estudos sobre o seu contributo para a grande empresa comercial e imperial britânica, quer nas investigações sobre a posição proeminente que os escoceses ocuparam, desde cargos executivos e de direcção de grandes firmas, até à organização de companhias de navegação, passando pelas empresas mercantis e pelo trabalho religioso e missionário5. Em certo sentido, verificou-se aquilo a que se pode chamar de britanização dos Impérios formal e informal, sendo ambos os espaços ocupados e dirigidos mais por britânicos, do que por ingleses. Por outro lado, o século XIX também assistiu à crescente e inevitável diversidade do Império, inclusive no quadro do relacionamento com as populações nativas, o que conduziu, por vezes, ao reconhecimento dos próprios limites da referida britanização. Isto foi bem evidente, por exemplo, no âmbito religioso, através da tendência para separar a Igreja do Estado, um anátema político no interior do Reino Unido, mas algo relativamente bem aceite nos domínios ul4 Entre 1790 e 1815, aproximadamente 150.000 pessoas emigraram da Inglaterra e País de Gales os quais se juntaram entre 30 a 35.000 da Escócia. Para o período 1815-50 estes números sobem para 500.000 e 100.000 respectivamente. Cf. Mitchell (1988) quanto aos valores apresentados. Para estudos sobre a emigração, vide para a inglesa Erickson (1994) e para a escocesa Cage (1985) e Devine (ed., 1992). 5 Longe de debilitarem a Escócia, estas ligações familiares e profissionais com escoceses no ultramar revigoraram a economia e sociedade domésticas, de tal modo que lhes permitiu alargarem as suas áreas de influência dentro do próprio Reino Unido e próximo dos circulos do poder político. Cf Mackenzie (1993).

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em Inglaterra, quer ainda, com a oposição das autoridades portuguesas1. Deste modo, sempre debaixo do controlo do cônsul, da planificação geral à administração, passando pela arquitectura, o edifício foi construído em “slow degrees” a expressão é de Veitch - usando fundos destinados para fins pios. Entre 1812 e 1822, só se realizou uma subscrição extraordinária, levantada pela British Factory, que reuniu 4.000 dólares, com a condição dos seus membros terem o direito de escolher os lugares no edifício. A obra terá custado, no total, segundo Veitch, cerca de 40.000 dólares, embora em 1826, quatro anos depois da inauguração, ainda estivessem previstas novas despesas (c. 10.000 dólares), com o objectivo de construir uma residência para o capelão2. A conclusão do empreendimento, porém, foi sucessivamente adiada, devido à falta de fundos, atribuída à queda da actividade comercial, que fizera diminuir as ofertas à Igreja. Na verdade, até à década de 30, quanto a obras, pouco se fez de relevante desde a inauguração3. Ao capelão competia administrar o culto religioso, mas esta função, independentemente de quem a desempenhou, desde cedo se revelou propensa a provocar conflitos de vária índole no interior da comunidade.

Cultura & Conflito... Madeira

4. Henry Veitch, comerciante escocês residente na Madeira desde 1799 e cônsul geral entre 1809 e 1828 (e depois também na primeira metade dos anos 30) - caso único de longevidade em funções - foi um dos que melhor percebeu a complexidade da questão religiosa no seio da sua comunidade e nas relações desta com as autoridades religiosas, civis e militares portuguesas. Daí a extrema cautela com que Veitch sempre lidou com o assunto. Isto verifica-se, de imediato, pelo facto de só ter promovido a efectiva inauguração do edifício da igreja quando percebeu que, do lado português, estavam reunidas as condições (em particular políticas) para que tal se verificasse, isto é, exactamente no período áureo do vintismo, corrente que para além de ter promovido uma maior condescendência e aceitação de alguns principios liberais, também se caracterizou, como se sabe, pela sua forte componente anti-clerical e perseguição a alguns sectores

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tramarinos e entre as comunidades britânicas estabelecidas no Mundo. Os britânicos, por outro lado, abandonaram gradualmente o relativo consenso, dos finais do século XVIII, de que a hierarquia das sociedades humanas se baseava nas diferenças “culturais” e não nas raciais, como passou a suceder durante o XIX. Com isto, foram sendo relegadas as ideias de que a natureza humana era uniforme e que, por isso, as culturas poderiam ser, com maior ou menor dificuldade, alteradas, transformadas e melhoradas. No seu lugar, ganhou vigor a crença nas diferenças e divisões raciais e nos limites (ou não) que estas impunham às mudanças culturais. Isto levou, por exemplo, embora - saliente-se - em diferentes graus, a uma certa relutância de envolvimento com as populações locais. Na prática, esta relutância contribuiu para a criação de vários mecanismos e órgãos que, para além do consulado, permitissem fortalecer e defender as comunidades britânicas ultramarinas (Porter,1997). Na Madeira, a respeito de tudo isto, ganharam fácil destaque as ancestrais rivalidades entre escoceses e ingleses, que naturalmente também eram reflexo das disputas entre as respectivas Igrejas nacionais. Mas não eram as únicas, pois com estas duas predominantes famílias religiosas, também coabitaram, na Ilha, os católicos irlandeses, os metodistas, os quakers, os presbiterianos e diversas dissensões, entre as quais se pode destacar a Free Church of Scotland, ligada ao famoso caso Kalley, ainda hoje muito mal conhecido e pior explicado, pois não foi tão linear e simples como alguns estudiosos, menos preparados, pretendem fazer crer. Aqui, no entanto, dele só fazemos menção por ser também um claro exemplo do fim de um paradigma de gestão bem-sucedida dos conflitos no seio da (multicultural) comunidade britânica que tivera por base a igreja.

Henry Veitch

da Igreja Católica. Mas convém não esquecer, por outro lado, que o vintismo também se caracterizou pelo seu nacionalismo e por um vincado anti-britanismo. Ora, nesta perspectiva, a igreja também funcionou como espaço congregador e fortalecedor da comunidade residente, no seu esforço constante de defesa de prerrogativas conquistadas, tendo funcionado, inclusive, como local de reunião para tratar de assuntos de carácter não religioso. Ora, para que então tudo isto fosse possível, era essencial que a igreja fosse britânica, ou seja, era fundamental que desde logo ficasse claro que, do dogma ao rito, não poderia existir a concessão de quaisquer privilégios. Como Veitch sempre defendeu, não seria conveniente permitir quer a supremacia da Igreja de Inglaterra (Church of England), quer, a coberto da religião, de algum dos grupos de comerciantes e mercadores ou de facções políticas. Note-se que, logo a partir de 1823, se registaram tentativas para atingir qualquer destes fins. Veitch sabia, portanto, que a Igreja facilmente se assumiria como um centro de poder, inclusive financeiro, tendo em conta as quantias que passaria a ter de gerir. O que ele não desejava era que aquela se

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Cultura & Conflito... Madeira sentido mais lato, foi, assim, e durante um período histórico muito conturbado de mais de três décadas, um auxiliar precioso, quer para promover a união e o fortalecimento comunitários (ajudando a diluir diferenças), quer para manter incólume às ameaças externas toda a vasta e diversificada comunidade que aquela ela congregava.

Bibliografia citada Cage, R.A. (1985), The Scots abroad. Labour, Capital, Enterprise, 1750-1914, London, Croom Helm. Devine, Thomas M. (ed., 1992), Scottish Emigration and Scottish Society, Edinburgh, John Donald. Erickson, Charlotte (1994), Leaving England: Essays in British emigration in the Nineteenth Century, London, Cornell UP. Mackenzie, John M. (1993), “On Scotland and Empire”, International History Review, XV, pp. 714 - 739. Mitchell, Brian R. (1988), British Historical Statistics, Cambridge, CUP. Rodrigues, Paulo Miguel (2008), A Madeira entre 1820 e 1842: Relações de Poder e Influência Britânica, Funchal, Funchal500Anos. Porter, Andrew (1997), “’Cultural Imperialism’ and protestant missionary enterprise, 1780-1914”, Journal of Imperial and Commonwealth History, vol. XXV, 3, pp. 367-391.

* Paulo Miguel Rodrigues é doutor e mestre em História Contemporânea (FLUL e UMa). É professor auxiliar na UMa e investigador no CIEC (sede: Universidade de Coimbra).

6 Para além do edifício em causa, a comunidade britânica dispunha ainda, no início dos anos 20, de dois cemitérios e um hospital, embora, quanto a este, usufruísse, com total autonomia, de uma parte do edifício que servia de hospital da Misericórdia. A gestão de todos estes espaços era uma das principais preocupações da comunidade, que para isso contava, em primeiro lugar, com os seus próprios rendimentos e depois com algum apoio financeiro do seu governo.

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transformasse num poder alternativo (Rodrigues, 2008)6. Não se pense, contudo, que defendia esta posição pelo facto de ser escocês ou para defender qualquer interesse comercial específico. Na verdade, por diversas vezes, na correspondência que trocou com o Foreign Office, deixou explicito o quanto considerava que só se fosse britânica é que a igreja poderia cumprir uma das suas principais funções e promover a paz e a harmonia no seio da comunidade. Acrescentou mesmo que quando tal espírito desaparecesse, estaria dado um grande passo para a desagregação da comunidade na Ilha, com todos os efeitos nefastos que isso poderia ter quer na defesa dos interesses dos britanicos instalados na praça funchalense, quer, inclusive, na manutenção dos interesses globais da Inglaterra no(s) espaço(s) português(es). O futuro acabaria por lhe dar razão. É evidente que Veitch - numa outra perspectiva, institucional, de definição e da sua própria afirmação no quadro dos poderes insulares, cuja importância não é despicienda - também nunca quis perder o controlo do processo de edificação e manutenção da igreja, para a qual, como já se disse, fora um dos principais financiadores. De facto, enquanto conseguisse controlar ou pelo menos estar envolvido nos assuntos da igreja, da dimensão material à espiritual, melhor posicionado estaria para impedir que a igreja pudesse colocar em causa o poder, a autoridade e a capacidade de influência consulares. Ou seja, ao impedir o domínio de qualquer facção, a sua intenção também era tornar a igreja uma espécie de braço auxiliar do consulado. Para ele, isto era vital, por considerar que se algum grupo assumisse o controlo sobre a igreja, isto iria destruir, em pouco tempo, os benefícios da sua instituição, fomentando - para usar as suas palavras - “seeds of unending dissensions”, numa comunidade que sabia composta por “every different seet of the christian faith” e formada por “such different feelings and opinions” (FO 63/271, Veitch para Canning, 23/2/1823). Por todas estas razões, e enquanto desempenhou funções consulares e contou com o apoio do Foreign Office, ou seja, até meados da década de 30, Veitch sempre se esquivou a comprometer-se com qualquer facção, conseguindo, deste modo, alcançar sempre os seus fins últimos. Mais: com esta política, cumpriu aquela que era uma das suas mais importantes prerrogativas, como lhe lembrou George Canning, ao destacar que os cônsules “should be instrumental in promoting harmony and good understanding”, entre todos os seus súbditos residentes em portos estrangeiros (FO 63/271, Canning para Veitch, 31/5/1823). A instituição da igreja britânica da Madeira, no seu

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Arquipélago da Madeira/Metrópole:

culturas e conflitos breve incursão nos debates parlamentares da Monarquia Constitucional Odeta Pereira*

Sessão de 14 de Junho de 1869

O

Parlamento, como espaço onde se corporiza o liberalismo, irá assistir, no período da monarquia constitucional, a acesos momentos de interação política ou mesmo de conflito. E tal poderá ser um sinal de diferentes estruturas culturais que se confrontam em pleno palco do debate político. Os deputados madeirenses, a partir de 1821, data em que entram no Parlamento, procuram mostrar continuamente a realidade que então se vivia no Arquipélago.

1 AHP, Cortes Constituintes, Primeira Legislatura, Diário n.º 131, 19-07-1821, p. 1595.

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Página 1 do Diário da Câmara dos Deputados

Dar a conhecer o contexto de dificuldades a nível económico-financeiro, de obras públicas e transportes, educação e assistência, além das político-administrativas, parecem ser os vetores-chave da intervenção dos insulanos, que, segundo Castelo Branco, são fundamentais, já que, de acordo com o parlamentar «muitos senhores Deputados não estão ao facto das circunstancias da ilha da Madeira […].»1 Sair da ilha rumo à metrópole, designadamente para o Parlamento, será a oportunidade para a defesa dos interesses ilhéus. Assim, todo esse novo paradigma, ganha, como é óbvio, outros contornos e dessa forma o conflito ganha especial visibilidade. O conflito, à época, parece radicar no desconhecimento da realidade do outro e, se os deputados da metrópole não conseguem compreender o alcance da situação que é demonstrada pelos insulares, por outro lado, também estes não conhecem o contexto do território nacional. Num tempo onde o conhecer in loco é demasiado complexo, na medida em que os transportes e as comunicações no seu todo, são muito exíguas, os equívocos surgem. E assim sendo, assistimos a intervenções parlamentares formatadas pelos padrões culturais dos deputados quer insulares quer continentais representativas de visões e atitudes estereotipadas de ambos os lados. O conflito cultural parece pois existir quando os deputados insulanos apresentam uma imagem do arquipélago que não é totalmente reconhecida pelos metropolitanos. As circunstâncias expressas pelos ilhéus e a estratégia da insistência parecem não ser as suficientes para sensibilizar os seus pares e fazer cumprir as reivindicações. E até o redator de O Patriota Funchalense, a 16 de Janeiro de 1822, acusava as Cortes de continuarem, «sem atender ao desgosto em que vivia esta Província, com Autoridades e Empregados, que continuavam a girar com rodas velhas do antigo sistema […] há quase um ano que aderimos à causa da nação e onde está o único bem que esta Província tem recebido da reforma? Na mudança do governador e autoridades? Tal não há, em maior liberdade nos negócios da Administração Pública?

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2 O Patriota Funchalense, 1822, 19 de Janeiro apud BARROS, 2003, Os Deputados Brasileiros nas Primeiras Constituintes e a Ilha da Madeira (1821-1823), p. 143.

3 AHP, Câmara dos Deputados, Décima sétima Legislatura, Diário n.º 33, 14-06-1869, p. 332. 4 AHP, Cortes Constituintes, Primeira Legislatura, Diário n.º 40, 25-06-1822, p. 553. 5 AHP, Câmara dos Deputados, Décima sétima Legislatura, Diário n.º 58, 20-07-1869, p. 816. 6 AHP, Câmara dos Deputados, Vigésima nona Legislatura, Diário n.º 68, 07-07-1893, p. 28.

terra, n’um barco puxado a bois!?» E, continua o seu relato dando conta que «infelizmente tomâmos o nosso banho involuntariamente, se o mar está um pouco agitado […] e Manuel José Vieira acrescenta «se felizmente a chuveiro se limita o banho» E por isso, é uma situação que nos faz passar […] vergonhas […] aos olhos dos estrangeiros […]»7 Outro facto é ainda enunciado como indicador dos atrasos nas infraestruturas viárias e que serve de mote para apresentar um projeto sobre as estradas: «[…] na cidade do Funchal, procura-se um trem e não ha, nem póde haver, porque não tem estrada de meia duzia de kilometros.»8 Alberto Botelho, em 19019, afirma que na Madeira «quasi que não ha estradas por onde se possa andar sem medo de escorregar e partir uma perna, são avis rara: boa ha uma só, e até por tal signal chama-se a Monumental, naturalmente, é talvez por ella constituir um facto tão extraordinario que lhe dão aquelle nome, quem sabe!» A ironia neste discurso é uma forma clara de mostrar o atraso da Madeira relativamente às grandes obras que já se faziam sentir na Metrópole. Por isso, a expressão de pobre gente é denominador em muitas sessões, quem sabe para despertar o governo e mover os seus pares. Assim, à Madeira, onde cruzam grandes transatlânticos, a esta ilha, onde apesar de tudo a natureza foi pródiga no clima e por isso muito visitada por turistas europeus, proporcionando um turismo terapêutico, o mais importante é publicar uma lei a seu favor. Ou seja, como afirma Luís Vicente d´Afonseca em 1869: «Desejaria que no montão de leis que nós fazemos aqui todos os dias, entrasse uma que era para que todos os deputados fossem obrigados, ao menos uma vez na vida, a visitar a Madeira, assim como os turcos fazem com relação ao túmulo do propheta. Quisera isso para conhecerem o que é a Madeira, e para não termos grandes difficuldades a vencer sempre que se trata de questões que lhe dizem respeito.»10 * Odeta Pereira é docente do 3º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário. É licenciada em Historia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem realizado investigação no âmbito dos debates parlamentares no período da Monarquia Constitucional

7 AHP, Câmara dos Deputados, Vigésima quarta Legislatura, Diário n.º 58, 3103-1882, p. 987. 8 AHP, Câmara dos Deputados, Vigésima nona Legislatura, Diário n.º 68, 07-071893, p. 27. 9 AHP, Câmara dos Deputados, Primeira Legislatura, Diário n.º 48, 02-04-1901, p. 43. 10 AHP, Câmara dos Deputados, Décima sétima Legislatura, Diário n.º 33, 14-061869, p. 332.

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Também não; em algumas providências económicas? Não as vemos». E continua, a 19 de Janeiro de 1822, dando conta do quadro da vida económica madeirense: «A perda de numerário […], a agricultura definhada, o comercio desalentado; as poucas produções do país sem preço e sem consideração; a pobreza no grau mais superlativo; tudo anuncia ao desgraçado Insulano dias de luto e sumamente desgraçadas.»2 Com efeito, a Madeira, apesar de ter deputados nas Cortes, estes pouco conseguiam fazer em prol do desenvolvimento da ilha. Para contornar o mau fado de «um paiz desgraçado, pobre […] mas completamente excepcional, porque é um óasis no meio das liquidas campinas do Oceano […]»3, os projetos-lei sucedem-se. A Madeira, enquanto ponto de escala para ambos os mundos, «deve [muito mais] à natureza, pouco ao homem, menos aos governos»4: é a reclamação frequentemente enunciada pois o governo, segundo os madeirenses, deve ser para todos os portugueses e não apenas para Lisboa e Porto. Se muita esperança existia num primeiro momento, posteriormente apercebem-se da secundarização que se patenteia nas sessões parlamentares. Por isso, afirmam que os «senhores [deputados] não teem idéa alguma do que é a Madeira.»5 Sarmento Osório chega a afirmar que não compreende a razão de tanta antipatia para com as ilhas. E acrescenta que ainda se lembra quando alguém perguntava nos corredores: «De que se está fallando? É das ilhas ou do ultramar? E ninguem entrava na sala.» O deputado é incisivo ao dizer que pensava que tal atitude já tivesse acabado «porque nós [Madeira] não merecemos menos do que Figueiró dos Vinhos e Farinha Podre.» E conclui dizendo «S. exas. se estão cansados, retirem-se, estão no seu direito […]»6 Podemos dizer que o conflito é atenuado através da negociação, mais implícita do que evidente, porque, por um lado, a ilha é dependente financeiramente e por outro há vários deputados que reconhecem a realidade insular, nomeadamente os açorianos, ou ainda outros que, por via dos laços familiares decorrentes das alianças matrimoniais ou mesmo no âmbito do desempenho de vários cargos, mostram deferência para com o Arquipélago. A apresentação de projetos-lei e a insistência contínua da apresentação das condições insulares são os meios propícios para esse entendimento e por isso, recorrem inúmeras vezes ao ridículo das situações, para encontrar apoios e sensibilidades abonatárias da realidade madeirense. As paisagens «muito lindas, muito bonitas» que descreve Sarmento Osório, contrastam com o desembarque «com as costas voltadas para

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Britânicos e Madeirenses na História da Madeira:

Conflito e/ou Colaboração? Filipe dos Santos*

João Higino Ferraz relacionamento entre cidadãos britânicos ou de oriO gem britânica e os autóctones é tema que tem, ainda na hodiernidade, suscitado argumentos, análises, posições

e polémicas variados e contraditórios, por vezes com objectivos políticos. A temática é, na verdade, deveras complexa, imbricada e flamejante. Não queremos aqui, de forma terminante, catalogar as seculares relações entre madeirenses e britânicos em termos de conflito e/ou colaboração (substantivos usados no título), ou ainda de oposição, sujeição, submissão, coacção, etc. Em primeiro lugar, porque uma tarefa dessa natureza pressuporia forçosamente a realização de um ensaio erudito e problematizador, fruto de bastas horas de leitura e pesquisa. Depois, porque na História não deve haver lugar a juízos de valor sobre a conduta de homens que nos antecederam, vivendo eles, na verdade, num tempo que não é o nosso – num mundo, portanto, que não é o nosso; por fim, e em conexão com o anterior, porque a História não deve ser viveiro onde se colham argumentos para combates políticos e ideológicos.

I – A primeira missiva que citaremos saiu do punho de Harry Hinton – gerente da firma William Hinton & Sons – e é datada de 18-IX-19031. Na mesma, podemos constatar esforços de H. Hinton para veicular, em órgãos de imprensa regional, informações e opiniões favoráveis ao decreto de 24-IX-19032, perseguindo no mínimo o intento de influenciar, a seu contento, a opinião pública insular. 1 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), pp. 397-398. 2 Leia-se, para contextualização desta questão, o seguinte verbete do Elucidário Madeirense: «Proteccionismo Sacarino. As leis de 4 de Fevereiro de 1876, 18 de Maio de 1881 e 22 de Março de 1886 isentaram do pagamento de direitos as duas primeiras, durante cinco anos e a última durante três anos, o açúcar madeirense importado em Portugal e nos Açores, mas o verdadeiro proteccionismo sacarino só se iniciou com a publicação do decreto de 30 de Dezembro de 1895, que criou, para as fábricas que se matriculassem, a obrigação de pagar as canas ao agricultor pelo preço de 400 e 450 réis por 30 quilogramas, dando às mesmas fábricas, em compensação deste encargo, o privilégio de pagarem pelo melaço importado para álcool destinado a vinhos, o direito de 30 réis, em vez do de 60 réis por quilograma. O açúcar da Madeira, que, pelos preliminares da pauta de 1892, pagava a quarta parte da taxa no Continente e nos Açores, ficou livre dessa imposição. O decreto de 24 de Setembro de 1903 acrescentou 50 réis aos preços mínimos de 30 quilogramas de cana, em troca de novas concessões feitas às fábricas, e a lei de 24 de Novembro de 1904 instituíu em verdadeiro monopólio a indústria do açúcar e do álcool na Madeira, subrogando o exercício desta indústria nos fabricantes matriculados W. Hinton & Sons e José Júlio de Lemos. O mencionado decreto de 1903 baixou de 30 a 6 réis por quilo o direito sobre o melaço estrangeiro devido pelos fabricantes, ao mesmo tempo que lhes concedia «a faculdade de tirar dessa matéria prima, antes da destilação do álcool para vinhos, o pouco açúcar ainda aproveitável, para se gastar na Madeira. Este, porém, seria descontado no total do que fosse extraído da cana, cuja parte abatida, se em vez de se vender na ilha, fosse também exportada, pagaria os direitos e demais impostos gerais nas alfândegas destinatárias».» (SILVA, Padre Fernando Augusto da, MENESES, Carlos Azevedo de, 1978, Elucidário Madeirense, vol. III, 4.ª ed., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, pp. 150-151). Para os desenvolvimentos posteriores, confronte-se a restante informação do citado verbete.

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Dito isto, nesta Newsletter do CEHA, n.º 14, não queremos deixar de apor alguns – poucos, por constrangimentos de espaço – excertos de documentação, do século XX, que podem ter valor no sentido de equacionar, com maior fecundidade, as características do relacionamento entre britânicos e madeirenses – e equacionar em torno dos dois conceitos referidos, mais concretos, não necessariamente opostos ou exclusivos, e, apesar de tudo, mais libertos de juízos valorativos: conflito e/ou colaboração? Toda a documentação, que consiste em epistolografia manuscrita, pertenceu ao arquivo privado pessoal de João Higino Ferraz, director técnico da Fábrica do Torreão – ou engenho do Hinton – a partir de 1899 e ao longo da primeira metade da centúria vintista, e foi impressa em letra redonda no seguinte volume: VIEIRA, Alberto (coord., prefácio e notas), SANTOS, Filipe dos (leitura, transcrição e notas), 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), Funchal, CEHA.

Cultura & Conflito... Madeira Este é exemplo claro de um combate económico e político que também se trava na imprensa. João Higino Ferraz é o destinatário das cartas – tal não é explícito, mas afigura-se óbvio3 – e colabora claramente nesta estratégia, cumprindo as ordens do seu patrão. De igual modo, apercebemo-nos de uma vasta teia de colaboradores madeirenses. Leia-se, sem mais demoras, o que se segue.

3 Veja-se a carta seguinte, complementar, dos mesmos remetente e destinatário (aqui de forma explícita), datada de 08-X-1903, em VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), pp. 398-399.

[Ass:] Harry C. Hinton»

II – Mas se houve atitudes de colaboração, vislumbra-se, também, um certo sentimento de oposição, alicerçado na pertença a uma diferente nacionalidade ou cultura – portuguesa/britânica. João Higino Ferraz remete uma carta, de 14-X-19298, a Avelino Cabral, seu amigo que exerceu funções como técnico de derivados de cana sacarina numa fábrica da Sociedade Agrícola do Cassequel, em Angola, onde Harry Hinton tinha interesses. A partir de um comentário – a todos os títulos subjectivo, é certo –, referente a um engenheiro, que reputa como inapto e que intervinha na referida estrutura 4 Manuel José Vieira (1836-1912): advogado; presidente da Câmara do Funchal; e deputado. 5 Tristão Vaz de Bettencourt e Câmara, Barão do Jardim do Mar (?-1903): proprietário do Diário de Notícias. 6 Quirino Avelino de Jesus (1865-1935): escritor; jornalista; político; financeiro e economista; advogado de Harry Hinton antes de com este se incompatibilizar. 7 Romano de Santa Clara Gomes (1869-1949)? Proprietário; comerciante; deputado; colaborador em vários jornais, sobretudo no Diário de Notícias. 8 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), pp. 341-343.

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«Lisboa 18 de Setembro 1903 Meu caro Amigo. Segundo todas as probabilidades as novas providencias serão publicadas no “Diario do Governo” de 2ª feira 21 do corrente Partindo d’esse principio, mando-lhe já artigos para serem publicados, com um telegramma tambem incluso que se figura enviado de Lisbõa, em seguida á publicação dos decretos no Diario do Governo. O artigo intitulado “Providencias Governativas” é para o Diario de Noticias O artigo intitulado “Novo regimen economico” é para o Diario de Commercio O artigo intitulado “Noticia importante” é para o “Diario Popular”. Cada um d’esses artigos deve ser acompanhado de uma das 3 copias do telegramma que envio em triplicado. [...] A publicação de tudo isto deve ser feita na terça feira, caso sejam publicadas as providencias no Diario de Governo de 2ª feira. Para isso deve esperar na 2ª feira um telegramma meu com a seguinte palavra “Proceda” querendo isto dizer que deve promover immediatamente as publicações acima indicadas. Se se der a hypothese de haver necessidade de alguma alteração, eu indicarei para ser ahi feita, mas estou quasi certo que não havera alteração. Se eu não ordenar alteração, fica entendido que deve tudo ser publicado como acima fica dito. Se não receber o meu referido telegramma na 2ª feira é que as providencias ainda não appareceram n’isso dia [sic]. N’esse caso, espere pelo dia em que ellas sejam aqui publicadas, dia em que eu procederei como fica establecido para a hypothese de virem na 2ª feira, devendo ahi promover logo as publicaçoes, para aparecerem nos jornaes do dia seguinte, ficando tudo combinado como acima. Em tal caso ponha no telegramma que se figura ido de Lisbõa a dacta respectiva em vez da de 21 que la está. É evidente que emquanto não forem aqui publicadas as providencias nada ahi deve transpirar. Até lá todos esses papeis que agora mando, são segredos exceptuo para o Romano. No dia em que houver de promover as publicações deve ir á redação dos 3 jornaes para tratar d’isso. Recommende o maximo cuidado na revisão dos artigos e do telegramma, para não apparecer nenhum erro. Eu escrevo

agora ao M. J. V.ª4 e ao Jardim do Mar5 e o Querino6 ao Romano7, pedindo que façam publicar, cada um no respectivo jornal, Popular, Noticias e Commercio, o artigo e telegramma que o meu amigo apresentará na redacção n’um dos dias da proxima semana, e que n’esse sentido deixem já ordem na respectiva redacção. Combine com o Romano, (a quem deve ler já toda esta carta) a melhor maneira practica de proceder em tudo isto, e o modo de se ter uma bôa revisão em todos os artigos. Sendo necessario paga-se as publicações, mas estas devem ser feitas em artigos de fundo e como se fossem da redacção. O Romano que exerça toda a vigilancia para não apparecer cousa alguma contra as providencias em qualquer jornal, se for precisa qualquer despeza para isso, é fazel-a. Desejo que não se publique mais nada sobre o assumpto das providencias antes de eu chegar. Em chegando o Diario do Governo, com o qual irei eu, e então se publicarão novos artigos. [...] O decreto deve deixar bem toda a gente, mas no caso de haver alguem que por inveja ou qualquer outro motivo queira levantar difficuldades na imprensa ou fora d’ella, combine com o Romano a melhor maneira practica, directa ou indirecta, de os calar até a minha chegada. Peço que leia isto com muita attenção deixando esta carta nas mãos do Romano o tempo que fôr necessario para elle tambem se apoderá[sic] bem do assumpto. Teem de proceder ahi como eu mesmo houvesse de proceder, estando lá, em assumpto de tanta grandeza. Até o dia 29 no “Cyril”. Amigo obrigado.

Cultura & Conflito... Madeira industrial, notamos, com efeito, a existência de uma certa mentalidade de grupo, pretensamente exclusivista. Veja-se o seguinte.

* Filipe Santos é mestre em Estudos Locais e Regionais e licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tem desenvolvido investigação na área dos Estudos Regionais e Locais, no CEHA, instituição onde desempenha funções enquanto técnico superior de História. Participou em diversos encontros académicos e publicou trabalhos em publicações periódicas diversas. É autor de O sal na ilha da Madeira na segunda metade de Setecentos – Penúria, poder e abastecimento (2010).

Em missiva de 25-VI-19219, desta feita endereçada a Ciríaco de Brito Nóbrega, Redactor Principal do Diário de Notícias, João Higino Ferraz – o que deve ser entendido à luz do espírito nacionalista em voga à época – faz questão em defender a prioridade portuguesa, ou madeirense – afinal, note-se, da sua família –, na instalação de unidades verdadeiramente industriais de derivados de cana-de-açúcar. «Madeira, 25 Junho 1921 Ex.mo Amigo e Senhor [...] Peço-lhe um cantinho do seu mui lido Diario, para em nome de quarto entidades do Além, e consultando o passado, reclamar contra a injustiça feita á sua memoria, com relação a fabricas de aguardente e açucar, pelo cavalheiro que no seu Diario de Noticias procede ao Inquerito sobre a Industria de bordados na Madeira, cujo nome e entidade não conheço, mas que vejo ser um novo, e por isso pouco conhecedor d’esse passado. Eu da minha parte protesto como parente d’esses Entes e mais ainda como Portuguez e patriota que me preso de ser. Vamos pois estoriar o passado: A primeira destillaria industrialmente bem montada na Madeira foi establecida em 1850, pouco mais ou menos, por meu Avô Severianno Alberto de Freitas Feraz. Quanto á primeira fabrica de açucar com moinhos a vapor, foi Elle tambem o iniciador em 1856, mas que infelizmente, devido a têr falecido n’esse mesmo anno do Colera Morbus, não poude pois dár início á sua nova industria, que para a época estava regularmente bem montada. Foram pois seus Filhos, João Hygino Ferraz, Severianno Alberto Ferrez[sic] e Engenheiro Dr. Ricardo Julio Ferraz que, constituindo-se em sociadade com[sic] firma Ferraz Irmão, se abalançaram a pôr em marcha a sua fabrica de açucar em 1857, primeira modernamente montada [...]. Foi somente dois annos depois, em 1859, que o Senhor William Hinton, Pae do meu Chefe e Amigo Senhor Harry Hinton, estableceu a sua actual fabrica de açucar e destillação, pelo mesmo Systema que a nossa, ainda que um pouco mais aperfeiçoada. 9 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 405.

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«Funchal 14/10/929 [...] 4º Quanto ao engenheiro [Shannon], o que elle quer é mostrar Sciencia... e como é inglez, talvez consiga o seu fim junto do Senhor Hinton... sabes bem isso. Mas na technica estou a vêr que não diz senão desparates e sem fundamento.»

Isto é que é a verdade dos factos; a primeira fabrica de açucar a vapor na Madeira, foi montada por Portuguezes, é o ponto principal. Pela publicação d’estas linhas, muito grato lhe ficará o seu Amigo certo e Obrigado. [Ass:] João Higino Ferraz»

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Quando a arte fala do que “(re)pele” Teresa Jardim (artista visual e literária)*

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“(re)pele”, criação visual de Teresa Jardim

Levadas Serpentes de sangue e abismos, as levadas escavadas no basalto sabem disso as flores que ornamentam os terreiros, as casas: gerâneos, crisântemos, corações, malvas, azáleas, brincos de princesa, orquídeas, sapatinhos. Esta é a razão por que ficam mais fortes as mulheres depois do choro, ou porque algumas escolhem das suas próprias lágrimas extrair o sal (para usos culinários ou para acentuar o paladar da boca).

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Caracol da terra Aprendo a lentidão do caracol-da-terra, a casa dentro da casa a liberdade no confinamento.

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“uma escada entre a pele”, fotografia de Teresa Jardim

Camélias Os fetos arbóreos, a alameda festiva os caminhos revestidos com pequenos calhaus rolados o Jardim da Senhora desenhado com buxos tudo era como havia lido no teu rosto. Antes de conhecer o perfume das camellias já te conhecia pelo odor a flores, sempre soube que éramos dois desde o princípio da nossa morte.

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Terra vegetal Contigo aprendi a preparar terra vegetal: folhas e gramíneas secas, penas de pássaro, poemas resgatados ao caixote de lixo, projectos que não cabem numa vida os livros

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o amor, sacos e sacos de terra (Que flores ou ervas de cheiro alimentarei com a minha própria boca?)

“Vertigem”, fotografia de Teresa Jardim

Poemas inéditos de Teresa Jardim (2010/2012)

* Teresa Jardim é uma artista visual e escritora, cujo trabalho é predominantemente desenvolvido na Madeira. O seu discurso artístico (visual e literário) não raras vezes tematiza e/ou experimenta (aqui em sentido criativo) as tensões que decorrem do desafio de transpor fronteiras.

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Conflito e Cultura Organizacional: Os verdadeiros motores do desenvolvimento Nilza Gonçalves*

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O

mestre, fazendo-se acompanhar do seu discípulo, embrenhou-se na serra desconhecida, enfatizando a importância das visitas a sítios novos, como oportunidade de aprendizagem. A determinada altura, depararam-se com uma casa humilde num sítio ermo, habitada por uma família muito pobre com parcos recursos. Na verdade, só lá viam uma vaca. Aproximaram-se e travaram conhecimento com o patriarca. O mestre, vendo tamanho isolamento e pobreza, perguntou ao humilde patriarca como a sua família sobrevivia com tamanha privação. Então, o patriarca explicou que a vaca era a fonte do seu sustento e da sua família: dela retiravam vários litros de leite por dia que, em parte, eram consumidos pela sua família, sendo a restante parte vendida na localidade mais próxima. O produto da venda, por seu lado, era depois utilizado na compra de outros produtos e géneros de que necessitassem. Afastaram-se, então, daquele modesto sítio sem trocarem palavra. Já no caminho de regresso, o mestre ordenou ao seu discípulo que voltasse atrás e matasse a vaca. O discípulo, incrédulo com tamanha barbaridade, manteve-se imóvel, mas, obrigado pelo dever de obediência, cumpriu a ordem com muito desalento. Passaram-se anos até que o discípulo movido pelo sentimento de arrependimento, decidiu regressar ao sítio ermo e pedir perdão pela sua acção. Quando lá chegou, não reconhecia o local: a casinha dera lugar a uma bela casa fami-

liar, emoldurada por uma linda relva, muitas flores e árvores e um pequeno parque de brincadeiras. - “Oh meu Deus…. Sem a sua fonte de sustento a pobre família viu-se obrigada a vender o seu sítio…” – Pensou desolado, o discípulo. Decidiu aproximar-se e, ao perguntar pela pobre família que ali vivia há alguns anos, viu o patriarca bem vestido e cuidado, rodeado pela sua feliz família. Ganhou coragem e foi falar com ele. Perguntou, então, ao patriarca como ele e a sua família tinham melhorado tanto aquele sítio e viviam agora tão bem… O patriarca emocionado disse: - “ Nós tínhamos uma vaquinha que morreu… desde aquele dia tivemos que pensar e fazer coisas novas, e desenvolver capacidades que desconhecíamos que tínhamos. Assim alcançámos o sucesso e a felicidade que os seus olhos agora vêem!” Por vezes, as empresas deixam-se ficar no conforto do ‘morninho’. Mantêm as suas rotinas de há anos, porque nunca foram postas em causa, e mesmo que não sejam muito eficientes, estão instituídas e interiorizadas. Mexer nelas, alterá-las, questioná-las pode ser conflituoso, quer para quem decide, quer para quem as operacionaliza e as executa. Assim, é mais simples manter o que está e não gerar conflito. É, não é? Mas se a vaca não tivesse morrido, a família con-

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tinuaria humilde e pobre, não teria evoluído, nem desenvolvido. A desinquietude, o conflito, apesar de dolorosos e desconcertantes, são a força motriz do desenvolvimento. Por outro lado, o conflito, descasado da Cultura Organizacional, pode levar ao caos e à desordem, principais factores de insucesso da empresa. A Cultura Organizacional de uma empresa, apesar de não se “ver”, “respira-se”. É a forma como se faz o trabalho dentro de uma empresa, os valores por que se rege, a ética, os procedimentos implícitos e explícitos, a forma como se comunica, a postura mantida. Academicamente estão definidas várias tipologias de Cultura Organizacional. Não obstante, se nos deixarmos levar pelo pensamento livre e reflectirmos sobre meia dúzia de empresas nossas conhecidas, conseguimos identificar outros tantos tipos: cultura da responsabilização (é importante quem fez, quem disse, quem estava); cultura da confiança (os colaboradores acreditam nos produtos e serviços da sua empresa e trabalham em prol do bem comum); cultura do “laissez faire, laissez passer” (baseia-se na complacência, os colaboradores são passivos, querem fazer o seu trabalho sem interferir no dos outros e sem que os outros interfiram no seu, para evitar contrariedades); cultura do tecnicismo (o trabalho é muito técnico e especializado, sendo desenvolvido com grande objectividade); cultura do “back to basics” (voltar ao básico, aos processos simples, ao essencial); e tantas outras mais. Esta reflexão, leva-nos a outro pensamento: será que dentro de uma só organização não coexistem vários tipos de cultura, pelo menos de modo intermitente? Pois, muito provavelmente sim. Todas estas e outras culturas, moldam as empresas e dão-lhes princípios orientadores, dão-lhes identidade. É esta identidade e carácter que prevalece quando se dá o conflito, é esta identidade e carácter que guiará a organização aquando do momento do conflito, enquadrando as suas decisões e acções. Uma não se dissocia da outra e as duas têm uma importância fundamental: promover o desenvolvimento e o crescimento. Isto é, desde que a Cultura Organizacional da empresa, permita viver com o conflito “estruturado”, libertando-se de uma postura de letargia e assistindo ao momento de viragem e progresso!

Congresso Nacional de Ortopedia.

Expomadeira 2012. Exposição no Hotel Casino. Finais dos anos 70.

* Nilza Gonçalves é licenciada em Gestão e Administração Pública, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Possui formação certificada em Sistemas de Gestão da Qualidade, no âmbito da Norma NP EN ISO 9001, e em Auditorias a Sistemas de Gestão, no âmbito da Norma NP EN ISO 19011. É directora de comunicação, marketing e qualidade do grupo de empresas “Machados” e é gestora para a qualidade e auditora interna do Centro Ortopédico do Funchal.

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Galeria dos Prazeres … Que futuro? Testemunho de um encontro entre espaço rural e arte contemporânea Patrícia Sumares*

20 Exterior/jardim da Galeria dos Prazeres.

O

Projecto da Galeria dos Prazeres, situado na pitoresca freguesia com o mesmo nome, onde os encantos da sua ruralidade ainda predominam, nomeadamente a sua natureza e as suas gentes, foi oficialmente apresentado a 24 de Outubro de 2008, ampliando o conjunto de oferta disponibilizada pela Quinta Pedagógica dos Prazeres. Local de eleição da maioria dos forasteiros que visitam esta encantadora freguesia, a Quinta Pedagógica é composta por uma pequena comunidade de diferentes espécies animais, uma casa de chá com doces caseiros, além de um agradável espaço ajardinado ao ar livre, proporcionando momentos únicos de ruralidade a muitas das famílias que aos fins-de-semana se deslocam para o campo em actividades de lazer. Inicialmente, a Galeria dos Prazeres apresentava três pequenos espaços: um núcleo museológico com uma co-

lecção botânica pertencente ao Padre Manuel Nóbrega; um espaço de exposições temporárias; e um pequeno atelier de cerâmica. Tudo isto em partilha com um local de venda da sidra produzida localmente. Desde 17 de Abril de 2009 e após a recuperação de uma pequena casa situada na vizinhança, o espaço de exposições temporárias da Galeria dos Prazeres foi ampliado. Esta casa de traça tradicional madeirense, sofreu no seu interior uma recuperação, tendo em conta a nova funcionalidade e estética associadas a uma Galeria de Arte. No entanto, o seu exterior manteve rigorosamente a composição original, inclusivamente os tradicionais canteiros de flores. Além destes canteiros repletos de plantas utiliza-

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e, mais recentemente, no jornal espanhol El Mundo. Inclusivamente nestas duas últimas publicações, a Galeria dos Prazeres surge como um dos espaços que são sugeridos aos turistas que chegam à ilha, em busca de uma “Madeira renovada” ou de uma “Madeira mais cool ”. Assim, os objectivos inicialmente traçados para este espaço foram, em muito, ultrapassados, reforçando duas ideias fundamentais: que ruralidade e arte contemporânea não são obrigatoriamente incompatíveis; e que, no presente, o sucesso está cada vez mais na criatividade e no valor dos conteúdos apresentados pelas Interior da Galeria dos Prazeres. Exposição de Lourdes Castro instituições culturais e não no prestígio ou antiguidade das mesmas. As dinâmicas são um alicerce fundamental para a das pela população local para decoração das suas casas, foi continuidade dos locais de cultura, sendo que estes criado também um belíssimo jardim que, em conjugação podem representar uma boa alavanca para o desencom o espaço interior de exposições, tem sido frequente- volvimento do comércio local e da melhoria de vida mente utilizado para a mostra de esculturas e para a pro- das suas populações. jecção de cinema ao ar livre. Resta-nos acreditar que este espaço de cultura Durante estes quatro anos de actividade dedicada às continuará a servir de farol, iluminando e guiando Artes Plásticas, a Galeria dos Prazeres conseguiu o seu todos aqueles que visitam este espaço, no sentido de principal objectivo, nomeadamente aproximar a arte de se tornarem mais conhecedores dos novos rumos da um público menos habituado a este tipo de eventos, tra- Arte Contemporânea. zendo para um local rural, o que de melhor se produz ao E se “o Futuro a Deus pertence”, julgamos que a nível da arte contemporânea, com artistas de gabarito quer Galeria dos Prazeres estará sediada no local certo. local, nacional e internacional. Desta forma, procurou-se democratizar o acesso à culPara mais informações consultar online: tura junto da população insular, criando oportunidades www.galeriadosprazeres.com para que esta pudesse entrar em contacto com importantes www.galeriadosprazeres.blogspot.com obras de grandes artistas, que, de outra forma, apenas estariam acessíveis em instituições nacionais ou internacionais e no exterior da ilha. Sumares é artista visual e, desde 2008, uma das mentoras e gestoras do De muitos dos artistas que passaram pela Galeria dos * Patrícia projecto Galeria dos Prazeres. Prazeres, destacam-se, por exemplo, criadores como: Paula Rego, José de Guimarães, Lourdes de Castro, Graça Morais, Cargaleiro, Rigo 23, Menez, Kimiko Yoshida (Japão), Françoise Pétrovich (França), Marc Molk (França), Ian Berry (UK), John Fadeff (USA), Constantino Morosin (Itália), etc. Por esta e por outras razões, a Galeria dos Prazeres tem visto o seu trabalho reconhecido em diversas publicações de referência, tais como: Diário de Notícias da Madeira, revista Essential Madeira, jornal Público, semanário Expresso

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Entre a pedra e as águas Graça Alves*

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“Nascido num mar de pedras faz-me bem olhar as águas.”

Ernesto Rodrigues, Ilha 5

A

ilha debruça-se sobre o mar. Vai espreitando a distância e sonhando, muitas vezes, com os mundos que moram para além do horizonte. O ilhéu tem desejo de ir, apesar das raízes de amor que o prendem ao chão. Vai, ficando. Ou fica, partindo nas asas das gaivotas que lhe vêm contar os segredos que o vento traz, a cavalo das marés. É aí que se gere a escrita da ilha: entre o arrepio das paredes das montanhas e a liquidez azul do infinito, neste conflito entre a terra e o mar, nascem palavras que, tal como as gentes, ou morrem aqui, ou dobram os bojadores que moram para além da linha do olhar. Para muitos, o mar foi um cerco (roubei a expressão a Fernando Namora) e foi preciso procurar lugares maiores. Para outros, porém, a dor de ficar doeu menos do que a dor de ir e dormem, esquecidos dentro de livros que ninguém conhece e que o futuro há de desvendar. É este o conflito do autor-ilhéu: deixar-se ficar no feitiço da casa ou ir em busca do mundo - porque a ilha é casa de mãe que espera o filho que saiu; é jardim de cores, pronto para o chá. Desde sempre. Desde que Zarco a viu e desbravou os segredos verdes que guardavam um mito antigo, uma lenda de amor e de morte, a voz rouca de um vulcão adormecido no tempo. Desde que os ingleses chegaram

à procura de saúde. Desde que os poetas derramaram nas palavras a saudade das flores, a frescura dos montes, os passeios nas serras, o sorriso das gentes. Desde sempre, portanto. Para sempre, talvez. E há o mar. Que une e separa. Houve tentativas de pontes, sim. Alguém se lembra da luta de Vieira de Freitas ou de José António Gonçalves ou da Maria Aurora que, cada um a seu modo, transformaram as palavras em jangadas? Fátima Pitta Dionísio tem a noção exata deste conflito: Não serei como os deuses Imortal. Mas serei a pedra Entre o mar e o céu Que enfrenta o medo. A ilha debruça-se sobre o mundo. E os poetas. E as palavras. E esta angústia que nos banha as frases é sempre feita de rocha e de mar. O conflito. Eterno. Na ilha. Redonda. * Graça Alves é escritora e docente do ensino básico e secundário. Desde o ano lectivo de 2010/2011 encontra-se destacada no CEHA.

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A bem da nação:

a cultura popular como elemento apaziguador e remediador de

Cândida Cadavez*

Fotografia da cerimónia de entrega do Galo de Prata (1939). Autor desconhecido. Fotografia disponibilizada pela Fundação António Quadros (AF/FC-Caixa 10A Álbum 3 1933-1940) “Culture is one of the two or three most complicated words” Raymond Williams1

A

afirmação de Raymond Williams em epígrafe reflete o sentido que muitos farão de cultura, enquanto termo frequentemente (ab)usado para agregar, justificar e explicar práticas e comportamentos vários. Todas as complexidades e redes de influências que deverão ser consideradas num entendimento necessariamente dinâmico de cultura são premissas ausentes quando a mesma é evocada, por exemplo, por retóricas nacionalizantes ou por narrativas turísticas. As comunidades imaginadas que Benedict Anderson2 apresenta sobrevivem precisamente à conta da crença em algo quase transcendente que tudo justifica e explica com rigores e níveis de precisão ao milímetro das fronteiras territoriais das nações. Pertencer a uma comunidade nacional corresponde, nesta ótica, a compartilhar práticas de uma cultura apresentada como única e endémica, invariavelmente antiga e repleta de episódios que todos os membros do grupo conhecerão e com os quais se identificam. Esta noção de cultura impõe-se e é divulgada com recurso a elementos de sedução apresentados como autênticos, típicos, tradicionais e genuínos que ajudam, por um lado, a cimentar semelhanças e, por outro, a enfatizar 1 WILLIAMS, RAYMOND, 1983 [1976], Keywords. A vocabulary of culture and society, London: Fontana Press, p. 87. 2 ANDERSON, BENEDICT, 2006, Imagined Communities. New York: Verso.

diferenças. Neste âmbito, cultura é entendida como um conjunto intocável de representações e narrativas que têm por principal propósito a eliminação de conflitos latentes, ou já em curso, com vista à mostra de realidades imutáveis e sólidas, como diria Zygmunt Bauman3. Encontramos um uso semelhante das alegadas características fixas de uma cultura nos mecanismos arquitetados para aliciar e convencer uma grande maioria dos turistas que, ainda hoje, em pleno século XXI, parece deixar-se seduzir por promessas de destinos únicos, genuínos e autênticos, onde a vida decorre como nas imagens das brochuras ou dos folhetos, i.e. exatamente como sempre sucedeu nesse determinado espaço, cujas feições resultam da cultura aí existente que impõe marcas e rótulos perenes e inconfundíveis que são aceites por todos, locais e visitantes. Face ao acima exposto, parece-nos pertinente questionar o modo como um regime com as características do Estado Novo português terá utilizado a atividade turística enquanto veículo de divulgação de uma cultura nacional, que se pretendia atuasse como inibidora e dissuasora de visitas de elementos estranhos que pudessem perigar a unicidade apregoada. Para o regime de Salazar, em particular nos seus primeiros anos, o uso da expressão cultura remetia invariavelmente 3 BAUMAN, ZYGMUNT, 2003 [2000], Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press.

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conflitos nos primeiros anos do Estado Novo

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4 FERRO, ANTÓNIO, 1948, Museu de Arte Popular. Lisboa: Edições SNI, p. 18. 5 FERRO, ANTÓNIO, 1948, Catorze Anos de Política do Espírito. Lisboa: Edições SNI, s/p.

6 FERRO, ANTÓNIO, 1948. Espólio da Fundação António Quadros, Caixote 015A, Discursos de AF, Envelope III. Informação n.º 1328 SNI.

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para a designada cultura popular. Tal resultava numa quase obsessiva reprodução e divulgação das mais diversificadas representações de práticas e comportamentos ruralistas, uma vez que era fora das urbes que o Estado Novo dizia encontrar a mais genuína essência da “Nação”. A propósito destas manifestações de cultura popular foram organizadas inúmeras iniciativas, em Portugal e no estrangeiro, que permitiram a Salazar apresentar a sua “Nação” precisamente a partir das práticas seguidas pelos habitantes dos meios não urbanos portugueses. As exposições de arte popular e a organização e participação em feiras nacionais e internacionais serão disso Fotografia do Museu de Arte Popular (1948 Autor desconhecido. Fotografia disponibilizada pela Fundação António Quadros (AF/FC-Caixa 11B Envetalvez o exemplo mais difundido. Gostaríamos, contudo, de evocar lope 41) dois outros momentos institucionais de reprodução da cultura nacional segundo a cartilha de Salazar e que, nesses termos, terão Duplo Centenário em 1940, e terá culminado no servido simultaneamente propósitos de divulgação ano de 1948 com a inauguração do Museu de Arte ideológica e de promoção turística. Trata-se de ocasiões Popular em Lisboa. Na sua abertura, António Ferro usadas pelo regime para exibir, a nacionais e a estrangeiros, a declarou que este era um “exemplo de soberania genuína cultura da “Nação” com o intuito de que não restasse espiritual, da nossa profunda diferenciação, retrato qualquer espaço para eventual contestação da mesma. da alma de um povo que não quer renunciar nem à Referimo-nos ao concurso da Aldeia Mais Portuguesa, sua graça nem ao seu caracter”6. Em suma, tratavaocorrido em 1938, e à criação do Museu de Arte Popular, se de um espaço usado pelo regime para doutrinar dez anos depois, que acreditamos terem constituído duas acerca do que considerava ser o verdadeiro sentido das mais significativas circunstâncias para a exibição da da cultura nacional portuguesa. cultura nacional tal como o regime a preconizava. Acreditamos que, pelo menos na década de Ao contrário daquilo que o regulamento previa, o Trinta, o Estado Novo português arquitetou concurso que pretendia eleger a localidade “menos penetrada continuamente representações destinadas a impor, da civilização dos outros”4 acabou por ocorrer apenas uma em contextos aparentemente despretensiosos, vez, mas, nas palavras do regime, terá efetivamente servido quadros que visavam ensinar a públicos nacionais para “revelar e afirmar as características mais fortemente e estrangeiros o significado da cultura portuguesa. nacionais, que melhor correspondam a constantes do Ao afastar qualquer espaço para dúvidas, essas espírito nacional, conservadas pelas nossas aldeias”5. A lições de Salazar acerca de uma nação culturalmente caravana do júri percorreu as aldeias concorrentes ao título ordenada, natural e antiga deveriam funcionar como e assistiu a inúmeras manifestações “genuínas” de cultura estratégias eficazes, também porque dissimuladas e nacional que correspondiam e resultavam de práticas e subreptícias, para remediar conflitos e contestações. produções populares. Desde o anúncio da iniciativa, em fevereiro de 1938, até ao espetáculo realizado em Lisboa, Cadavez é doutoranda em Ciências da Cultura na Faculdade de Letras no ano seguinte, para entrega do primeiro prémio, não * Cândida da Universidade de Lisboa, onde desenvolve investigação acerca das representações turísticas nos primeiros anos do Estado Novo. É Investigadora na Funcessaram as notícias sobre o concurso e acerca do que o dação António Quadros e Professora Equiparada a Adjunta (Área Científica de mesmo representava enquanto evidência de uma cultura Línguas Estrangeiras) na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. nacional una e sólida. O espírito que presidiu a esta exibição da nação repetiu-se no Centro Regional da Exposição do Mundo Português, por ocasião das comemorações do

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A (In)visibilidade do olhar colonial em Vera Cruz de Rosângela Rennó Daniela Agostinho*

25 Rosângela Rennó, Vera Cruz (2010) “Presentemente somos suficientemente livres para constatar que os europeus foram descobertos em Outubro de 1492 pelos indígenas das Caraíbas” Peter Sloterdijk

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A visualidade constituiu um domínio decisivo na formação da modernidade ocidental e dos seus projectos imperiais. As práticas visuais, ao longo de toda a modernidade, revelaram-se como uma estratégia fulcral de imaginação, historicização e diferenciação do Ocidente face ao Outro colonial. A cultura visual do colonialismo, ou “colonialismo visual” na expressão de Nicholas Mirzoeff (2007), desempenhou um papel fundamental na justificação e legitimação da ordem colonial dos Impérios modernos. Os regimes escópicos da era colonial reproduzem e configuram as relações de dominação e subordinação através de um olhar colonial que naturaliza a autoridade do colonizador e domestica simbolicamente a figura do colonizado, criando uma assimetria essencial à implementação e manutenção da ordem colonial. Num vídeo intitulado “Vera Cruz”, a artista brasileira Rosângela Rennó cria uma representação imaginada do primeiro contacto entre nativos e descobridores de uma

terra que mais tarde se viria a chamar Brasil. O acto de violência simbólica que subjaz à atribuição de um nome por parte do colonizador é explorado por Rosângela Rennó através de uma película de filme em movimento mas vazia, que oclui e ao mesmo tempo enfatiza a invisibilidade da violência – tanto simbólica como efectiva - inerente à colonização moderna. Uma vez que não existem imagens que testemunhem esse momento seminal da história do Império português e do colonialismo moderno, o vídeo mostra apenas essa película vazia, como que desgastada por 500 anos de existência, legendada por um diálogo fictício baseado na Carta de Pêro Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I. Ainda que não existam registos visuais desse momento fundador, a carta de Pêro Vaz de Caminha pode ser pensada como uma manifestação do olhar colonial, através do qual o descobridor português se imagina como homem moderno civilizado por oposição ao outro selvagem do novo mundo. De facto, se a carta de Caminha é comummente reconhecida como a certidão de nascimento do Brasil, poder-se-á também afirmar, no seguimento da inversão de Sloterdijk em epígrafe, que este escrito fundador constitui igual-

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Cultura & Conflito... Outros Lugares material de arquivo procuram “tornar a informação histórica, muitas vezes perdida ou desaparecida, fisicamente presente” (Foster, 2004: 4). A arte de arquivo coloca um desafio fulcral ao processo de descolonização epistemológica: como descolonizar o olhar, como desfazer o olhar colonial através das imagens do próprio cololonialismo? É precisamente no seu impulso “contra-arquivístico” que reside o tour de force de Rennó. Contrariamente ao impulso para recolher, coligir, remontar e assim ressemantizar imagens de arquvio que caracteriza esta viragem arquivística na arte contemporânea, Rennó procura pensar um evento e um período histórico do qual não existem imagens de arquivo, reflectindo, desta forma, sobre a invisibilidade não só material, mas conceptual e epistemológica, da violência da modernidade. Ao interrogar a retórica da invisibilidade, ou da ocultação, do mito irracional da era moderna, Rennó desestabiliza o olhar matricial do colonialismo e o próprio regime de articulação saber/poder do arquivo moderno, responsável pelo que é visível e pelo que permanece por ver. Em “Vera Cruz”, através dessa película que nada mostra para além da própria invisibilidade da colonialidade, a latência do lado sombrio da modernidade torna-se visível, abrindo caminho para uma descolonização do olhar. Referências Bhabha, Homi (1990), “The Third Space: Interview with Homi Bhabha”, in Rutherford, Jonathan (Ed.), Identity, Community, Culture, Difference, London: Lawrence & Wishart, pp. 207-221. Dussel, Enrique (1993), “Eurocentrism and Modernity (Introduction to the Frankfurt Lectures), boundary 2, Vol. 20, No. 3, The Postmodernism Debate in Latin America, pp. 65-76. Foster, Hal (2004), “An Archival Impulse”, October 110, pp. 3-22. Habermas, Jürgen (1997), “Modernity: An Unfinished Project” in Maurizio Passerin d’Entrèves and Seyla Benhabib (eds.), Habermas and the Unfinished Project of Modernity: Critical Essays on The Philosophical Discourse of Modernity, Cambridge: The MIT Press, pp. 38-55. Mignolo, Walter (2007), “Introduction: Coloniality of Power and De-colonial Thinking”, Cultural Studies 21.2, pp. 155-167. Mirzoeff, Nicholas (2007), The Visual Culture Reader, London: Routledge. * Daniela Agostinho é doutoranda em Estudos de Cultura na Universidade Católica Portuguesa no âmbito do programa Lisbon Consortium. É investigadora júnior do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura. As suas principais áreas de interesse são a Cultura Visual, os Estudos Fílmicos e de Género.

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mente a certidão de origem de uma modernidade europeia que se configura numa relação dialéctica com uma alteridade não-europeia (Dussel, 1993). O vídeo de Rosângela Rennó, ao tornar a invisibilidade deste encontro seminal pregnante, sugere ainda a violência e o impulso de destruição da modernidade que ainda se mantêm invisíveis sob o manto de uma concepção iluminada e emancipatória do projecto moderno. A película vazia de “Vera Cruz”, que oculta e ao mesmo tempo denuncia essa ocultação, alude à invisibilidade da “colonialidade” no discurso moderno, o “lado negro da modernidade”, na expressão de Walter Mignolo (2007). Segundo Mignolo, um dos pensadores do grupo “modernidade/colonialidade”, que teve origem na América Latina, a modernidade é um projecto europeu que esconde o seu lado sombrio, a colonialidade e o impulso de destruição, que enformam o projecto moderno tanto quanto a racionalidade e o progresso. Como lembra Homi Bhabha, “a história do colonialismo é a história do Ocidente, mas também uma contra-história face à história normativa e tradicional [...] das grandes narrativas do Estado, da cidadania, da arte, da ciência” (Bhabha, 1990: 218). Para pensadores da modernidade como Hegel ou mesmo Habermans, o descobrimento da América e o início do projecto colonial europeu não são considerados eventos constitutivos da modernidade, ao contrário da Reforma protestante, do Iluminismo e da Revolução Francesa, acontecimentos em que estes pensadores reconhecem contributos fundamentais para a formação da era moderna (Cf. Dussel, 1993). Contudo, a modernidade, para além de se revestir de um carácter racional e redentor, contém, incita e ao mesmo tempo oculta um “mito irracional”, uma justificação para o impulso de violência e destruição. Segundo Enrique Dussel, a diferença entre a teoria crítica pós-moderna e o grupo “modernidade/colonialidade” reside no facto de a primeira criticar a racionalidade moderna como uma racionalidade de terror (pense-se em Adorno, por exemplo), ao passo que os útlimos criticam o facto de a racionalidade moderna ocultar esse mito irracional. É justamente contra este mito irracional que autores como Dusssel, Mignolo, Grosfoguel e Maldonado-Torres apelam a uma “viragem descolonial”, um deslocamento epistémico que ao invés de cumprir o projecto inacabado da modernidade (Habermas, 1997) procure superar a colonialidade, os restícios da racionalidade colonial em tempos pós-coloniais, cumprindo, assim, o “processo incompleto e inacabado de descolonização do século XX” (Grosfoguel, 2011: 27). Em 2004, na revista October, o historiador de arte Hal Foster diagnosticou um “impulso arquivístico” nas práticas artísticas contemporâneas. Embora reconhecendo que esta tendência dificilmente se poderá considerar nova no contexto da arte contemporânea, remontando ao período pré e pós-guerra, Foster insiste que este “impulso” possui um carácter distintivo. A seu ver, os artistas que trabalham com

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Desastres (Não) Naturais: o “gene Cultural” V. Nuno Martins*

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Humanidade coabita com os desastres de génese natural desde os seus primórdios. Ainda na Antiguidade clássica, a violenta erupção do Monte Vesúvio (79 d.C.) provocou a subversão da cidade romana de Pompeia, sepultando os habitantes locais sob uma camada espessa de material piroclástico. Avançando na História, e situando-nos na era contemporânea, as sociedades, em termos individuais e/ou colectivas, são confrontadas ciclicamente com retratos de perda e dano, fruto da mediatização de eventos catastróficos, como, por exemplo, o sismo do Haiti, em 2010. Presentemente, a epistemologia de desastre tende a analisar estes fenómenos extremos como eventos multidimensionais1. Em bom rigor, os desastres são laboratórios de investigação socioecológica, por excelência, ao permitirem examinar a colecção de inter-relações que se estabelecem entre os seres Humanos e o mundo Natural. Nesta perspectiva, os desastres resultam da interacção espácio-temporal, mantida entre os perigos naturais e as vulnerabilidades acopladas a indivíduos e sociedades, que emergem e se reproduzem no ambiente social, económico, político, físico e cultural2. Deste modo, à vista da abordagem anterior, a cultura é uma das dimensões basilares para a percepção da genética dos desastres. Efectivamente, a cultura3 é o conjunto de elementos (i.e. símbolos; língua; valores; normas) transmitidos geracionalmente, que estruturam a conduta e a sobrevivência dos indivíduos em sociedade (e da sociedade em si). Logo, os modos de vida, os costumes e as tradições, as crenças religiosas, os valores sociais, os conhecimentos e a língua, são factores culturais que determinam o comportamento dos sistemas sociais perante os desastres, bem como o enquadramento da sua vulnerabilidade aos perigos 1 Abordagem conceptual emergente no seio das ciências sociais na década de 1980, que rejeita as teorias tecnocráticas que definem os desastres como eventos puramente geofísicos. 2 Blaikie P, Cannon T, Davis I, Wisner B (1994), At Risk: natural hazards, people’s vulnerability, and disasters. Routledge, London. 3 Hall J R (2003) Sociology on Culture. Routledge, New York.

naturais. O interesse pelo “gene” cultural do desastre encontra fundamento em três causas de raiz. Em primeiro lugar, a percepcão do risco de desastre e, por inerência, a necessidade de redução do risco aconselham a considerar os comportamentos de indivíduos e comunidades perante a ameaça potencial (e real) de desastre. Em segundo lugar, há hoje a concepção de que a cultura é uma condição-chave para a sobrevivência de indivíduos e comunidades expostos aos perigos naturais, por ela influenciar o modo como as sociedades se preparam, respondem e recuperam destes eventos, fomentando, assim, a redução das suas vulnerabilidades. E em terceiro lugar, sabe-se que a dimensão cultural pode constituir um obstáculo à redução do risco, aumentando, assim, a vulnerabilidade. Durante o sismo e tsunami de 2004, no Sudeste Asiático, o comportamento expresso pela comunidade indígena de Moken, na Tailândia, contrastou com a atitude de turistas e emigrantes4. Enquanto os indígenas souberam interpretar os sinais do tsunami – descida do nível da maré –, fruto do conhecimento gerado pelas narrações transmitidas ancestralmente, procurando, assim, refúgio nas cotas mais elevadas, os turistas e emigrantes dirigiram-se em direcção ao oceano. Um comportamento que se revelou fatal. As crenças, por seu turno, deram corpo a um conflito entre população e governo Indonésio, aquando da evacuação de várias aldeias na ilha de Java, após a erupção vulcânica do Monte Merapi, em 20065. Centenas de aldeões recusaram abandonar as habitações, devido à crença de que perdas e danos seriam mitigados por forças divinas. Estes exemplos expõem a necessidade de incluir a cultura na percepção e redução do risco de desastre. Em casos singulares, não só o capital cultural é fundamental na concepção dos desastres, como a habituação à ameaça de desastre numa sociedade 4 Arunotai N (2008), “Saved by an old legend and a keen observation: the case of Moken sea nomads in Thailand, Indigenous knowledge for disaster risk reduction: good practices and lessons learnt from the Asia-Pacific region”. In Shaw R, Uy N, Baumwoll J (eds), UNISDR Asia and Pacific, Bangkok. 5 Lavigne F et al. (2008), “People´s behavior in the face of volcanic hazards: Perspectives from Javanese communities, Indonesia”. Journal of Volcanology and Geothermal Research, 172, 273-287.

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“They told all sorts of jokes and so instead of being sad while gathering the dead, they were all laughing. The pain in their hearts was great but the jokes were compared to water that extinguishes a fire.” Phivolcs Library, Diliman: “News about Mayong, the Volcano of Albay” (1897)

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(Fonte: National Geographic, 15/05/2006, http://news. nationalgeographic.com/ news/2006/05/images/merapi-volcano-1_big.jpg: último acesso, 24 de Julho de 2012)

pode fomentar a cultura de desastre, contribuindo, deste modo, para mitigar a vulnerabilidade. Este é o caso das Filipinas. A elevada frequência de eventos danosos na região conduziu à adopção de mecanismos de resposta, nomeadamente, a nível arquitectónico e na dimensão emocional6. Em termos arquitectónicos, a construção das habitações à base de bamboo testemunha a preocupação da população indígena com os abalos sísmicos, dado que a utilização deste material tornava a reconstrução no pós-desastre mais célere, e os ferimentos resultantes de eventos futuros seriam, quiçá, menos dolorosos. A adaptação emocional, por seu lado, é ilustrada na citação que acompanha o texto. A crença, o conceito de “bayanihan”, que assume uma dupla vertente - a partilha da dor e o humor -, foram meios encontrados para superar o trauma das populações. Ao invés, a falha no conhecimento do património cultural das sociedades pode conduzir ao fracasso das políticas de redução do risco e, inclusive, incrementar a vulnerabilidade ao perigo natural. A relocalização no pós-desastre é um caso usual. Após o sismo e tsunami de 2004, o governo do Sri Lanka impôs uma faixa de protecção de 100 metros em torno da faixa costeira, visando mitigar os efeitos de tsunamis futuros7. Porém, as populações não aceitaram ser relocalizadas, 6 Bankoff G (2007), Living with Risk; Coping with Disasters: Hazard as a Frequent Life Experience in the Philippines. Education about Asia, 12, 2, 26-29. 7 Nissanka N, Karunasena G, Rameezden R (2008), Study of factors affecting post disaster housing reconstruction. In Keraminiyage K, Jayasena S, Amaratung D, Haigh R (eds), Post Disaster Recovery Challenges in Sri Lanka, CIB, The University of Salford, UK.

uma vez que os seus modos de vida e fontes de rendimento estavam localizados na área restrita, gerando um conflito entre população e decisores. Neste caso, as autoridades do Sri Lanka procederam a adaptações nas suas políticas formais, de modo a assimilar os modos de vida e as inter-relações já estabelecidas pela população nesse espaço. Resumidamente, a cultura é um elemento fundamental na definição de uma genética dos desastres, ao permitir: (i) compreender a magnitude do impacte destes eventos nos indivíduos e nas suas comunidades; (ii) determinar a vulnerabilidade social aos perigos naturais; e (iii) entender a barreira que separa o sucesso do fracasso na redução do risco de desastre. Relativamente aos conflitos latentes entre os sistemas sociais – enquadrados culturalmente – e as políticas que são desenvolvidas no sentido de promover quer uma melhor percepcão do risco quer a sua consequente redução, esses conflitos serão, provavelmente, ultrapassados, com o desenvolvimento de acções à escala local, junto das comunidades, onde todos os processos e inter-relações socioculturais e económicas interagem entre si. * V. Nuno Martins é licenciado em Geografia Física pela FLUL e mestre em Ciência e Sistemas de Informação Geográfica pelo ISEGI (Universidade Nova de Lisboa). Membro colaborador no Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, tem desenvolvido investigação no ramo das ciências sociais aplicadas aos desastres, riscos naturais e vulnerabilidade social.

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Danças tradicionais javanesas praticadas pelos líderes culturais, na ilha de Java, em honra dos “espíritos” do Monte Merapi, durante as erupções vulcânicas ocorridas em 2006. As crenças a moldar os comportamentos dos indivíduos perante a fatalidade.

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Do conflito latente ao conflito manifesto: nas organizações e nas sociedades Ricardo Fabrício*

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“Toda a aproximação é um conflito.” Fernando Pessoa

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fenómeno do conflito tem na multidimensionalidade e na amplitude algumas das suas características elementares, válidas para a multidão e para o indivíduo pretensamente isolado ou em mero processo de aproximação a si próprio, embora tais propriedades basilares – multidimensionalidade e amplitude – sejam insuficientes para uma abordagem sociológica ao fenómeno. As várias tentativas de tipificação do conflito, que podemos localizar em alguma literatura organizacional (Kinicki & Kreitner, 2006; Luthans, 2005; Hall, 1995), convergem para a existência de diferentes esferas ou níveis de ocorrên-

cia do conflito, dotadas de implicações concretas no embate entre diferentes margens de poder (Crozier & Friedberg, 1977; Mintzberg, 1986; Bernoux, s/d); e em bom rigor, desde logo, em vez de conflito somos tentados a considerar e a falar – no plural – em conflitos. Tudo depende da esfera em que decorre e qualquer esforço de síntese será sempre insuficiente face à multidimensionalidade e à amplitude, tendo em linha de conta a complexidade que envolve o fenómeno. Porém, se o conflito é intrapessoal, situamo-nos no elemento mínimo do processo, com

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Apesar das evidências contemporâneas atestarem a inevitabilidade, a multiplicidade e a sua complexidade - como fenómeno de largo espectro, sobretudo, de cariz sócio organizacional - o conflito nem sempre gozou da mesma profundidade de análise, da mesma visibilidade e da mesma institucionalização. Foi preciso esperar pelo Séc. XIX e pelas consequências socioeconómicas dos processos de industrialização para que o fenómeno adquirisse maior notoriedade e passasse a inscrever-se como manifestação do social, embora só a partir de meados do Séc. XX passássemos a atribuir-lhe um papel bem mais holístico, em parte facilitador das dinâmicas de transformação social, mas igualmente ligado aos processos de fissão, fusão e (re) construção social. Com a instalação de um paradigma de pensamento mais crítico passámos a agregar e a privilegiar outros temas – tais como o conflito, mas também a desintegração e a dominação, em detrimento doutros, como a estabilidade, a integração, a coordenação de funções ou o consenso, tão privilegiados pelo paradigma funcionalista (Séguin e Chanlat, 1983) – e como tal não podemos ignorar o peso que a transformação paradigmática aportou para a abordagem ao conflito. Hoje sabemos bem como as perspetivas que se inscrevem no paradigma crítico, correspondem a uma conceção sociológica segundo a qual as organizações (e as sociedades) são entidades sistémicas e

se encontram desprovidas de determinantes absolutas, estando por essa razão incrustadas (Grannovetter, 2003) numa envolvente. Todas as organizações e todas as sociedades se situam num tempo preciso, têm uma história própria e fazem parte de outro(s) contexto(s) sócio-histórico(s). Mantêm de forma permanente uma relação dialética (interna, externa e à qual pertencem) e não são propriamente alheias aos fenómenos observáveis noutros planos. Efetivamente, devemos à instalação do paradigma crítico um conjunto de perspetivas desmistificadoras relativamente às organizações e às sociedades, visto que estas são construídos sociais (Steiner, 2005), nem sempre dotadas de objetivos generalizáveis. É também o caso do(s) conflito(s), por isso, preservemos este enquadramento teórico. No que concerne ao conflito social (em particular) valerá ainda a pena considerar os moldes em que este possibilita uma diferenciação elementar, que o faz variar entre o conflito social latente e o conflito social manifesto. Esta diferenciação parece-nos ser indispensável para tratar e tentar compreender com melhores hipóteses, a dinâmica mínima dos conflitos sociais à luz do plano cronológico em que nos situamos. O conflito latente decorre com os atores envolvidos a não deterem o poder suficiente para persistirem na persecução dos intentos subjacentes ao clima conflitual. O conflito manifesto, por seu turno, funda-se na ação material para o ser. No entanto, a transição entre patamares corresponderá ao busílis da questão; e poder-se-á revelar bem mais fluida do que possamos imaginar. A obtenção das margens de poder necessárias à ação ou à manifestação do conflito poderá depender tanto da escassez dos recursos e das componentes mais materiais, como da mera operacionalização das representações mais simbólicas. Se a vigência do conflito latente está mais associado a níveis suportáveis de desigualdade e injustiça, então, a sua transformação em conflito manifesto dependerá significativamente do saldo resultante de uma contabilidade simbólica, impossível de matematizar; e quando esse saldo simbólico não matematizável é fracamente negativo aos olhos dos sujeitos, ou seja, quando as perdas simbólicas não são mais suportáveis ou se tornam indiferentes para os atores da ação, nesse caso, o mais provável é que o conflito latente encontre terreno favorável para a sua transfiguração, com o aparecimento dos comportamentos mais pro-

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o próprio indivíduo em auto-confrontação; se os níveis de poder em ação admitem o outro, numa versão unipessoal, então, estamos em presença do conflito interpessoal; mas se o conflito é mais envolvente, entre indivíduos dentro de um mesmo grupo, nesse caso, o mais apropriado é falar na modalidade de conflito intragrupal; se a abrangência é ainda maior e corresponde ao conflito generalizado, dentro de uma mesma organização, estamos perante o conflito intra-organizacional; se o conflito decorre entre grupos, diremos, que o conflito é de tipo intergrupal; mas se se colocar frente a frente diferentes organizações, a melhor designação é conflito inter-organizacional; e se em vez de se tratar de um conflito organizacionalmente centrado, for bem mais amplo, por exemplo, na sociedade, estaremos perante o denominado conflito social (Knight, 1992), regra geral, suportado em condições estruturais, como a dominação, as desigualdades ou a estratificação social, que talham interesses divergentes baseados na posse de recursos escassos, valores opostos e margens de poder tendencialmente inconciliáveis. Assim, em termos sociológicos, mais importante do que ter presente a mera taxonomia do fenómeno do conflito, importa considerar a complementaridade que os diferentes níveis de análise admitem e sem os quais são as próprias possibilidades de compreensão do conflito que ficam comprometidas.

Cultura & Conflito... Reflexões teóricas e/ou de abrangência translocal testativos ou mesmo punitivos e fiquem deste modo disseminadas as condições para a transição entre conflitos: do latente ao manifesto.

Referências bibliográficas: Bernoux, P. (s/d). A Sociologia das Organizações. Porto: Rés. Crozier, M. & Friedberg, E. (1977). L’Acteur et le Système. Paris: Éd. du Seuil. Grannovetter, M. 2003. “Acção económica e estrutura social: o problema da incrustação” in Peixoto, J. & Marques, R. (Eds.), A nova sociologia económica. Oeiras: Celta. Hall, R. (1995). Organizations. Structures, Processes & Outcomes. New Jersey: Prentice Hall Kinicki, A. & Kreitner, R. (2006). Organizational Behavior. Key Concepts, Skills & Best Practices. New York: McGraw Hill Irwin. Knight, J. (1992). Institutions and Social Conflict. Cambridge, MA: Cambridge University Press. Luthans, F. (2005). Organizational Behavior. New York: Mcgraw-Hill Irvin. Mintzberg, M. (1986). Le Pouvoir Dans Les Organisations. Paris: Les Éditions d’Organisations. Séguin, F. & Chanlat, J. F. (1983). L’Analyse des Organisations (Tomo I). Montreal: C. Morin Editeur. Steiner, P. (2005). La Sociologie Économique. Paris: La Decouverte.

* Ricardo Fabrício é doutorado em Sociologia Económica e das Organizações (ISEG/ UTL), professor auxiliar da UMa e investigador do SOCIUS (ISEG/UTL). Recentemente publicou “A empresarialização da sociedade sob a influência da racionalidade da gestão” (2011) na revista Sociologia (Vol. XXI, pp. 233-255, ISSN 0872-3419) da Universidade do Porto. Interessa-se pelos processos ideológicos nas atividades empresariais e económicas, bem como pela virtualização destas na contemporaneidade.

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Sem pretendermos reduzir a extrema complexidade dos processos sociais onde situamos o conflito e tendo em boa conta como toda a aproximação é um conflito, somos levados a sugerir que a simbologia da aproximação se traduzirá na existência de uma premissa relativamente indecifrável até à sua manifestação material. Talvez seja esta a razão principal que tanto dificulta a compreensão e a previsão cirúrgica do(s) conflito(s).

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PROJECT PAPERCLIP Nuno Serrão (artista visual)*

Nuno Serrão, “memories” Página web: http://www.madeira-edu.pt/ceha • Email: [email protected]

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“There is no document of civilization which is not at the same time a document of barbarism” Walter Benjamin

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Nuno Serrão, “plank-time”

Nuno Serrão, “sputnik-generation” Página web: http://www.madeira-edu.pt/ceha • Email: [email protected]

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“Project Paperclip é uma exposição fotográfica que utiliza realidade aumentada (ambiências sonoras reactivas). O conceito tenta transportar o visitante para um estado que lhe permita uma diferente interpretação das 16 fotografias presentes na exposição” “Em Project Paperclip, a Guerra Fria é o fio condutor por entre as fotografias e paisagens sonoras reactivas. Pode parecer estranho […] que o mais perigoso conflito militar da humanidade se torne fonte de inspiração, mas, se é verdade que em nenhum momento da nossa história estivemos tão perto da auto-extinção, é igualmente verdade que nunca tivemos tão poucos limites impostos à nossa imaginação” “Guerra Fria? Porque a nível cultural, científico, político e militar, é uma época que sempre me fascinou e por acreditar que seja uma das mais cruas representações dos nossos melhores e piores momentos como civilização” in www.discloseprojectpaperclip.com

*

Nuno Serrão é um designer e fotógrafo português, cujo trabalho é desenvolvido na Madeira. O seu projecto artístico assume, no entanto, um perfil glocal, articulando (para além de todos os conflitos) valores locais e transnacionais.

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A divisão e a vinculação no nome Miguel Rodrigues Lourenço*

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nome é um “parte-águas”. A denominação, a partir do momento em que toma lugar, provoca uma divisão naquilo que é a percepção do observador face ao que lhe é descrito. Neste sentido, o acto de nomear reveste-se de uma violência fundamental que pulveriza a unidade do que é observado. Por esse motivo, o nome não é apenas situacional, ele define-se a si próprio contra uma realidade da qual não partilha as mesmas qualidades. Assim, o Algarve, que em árabe significa “o Ocidente”, possibilitou, pela sua reconversão em topónimo holonímico erigido à categoria de reino pela monarquia portuguesa, não só um elemento de distinção da própria coroa de Portugal, como – e será talvez este aspecto o mais importante – criou e colocou à sua disposição uma realidade geoinstitucional que reclamava e legitimava um dado território contra um outro Algarve, localizado do outro lado do Guadiana e configurado a partir da cidade de Niebla. Contudo, porque é relacional, o nome é, ao mesmo tempo, referencial, reporta-se a uma realidade que lhe é exterior mas da qual participa tanto quanto se distingue. Assim, a holonímia «Ilhas Adjacentes» é, simultaneamente, elemento de diferenciação e de unidade, com o potencial para causar ao mesmo tempo rejeição e sentimento de pertença. Por um lado, introduz uma diferenciação em relação a uma totalidade -o reino, a metrópole, o Portugal continental – da qual não participa a um nível estrutural ou essencial (territorial) –, introduzindo uma relação hierárquica (cultural) sentida como ofensiva e como tal recusada por quem se vê definido por e nessa holonímia; por outro lado, pretende-se, por quem cunha a holonímia, como elemento distintivo valorativo expresso pelo carácter de proximidade face à totalidade que se entende a si própria como o cume da pirâmide hierárquica e o berço do sistema de valores. Neste último caso, a ambição do nome é vinculativa. O, também, holónimo «Filipinas» reflecte essa mesma função. Em 1609, Antonio de Morga considera que a mudança do nome e o abandono das designações anteriores do arquipélago gera uma realidade nova que é a vigência da lei dos castelhanos e da lei de Deus: um baptismo toponímico que

se sobrepõe a uma realidade identitária anterior e que implementa uma nova relação de obediências. Aposto sobre as ilhas, o holónimo atribui uma totalidade (antes inexistente) a um espaço e configura um novo sistema de relações alicerçado na vinculação à pessoa epónima – Filipe – e, por esta, à monarquia de que é tutelar. A prática do baptismo no Cristianismo expressa, justamente, esta noção de participação numa nova realidade vincular, que obriga a práticas rituais e comportamentais distintas. A prática é, ela própria, a face visível da adesão que constitui a comunidade. Por isso mesmo, o baptismo nas missões ad gentes implica a assunção, desde logo, de um outro nome – entendido como cristão – que, pela sua forma latina, afirma perante a comunidade esse sentido de adesão. O mesmo sucede quando da entrada de um elemento em religião, onde o nome profano dá lugar a uma unidade onomástica de expressão devocional que reforce a consagração à nova vida na qual se entra, às novas práticas às quais se vincula: Rui Colaço, conhecido por frei Miguel dos Santos da Ordem de Santo Agostinho, governador do bispado da China nos inícios do século XVII, protagoniza um tal caso de revolução onomástica total. Como podemos apreciar por este último exemplo, a vinculação profunda que se entende cumprir-se no nome pode ser uma iniciativa que se realiza por um acto voluntário. Neste, pode estar implícita ou explícita uma decisão de sujeição. Assim, por exemplo, na Cidade do México seiscentista, confrades que pretendiam consagrar-se a S. Francisco Xavier e, portanto, vincular o seu nome à confraria, confessam-se desejosos de o servir, imitando o proceder com que se havia conduzido em vida. Ou, como se pode ler numa minuta preparada em 1626 para suplicar o patronato do mesmo santo em Tudela (Navarra): «que con particular piedad y devoción nos adjudiquemos a vos y con especial título nos hagamos vuestros».

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Cultura & Conflito... Reflexões teóricas e/ou de abrangência translocal Pelo nome passa, portanto, uma economia de poder, seja qual for a relação que nela se pretende cumprir. Por este motivo, a questão da designação será, somente, ociosa para quem não se encontrar compreendido ou não se rever na dinâmica dessa economia. Donde a intransigência da República da Argentina em aplicar o topónimo Malvinas a uma realidade geográfica onde a colectividade que a ocupa parece rever-se preferencialmente num outro denominado Falkland.

* Miguel Rodrigues Lourenço é investigador do Centro de História de Além-Mar FCSH-UNL/UAç e do Centro de Estudos de História Religiosa - UCP.

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Cabe perguntar-nos se o acto de nomeação implica, invariavelmente, uma expressão de domínio. No caso supramencionado da confraria mexicana, a relação de poder que aí se estabelece está assente numa troca, por onde se procura captar a protecção intercessora mediante a entrega espontânea ao serviço do santo. No entanto, esta opção pressupõe, necessariamente, a rejeição de outros patronos viáveis no contexto do panteão de santos proporcionado pelo cristianismo romano, portanto, de outras sensibilidades. Ao mesmo tempo, pressupõe a adopção de um sistema de práticas que reflecte – no exemplo vertente, por referência à vida do santo navarro – essa mesma escolha. Por isso, o nome é gerador de comunidade. Daí advém o seu potencial, a um tempo, integrador e fraccionário, vinculativo e divisor. O nome expressa uma totalidade ou intenção totalizante que a experiência humana, pela sua singularidade atomizada, não poderá tolerar sem tensões, a despeito da proposta de convergência que nele se reúne. Em virtude das expectativas ou ambições alimentadas pelas sociedades, o nome jamais será neutro, oscilando entre uma proposta de unidade e uma fronteira insuperável. Em ambos os casos, encerra um sistema de relações configurador de uma comunidade. E, nesse sentido, uma expressão de dominium.

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As contradições da era global Sónia Pereira*

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onhecer a resposta a uma única pergunta é a fronteira última que separa o jovem Jamal de uma mudança radical de vida que lhe permita abandonar de vez os bairros de lata onde foi criado. A pergunta é simples: além de Athos e Porthos, qual o nome do terceiro mosqueteiro no célebre romance de Alexandre Dumas? Mas sob esta ilusória aparência de simplicidade oculta-se uma sofisticada teia de complexidades, circunstâncias e relações, que, situadas num mundo em constante mudança e sujeito a crescentes movimentos de globalização, serão cada vez menos lineares. Jamal é apenas, como bem frisa o apresentador do programa em que participa, Quem Quer Ser Milionário?, um funcionário de um call centre em Mumbai; no entanto, as lógicas tradicionais não podem já aplicar-se ao planeta que hoje habitamos, e é precisamente no interior dessa reflexão que se move Slumdog Millionaire (Quem Quer Ser Bilionário?). Realizado na Índia pelo britânico Danny Boyle com a colaboração de Loveleen Tandan, Slumdog Millionaire desenvolve-se em três cenários distintos, incluindo a prisão, para onde Jamal é conduzido e submetido a práticas de tortura por suspeitas de batota; o programa televisivo, que justifica a passagem de Jamal pela prisão, onde terá de explicar como obteve informação para cada uma das suas respostas; e a Índia moderna e atual, reveladora de uma encruzilhada de experiências que põem a descoberto os contrastes que alimentam um país no qual tradição e inovação se tentam conjugar, ao mesmo tempo que conflitos e desigualdades profundas se configuram inultrapassáveis. No percurso de Jamal a sobrevivência esteve sempre ameaçada. Nascido e criado nos bairros de lata de Mumbai (antiga Bombaim), a sua infância foi passada entre a miséria mais abjeta, feita de pobreza, imundície e desesperança, mas procurou de todas as formas libertar-se da perspetiva de uma vida miserável, culminando nesse momento em que tenta a sua sorte em Quem Quer Ser Milionário?, ironicamente não em busca da fortuna que tantos desejariam mas antes procurando o reencontro com a sua amada há muito perdida, a jovem Latika.

Filmado segundo os padrões estilísticos que têm distinguido a cinematografia de Danny Boyle, Slumdog Millionaire navega sobre um excesso de sentidos, conduzido pelos constantes movimentos de câmara, os ângulos visuais inesperados, as cores inebriantes de alguns dos cenários, a música que nunca conhece pausas e, sobretudo, a dinâmica quase delirante que acompanha uma história que se oferece à contemplação como uma espécie de conto de fadas dos tempos modernos, por vezes impiedoso na sua frontalidade quase cruel, mas dele emergindo um sentido de moralidade comparável ao de um conto de Dickens que se transportasse da Londres vitoriana para a Índia contemporânea, com um final inesperadamente feliz que recompensa os esforços daqueles que, sendo pobres e vítimas das suas circunstâncias, alcançam o triunfo. No filme de Danny Boyle, e numa era tão intensamente marcada pelas contradições próprias da pós-modernidade, dificilmente se deixará de observar alguma ironia, não só nesta efabulação final excessivamente fantasiosa, mas no modo como se estrutura toda a narrativa, que parece a cada momento querer dizer mais do que aquilo que verdadeiramente mostra mas, em simultâneo, se esforça por não se apresentar com excessiva seriedade. O difícil equilíbrio entre a realidade brutal das circunstâncias de

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Slumdog Millionaire conta a história do seu protagonista através de um programa televisivo popularizado em todo o mundo, tornando possível que a vida de Jamal possa ser sumarizada de acordo com as respostas a um conjunto de questões que pouco mais representarão do que uma série de conhecimentos aparentemente fúteis quando comparados com as dificuldades de sobrevivência que enfrentou ao longo do seu trajeto e para as quais teve de arranjar soluções nem sempre desejáveis. Jamal sabe que numa nota americana de cem dólares se encontra estampado o rosto de Benjamin Franklin, mas desconhece Mahatma Gandhi, cuja face se encontra impressa em todas as notas de rupias indianas. Jamal conhece o nome de várias ruas de cidades britânicas, mas desconhece a história por detrás daquele que será o monumento mais emblemático do seu próprio país, o Taj Mahal. Jamal é desde criança, e à semelhança de milhões dos seus conterrâneos, fascinado pelas vedetas de Bollywood, mostrando-se disposto a mergulhar no interior de uma latrina para não perder a oportunidade de conseguir um autógrafo de Amitabh Bachchan. A imagem é deveras singular e demonstra como não poderiam naquele momento estar mais afastadas as circunstâncias de vida de ambos, um emergindo do seio da terra coberto de dejetos humanos, o outro descendo dos céus com toda a pompa e circunstância que lhe assegura o seu estrelato. Jamal trabalha no call centre de uma empresa de telecomuni-

cações, mas apesar de rodeado de telefones, conhece apenas um número, o do seu irmão. Reflexo das condições de existência no mundo contemporâneo, este cenário recorda a afirmação de Anthony Giddens: «Quando a imagem de Nelson Mandela nos pode ser mais familiar do que a do vizinho que mora na porta ao lado da nossa, é porque qualquer coisa mudou na nossa vida corrente» (Giddens, 2000: 23). Na verdade, o teórico constata como os processos de globalização recentes, moldados sobretudo pelos avanços tecnológicos nos sistemas de comunicação, produziram alterações que, se por um lado assumem o poder de determinar eventos que têm lugar à escala do planeta e que dizem respeito aos grandes sistemas económicos, financeiros e políticos, por outro mostram-se capazes de influenciar a vida quotidiana e interior dos indivíduos, independentemente da sua localização geográfica, bem como da sua condição social e económica. Por isso mesmo, afirma, «(…) há que admitir que a globalização não é um processo simples, é uma rede complexa de processos. E estes operam de forma contraditória ou em oposição aberta» (Giddens, 2000: 24). No mesmo sentido, também Boaventura Sousa Santos (2002) salienta a importância de ultrapassar a falsa conceção da globalização como um processo linear ou consensual, argumentando antes que esta se traduz num vasto campo de conflitos e contestação, no qual se articulam, ao nível da dimensão cultural, complexas interseções entre as tendências simultâneas de homogeneização e diferenciação, entre um certo isomorfismo que se impõe particularmente a partir de referentes ocidentais que tendem para a uniformidade e, no sentido oposto, uma crescente diversidade fragmentária que reafirma a riqueza dos particularismos locais. Não sendo de todo claro o caminho que ambas as tendências de tentativas de dominação e resistência irão percorrer num futuro próximo que se afigura incerto e por vezes caótico, parece evidente que as polarizações do global e do local se ramificam em teias crescentemente sofisticadas num processo dialético que permite a coexistência do ausente, distante na sua desterritorialização global, e do presente, próximo na sua redescoberta da territorialização local. É entre teias igualmente complexas e contraditórias que se traça o percurso de Jamal. De facto, as condições segundo as quais o jovem foi, ao longo dos seus turbulentos 18 anos de vida, adquirindo conhecimentos que lhe permitem conquistar

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vida dos protagonistas do filme e da sua Índia natal, por um lado, e o sentido de beleza e inocência da história ficcional que vai emergindo e conquistando o protagonismo, por outro, é gerido com equilíbrio em todos os segmentos da película, até ao momento final da dança na estação de comboios, ao melhor estilo de Bollywood, mas isso não significa que o tom quase celebrativo da película não deixe de comportar os seus riscos no contexto atual. De facto, são múltiplos os níveis de leitura que se vão desdobrando em Slumdog Millionaire, traduzindo as inevitáveis tensões e contradições que definem o mundo contemporâneo na era da globalização. As desigualdades económicas, os conflitos étnicos e religiosos, os fenómenos da violência e da criminalidade, a exploração do trabalho infantil, a mobilidade de pessoas e produtos e a interconexão transnacional, sobretudo a nível da integração de produtores e consumidores à escala global, todos estes elementos que se têm constituído como fenómenos que delimitam os movimentos de globalização como um campo de conflitos iminentes e de difícil resolução estão presentes na narrativa fílmica, mas é sobretudo ao nível da dimensão da cultura popular e das condições da produção e aquisição de conhecimento na contemporaneidade que se manifesta a reflexão oferecida por Danny Boyle.

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Claramente identificados por Bauman na sua análise da vida fragmentada no universo contemporâneo, «A ofuscante contingência da existência, o carácter episódico das circunstâncias da vida e a instabilidade de todos e cada um dos aspetos da existência social» (Bauman, 2007: 53) definem o percurso fragmentário de Jamal, que nos é revelado sem uma estrutura cronológica definitiva e oscila frequentemente em variações espácio-temporais, num conjunto de eventos singulares que desvelam as possibilidades conjugadas por um inter-relacionamento cultural que se desenrola hoje à escala global. Os fluxos culturais que integram os fenómenos de globalização, em particular no que concerne ao constante movimento de imagens e informações – ou mediapaisagens no sentido que lhes é atribuído por Appadurai – abrem novas perspetivas à vida de Jamal, transformando a sua batalha épica ao género de um conto de fadas numa espécie de versão cinematográfica de um realismo mágico que se socorre dos próprios media para conjugar o real e o ficcional com pretensões de verosimilhança, numa fusão da realidade horrífica e da ironia surreal que a transcende, sustentando-se num difícil equilíbrio. A pobreza que o filme exibe de forma quase glamorosa, quando se apagam as luzes na sala de cinema, persis1 «Viver no universo da modernidade tardia», afirmaria Giddens, «é viver num ambiente de acaso e risco» (Giddens, 2001: 101). Do mesmo modo, Zygmunt Bauman argumenta que nas condições pós-modernas de incerteza, «(…) bonds are dissembled into successive encounters, identities into successively worn masks, life-history into a series of episodes whose sole lasting importance is their equally ephemeric memory. Nothing can be known for sure, and anything which is known can be known in a different way – one way of knowing is as good, or as bad (and certainly as volatile and precarious) as any other» (Bauman, 1997: 24). 2 Ambas as dimensões intersectam-se de modos inesperados numa produção cinematográfica que reitera algumas das características fundamentais do cinema que Lipovetsky e Serroy (2010) definem como hipermoderno.

te. O risco, no fundo, mantém-se – o de produzir sofisticadas representações de uma realidade que, pretendendo denunciar-se pelas suas desigualdades ou enaltecer pelas suas características diferenciadas, acaba por reproduzir as mesmas condições de exploração que pretendia denunciar ou aproveitar-se dos seus recursos globais para capitalizar sobre criatividades locais de que se apropria e descontextualiza em função do seu potencial comercial e que nunca chegam a conhecer os frutos daí provenientes. Talvez por isso, a resolução oferecida por Slumdog Millionaire é, assumidamente, apenas ilusória. BIBLIOGRAFIA APPADURAI, Arjun (1996), Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization, Minneapolis: University of Minnesota Press. BAUMAN, Zygmunt (1997), Postmodernity and its Discontents, Cambridge: Polity Press. BAUMAN, Zygmunt (2007), A Vida Fragmentada: Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna, Lisboa: Relógio D’Água. GIDDENS, Anthony (1998), Consequências da Modernidade, Oeiras: Celta Editora. GIDDENS, Anthony (2000), O Mundo na Era da Globalização, Lisboa: Editorial Presença. GIDDENS, Anthony (2001), Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras: Celta Editora. HUTNYK, John (2000), Critique of Exotica, London: Pluto Press. LASH, Scott and Lury, Celia (2007), Global Culture Industry, Cambridge: Polity Press. LIPOVETSKY, Gilles (2009), A Felicidade Paradoxal: Ensaio Sobre a Sociedade do Hipercosnumo, Lisboa: Edições 70. LIPOVETSKY, Gilles e Serroy, Jean (2010), O Ecrã Global, Lisboa: Edições 70. SANTOS, Boaventura de Sousa (2002), «The Processes of Globalization», Eurozine 68/14, http://www.ces.uc.pt/ bss/documentos/the_processes_of_globalization_in_ eurozine.pdf. FILMOGRAFIA BOYLE, Danny (2008), Slumdog Millionaire – Quem Quer Ser Bilionário?, Celador Films Ltd. and Channel 4 Television Corporation.

* Sónia Pereira é mestre e doutoranda em Estudos de Cultura pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (FCH-UCP). É investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (FCH-UCP). Tem centrado a sua investigação no estudo das representações do conflito e da violência na música (particularmente no heavy metal) e no cinema.

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o tão desejado prémio de 20 milhões de rupias são, nas palavras do inspetor da polícia, bizarramente plausíveis1. A dimensão realista de Slumdog Millionaire existe e manifesta-se, de forma cruel, nas imagens da miséria profunda que grassa pelos bairros de lata de Mumbai e na violência do contexto em que muitos dos seus habitantes encontram as suas próprias formas de sobrevivência. Mas há uma outra dimensão, claramente situada no domínio imaginativo da fantasia, que alimenta esta narrativa e lhe empresta um tom, em simultâneo, belo nas suas possibilidades e irónico na sua implausibilidade2. As recompensas que Jamal dificilmente teria hipótese de obter num cenário real de flagrantes desigualdades e índices extremos de pobreza, consegue-as inesperadamente através do cenário artificialmente construído de um programa televisivo, apenas porque as suas experiências lhe ofereceram um conjunto de conhecimentos desconexos e fragmentários, à mercê dos fluxos informativos e comunicacionais de um mundo cada vez mais próximo e imprevisível.

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Dos arquivos como lugares de conflito e do seu nomos na equação do deve e ter a haver Ana Salgueiro Rodrigues*

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ao conceito tradicional de topografia de segurança poderá ser interessante contrapor o de topografia de reconhecimento (com todos os desafios que o nosso tempo coloca […]), em que o lugar do texto e o próprio texto como lugar de memória sejam entendidos como espaços revisitáveis, não unívocos na sua autenticidade e singularidade António Braz de Oliveira, “A «escrita» do ACPC” ,p.48 todo arquivo […] é ao mesmo tempo instituidor e conservador. Revolucionário e tradicional. Arquivo econômico, neste duplo sentido: guarda, põe em reserva, economiza, mas de modo não natural, isto é, fazendo a lei (nomos) ou fazendo respeitar a lei […]. Perguntar-nos-emos sempre o que foi possível, neste mal de arquivo, queimar. Jacques Derrida, Mal de arquivo, pp. 17 e 129

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ceitar o desafio de procurar resolver, com rigor, a complexidade das contas implicadas na equação do deve e ter a haver entre sujeitos interrelacionados, entre agentes e sistemas sócio-culturais, entre instituições, ou entre espaços sócio-políticos, exige sempre, em nosso entender, a gestão de conflitos ideológicos, culturais e até disciplinares, assim como o não confinamento a um mero (embora exigente e necessário) exercício de contabilidade tout court. Para além dos valores financeiros, mensuráveis em números, moedas ou notas de débito e crédito, há outros valores de carácter simbólico-cultural a ter em consideração nesse cálculo. Referimo-nos a valores que são determinantes na gestão financeira e nas decisões político-económicas, embora, não raras vezes, o sejam de uma forma inconsciente. Aliás, talvez resida aqui a razão pela qual esses valores são ignorados ou esquecidos com tanta frequência, quando se procede ao cômputo do que se deve e do que se tem a haver. Fundamentam estas nossas palavras, posições assumidas por nomes da economia e da história económica que, em tempos mais recentes, têm vindo a sublinhar o erro de reduzir a análise económica à econometria (ver, p. ex.: GUISO et alii, 2006; HARRISON, 2000; HERRMANN-

Arquivo Regional da Madeira -PILLATH, 2010). Nessa parcela simbólico-cultural tantas vezes silenciada e de difícil contabilização, cabe grande parte do trabalho desenvolvido por agentes políticos e culturais. Trate-se de trabalho materialmente objectivável: eventos organizados e intervenções públicas de vária índole; livros, obras científicas e artísticas produzidas e publicadas; instituições criadas; propostas de lei ou outras medidas políticas publicamente apresentadas; etc.. Ou trate-se de iniciativas dinamizadoras, críticas e verdadeiramente recriativas, que algumas dessas figuras assumiram e as quais, experienciadas pelos coevos que delas darão ou não testemunho, e apesar de poderem ter contribuído verdadeiramente para a reelaboração da tessitura cultural da sociedade, caem depois no esquecimento geral, se não forem objecto de um processo de re-memorização. Ora, é justamente por este motivo que um trabalho rigoroso e demorado em arquivos e sobre arquivos assume especial relevância, quando se pretende tentar resolver, com seriedade, a equação do deve e ter a haver. E isto, nunca ignorando quanto um

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Cultura & Conflito... Reflexões teóricas e/ou de abrangência translocal lação, difusão, uso, reprodução, aquilo que ele possibilita e quanto ele tolhe, tudo isso que o arquivo é, e integralmente, transporta-o para um âmbito que excede por completo a massa documental. (Cascais, 2009:111)

arquivo, com maior ou menor visibilidade, é sempre um lugar de conflito ideológico e cultural, quer nos reportemos, aqui, ao conceito específico e institucional de arquivo, adoptado pela Arquivística, quer o entendamos em sentido foucaultiano, bem mais abrangente e dinâmico. Antes de mais, convém não esquecer que arquivo não significa apenas a soma de textos conservados por uma cultura como documentos do seu passado ou como testemunho da sua identidade permanente […,] traços que puderam ser salvos de desastre […] [sendo] entesourados pelas instituições que registam e conservam os documentos cuja memória se quer guardar e disponibilizar livremente às gerações vindouras. (CASCAIS, 2009: 110) Na verdade, hoje, o conceito de arquivo não pode também deixar de ser lido como metáfora de uma “existência acumulada dos discursos” (Foucault, 1967: 595). Uma acumulação que sempre está sujeita ao “jogo de regras que determinam, numa cultura, o aparecimento e o desaparecimento dos enunciados, a sua remanescência e o seu apagamento, a sua existência paradoxal de acontecimentos e de coisas” (Foucault, 1968: 708). Assim, se, por vezes, a primeira acepção faz esquecer que um Arquivo não é apenas uma massa documental passiva e pacífica, depois da teorização foucaultiana em torno do conceito de arquivo, ficou claro que qualquer arquivo é sobretudo um lugar de saber e de poder, um lugar, por conseguinte, conflitual. E entenda-se aqui lugar como espaço físico-institucional, mas também como espaço mental e sócio-cultural. Aliás, segundo António Fernando Cascais, o princípio organizador do arquivo, os meios da sua circu-

Neste sentido, o arquivo, para além dos conflitos que o constituem, “tem força de lei” num determinado sistema político-cultural e, enquanto tal, quase sempre está ao serviço da lei e do poder vigorantes, como destaca ainda Derrida (2001). Isto, quer enquanto lugar que conserva ou rejeita aquilo que, num específico contexto histórico-cultural e sócio-político, se considera válido ou destituído de valor; quer enquanto lugar que organiza, hierarquiza, dá visibilidade ou oculta os discursos e saberes aí existentes, permitindo ou não “a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação”(Derrida, 2001: 16). Por conseguinte, um arquivo (em sentido arquivístico ou foucaultiano) não é um lugar neutro e a-político. Antes é um lugar que exige uma permanente análise crítica e uma consequente e responsável (re)negociação de valores. Daí considerarmos que, para uma justa equação de um qualquer deve e haver, se torna imperioso desenvolver uma “arqueologia do saber”, à semelhança da proposta por Foucault. Ou seja: uma extracção/descrição rigorosa dos arquivos, “da existência acumulada dos discursos” que aí permanecem ou são excluídos/silenciados (Foucault, 1967: 595). Importa descrever o que foi dito/é dito, quem disse/diz, como foi/é dito e re-dito ao longo dos tempos, com que objectivos, em que contexto foi dito e re-dito. De igual forma, necessário é também empreender uma análise rigorosa das leis e pré-conceitos que presidem à constituição, organização e modo de funcionamento desses mesmos arquivos. Importa, pois, dar também visibilidade aos conflitos ideoló-

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Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, BNP

Deste modo, não esquecendo as reservas colocadas por Jacques Derrida (2001), na senda de Michel Foucault, quando o primeiro reflecte sobre o mal de arquivo, sublinhando que qualquer arquivo se (re) constrói permanentemente a partir da articulação entre anamnese (perda do esquecimento ou re-memorização) e amnesia (esquecimento), num processo tensional e conflituoso sempre implicado em questões técnicas, éticas, biológicas, políticas e, nesta medida, também histórico-culturais, facilmente se compreende o poder legitimador e deslegitimador que um arquivo pode assumir.

Cultura & Conflito... Reflexões teóricas e/ou de abrangência translocal gicos e culturais que, por inerência, constituem qualquer arquivo. Como lembra Derrida:

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Evidentemente, não há arquivo que não implique esse poder de destruição, de selecção ou de exclusão. A conservação não existe sem exclusão, é um poder eminentemente político que se exerce como poder de legitimação. Não se trata apenas do poder político em sentido estrito […] mas sobretudo [d]o poder de legitimação de uma obra. (Derrida, 2002:42) Portanto, na leitura dos arquivos é fundamental estar atento, como destaca António Fernando Cascais (2009), à grande prática dos discursos, às regras, às condições, ao funcionamento e aos efeitos que são próprios de cada arquivo. Só assim poderemos, efectivamente, ir compreendendo, na equação desse deve e ter a haver, qual o contributo assumido por agentes e fenómenos culturais e políticos quantas vezes (des)considerados marginais ou até ignorados pelos centros de poder e saber. E só assim também se poderá conhecer: (1) qual o perfil e o lugar que esses agentes políticos e culturais vão assumindo, ao longo da história, na hierarquia dos sistemas culturais; (2) como e porquê se constroem essas oscilações em torno dessas figuras; (3) em que medida a acção política e sócio-cultural desses agentes, directa ou indirectamente, poderá ter condicionado decisões contabilísticas e políticas económica. Assim, se para esse cômputo é fundamental o contributo da econometria, muitas outras áreas disciplinares terão obrigatoriamente de ser convocadas (em conflito e/ou cooperação) para a arrojada tarefa dessa equação. Referências: BLAUFUKS, Daniel, 2007, Sob céus estranhos. Uma história de exílios, Lisboa: Ed. Tinta-da-China. CASCAIS, António Fernando, 2009, “Babel, ou o céu é o limite. O arquivo em Michel Foucault”, in Maria Augusta Babo e José Augusto Mourão (org.), Revista de comunicação e linguagens. Escrita, memória, arquivo, nº 40, Lisboa:CECL/FCSH UNL, pp. 109-118. DERRIDA, Jacques, 2001 [1995], Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana, trad. Cláudia de Moraes Rego, Rio de Janeiro: Editora Relume Ltd. http://pt.scribd.com/doc/47326073/DERRIDA-Jaqcues-Mal-de-arquivo-Uma-impressaoFreudi ana#. FOUCAULT, Michel, 1967, “Sur les façons d’écrire l’histoire”, Dits et écrits, I, Paris: Galimard, pp. 585-600. FOUCAULT, Michel,1968, “Sur la’archéologie des science: réponse au Cercle d’epistémologie”, Dits et écrits, I, Paris: Gallimard, pp. 696-731. GUISO, Luigi et alii, 2006, “Does culture affects economic out-

Fotografia de Daniel Blaufuks. (Blaufuks, 2007: 140)

comes?”, in Journal of economic perspectives, nº 20, vol. II, Pittsburg: American Economic Association, pp. 23-48. HARRISON, Lawrence E., 2000,“Introduction. Why culture matters”, in Lawrence HARRISON & Samuel HUNTINGTON (eds.), Culture matters. How values shape human progress, New York: Basic Books. HERRMANN-PILLATH, Carsten, 2010, “What have we learnt from twenty years of economic research into Culture?”, in International Journal of Cultural Studies. http://ssrn.com/abstract=1487443. OLIVEIRA, António Braz de, 2007, “A «escrita» do ACPC. Recortes de memória recente”, AAVV, As mãos da escrita. 25º aniversário do Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, Lisboa: BNP, pp.29-49. * Ana Salgueiro Rodrigues é doutoranda em Estudos de Cultura na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (FCH-UCP) e mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela FLUL. É investigadora júnior do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da FCHUCP. Tem desenvolvido investigação sobre os sistemas literários e culturais das Ilhas Atlânticas e sobre as problemáticas do exílio e da mobilidade humana. Esteve destacada no CEHA nos anos lectivos 2010/2011 e 2011/2012.

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