Dos exilados aos ex-humanos – um passeio pelos abismos da desumanização. Antígona em Nova Iorque, de Janusz Głowacki, Os Emigrantes, de Sławomir Mrożek e Esperando Godot, de Samuel Beckett, em diálogo

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UFSC » Qorpus » Como é/Ensaios » Edição N. 21 » Dos exilados aos ex-humanos – um passeio pelos abismos da desumanização. “Antígona em Nova Iorque”, de Janusz Głowacki, “Os Emigrantes”, de Sławomir Mrożek e “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, em diálogo – Piotr Kilanowski

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Dos exilados aos ex-humanos – um passeio pelos abismos da desumanização. “Antígona em Nova Iorque”, de Janusz Głowacki, “Os Emigrantes”, de Sławomir Mrożek e “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, em diálogo – Piotr Kilanowski

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Dos exilados aos ex-humanos – um passeio pelos abismos da desumanização.

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Antígona em Nova Iorque , de Janusz Głowacki, Os Emigrantes , de Sławomir

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Mrożek e Esperando Godot, de Samuel Beckett, em diálogo .[1]

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Antígona a Nova York, de Janusz Glowacki

“… à procura de autor”/Entrevistas »

https://www.youtube.com/watch?v=bUyjj9lxIUs Vivemos em tempos estranhos. Tempos em que uma tragicomédia consegue ser mais trágica do que as tragédias clássicas, tempos em que a realidade consegue ser mais absurda do que o teatro do absurdo, aliás, hoje em dia, denominado “novo realismo”…

No ensaio que comparava os autores de teatro do absurdo da Europa Ocidental e Central, particularmente Mrożek[3] e Beckett, Martin Esslin, estudioso de teatro de origem húngara, que em seu revolucionário livro homônimo cunhou o termo “teatro do absurdo”, escreve:

“Enquanto no Ocidente os autores do teatro do absurdo aproveitavam em seus dramas a poética onírica, o teatro de Mrożek e de seus semelhantes na Europa Central (como Różewicz na Polônia, Havel e Klima na Tchecoslováquia, ou Orkeny na Hungria) abertamente rejeitou não apenas as bases do realismo socialista ou o realismo ‘épico’ de Brecht, mas também as convenções realistas do teatro de rua daqueles tempos. Utilizou em vez disso a alegoria satírica e desse modo se tornou, de fato, o ponto máximo do realismo.”[4]

Por mais que se tente perceber o teatro do absurdo das peças de Mrożek, dos anos 70,

cada vez mais no lugar do reductio ad absurdum, nele aparece uma nova qualidade, como já antecipado na citação de Esslin: o amargo realismo que satiriza as realidades, ideologias e políticas.

Em uma de suas peças mais conhecidas, Os emigrantes [5](Emigranci), de 1974, o tema existencial que dá continuidade à conversa iniciada por Vladimir e Estragão no drama do Beckett é revestido pela condição de excluídos vivenciada pelos dois emigrantes. Este revestimento discute, entre outros temas, a oposição entre intelectuais e trabalhadores na Polônia, nas figuras dos protagonistas AA e XX. O fato de serem condenados um ao outro e terem que aprender a conviver pode ser visto como uma profecia do fenômeno que iria, em futuro breve, resultar no movimento Solidariedade na Polônia e a consequente queda do comunismo. O movimento também uniu os operários e a intelligentsia , que, ao perceberem que sem a presença do outro grupo não teriam poder suficiente para provocar mudanças, esqueceram as diferenças e uniram suas forças. Por mais que a discussão das particularidades polonesas do drama seja fascinante e o torne intraduzível, por exemplo, para as realidades estadunidenses, em nível mais profundo a peça Os

Emigrantes apresenta a mesma reflexão sobre a condição humana iniciada por Beckett em Esperando Godot. Aliás, a sua estreia mundial no Théâtre d’Orsay, em 1974, contou com a direção de Roger Blin, o mesmo diretor que preparou, em 1952, a estreia mundial de

Esperando Godot, no Théâtre Babylon.

Na peça temos dois personagens, AA – ‘o sabichão’ e XX – ‘o grosseiro’, na denominação de Jan Błoński[6]. O estudioso caracteriza tais personagens como uma espécie de padrão usado frequentemente por Mrożek em suas peças. Um deles, pequeno intelectual, pretensamente exilado político, usa o outro, o camponês que emigrou em busca de melhorar sua situação material, como modelo para escrever um estudo sobre a escravidão do ser humano. Ao mesmo tempo ele é usado e abusado por XX como fonte de vantagens materiais, o que lhe permite poupar mais dinheiro. Enquanto AA vive tentando conscientizar apaixonadamente XX a respeito de sua escravidão, XX usufrui dele materialmente em cada oportunidade que se apresenta. Por um lado temos o contraste entre o primitivismo e a ignorância de XX e o idealismo e a erudição de AA. Por outro lado, XX apresenta a objetividade e a consistência, que contrastam com a falta de objetivos e a improdutividade de AA. Assim como nos países comunistas, os agressivos e improdutivos membros da intelligentsia vivem em conflito com os trabalhadores e camponeses gananciosos. Talvez a cena final da peça até capte essa visão das inquietações e divergências sociais e o exato momento quando o proletariado obrigou a intelligentsia a aceitar os valores burgueses, o que acabou resultando no movimento Solidariedade na Polônia. Mas, como dito anteriormente, a peça é mais do que polonesa. Sobre a sua universalidade, atesta o seu sucesso nos países do assim chamado Terceiro Mundo e na Rússia. Na verdade, o único elemento que se opõe à universalidade da peça é a inexistência dos valores da classe média – algo perfeitamente compreensível nos países do antigo bloco soviético e nos países da América Latina onde o hiato entre os poderosos e os desapoderados é enorme e a classe média não constitui uma força central simbólica e efetiva como nos países ocidentais.

O que acaba sendo mais interessante é o aproveitamento da condição dos emigrantes para uma reflexão mais profunda sobre a condição humana. E é nesse aspecto que Mrożek dá continuidade ao trabalho de Beckett. A metáfora universal do exilado, um ser impedido de integração com a sociedade onde vive, desenraizado, fora do seu lugar no mundo, perpassa toda a peça e é acentuada pela presença de um coro sui generis. Trata-se dos sons produzidos pelos outros habitantes do prédio de apartamentos, que continuamente chegam ao porão onde se alojam os protagonistas. É noite de Ano Novo e a cantoria, os gritos e o barulho dos canos de esgoto fornecem o único contato com a sociedade do país onde moram, além de suas fantasias sobre as mulheres ocidentais que apareciam nos outdoors e revistas. Podemos ver na peça alguns elementos autobiográficos de Mrożek. Primeiramente, o fato de ter saído de Borzęcin, uma aldeia perto de Cracóvia, em busca de melhores condições de vida e depois de Cracóvia para Paris, como intelectual dissidente. Por mais curioso que seja perceber a própria experiência do autor em ambos os personagens, mais intrigante ainda é o fato de que a maioria dos autores do teatro do absurdo partilhava da condição

de emigrante. Eram exilados de um modo ou de outro. A esse respeito Esslin fala: “[…] os

principais autores do teatro do absurdo eram emigrantes; pessoas que de algum modo foram privadas de raízes próprias e, dessa forma singular, sensibilizadas para a efemeridade da existência humana. Beckett era irlandês, Adamov vinha da Armênia, Ionesco da Romênia, todos os três viviam em Paris; Genet era um pária social no seu próprio país, Pinter, um filho de emigrantes judeus na Inglaterra e Albee – um homossexual na América que vivia o culto da virilidade.”[7] A essa lista poderíamos perfeitamente acrescentar o autor da segunda peça que iremos discutir aqui – Janusz Głowacki.

A condição de autor exilado permite então visualizar os principais problemas dos absurdistas de forma mais aguda: a impenetrabilidade do mundo, a solidão, o enigma da natureza humana. Os personagens de Mrożek ou Głowacki, revestidos com uma camada de realismo, às vezes até naturalista, e uma camada de sátira política, que é mais absurda que o teatro do absurdo, de fato, oferecem ao espectador uma reflexão profunda sobre a natureza da condição humana.

Enquanto na camada superficial de Os Emigrantes vemos AA tentando catequizar XX, zombando de suas limitações, avareza e ganância, e XX aproveitando-se dos cigarros, chá, conservas e açúcar de AA, na camada mais profunda, Mrożek reverte os papéis e interpõe a um doutrinário AA, um prático XX. Enquanto AA vê a si mesmo como um pesquisador e a XX como o objeto de sua pesquisa – um escravo perfeito, limitado intelectualmente – uma análise um pouco mais aprofundada o denuncia como um arrogante teórico que não conhece nem a realidade, nem a vida interna de seu “objeto de pesquisa”. O intelectual com a missão de humanizar o escravo transforma-se, então, nas palavras deste mesmo escravo, em um “padre da liberdade”. E o pretenso escravo demonstra toda a filosofia prática de um ser não-teórico: “Pensar sobre pensar? Ora, não sou tão burro assim ainda”. Os dois continuamente desmascaram-se um ao outro. “O padre da liberdade” transforma-se no escravo da teoria e o escravo do dinheiro, desde o início da peça, apresenta uma relação filosófica com a existência – as suas primeiras palavras na peça Sou/ Estou (Jezdem[8]) podem ser entendidas como o eco do Cogito ergo

sum cartesiano. Assim como os protagonistas de Beckett, os dois têm os seus Godots, que nunca chegarão – o tratado sobre o escravo perfeito, no caso de AA, ou a volta para casa com o bolso cheio de dinheiro, no caso de XX. Durante a peça, acontece a dolorosa conscientização de que estes ideais são inatingíveis. A avareza e a preocupação com a opinião alheia de XX nunca lhe permitirão voltar. A falta de praticidade e a excessiva teorização, que faz com que AA ignore não haver um escravo perfeito, nunca lhe permitirão escrever a obra de sua vida. Os dois, depois do desmascaramento mútuo que Gombrowicz, outra ilustre influência de Mrożek, talvez chamasse de distanciamento da forma – conscientização de como a mitologia social, na qual estão presos, lhes limita – continuam juntos, porém, separados, sonhando com pequenos valores burgueses da vida prática. O pretenso escravo prova a sua liberdade destruindo suas economias e tentando, em seguida, o suicídio – um gesto de liberdade extrema. A partir do dia seguinte voltará poupar o máximo. O pseudo-intelectual percebe em si anseios pela simplicidade e concretude dos valores da classe média, junto com a impossibilidade de concluir o seu trabalho. A partir do dia seguinte encontrará outra teoria para se tornar escravo dela. A única coisa que mudou foi a conscientização das máscaras sociais que usam e da estranheza e miséria da condição humana. No entanto, diferentemente dos protagonistas de Antígona em Nova Iorque (Antygona w Nowym Jorku)[9], de Janusz Głowacki[10], ainda há a perspectiva de retornarem ao seu cotidiano naquele porão, do qual, apesar das afirmações em contrário, não sairão, assim como não saem de seus lugares Estragão e Vladimir, de Beckett.

Na peça de Głowacki, o cenário, durante quase todo o enredo, é o banco em Tompkins Square Park, em Nova Iorque, a exceção ficando por conta de um momento de busca de um cadáver em caixões, no início do segundo ato. O porão ocupado pelos emigrantes de Mrożek agora é o banco ocupado pelos emigrantes sem-teto de Głowacki. Embora percebamos na peça o núcleo básico que reconta a experiência de Vladimir e Estragão e

de AA e XX, Głowacki, como é de seu feitio, junta a experiência contemporânea com os

topoi da cultura ocidental. Citamos como exemplos o mito de Cinderela representado num reformatório juvenil em Cinderelão (Kopciuch), a volta a Hamlet na peça Fortinbrás ficou

bêbado (Fortynbras się upił) ou a revisita a Tchecov em A quarta irmã (Czwarta siostra) . No caso da peça em questão, trata-se obviamente da retomada da tragédia clássica de Sófocles. Ao lado dos dois personagens, Pchełka (Pulguinha) e Sacha, que continuam o diálogo iniciado em Esperando Godot e prorrogado em Os Emigrantes, aparecem outros personagens: Anita, a Antígona do título, John (que não é John, mas isso não tem importância) e o policial James Murphy. Fora o policial, todos os personagens são moradores de rua, alojados no Tompkins Park, a algumas ruas de onde vivia em Nova Iorque o autor da peça.

No enredo repetem-se os elementos da tragédia grega: John, estranho companheiro de Anita, amanhece morto e é levado para ser enterrado numa espécie de vala comum. Anita mobiliza os dois moradores do parque para resgatarem o corpo de John, para que lhe possa dar um enterro decente. Os dois conseguem resgatar o corpo, mas não é o corpo de John. Isso não é importante para Anita, que lhe faz um enterro no parque no qual habitava junto com os outros personagens. Quando em seguida a polícia de Nova Iorque, no processo de gentrification, que por aqui poderia ser chamado de revitalização de áreas nobres da cidade, expulsa os moradores de rua de Tompkins Park, Anita, repetindo o gesto de Antígona, enforca-se no portão do parque.

Para que possamos prosseguir com a análise da peça, é preciso deter-se por um momento em sua versão clássica. Sabemos que a Antígona de Sófocles era uma jovem frágil e compassiva. Acompanhou o pai, Édipo, no exílio e condoeu-se de seu irmão Polinices, que jazia, por decreto de Creonte, insepulto fora da cidade de Tebas. Em seu ensaio[11] sobre a peça, Jan Kott, estudioso polonês de teatro, analisando a morte da princesa, leva-nos à percepção de que ela foi causada pela solidão e pelo ódio dos cidadãos de Tebas dirigido contra ela. Kott, por um lado, entende perfeitamente o que significa para alguém a falta do túmulo dos parentes, pois, entre outras pessoas, seu pai, judeu, foi executado pelos alemães durante a segunda guerra e a sua sepultura, como de quase toda a nação judaica na Polônia, permanece desconhecida. Por outro lado, diz que, além de os ritos fúnebres pertencerem à família e não ao Estado, eles constituem o mais antigo vestígio conhecido de civilização, portanto de humanidade. Utilizando a Antígona para provar o seu ponto, Kott cita uma das últimas falas da protagonista na peça, quando é levada para o seu destino final em meio a xingamentos e o ódio da multidão:

[...]sem ser sequer chorada por amigos, e condenada por que leis eu vou para esse cárcere todo de pedras que será meu insólito sepulcro! Como serei desventurada ali, nem pertencendo aos vivos nem aos mortos![12]

Kott ressalta além de sua solidão também a sua condição de vítima, dizendo que as vítimas despertam o ódio, o ódio ao qual é difícil sobreviver. Com essa interpretação contemporânea, acrescentada das amargas experiências do século XX, que viveu o ódio às vítimas e deixou milhões sem sepultura, compreendemos que a releitura do mito não poderia deixar de trazer esses assuntos à tona.

O conflito entre a individualidade e o Estado, que configura um dos temas da peça clássica, também é um dos eixos centrais da construção da peça de Głowacki. O Estado, representado aqui na figura do policial James Murphy, que à guisa do coro antigo expressa as ideias da polis e aparece cinco vezes durante a peça para expor o ponto de vista do coração da democracia mundial a respeito dos sem-teto. Poderíamos dizer que ele é um representante moderno de Creonte, se não fosse pela ironia implícita, de que, como elementos pertencentes à sociedade democrática, os sem-teto também seriam parte

deste Creonte coletivo. As individualidades, o outro polo do conflito, são os personagens moradores do parque, que embora pertencentes à sociedade, são “os menos iguais”, se usarmos da idéia de Orwell em Animal Farm[13]. E embora esta idéia seja cuidadosamente camuflada pelas tentativas de political correctness, volta e meia ela transparece nas cinco falas do policial, endereçadas diretamente ao público.

“Boa noite. Me chamo James Murphy, sargento James Murpy. Queria logo dizer que não tenho nada contra os sem-teto. Eles são pessoas iguais a nós, só que não têm casas. Pessoalmente, encontrei muitos sem-teto com muita cultura, freqüentemente com nível de instrução superior, e posso afirmar, com toda a responsabilidade, que eles são bons americanos, tão bons como eu e vocês. Para que não haja falação desnecessária, falo logo que isto se refere não apenas aos americanos. É igual com os representantes de outras minorias, que procurando pela liberdade, ou querendo viver melhor e ganhar mais, estabeleceram-se nas rodoviárias, ruas e parques de Nova Iorque. Eles também amam a sua segunda mãe, a América, e são gratos por tudo o que ela fez por eles.[…] E nem que seja por isso eu os respeito. E os outros policiais os respeitam. Quer dizer, a enorme maioria dos policiais…Maioria de qualquer jeito…Um número elevado de policiais os respeita. Eu não digo que entre nós e os sem-teto não haja desentendimentos. Não posso dizer que não, pois há. Porque essas pessoas têm o sentido do tempo totalmente doido. Nós pensamos no que vai acontecer daqui a dez anos, não é? E eles, o que vai acontecer daqui a uma hora. Nós, por exemplo, dormimos de noite. Porque é normal, não é verdade? E eles dormem de dia, porque é mais seguro. E depois, mesmo quando não piram, as suas cabeças funcionam mal.”[14]

Curiosamente, o personagem do policial, por um lado, defende o mito da América, berço de todas as oportunidades, e, por outro, o autor o faz desempenhar esse papel de um modo que faz com que a platéia ria, por conta do sarcasmo mordaz. E este mito, como os vários mitos americanos, é desmascarado continuamente ao longo da peça. A própria presença dos sem-teto é uma dúvida a respeito do mito da terra onde cada um pode e deve ser rico e feliz. Assim como outros mitos: o de self-made man , o do sucesso do engraxate, o da Cinderela, o da Barbie, o do american-way-of-life, o mito da democracia, do país de iguais, bravos e livres não escapam ao olhar irônico de Głowacki. Pchełka, por exemplo, ao ser confrontado no final do primeiro ato com a história de Judas, que devolveu as moedas exclama: “Sabe, eu penso, que se este Judas realmente devolveu o

dinheiro, então ele era um homem frouxo. Não conseguiria ir longe na Manhattan de hoje[15].” Até o próprio James Murphy não tem dúvidas sobre a realidade tão diferente do mito, afirmando em sua fala que encerra a peça:

“mais uma coisa que pode interessar aos Senhores. Segundo os dados mais recentes o

número dos homles (sic!) em Nova Iorque está aumentando. E no final deste ano, para cada trezentos nova-iorquinos teremos um sem-teto. Isso significa que hoje no teatro está presente no mínimo uma pessoa que em breve estará morando na rua. E essa pessoa sabe bem de quem estou falando. [Com sorriso:] Desejo aos Senhores muito boa noite. [Joga o toca-fitas numa lixeira de ferro. O toca-fitas de repente volta a funcionar. Frank Sinatra canta "Strangers in the Night"[16].]”

A música de Sinatra, anunciada na didascália, que sai a seu bel prazer do toca fitas estragado, embala ironicamente a peça do início ao fim. Mais uma ironia em face do mito americano. Outro elemento que aparece nessa fala e é usado ao longo da peça é a palavra homles. Serve para definir todos os personagens, que por sua condição pertencem a uma espécie humana diferente. Os homles não são “pessoas”, seria mais certeiro, pela imagem transmitida pela peça chamá-los de “ex-pessoas”. Pchełka, cujo apelido pode ser traduzido como Pulguinha, pequeno canalha, mentiroso, malandro, ladrão de pequeno porte, já faz tempo que perdeu toda a dignidade e o nome de gente. Inseto que se alimenta do sangue dos outros e fica irritando constantemente – Pchełka não poderia ter melhor apelido. Vemos nele ecos de Estragão e de XX de Os Emigrantes. Assim como o

judeu russo Sacha, seria o que representa o mesmo papel que Vladimir ou AA no par que se odeia e não consegue se separar, agarrados espasticamente um ao outro. Os dois sentem asco um do outro, os dois esperam os seus Godots, seja isso a namorada, Jola, ou o visto. Godots que eles bem sabem que nunca chegarão. E por isso escarnecem deles. Seu lugar no mundo é o banco de Tompkins Square Park. Não têm mais para onde ir, não têm para onde voltar. Sacha um dia foi pintor, mas depois que Brezhnev cuspiu no seu quadro, ele emigrou para os Estados Unidos. Já em Nova Iorque sua mulher o trocou por um professor cujo livro, um bestseller que provava que Shakespeare era uma mulher, ela digitava. Sacha tentou pular da janela, mas a tentativa de suicídio não deu certo. Os restos da luta de Sacha por sua dignidade, ele que era rejeitado por todos, irrompem em suas fantasias, nas quais ele aparece com Shakespeare, que dá uma sova em público no professor, agora casado com sua ex-mulher. As relações entre Sacha e Pchełka são bem parecidas com as de AA e XX – Pchełka tenta abusar de Sacha materialmente e Sacha encontra nele alguém que, aparentemente, caiu mais baixo que ele próprio.

Quanto à questão da dignidade, suponho que esta deva começar pela manutenção da própria individualidade e do respeito por si mesmo. Tzvetan Todorov a define como “a capacidade do indivíduo de permanecer um sujeito dotado de vontade: esse simples fato o mantém como membro da espécie humana”[17]. As situações da vida empurram as pessoas para as margens da sociedade e as desumanizam. Pchełka perdeu o seu nome, Sacha quase tudo, afora o nome, mas os dois tentam manter as fantasias que os unem com os seres humanos comuns. Não é diferente com Anita, que fantasia a sua relação com John. John enxergou nela o ser humano e a defendeu de um abuso da polícia, tendo sido preso por isso. Quando anos depois reapareceu no parque, estava totalmente diferente, mas Anita o reconheceu como John, embora ele não a reconhecesse e passasse anos sem falar uma palavra. Quando, por fim, ressurge sob a forma de um cadáver que não é o seu, é prontamente reconhecido por Anita como sendo John e procedem-se as exéquias. Se, por um lado, John é um João-Ninguém, homem tão anônimo, que a única coisa que lhe sobrou de humano foi o corpo e o afeto de Anita, que reconhece sua humanidade, por outro, Anita claramente fantasia o John ideal. Os personagens exhumanos, privados da dignidade e individualidade só têm uma maneira de tentar resgatar a si mesmos – através do olhar e do amor do outro. É o que acontece entre Sacha e Anita. De repente, na medida em que conseguem enxergar no outro um ser humano, ganham nova vitalidade, começam a planejar a volta à sociedade, por um momento voltam a ser seres humanos. Infelizmente, enquanto Sacha jaz intoxicado com a bebida oferecida pelo invejoso Pchełka, Anita é estuprada e Sacha, totalmente paralisado, não consegue repetir o gesto de John de tentar salvar sua dignidade de mulher. O episódio acaba empurrando os dois ainda mais para o fundo do abismo da desumanização. Ela, tratada como objeto e ele, incapaz de defender o afeto, vítima do vício.

Dignidade é um dos temas-chave nesse drama. Anita tenta defender a dignidade de John, o direito ao túmulo individual, quer tirá-lo da inexistência para onde o empurraria a vala comum. Ele foi o único que defendeu a dignidade dela. Repete então o gesto de Antígona, de dar um túmulo, gesto essencialmente humanizante, como observou Jan Kott na análise da peça citada acima. Gesto de amor, de família, de cuidado, gesto de ser humano, que dignifica a ela mesma, a John e a Sacha, que participa da cerimônia fúnebre.

Nas situações extremas, e essa, como nos mostra Głowacki, é uma situação extrema, o ser humano acaba percebendo valores de dignidade e de gestos humanos. Sobre o sepultamento nas situações extremas no lagier, campo de concentração e trabalho forçado russo, escrevia assim Gustaw Herling-Grudziński, um de seus prisioneiros:

A consciência de que ninguém nunca saberá sobre a sua morte e sobre o lugar de sua sepultura era para os prisioneiros uma das piores torturas psíquicas. É possível que alguém não seja religioso, não acredite em vida após a morte, mas é difícil concordar com a ideia de que, de uma vez por todas, seja apagado o único vestígio material que prorroga a existência humana e lhe confere nítida durabilidade na memória dos homens.(…) O campo soviético privou milhões de suas vítimas de um único privilégio que é dado a cada morte – o de divulgação – e de um único desejo que inconscientemente sente cada ser

humano – o da subsistência na memória dos outros.[18]

Pode parecer exagerado comparar a situação dos sem-teto com a do campo de concentração, mas o próprio autor nos dá as pistas que permitem chegar a essa comparação. Durante um dos diálogos de Pchełka com Sacha aparece a imagem da “solução final” na questão dos sem-teto[19], que relembra a linguagem eufemística do Terceiro Reich com seu Endlösung der Judenfrage (solução final da questão dos judeus).

E a solução final do problema dos sem-teto acontece. A polícia os retira do parque à força e fecha o parque. Num gesto de último protesto, na última expressão da dignidade humana, Anita se enforca no portão do parque. Se não pode estar em seu lugar, marcado com o simbólico túmulo de seu amado (pois o corpo não era de John), a única escolha que lhe resta, o último ato de vontade que afirma a dignidade violada por uma série de abusos é o suicídio, para simbolicamente permanecer para sempre no parque.

Assim termina a peça. Sem katharsis, a não ser que limpar o parque dos sem-teto seja uma espécie de katharsis irônica do drama, com o suicídio como o último gesto realmente humano, com os espectadores embalados pela música de Sinatra, Strangers in the night, cuja letra ganha um sentido inesperado nesse contexto.

Se os personagens de Beckett sofriam com a perda de sentido, privados da dimensão metafísica e os de Mrożek eram alienados da sociedade em que viviam, destituídos de pátria, de ilusões e de liberdade, os protagonistas de Głowacki são despojados até dos restos de sua dignidade e humanidade.

Pois vivemos em tempos estranhos. Os tempos em que uma tragicomédia consegue ser mais trágica que as tragédias clássicas, tempos em que a realidade consegue ser mais absurda do que teatro do absurdo, aliás, hoje em dia, denominado de “novo realismo”…

[1]O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. [2]Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC, tradutor. O autor agradece a revisão deste texto a Eneida Favre. [3] Sławomir Mrożek (1930-2013) foi um dramaturgo, prosador e desenhista polonês, famoso por peças como: Policja (Polícia) (1958), Tango (1964), Emigranci (Os emigrantes) (1974), Ambasador (O embaixador) (1982). Entre os anos 1963-1996 viveu no exílio. Foi, ao lado de Tadeusz Różewicz, Witold Gombrowicz e Janusz Głowacki, um dos mais mundialmente conhecidos autores de peças teatrais poloneses. [4] Esslin Martin Mrożek, Beckett i teatr absurdu (Mrożek, Beckett e o teatro do absurdo) in: NaGłos, numero 3, editado em Cracóvia, em maio de 1991. P. 211. Tradução minha. [5] Por mais que exista a versão em português (Os Emigrantes, tradução de J. Lourenço, Lisboa: APTA 1978) ela é dificilmente encontrada. As versões em francês (Les Emigrés, tradução de Gabriel Mérétik, de 1974, reeditada em Théâtre 3, Œuvres complètes VI, Montricher (Suiça): Editions Noir sur Blanc 1996), em espanhol (Los Emigrados, tradução de David Psalmon, Edyta Rzewuska, México: Ediciones Teatro Sin Paredes, 2009) ou em alemão (Emigranten und andere Stücke. Stücke 1971-1975. Zürich: Diogenes 1997) podem ser usadas para se conhecer a obra. [6] Błoński, Jan Wszystkie sztuki Sławomira Mrożka. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 2002. O autor discute a tipologia dos personagens no segundo capítulo (p. 41-86), caso particular da peça em questão é tratado a partir da página 72. [7] Esslin 1991, p. 214 [8] A palavra “jestem” do polonês poder ser traduzida como sou ou estou em português.

Na peça é pronunciada erradamente por XX, permitindo a AA uma consequente correção repreensiva, sem enxergar seu conteúdo existencial, após ser repetida duas vezes por XX, depois de um momento sentado à mesa refletindo. [9] Traduções da peça: para o inglês (Antigone in New York, tradução de Janusz Glowacki, Joan Torres. New York: S. French, cop. 1997.) e o francês (Antigone à New York, tradução de Olivier Cohen, Urszula Mikos. Paris: Éd. Théâtrales; [Montpellier]: Maison Antoine Vitez, 2005.). Embora exista tradução para o português, de António Henrique Conde, usada nas apresentações do Bruxa Teatro, em Évora, no ano de 2010, não obtivemos informação sobre a sua eventual publicação. [10] Janusz Głowacki (1938- ) dramaturgo, prosador, ensaísta e roteirista polonês. Viveu no exílio desde 1981. Presentemente mora em Nova Iorque. Entre suas peças mais conhecidas internacionalmente estão Kopciuch (Cinderelão) (1979), Polowanie na

karaluchy (A caça às baratas), (1986) e Antygona w Nowym Jorku (Antígona em Nova Iorque), (1992). [11] Kott, Jan, Dlaczego zabiła się Antygona. Tygodnik Powszechny 1992/7. [12] Sófocles, A trilogia tebana: Édipo rei, Édipo em Colono, Antígona. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora 1989, p. 232. [13] Trata-se, claramente, da citação da proclamação dos porcos “all animals are equal, but some animals are more equal than others”. [14] Głowacki, Janusz 5 ½. Warszawa: Świat Książki, 2007, p. 30. Tradução minha. [15] idem, p. 66. [16] idem, p.112 [17] Todorov, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas: Papirus, 1995, p. 25. [18] Herling – Grudziński Gustaw, Inny Świat (Um outro mundo). Warszawa: Czytelnik, 1989. Pp. 198-199, tradução minha. [19] Głowacki, 2007, p.75.

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