Dos concelhos medievais às vilas coloniais: o poder camarário no sul da América Portuguesa

July 25, 2017 | Autor: Fábio Kühn | Categoria: Colonial Brazil, Colonial Brazilian History
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11- DOS CONCELHOS MEDIEVAIS ÀS VILAS COLONIAIS: O PODER CAMARÁRIO NO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA. Fábio Kühn1* Costuma-se dizer – para o bem ou para o mal - que os portugueses não inventaram nada de muito novo ao sul do Equador, tratando de reproduzir no contexto colonial, em suas linhas gerais, o funcionamento da administração metropolitana. É bem verdade que as formas administrativas poderiam ser muito variadas, consoante o tipo de inserção lusa nos territórios conquistados2, mas alguns elementos apontam para a recriação no Império português de práticas muito antigas. Práticas estas que remontam ao período medieval, quando foram constituídos os primeiros concelhos em Portugal. Conforme Mattoso, estes concelhos caracterizavam-se pela sua capacidade deliberativa, cuja autonomia se exprimia “pelo direito de eleger seus magistrados, de criar um direito próprio (mesmo que se lhe chame ‘costume’), de estabelecer o regime fiscal e o regime judicial e de organizar as suas forças militares”.3 UM TRANSPLANTE ADMINISTRATIVO: DOS CONCELHOS ÀS VILAS Características que reproduziram-se durante a Idade Moderna, pois como observou Nuno Monteiro, “a municipalização do espaço político local constitui uma das heranças medievais mais relevantes” durante o Antigo Regime.4 De fato, no que se tratava dos poderes concelhios, os modelos do Reino foram incorporados ao cotidiano da América lusa desde muito cedo (notadamente com a criação das capitanias hereditárias). Assim, a partir da década de 1530, foram criadas as primeiras vilas coloniais, com seus respectivos oficiais camarários, ainda que subordinados ao donatário das capitanias.5 1 - * Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 - António Manuel HESPANHA. “Estruturas político-administrativas do Império português”. In: Outro mundo novo vimos. Lisboa: CNCDP, 2001. 3 - José MATTOSO. Identificação de um país – Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). Lisboa: Editorial Estampa, 1985, p. 337. 4 - Nuno G. MONTEIRO. “A sociedade local e seus protagonistas”. In: César OLIVEIRA (dir.) História dos Municípios e do Poder local. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 30. 5 - Na carta de doação da capitania de Pernambuco a Duarte Coelho (1534), consta que o donatário “poderá per

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Em meados do século XVI seria estruturado o Governo Geral, que significaria em tese um maior controle por parte da Metrópole no processo de criação dos novos núcleos urbanos, muito embora algumas capitanias de jurisdição privada tenham sobrevivido até o século XVIII. Na América portuguesa, a medida que surgiam as povoações e estabeleciam-se seus foros de vila, os principais das terras passavam a disputar o controle da Câmara, que além de permitir tomar as rédeas da administração local, possibilitava ainda a comunicação direta com o centro político da monarquia. Conforme notou Luis Weckmann, ao referir-se aos funcionários coloniais da América lusa, “todos eles continuaram no Brasil os modos e costumes que haviam sido iniciados em Portugal medieval por uma monarquia originalmente feudal, porém cada vez mais centralizadora e absolutista”.6 Mesmo que levemos em conta a contribuição da historiografia que vem questionando a forma tradicional de caracterização do absolutismo monárquico em Portugal, isso não invalida a tese da reprodução das formas administrativas reinóis em solo americano, pois elas seriam perfeitamente adaptadas às lógicas de uma sociedade de Antigo Regime nos trópicos. Assim, como assinalou Maria Filomena Coelho, “se olharmos os primeiros séculos da formação do Brasil através da lente feudal, desfaz-se a visão ‘esquizofrênica’ de um poder central que titubeia entre a modernidade econômica e o arcaísmo mental”, caracterizando-se “uma monarquia que compreende a particularidade de dominar um Império com pouca uniformidade”.7 A dinâmica da negociação entre o centro imperial e as periferias envolvia certamente a prática de concessões, mas igualmente compunha-se de elementos conflituais. Nestes momentos de conflito, as Câmaras apareciam como instâncias de intermediação imprescindíveis no universo político colonial. Daí a importância do domínio destas instituições pela “nobreza política”, na medida em que “não apenas as principais famílias da vila, cidade ou região eram representadas na câmara, mas ainda que a câmara advogava, articulava e protegia os interesses das elites locais”, como anotou Russel-Wood.8 Ao se referir às câmaras ultramarinas, Charles Boxer sy e per seu ovidor estar à enliçam dos juízes e oficiaes alympar e apurar as pautas e pasar cartas de comfirmaçam aos ditos juízes e oficiaes”. Cf. Doações e forais das capitanias do Brasil, 1534-1536. Lisboa: Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 1999, p. 12. 6 - Luis WECKMANN. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 246. 7 - Maria Filomena COELHO. A Justiça d’além mar – Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (século XVIII). Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2009, p. 167. 8 - A. J. R. RUSSEL-WOOD. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”. Revista Brasileira de História. Vol. 18 nº 36, 1998, p. 208.

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questionou se estas instituições de poder local seriam exemplos de “oligarquias autoperpetuadoras”, como aquelas que dominaram alguns dos cabildos na América Espanhola.9 Segundo o autor, as Câmaras eram uma forma de representação e refúgio para todas as classes da sociedade portuguesa, particularmente para as elites locais. Representação na medida em que o exercício do poder político local dava vazão às reivindicações das comunidades ou de setores mais privilegiados. Mas também de refúgio, visto que os conselhos eram espaços de resistência às imposições do poder central.10 Estudos mais recentes tendem a destacar a importância destas instituições do poder local, evidenciando a centralidade dos cargos camarários não apenas enquanto espaço de distinção e hierarquização dos colonos, mas principalmente enquanto espaço de negociação com a Coroa. Em função disso, ser membro da Câmara transformava os ocupantes destes cargos em “cidadãos”, habilitados a participar do governo político do Império. Conforme Bicalho, “a ocupação de cargos na administração concelhia constituíra-se, portanto, na principal via de exercício da cidadania no Antigo Regime português. (...) Os cidadãos eram os responsáveis pela res publica que, traduzida por ‘coisa pública’, articulava-se à governança da comunidade”.11 Outros autores, como Nuno Monteiro, vão mais longe ainda, ao afirmar que “talvez seja mais adequado pensar o espaço político colonial como uma constelação de poderes, (...) na qual as elites locais brasileiras se exprimiam politicamente, sobretudo por intermédio das câmaras municipais”. Esta leitura do Império como um “sistema de poderes” ressalta a “centralidade do centro” e não a centralização como fundamento básico da administração portuguesa, segundo o qual a comunicação política quase universal com a Corte era o “pressuposto decisivo da flexibilidade do sistema”.12 Por fim, um aspecto a ser considerado em perspectiva comparada é o âmbito geográfico das vilas coloniais, muito mais amplo do que aquele das suas congêneres metropolitanas. Diante da imensidão do território brasileiro, a expansão urbana foi relativamente modesta. No século XVII, até o final da União Ibérica, Portugal havia criado

9 - C. R. BOXER. Portuguese Society in the Tropics – The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda. 1510-1800. Madison and Milwaukee, The University of Wisconsin Press, 1965, p. 4. ���- C. R. BOXER. O Império Marítimo Português. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 286. Na verdade, este autor afirmou que “de maneiras diferentes, a Câmara e a Misericórdia forneceram uma forma de representação e de refúgio para todas as classes da sociedade portuguesa”. ���- Maria Fernanda BICALHO. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: João FRAGOSO; Maria Fernanda BICALHO; Maria de Fátima GOUVÊA (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 204-205. ���- ������������������������������������������������������������������������������������������������������� Nuno Gonçalo MONTEIRO. “Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os vice-reis e governadores gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII”. In: João FRAGOSO; Maria Fernanda BICALHO; Maria de Fátima GOUVÊA (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 283.

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na América lusa apenas 36 núcleos urbanos, enquanto que nos territórios da América espanhola estes eram 330 na mesma altura (1630). De fato, até 1822, foram criadas somente 208 vilas e 13 cidades em todo o território da colônia americana, sendo a maioria delas constituídas após o final do governo de Dom João V (1750).13 Este é um número muito inferior em relação às vilas existentes no Reino, onde a rede concelhia já estava plenamente consolidada desde o início do século XVI, atingindo 762 municípios em 15271532, para depois crescer muito lentamente durante três séculos até chegar a 816 conselhos ao final do Antigo Regime (1826).14 O PODER LOCAL NO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA Sendo região de povoamento tardio, ocorrido somente no século XVIII, o poder local no sul da América Portuguesa somente foi organizado com a criação da Câmara do Rio Grande de São Pedro, que funcionou na vila de Rio Grande (1751-1763), no arraial de Viamão (1763-1773) e em Porto Alegre (1773-1810). A conjuntura na qual isso ocorreu, correspondeu a um período no qual se verificou o processo final de transição de uma monarquia de tipo corporativa (com relativa autonomia dos poderes locais) para uma do tipo absolutista, com todas as implicações resultantes, em especial a emergência de uma nova “razão de Estado” e o decorrente aumento da centralização política.15 Neste sentido, para compreender adequadamente as relações estabelecidas entre o centro e a periferia no Império português, deve-se levar em conta que “as vilas refletiam uma resposta régia a uma situação resultante de um povoamento anterior e espontâneo, promovido por colonos individualmente, e cujo crescimento até determinado ponto fazia com que a Coroa julgasse necessário prover a organização de um governo municipal”. A principal intenção da Coroa seria favorecer a estabilidade administrativa, social e econômica destas localidades. Por isso, durante a segunda metade do século XVIII intensificouse o povoamento na América Portuguesa, tendo sido criadas 95 novas vilas entre 1750 e 1808, “justamente como forma privilegiada pela Coroa para enquadrar politicamente a população e atenuar os conflitos, mais freqüentes em zonas periféricas, onde não existia ���- Pedro PUNTONI. “Como coração no meio do corpo: Salvador, capital do Estado do Brasil”. Laura de Mello e SOUZA; Júnia F. FURTADO; Maria F. BICALHO (orgs.) O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 383 ���- Nuno Gonçalo MONTEIRO. “A sociedade local...”, p. 40. ���- Mônica da Silva RIBEIRO. “Razão de Estado na cultura política moderna: o império português, anos 172030”. In: Cultura política e leituras do passado, p. 131-154.

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qualquer tipo de autoridade reconhecida pelo rei”.16 Naquela conjuntura se fez sentir de maneira mais incisiva a atuação da Coroa no sentido de cercear a autonomia das Câmaras do Império. A partir dos finais do século XVII e durante o século seguinte, o poder monárquico passou a interferir cada vez mais diretamente nos conselhos municipais. Uma das primeiras medidas foi uma alteração nos procedimentos eleitorais das câmaras, que nas vilas principais passaram a ter seus oficiais designados pelas autoridades régias. Além desta intervenção, teriam aumentado o número de ouvidores, possibilitando uma prática correcional mais freqüente, que visava enquadrar justamente os conselhos municipais. Outra medida foi a criação do cargo de “juiz de fora”, um oficial letrado, com formação universitária e que passou a presidir as câmaras das vilas mais importantes, em substituição aos juízes ordinários. Todas estas medidas significavam essencialmente a mesma coisa: um aumento da interferência dos “poderes do centro” no poder local.17 Entender o funcionamento do poder local em uma pequena povoação ultramarina e periférica que nada tinha da riqueza ou importância política de cidades como Salvador, Olinda ou o Rio de Janeiro, nos parece fundamental para compreender a própria conquista e colonização portuguesa na região meridional da América, que garantiu a expansão do Império lusitano até as margens do Rio da Prata. Durante toda a primeira metade do século XVIII o território do atual Rio Grande do Sul não conheceu a presença da instituição típica da representação do poder local no Império português, qual seja, uma Câmara municipal. Desde a criação da vila de Laguna em 1714, todo o território meridional estava sujeito às “justiças” emanadas do pequeno burgo catarinense. Teoricamente, os moradores de Rio Grande – fortaleza militar e núcleo populacional fundado em 1737 - também deviam estar submetidos à jurisdição da Câmara lagunense. Todavia, as contendas entre os comandantes militares do Rio Grande e os oficiais de Laguna foram bastante comuns, o que leva a pensar que a criação de uma Câmara em Rio Grande tenha sido uma decorrência destes conflitos jurisdicionais, que envolviam impedimentos na “execução das justiças”.18 De fato, parece que houve alguma resistência à criação de ���- A. J. R. RUSSEL-WOOD. Art. cit. p. 217; Francisco BETHENCOURT. “As Câmaras e as Misericórdias”. In: Francisco BETHENCOURT; Kirti CHAUDHURI (dirs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Temas & Debates, 1998, vol. 3, p. 276. ���- Dauril ALDEN. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1968, p. 423-424; Maria F. BICALHO. Op. cit. p. 199-200. ���- Carta do Ouvidor da comarca de Paranaguá ao Conselho Ultramarino, 24.07.1745. Documentos Históricos, vol. 94, p. 123.

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uma vila no presídio sulino, já que a provisão régia datada de 17 de julho de 1747 determinava a imediata instalação de uma Câmara, o que somente aconteceu mais de três anos depois, em dezembro de 1751. Uma explicação para esta demora pode estar no peso político dos oponentes. Um adversário da criação da vila era ninguém menos do que o próprio Gomes Freire, governador do Rio de Janeiro. Respondendo a uma consulta do Conselho Ultramarino, ele procurou dissuadir a Coroa da pretensão, afirmando que “a maior parte de que se forma o presídio do Rio Grande de São Pedro são as tropas de sua guarnição que se tem povoado, mas os moradores paisanos vivem muitos nas estâncias ou sesmarias, em que se estabeleceram, que ser ou não ser vila aquele estabelecimento pouco aumenta o bem público e o serviço de V.M.”. Todavia aos conselheiros pareceu ser conveniente a criação da vila, devido à “grande distância em que o Rio Grande de São Pedro fica da vila de Laguna”. A primeira vila sul-riograndense somente foi instalada sob os auspícios do novo ouvidor da comarca de Santa Catarina, criada no final de 1749.19 A atuação da primeira Câmara estabelecida em Rio Grande sucedeu ao longo de pouco mais de uma década (1752-1763), até que a ocupação espanhola transferisse o poder local para Viamão. Temos pouca informação a respeito deste período inicial, especialmente devido ao fato de não terem sobrevivido as atas da Câmara em função da ocupação militar castelhana da vila em 1763. Se em Rio Grande o conselho ainda se reunia regularmente, com a ocupação espanhola, os oficiais foram obrigados a transferir-se, devido às contingências da guerra, para a freguesia de Viamão (criada pelo bispo do Rio de Janeiro em 1747), onde existia um pequeno arraial que passou a ser a sede do poder local no Continente do Rio Grande.20 Instalada em Viamão, percebe-se a emergência de uma forte defesa das prerrogativas da Câmara, o que levou a novos conflitos jurisdicionais, especialmente com os ouvidores da comarca, cuja sede ficava na ilha de Santa Catarina. Um dos casos mais graves aconteceu nos anos de 1767/1768, quando o então ouvidor Duarte de Almeida Sampaio teve a sua correição suspensa em função de uma articulação que envolveu a Câmara, o provedor da Fazenda e o governador da capitania. Revoltado com o fato, que tomou como uma afronta á sua jurisdição, o ouvidor escreveu uma longa carta ao vice-rei Conde de Azambuja, onde relatou os sucessos que tiveram ���- Márcia Eckert MIRANDA. Continente de São Pedro: administração pública no período colonial. Porto Alegre: CORAG, 2000, p. 55; Documentos Históricos, vol. 94, p. 130-131. ���- A conjuntura internacional que permitiu a ocupação militar espanhola no Rio Grande está relacionada às vicissitudes da Guerra dos Sete Anos (1756-1762), que levou ao retorno das hostilidades entre as Coroas ibéricas.

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como conseqüência a sua retirada do Continente do Rio Grande.21 Para tanto, historiou ao vice-rei uma sucessão de irregularidades, que tiveram início já em 1763, quando tentou pela primeira vez fazer correição na remota capitania meridional. Naquele ano, fora desaconselhado pelo governador Inácio Elói Madureira, que alegou que a região “era fronteira e existiam guerras entre o nosso Reino e o de Castela”. De fato, naquele mesmo ano a única vila existente seria ocupada militarmente pelos espanhóis, o que inviabilizou qualquer tentativa de fiscalização. Transferida a Câmara para a “Aldeia de Viamão”, notou o ouvidor que “continuaram aqueles juízes ordinários no exercício de seus ofícios e continuariam ainda hoje se os deixassem”. Conforme a denúncia, os oficiais camarários estavam mancomunados com o antigo escrivão da Câmara, Inácio Osório Vieira, que tinha sido nomeado em 1765, como provedor da Fazenda pelo governador José Custódio de Sá e Faria. Segundo o ouvidor, continuou “sempre o dito Inácio Osório sendo o cabeça de toda aquela parcialidade, fazendo com que dela, fossem sempre conservados os juizes, para eles os dirigir”. O mais grave eram as irregularidades nas quais o “bando” estava envolvido, pois era preciso “prover sobre as arrecadações dos bens dos ausentes e dos órfãos de que me fizeram várias queixas e registros, assim como sobre as mesmas Justiças, por eles terem perdido na invasão do Rio Grande os Livros, em que existiam os Provimentos das correições, tanto meus, como de meu antecessor”. Em setembro de 1767, o ouvidor Sampaio solicitava à Câmara “aposentadoria em sua chegada”, mas diante do seu afã investigativo, logo ele seria visto como persona non grata pelos poderosos locais. Segundo o magistrado, “se resolveu o dito Governador impedirme não só a referida Correição, mas todo o exercício da minha Jurisdição naqueles Continentes”, escrevendo à Câmara “ordenandolhe me não obedecesse”. Revoltado com a desobediência dos oficiais camarários e do governador, ele achou mais conveniente retirarse “instantaneamente” do Continente, certamente em função das ameaças que deve ter sofrido. Sem entender os motivos que teriam levado à sua suspensão pelo vice-rei, o ouvidor desabafou, dizendo que “persuado-me que nenhuma daquelas Representações, foram feitas pelo dito Governador com Zelo do Serviço de Deus, e de El Rei, só sim para comprazer com aquela parcialidade de que é Cabeça o dito Escrivão Ignácio Osório Vieira, [...] por não querer este, que ���- ANRJ. Fundo Vice-reinado, cx. 749, pct. 3. Carta do Ouvidor de Santa Catarina Duarte de Almeida Sampaio para o Vice-rei Conde de Azambuja. Desterro, s/d [1768].

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fossem vistos os seus procedimentos, e os dos seus serventuários, por ele determinados, naqueles tempos, e as faltas dos inventários tantos dos órfãos, como dos ausentes”. Por fim, informava ainda que “o mesmo Inácio Osório Vieira é devedor aos Órfãos, que tirou do Cofre no Rio Grande três mil cruzados, além dos juros; o Juiz dos Órfãos que ali elegeram, e daquela mesma parcialidade Domingos de Lima Veiga, deve aos mesmos Órfãos (...), mais de quatro mil cruzados”. Assim, justamente por tentar combater tais desvios, o ouvidor teve sua correição impedida, numa demonstração de força do poder local, ainda que em articulação com as autoridades régias. Antes de estranhar tais envolvimentos, deve ser lembrado que a construção de redes de relações pessoais sobre uma base local eram um dos principais recursos utilizados pelos representantes da Coroa para assegurar o funcionamento das estruturas formais da autoridade imperial.22 Outro conflito grave aconteceu no ano de 1772, quando os cidadãos expressaram ao governador interino Antônio Veiga de Andrade, através de uma representação, o seu desconforto com a situação militar do Rio Grande, ainda sob ocupação castelhana. Quando vice-rei Marquês do Lavradio ficou sabendo do teor da petição, chamou os oficiais de rebeldes e perturbadores da paz pública, acusando-os de crime de conspiração por estarem agindo em concerto, além de criticar a leniência do governador. Enfurecido, o vice-rei determinou que os cinco signatários da petição fossem enviados presos ao Rio de Janeiro para receberem uma exemplar punição. Mais tarde, Lavradio esfriou os ânimos e perdoou os “rebeldes”, determinando ao governador Veiga de Andrade que usasse de “toda vigilância possível” para evitar novas situações similares.23 Como decorrência desta rebeldia (entre outros fatores, tais como sua posição estratégica), em 1773 o vice-rei determinaria a transferência da Câmara de Viamão para Porto Alegre, que seria assim a nova capital. Com o translado definitivo do poder político local para a nova freguesia portuária, a Câmara ali se fixaria pelos próximos anos, até que no período joanino fossem criadas as novas vilas. Cabe lembrar que, na prática, a Câmara sediada no antigo Porto dos Casais tratava-se da única corporação municipal existente no Rio Grande de São Pedro, o que lhe conferia poderes muito amplos, com jurisdição sobre todo o território lusitano do Continente. ���- Z. MOUTOUKIAS. “Réseaux personnels et autorité coloniale: les négociants de Buenos Aires au XVIIIe siècle”. Annales ESC, junho/outubro, nº 4 e 5, 1992, pp. 889-915. ���- Dauril ALDEN. Op. cit. p. 426. Sobre este episódio, ver também Adriano COMISSOLI. Os homens bons e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 55-56.

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Para concluir, resta dizer que no início do século XIX, o sul da América portuguesa vivia uma situação insólita do ponto de vista da administração local, pois continuava existindo (até 1810) somente uma única vila na capitania do Rio Grande; no entanto, esta vila não era sede da Câmara, que permaneceu estabelecida em Porto Alegre, uma simples freguesia... Os governadores pediam solução para este estado de coisas, mas não eram atendidos: em 1791, Rafael Pinto Bandeira, ponderava ao ministro Martinho de Melo e Castro que, além de Rio Grande, “era bom [...] Porto Alegre ser uma vila e Rio Pardo, outra”. Anos depois, em 1803, o governador Paulo Gama escrevia ao Visconde de Anadia, propondo a criação de quatro novas vilas, proposta que seria atendida pela Coroa somente no final daquela década.24 Esta timidez da Coroa portuguesa na constituição de novos municípios no Continente do Rio Grande teve sua contrapartida eclesiástica na criação de diversas freguesias, tendo sido eretas dezesseis paróquias entre 1737 e 1779. Depois deste surto de povoamento, novas freguesias seriam criadas a partir de 1810, justamente no período joanino. Somente depois da chegada da família real ao Brasil é que a Metrópole “interiorizada” passou a prestar maior atenção às necessidades administrativas do Rio Grande de São Pedro. 25 Já no final de 1807 o Rio Grande de São Pedro seria elevado à categoria de capitania-geral, tendo sido nomeado Dom Diogo de Souza como primeiro governador e capitão-general. No período compreendido entre 1811 e 1822, mais cinco Câmaras foram constituídas: Rio Grande, Rio Pardo, Porto Alegre, Santo Antônio e Cachoeira. Na verdade, parece que houve mesmo uma certa resistência da Coroa em reforçar os poderes concelhios no Sul, numa região de fronteira ainda indefinida (o mesmo vale para a praça da Colônia do Sacramento, que jamais foi vila). Assim, a maioria das medidas tendentes a criar uma estrutura administrativa mais apropriada se deu no período joanino (1808-1821), quando passou a prevalecer uma nova orientação política, onde a fronteira meridional passaria a ter uma importância crescente para o Império luso-brasileiro e seus renovados intentos expansionistas na região platina.

���- AHU-RS, Cx. 3, doc. 252 e Cx. 7, doc. 487. ���- Maria Odila Leite da Silva DIAS. “A interiorização da metrópole”. In: IDEM. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005, p. 7-37.

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