Dos Filmes dos Pioneiros aos \"Realizadores da Poeira\"

June 1, 2017 | Autor: Tatiana Levin | Categoria: African cinema, Periferia, Documentario cinematografico
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Dos filmes pioneiros aos “realizadores da poeira”: que cinema angolano? Em fins de 2010 demos início a um projeto de um filme documentário a retratar a história do cinema angolano 1 . Colhemos materiais antes de irmos a campo fazer entrevistas. Descobrimos poucas fontes de informação escrita, dentre elas matérias de jornal e um pequeno livro publicado pelo jornalista José Mena Abrantes, ele próprio um colecionador de materiais raros sobre o cinema de seu país. Era visível mesmo em meio à escassez de informação que a história do cinema angolano passava por períodos de produção diferenciados, nunca tendo se constituído como uma cinematografia de relevo em nível mundial. Em todos os períodos houve o sonho de se fazer cinema, mas com focos diferenciados no cinema dos pioneiros, na tentativa da retomada ao longo dos anos 2000 e no cinema feito hoje pela periferia e por alguns poucos realizadores novos e veteranos de fora dela. Não há no cinema angolano contemporâneo um movimento institucionalizado capaz de dar fôlego a uma produção consistente. O cinema que se faz em Angola hoje surge da iniciativa individual de realizadores que seguem vertentes diferenciadas. Alguns poucos se formaram cineastas fora de Angola, ao não encontrar condições para profissionalizar-se e fazer cinema em seu próprio país. Estes conhecem a história cinematográfica angolana, produzem um cinema de qualidade internacional, mas há o outro lado que se faz ouvir cada vez mais e que aparentemente não tem conexão com o cinema dos pioneiros. Angola vive um momento de resistência em sua periferia com novas vozes que fazem vídeo conduzidos pelo sonho de serem reconhecidos como cineastas, de protagonizarem o seu próprio discurso. Esse cinema angolano de periferia ganha outro nome na boca de seus membros que se chamam de “realizadores da poeira” ou “realizadores do gueto”. Alegam ter vindo do nada, da poeira mesmo. São jovens que falam da sua origem na pobreza e de não terem tido dinheiro ou incentivo para estudar como fazer cinema. Filmam muito de forma amadora e independente. Pegam na câmera, produzem, realizam, exibem e distribuem seus filmes a criar de forma caseira todo um processo industrial. Quando conseguem alugar alguma sala de cinema para exibir o filme, têm por vezes filas a dar voltas. No



lançamento dos filmes, autografam capas de DVDs comprados pelo público. Miram-se no cinema americano, sonham com uma “Angollywood”. Se o primeiro cinema foi feito por intelectuais que reconheciam nele a missão de fazer chegar ao povo a ideia de uma nação, o novo cinema nascido nas periferias é feito de jovens agarrados à vontade bancada pelos seus bolsos, com longas-metragens de orçamentos diminutos, alimentados pelo salário do mês e pela sustentação de um ciclo artesanal feito de exibições em cinemas alugados e DVDs vendidos na feira aos fins de semana. Esses realizadores pensam no seu cinema angolano feito em vídeo como a próxima nova onda africana a seguir o fenômeno nigeriano, conhecido como Nollywood. Esquecem-se que a Nigéria é um dos países mais populosos do mundo e portanto capaz de ter um público interno a sustentar o movimento audiovisual nacional. Ainda que a realidade angolana seja outra, os realizadores da poeira seguem em frente acreditando nas conquistas que alcançaram até agora ao terem despertado a atenção das autoridades, da imprensa e do público angolanos. Cinema da periferia, do gueto, da poeira (...) Quem movimenta o cinema angolano atualmente somos todos filhos de pobres. Pobres entre aspas, não somos os miseráveis, mas somos pessoas que na sociedade, no mundo econômico e político não temos som de voz que possam nos acudir, somos pessoas que viemos de baixo. (Manuel Narciso “Tonton”, 2011)

Essa fala do realizador Tonton que se define como membro de um cinema periférico feito em Angola atesta uma reivindicação em torno de uma autorrepresentação, que se nos pioneiros se tratava de uma questão de identidade nacional, pois o que vinha antes era o cinema do colonizador, agora traz a componente de uma identidade de periferia que passa por uma busca de reconhecimento social. O cinema de periferia é em primeiro lugar um fenômeno global2, do qual faz parte a disputa por uma “ampliação da participação da periferia no mercado do audiovisual como um todo” a partir de uma “necessidade de visibilidade pública” (ZANETTI, 2008). Daniela Zanetti aponta no próprio conceito de periferia urbana uma dimensão simbólica além da dimensão geográfica e social que o caracterizam e que visa abranger o tipo de representação



construída na esfera pública, no espaço midiático. A luta por visibilidade nesse espaço tenta garantir a produção de discursos e representações mais diversificados, onde atores sociais antes marginalizados possam falar em nome de si. ‘Quando vocês vendem os vossos DVDs dos vossos filmes no Parque da Independência ou em qualquer sítio, quais são as pessoas que vão lá comprar os vossos filmes, que têm aturado lá aquela confusão toda, aquela enchente de pessoas?’ Eu disse: ‘São pessoas de nível baixo também’. (…) ‘Vocês já viram alguma pessoa de nível alto a ir lá?’. Disse: ‘Não, nunca vi. Por acaso nas minhas vendas não cheguei de ver’. Essa pessoa disse-me então: ‘Mawete, faça filme para essa gente porque essa gente é a pessoa que te apoia. São as pessoas que vão suportar o sol a querer ver exatamente qual que é o trabalho, então faça filme para essa gente porque essa gente é que consegue falar a mesma língua contigo’. (Mawete Paciência, 2011)

Mawete Paciência, outro realizador da poeira, destaca na sua fala a importância dos seus filmes para um determinado público, identificado com o universo comum representado neles. Essa aceitação dentro de um mesmo meio social, num esquema alternativo de acesso ao produto, diz respeito ao fator destacado por Zanetti de que essas são autorrepresentações que ajudam a construir sentidos coletivamente. Esses sentidos que podem ser construídos a partir de uma socialização nos espaços das comunidades, tornam-se agora sentidos mediados por meios de comunicação. E se há uma conquista de espaço que significa ganho em termos de diversidade de circulação de discursos produzidos por diferentes atores sociais, existe uma reflexão em curso em meios de comunicação como a televisão e a imprensa escrita angolanas a debater a qualidade dessa produção, quando são veiculadas diferentes opiniões vindas daqueles que não fazem parte da periferia. São falas provenientes de um lado reconhecido como de dentro das instituições que tratam do audiovisual angolano. Essas falas dão conta de que é preciso perceber como as especificidades estéticas e narrativas da linguagem audiovisual têm sido acessadas nesses filmes. Ainda que exista por parte dos realizadores da poeira uma defesa do material audiovisual como uma forma de representar a realidade, vale questionar que tipo de representação eles têm feito de si, como ela revela de fato uma realidade nacional e não apenas reproduz esteticamente um modelo estrangeiro. E ainda, se reforça ou contrasta com visões estereotipadas produzidas por agentes externos à comunidade, vindas de outras esferas midiáticas.



Como membro do cinema angolano dos pioneiros, António Ole contemporiza a qualidade desse cinema de periferia ao reconhecer as diferentes oportunidades que sua geração teve de fazer cinema e portanto a gerar outro tipo de produção. O cinema não é só por a câmera em cima do tripé e filmar. É toda uma estrutura, é o que se quer da fotografia e qual é a imagem final que se quer transmitir. Há muitos ramos do conhecimento, da história, da sociologia, de toda uma série de elementos que são absolutamente fulcrais para a delineação de um projeto audiovisual. Isso exige de fato estudo e trabalho. Não me parece que se possa improvisar assim de repente, não é? (…) As pessoas da minha geração, se calhar, tiveram outras possibilidades de acesso a certo tipo de leituras ou a outras cinematografias que de fato nos ajudaram muito a caminharmos com os nossos próprios pés. E mas, dava-me a impressão que o fator escola é fundamental. E parece-me que isso é de fato o próximo passo a fazer, não é? (António Ole, 2010)

Sobre a ausência de formação em escolas tradicionais de cinema, há que se lembrar que alguns desses jovens tiveram seu primeiro contato com o audiovisual trabalhando na televisão. Ainda assim, demandam uma atenção do estado para a criação de lugares de formação especializados. Contudo, como ressaltado por Ole, uma formação para a composição de um produto audiovisual lida com outras complexidades. O cinema dos pioneiros foi feito por intelectuais que já tinham uma formação cultural ampla e que foram cinéfilos antes de serem cineastas. O contexto político de luta pela independência era também um fator predominante. Nós tínhamos cedo uma revolução, era importantíssimo corrermos com o colono. Estávamos em guerra de norte à sul e conseguimos vencer as batalhas todas. Claro que uma ideologia muito forte fez levar os primeiros intelectuais. É óbvio que depois de um tempo de colonização só os intelectuais é que tinham acesso a qualquer coisa que pudesse se parecer com uma expressão cinematográfica. Não era o povo coitadito, que tinha acabado de chegar à cidade, e que ainda nem sabia bem o que que era um elevador. Como é que ia saber o que que é uma máquina de filmar, uma película, um boom, etc? Obviamente que não. Passaram-se anos. O acesso à tecnologia, à TV, etc, fez com que isto modulasse algumas mentes. A maior parte dos sobreviventes são homens que já mexeram em câmeras, são homens que vêm de um mundo audiovisual, recente sim, mas do mundo audiovisual. Portanto, não é só porque eu tenho uma mini Sony HD e que faço duas filmagens e tenho um filme. Não. É gente que percebe algo da linguagem e que só pode, desde que eles queiram e que tenham a disponibilidade e a humildade suficiente, podem aprender e fazer melhor. (Miguel Hurst, 2011)



É com base num sentimento de exclusão pautado na falta de oportunidades mais arrojadas de formação que esses jovens angolanos da periferia sentem-se livres para fazer o seu cinema, rebatendo qualquer crítica sobre a falta de qualidade ou excesso de violência e de pornografia nos filmes. Nascidos numa Angola independente, esses jovens do gueto cresceram cercados de armas em seu cotidiano de modo que a bandeira contra a violência nos filmes lhes parece hipocrisia. E hoje quando a gente faz os filmes, querem vir nos dizer: ‘Vocês estão a fazer filmes violentos. Os filmes que vocês fazem entram muitas armas’. Quem não conhece arma neste país? Todos nós conhecemos, de dois em dois metros a andar nesta cidade nós vimos armas. (Mawete Paciência, 2011)

Mawete relata um estado atual das coisas que permeia toda a história de libertação e afirmação de identidade angolanas. As imagens contidas no cinema dos primeiros anos refletiram a própria luta do país, que mesmo após a independência continuou em guerra civil. Essa fala portanto sobre a presença das armas no imaginário dos novos cineastas deriva desse pertencimento a essa sociedade historicamente constituída em meio à luta armada. Desde o primeiro momento onde o cinema foi instituído como um lugar de fala dos angolanos, houve a luta como tema. Eu quando tinha cinco anos em Angola, eu via um programa chamado Opção3. E eu sempre fui aquela criança que perguntava ao pai: ‘Pai, aquele senhor está a fazer o que com as armas?’. ‘É o chamado cinema militar’. E uma coisa eu garanto, todos aqueles técnicos que estavam no cinema militar, ninguém tinha curso de cinema militar e o que apresentavam? Armas. Eu com cinco, seis anos conseguia ver simulações, militares, ex-FAPLA 4, com armas. Era só uma simulação para mostrar no povo e algumas imagens do Agostinho Neto, mas com arma de fogo. Quer dizer que em Angola arma não é uma coisa que nos mancha. Nos caracteriza muitas das vezes. (Manuel Narciso “Tonton”, 2011)

A ideia de fazer o documentário sobre o cinema angolano havia surgido justamente por causa de um acontecimento que ganhou atenção na imprensa mundial, envolvendo esses novos realizadores da periferia num episódio de violência com armas de fogo. Em 2007, dois atores foram alvejados até a morte por policiais num bairro periférico ao serem confundidos com assaltantes de verdade, quando atuavam numa cena de assalto para um filme. Era o primeiro filme de Miguel Correia Augusto, o “Papi”, realizador não reconhecido como alguém de dentro pelos realizadores da poeira, mas

visto pelos profissionais atuantes no campo do cinema como alguém do âmbito desse cinema amador. A ficção que retratava a violência no cotidiano, presente nas armas em punho, transformou-se em realidade com o assassinato de membros da produção. O filme chegou a ser exibido com seu roteiro original até a cena do incidente, seguida da filmagem posterior documental dos corpos dos atores mortos rumo ao enterro. Papi pensou em desistir da realização cinematográfica, mas embalado pelo sonho de Angollywood filmou seu segundo e terceiro filmes. A filmar um documentário sobre o cinema angolano, outsiders entram na periferia Manuel e Henrique Narciso são dois irmãos realizadores desse cinema angolano periférico. Conhecidos mais pelos apelidos do que pelos nomes de batismo, autorreferemse respectivamente como Tonton e Dito mesmo na grande mídia. Dito é o realizador do grupo que ganhou maior projeção ao fazer os filmes Assaltos em Luanda (2007) e Assaltos em Luanda 2 (2008). Sabíamos que era fundamental entrevistá-lo, mas foi antes por Tonton que obtivemos as primeiras informações sobre os realizadores da poeira dadas por eles mesmos. Conversamos informalmente com ele numa tarde quente de fevereiro de 2011, já que Dito não apareceu apesar de ter marcado conosco uma entrevista em seu estúdio. Dito é muito procurado, esclareceu Tonton, e por isso some vez por outra desligando o celular e não cumprindo com o combinado. Um segundo encontro com Tonton aconteceu no dia seguinte em diferente locação, no estúdio de Mawete, outro realizador dessa nova onda angolana. Se Tonton, negro bonito de cabelos trançados com porte atlético de ex-jogador de basquete, havia nos recebido desde o primeiro momento com simpatia, o olhar que veio de Mawete foi de desconfiança. Nós éramos o outro, o outsider, e tínhamos que conquistar terreno para colher um depoimento livre das defesas arraigadas na fala do grupo. As perguntas feitas por nós tinham que ser reformuladas por vezes quando geravam a tal da desconfiança. Estávamos atentos ao mínimo sinal, prontos para reenquadrar nossas falas ou mudar de tom. Esse encontro filmado com Tonton e Mawete foi previsto como material a constar no documentário sobre a história do cinema angolano. Ao buscar esses realizadores saídos do gueto, queríamos entender o fenômeno de cinema independente considerado pela voz instituída do campo do cinema angolano



como amador. O que estava em questão para nós não era a qualidade dos filmes e sim o fenômeno da busca pela autorrepresentação com o audiovisual como ferramenta. Não pudemos entrar no estúdio de Dito e Tonton no primeiro dia porque estava trancado, mas já na entrada era possível perceber estar no gueto por termos percorrido ruas de terra que contrastam com os chãos asfaltados das principais vias de Luanda. O estúdio ficava camuflado em meios às pequenas casas com telhas de zinco. Tivemos que seguir o carro de Tonton para encontrarmos o local de trabalho dos rapazes e de moradia para Tonton. O terreno onde ficam o estúdio, a casa de Tonton e de outras famílias, tem a entrada ocupada por zungueiras, vendedoras ambulantes apertadas no pequeno espaço de terra batida vendendo verduras, legumes, no seu comércio informal, tão presente em Luanda. No dia seguinte o esquema era o mesmo, seguir Tonton em seu carro para achar o estúdio de Mawete localizado numa rua de terra batida. A surpresa dessa vez foi entrar pela porta da casa simples e encontrar um estúdio com três ilhas bem equipadas, refrigeradas, movimentadas por clientes em pleno sábado à tarde. Havia uma grande tela de plasma passando seriado americano na recepção de paredes coloridas, com cadeiras para acomodar os clientes em espera e uma grua deixada no canto. Mawete perguntounos se nos importávamos de sermos filmados com sua câmera, tomando conta da situação de certa maneira, o que se repetiu ao irmos escolher o local da entrevista, quando nos disseram como colocar a câmera e retratar o ambiente fazendo o clássico enquadramento com os dedos a reproduzir o frame. Perguntei quem era o dono do estúdio e soube que era uma associação com gente de áudio, que trabalhavam muito com músicos e que tinham editado todos os DVDs de Dog Murras, nome angolano do Kuduro, ritmo nascido nos mussekes. Nas telas dos monitores dentro das ilhas, estava alguma cena do blockbuster americano Avatar (James Cameron, 2009). Um quadro com as Destiny’s Child ficava na parede da ilha que selecionamos para gravar nossa entrevista, dessa vez seguindo sem o contributo dos realizadores da poeira, já confiantes nas nossas escolhas e dinâmica profissional. Tivemos curiosidade em saber quando e como começou essa onda de filmes do gueto. Começou de fato para alguns novos realizadores num Festival do Minuto de cinema amador promovido pela Aliança Francesa em Luanda no ano de 2004. O vencedor da primeira edição foi o próprio Dito, tendo seu irmão como assistente,



ganhando como prêmio uma oficina de formação ministrada na França, um estágio de realização. Diz Tonton que Dito voltou e passou o conhecimento adquirido para os outros. Dito já tinha alguma experiência em audiovisual, pois trabalhava na Televisão Pública de Angola (TPA) fazendo câmera, participando de telenovelas. Tonton queria ser jogador de basquete e chegou a morar dois anos na Holanda jogando, mas não estava completo, sentia-se muito distanciado da realidade do seu país. Quando voltou, já encontrou o irmão com essa ideia de fazer cinema, aderindo ao projeto em seguida. A televisão esteve presente na formação dos dois irmãos, que tiveram no pai, funcionário da TPA, grande influência para entrar no ramo do audiovisual. Reconhecem que a linguagem televisiva é modelo para o seu cinema bem como os filmes americanos de ação de nomes como Jackie Chan e Arnold Schwarzenegger, filmes que chegavam a Luanda apesar da pouca movimentação do setor de distribuição e exibição cinematográficos. Esses jovens da poeira que agora querem fazer seus filmes cresceram num país em guerra que veio a alcançar a paz apenas em 2002. Por que eles querem fazer cinema é o que impressiona quando vemos que o setor cinematográfico foi aquele do campo das artes que mais sofreu com os anos de guerra, por ser uma atividade de caráter industrial de alto custo. Voltamos ao estúdio de Dito e Tonton tempos depois, quando conseguimos finalmente entrevistar Dito. A entrevista foi feita para o documentário que produzíamos e sentíamos que era fundamental obter o depoimento do grande nome desse cinema popular surgido da poeira. Chegamos e lá estava novamente a entrada tomada de gente, as ungueiras e outros vendedores, os vizinhos e um barbeiro utilizando sua lâmina para modernizar com grafismos a cabeça de um menino, todos dividindo o espaço apertado, ao ar livre, da porta do estúdio. Todos a nos olhar como os estrangeiros que somos de fato, de cor, nacionalidade e realidade diferentes, sobretudo estrangeiros ao gueto. Nesse dia a experiência foi diferente também pois havia outros "estrangeiros". Os mesmos tratores que invadem Luanda, a cidade em obras, estavam nas ruas de terra batida do gueto, transformando o espaço. Entre homens e máquinas, seguimos em frente, entramos no gueto e lá estava Dito. Em meio à espontaneidade e simpatia surgida diante das câmeras desligadas, conhecemos a fala do ídolo assim que começamos a gravar. Dito fala às câmeras na terceira pessoa, sustentando a persona pública e o ônus de ser um fenômeno



nacional. Negro trançado, vestido com terno de veludo azul apesar do calor escaldante dentro do estúdio, Dito conseguiu controlar as primeiras gotas de suor que insistíamos em limpar com lenços de papel a cada corte. Desistimos num curto intervalo de tempo, deixando que ele usasse seu lenço de pano, que de tempos em tempos precisava ser torcido. Nosso personagem se revelava à câmera e quem éramos nós para driblar a realidade captada no on? Dito construiu sua imagem e seu terno de veludo azul fazia parte dela. O suor derramado condizia com o discurso e a trajetória de esforço do nosso personagem. Dito orgulha-se do seu ritmo de filmagem, de sua capacidade de criar filmes naturalmente. Sua história é comovente. O rapaz foi trabalhar com audiovisual incentivado pelo pai por limitações de saúde, questões no coração. Dito contou-nos isso e o que mais quis, pois desviava das perguntas e guiava sua própria entrevista, imprimindo aquela marca desses realizadores do gueto que buscaram ter uma voz e que desde então fazem-na ser ouvida. Do outro lado está a voz instituída dos profissionais e quando perguntamos a eles sobre esses realizadores do gueto sentimos que ainda há muito a conquistar por parte do pessoal da poeira. Embora Dito exiba certificados enquadrados e pendurados na parede com participações em festivais no exterior, o movimento é visto como amador, como se na vontade de fazer cinema a qualquer custo, tivessem esquecido de aprender o básico da sétima arte. Essas falas hoje inibem alguns realizadores da poeira como Bijú Garizim, que se recusou a nos conceder uma entrevista. Bijú temia que falássemos mal de seus filmes como já tinha ouvido por aí. Disse-nos que não dava mais entrevistas e que estava se profissionalizando na África do Sul. Bijú dá-se bem com Dito e Tonton ao contrário de outros realizadores vindos de outros guetos, mas não foi convencido a participar do nosso documentário apesar de termos apresentado o projeto defendendo que estávamos lá para conhecer o cinema angolano longe de qualquer imagem pré-definida. Nossa postura era de investigação e estávamos em Angola para fazer um documentário sobre o cinema nacional, queríamos descobrir qual história precisava ser contada. (…) Qual é a história do cinema Angolano? O cinema Angolano não tem história. (…) Nós conhecemos o cinema nigeriano. (…) Hoje se sentamos para assistir os filmes, conseguimos identificar filmes americanos, conseguimos identificar filmes africanos, conseguimos identificar filmes indianos (…) agora Angola, qual é o padrão do cinema Angolano? (…) Nós vamos humildemente



aprender com aquilo que a gente sabe que os mais velhos fizeram, mas desculpa-me lá, eles nem sequer têm uma história no cinema e querem vir a nos obrigar a fazer história. Querem vir a nos obrigar a fazer filmes ao critério deles. (…) Nós estamos a começar uma história. Então os mais velhos devem nos deixar a fazer a nossa história (…). (Mawete Paciência, 2011).

Mawete Paciência fala em nome dos novos realizadores vindos do gueto e que nenhuma relação têm com o cinema de antigamente. Ao defender sua produção de um olhar crítico que ele localiza como vindo “dos mais velhos”, os quais podemos redefinir como realizadores profissionais num contexto audiovisual angolano, Mawete sinaliza a dificuldade de conhecer uma história cinematográfica prévia dada concretamente no visionamento de material fílmico e numa estética específica que o qualifique. Há que se observar que o modelo de cinema que ele referencia é pautado em grandes indústrias cinematográficas como a americana, indiana ou mesmo a nigeriana. E mesmo aqui se pode vislumbrar que sua referência se dá a partir de uma produção que ocupa terreno em larga escala: num mercado formal em nível mundial, com determinado tipo de filme americano que chega em volume às telas de todo mundo; e mesmo informal, quando os filmes nigerianos passam a fazer parte do comércio de rua angolano. A fala de Mawete levanta dois pontos sobre a história prévia do cinema angolano: primeiramente, o da falta de disponibilidade do material produzido para ser visionado facilmente; em segundo lugar, um questionamento sobre o tipo de produção, seu padrão estético. Quanto ao primeiro ponto, há um esforço de se mostrar filmes angolanos dos pioneiros em mostras retrospectivas, segundo os entrevistados que falam em nome de instituições do audiovisual angolano. Quanto ao segundo, vale observar que mesmo um jornalista e crítico cultural como Mena Abrantes, que conhece a história do cinema angolano e mundial, ressalta que o cinema do seu país de todos os tempos não tem consistência estética para ser reconhecido. Não acho que possamos já afirmar que exista um cinema angolano como afirmamos assim de forma descontraída que exista a literatura angolana, onde há autores realmente que ultrapassaram as fronteiras nacionais e que têm obras consistentes e que são reveladoras de uma maneira muito própria angolana de ver o mundo. Agora, a nível de cinema, tirando esses quatro, cinco autoresrealizadores e esses quinze, se calhar já é muito, dez, doze filmes que realmente podiam ser mostrados sem vergonha em todo o mundo, (…) acho que tirando esses filmes, não se pode falar ainda de um cinema angolano. Não tem uma especificidade própria. Não tem uma originalidade que permita falar



do cinema angolano como se fala do Cinema Novo brasileiro. (José Mena Abrantes, 2010)

Ainda assim, Mena Abrantes constata a existência de uma produção prévia com determinadas características, tendo sido fundamentalmente documental. Era um cinema essencialmente documental, eram praticamente documentários. Como uma das produtoras de filmes era a televisão, muitos dos documentários são normais, reportagens para a televisão, só que feitos em película. Então não tinham, tirando algumas produções dos cineastas mais importantes, do António Ole, do Ruy Duarte, do Asdrúbal Rebelo, não havia grande elaboração dos materiais filmados e durante esse período eu acho que a única ficção, ou pelo menos a única ficção de relevo, foi o Nelizita do Ruy Duarte. Todo o resto eram documentários, registros de depoimentos de pessoas em várias situações. (Mena Abrantes, 2010)

Com informações fragmentadas, fomos em busca de entrevistar os pioneiros do cinema angolano. A história que colhíamos construía-se aos poucos nos nomes a serem entrevistados que surgiam ao longo da jornada e nos depoimentos que conformavam uma história que além de pessoal, era compartilhada por um grupo de pessoas. A diretriz que nos guiava era a de que o cinema angolano havia existido enquanto experiência vivida por aqueles que o fizeram e independentemente da qualidade da produção resultante disso ou da sobrevivência dessas imagens. Existiu uma história: o cinema dos pioneiros A história do cinema angolano acompanhou os altos e baixos da história do país. Começou no núcleo cinematográfico do movimento de guerrilha pela independência e firmou-se em meio à inauguração da televisão angolana. O nascimento do cinema angolano existiu junto ao nascimento de Angola como um país independente. A descolonização havia ocorrido de modo radical, com a saída em massa do contingente profissional que movimentava o país. Faltava tudo na época e o país entrava em colapso nos meses após a Independência. Foi nesse contexto que os pioneiros fizeram cinema. Na euforia dos anos pós-independência valia registrar tudo, como se fosse urgente mapear e descobrir as manifestações de uma angolanidade. Foi pelo cinema que os angolanos puderam se ver e não apenas nas telas das salas gigantes, herança do tempo colonial, mas



na televisão, quando os acontecimentos nas ruas eram captados com câmeras de cinema e gravadores de som portáteis, frutos da revolução tecnológica que viabilizou o surgimento do cinema direto americano e do cinema verdade francês dos anos 1960. Os angolanos acreditaram no cinema como arma política, ferramenta de mudanças na educação de um povo predominantemente analfabeto. Documentar e educar eram visões sobre a funcionalidade do cinema. Registrar a construção de um país recémsaído da colonização era um dos objetivos centrais do presidente Agostinho Neto, poetaguerrilheiro que saía sempre que possível com uma equipe ao estilo cinema direto5 pronta a documentar os passos de seu dirigente em Angola e no mundo. A câmera seguia ao lado de morteiros e metralhadoras por caminhos de uma Angola nunca antes revelada de povos e costumes diversos. Esse primeiro cinema está inserido no contexto das lutas políticas pela libertação das colônias africanas, na Guerra Fria e nas guerras internas que devastaram Angola após a independência do país. Os primeiros filmes foram feitos ainda na guerrilha no início dos anos 1970. É reconhecido como marco fundador do cinema angolano o filme Sambizanga (1972)6 da guadalupenha Sarah Maldoror, realizadora que até hoje defende uma voz africana em seus filmes. Maldoror entrou na luta pela independência de Angola por amor, como nos disse em entrevista, por ser companheira de Mário Pinto de Andrade, um dos líderes do MPLA naqueles tempos, partido político que até hoje está no poder. Teve seu filme exibido em Angola somente em 1976, numa sessão acalorada, na qual o guerrilheiro-ator que fazia o agente do PIDA e carrasco do herói do filme teve que ser retirado, pois o povo misturava ficção e realidade e se via finalmente com a chance de punir o colonizador na figura do ator que interpretava o responsável pelas agruras que sofreu o herói. O cinema em Angola nunca conseguiu sair do terreno do artesanal, apesar dos anos de ouro seguidos à Independência, conquistada oficialmente em 11 de Novembro de 1975. Angola conheceu uma efervescência cinematográfica num período de apenas dez anos, onde os pioneiros viveram um momento de produtividade intensa. Formaram-se cineastas na prática, com o auxílio de profissionais estrangeiros vindos de países como Cuba, França, Portugal, Suécia e Brasil. Esses estrangeiros estavam motivados pela ideia de ajudar a construir uma nação. Queriam formar jovens cineastas para que eles



respondessem ao desafio que se colocava: o de criar uma nova imagem de si mesmos, imagem até então reprimida pela dominação do colono. O que perceberam ao lidar com o contexto angolano daquele momento é que existia junto ao ideal de identidade nacional um modelo político a se firmar por meio do partido que chegava ao poder. Os franceses Marcel Trillat e Bruno Muel junto a Antoine Bonfanti haviam sido enviados a Angola num esquema de cooperação entre a televisão angolana e o Partido Comunista Francês, o qual mantinha relações com o MPLA, visto por eles como “um movimento corajoso e anti-colonialista”. Trillat e Muel falaram daquele momento numa entrevista conjunta concedida em 2011 para o nosso documentário, reproduzida em parte a seguir: Marcel Trillat: Eles iam tomar nas próprias mãos o destino de seu país e precisavam de ajuda. E nós, a pequena ajuda que podíamos oferecer era ajudar a formar gente em nossas profissões. Fazíamos com grande prazer. Bruno Muel: Mas era um trabalho de formação do ponto de vista prático. Não tínhamos aulas teóricas sobre o cinema. Estávamos lá para mostrar como trabalhar. E, pelo exemplo do nosso trabalho, ensinar na prática a se servir de uma câmera, um captador de som e organizar uma filmagem. (…) Estávamos lá para mostrar nosso trabalho, explicar, fazer compreender o que era um documentário. Como podemos mostrar o que está se passando. Marcel Trillat: Era às vezes um pouco complicado porque as pessoas que a gente formava, o primeiro trabalho deles era o quê? Era filmar as atualidades cinematográficas, ou seja, a vida política, etc. E nós tentávamos explicar que esse trabalho era interessante na condição que fosse feito livremente. Que fosse feito com um olhar crítico. Nós não estamos aqui para fazer propaganda, estamos aqui para mostrar ao povo o que se passa. A tendência, naquele momento, a gente entendia, era um Estado que estava se situando. A esses que formávamos, pedíamos que filmassem o presidente, por exemplo, que mostrassem, que filmassem seus discursos. E era isso. Não precisava fazer reportagens críticas sobre a situação, etc. A gente comentava que ensinávamos coisas que talvez eles não fossem colocar em prática. Ao mesmo tempo a gente ensinava. Ele (Bruno Muel), a fazer a imagem, Bonfanti a fazer o som, eu, a entrevistar as pessoas. É isso. A gente dizia: ‘Eles vão fazer o que puderem, o que quiserem’.

A forma documental aprendida com os profissionais estrangeiros que chegaram com a missão de treinar cineastas angolanos, convivia com os cinejornais, formato herdado do colonizador. Se houve algum espaço para um trabalho mais sofisticado nesse primeiro cinema, foi dentro do núcleo da TPA, nos nomes de António Ole, Ruy Duarte de Carvalho e Asdrúbal Rebelo. Pudemos constatar que esses nomes sempre apareciam nas falas dos entrevistados como representantes de um cinema autoral e com filmes que os



marcaram por terem elementos definidores de um estilo próprio. O depoimento de Francisco Henriques, membro da equipe Angola Ano Zero, constata a existência de diferentes vertentes no cinema angolano na primeira década após a independência. O António Ole era um pintor, era um artista. Faz um cinema com alguma preocupação artística (....) O Ruy Duarte era investigador, etnógrafo, cineasta. No início faz um cinema imediato, com pescadores artesãos, coisas importantes para serem mostradas, atividades populares, mas depois ele faz um cinema de investigação ligado a essa estrutura. A PROMOCINE fazia um cinema ligado ao jornal de atualidades, que era um jornal que se fazia no tempo colonial e que passava antes dos filmes de longa-metragem, passava uma informação das coisas importantes que tinham acontecido em Angola (...) Portanto, eu penso que as coisas se completavam. Se havia um cinema com uma participação artística do Ole, o Asdrúbal com uma preocupação com as crianças, o Ruy Duarte com uma preocupação em relação aos costumes e tradições. Nós com um cinema fundamentalmente político, de intervenção, com as Forças Armadas (...) Nós nos completamos naquilo que foram as diversas tendências do cine angolano, que teve um apogeu, mas não uma continuação. Todo o percurso de guerra não permitiu isso. (Francisco Henriques, 2011)

Zezé Gamboa, realizador de O herói (2004), filme do período da retomada que projetou o nome de Angola para o mundo em festivais de cinema internacionais, começou no cinema junto aos pioneiros na TPA, mas no âmbito do telejornalismo. Gamboa pondera sobre esse primeiro cinema como espaço para um olhar autoral. Esses cineastas eram cineastas que por si próprios autocensuravam-se porque, não nos esqueçamos, estavam inseridos num esquema de revolução que não lhes permitia nem lhes dava a liberdade para darem o salto para fazerem o que quisessem. Porque aquilo era completamente subvencionado, pela televisão no início e depois mais tarde pelo Laboratório de Cinema e por fim pelo Instituto Angolano de Cinema (IAC). Havia sempre ali a autocensura que os próprios cineastas faziam. Portanto, era interessante a dinâmica de trabalho, mas depois do ponto de vista da criação, havia sempre ali muitas limitações (…) A realidade é que eles estavam condicionados, eles não podiam filmar o que quisessem. Ou seja, eles tinham que fazer, falar de temas que eram temas que convinham ao partido. Não brinquemos com coisas sérias, quer dizer, aquilo, havia de fato, o regime era um regime autoritário. Portanto eles não falavam do que queriam, como queriam, quer dizer podiam contar uma história mas dentro do esquema do partido (…). (Zezé Gamboa, 2011)

"Nossa ideia era essa: criar uma arte indústria cinematográfica", disse-nos em entrevista Luandino Vieira, um dos idealizadores do cinema nacional dos primeiros anos. Havia resistência da sua parte em nos conceder seu depoimento, o qual julgávamos



fundamental por ele ter sido mencionado por todos os outros entrevistados como nome fundamental desse cinema pioneiro. Sua resistência em falar tinha a ver com a dificuldade em lidar com o passado. Seu depoimento dava a dimensão da garra dos pioneiros, os quais arriscaram suas vidas filmando em meio à guerra civil. Luandino mostrava-nos sua habilidade em conduzir a narrativa ao ser entrevistado, condizente com seu reconhecimento como um dos grandes nomes da literatura em língua portuguesa. Foi ele quem a encerrou com uma fala num tom autocrítico: Era para ir devagarinho. Eu sei que fui muito apressado, fui voluntarista. A gente queria fazer tudo naquela altura. Queria ter logo tudo. Mesmo assim, ainda tive a paciência de ir buscar os técnicos em Paris. Não era uma brincadeira e se calhar foi esse o mal. Aliás era essa a crítica fundamental do Ruy e do Ole: 'Pensaram nas estruturas em vez de nos dar esse dinheiro e a gente fazer o cinema. Cinema é o que nós fazemos'. Eu disse: 'Tá bem. Para ti é e para o Ole evidentemente que é a realização pessoal, mas eu não estou a fazer o cinema para o Ole, Ruy, Asdrúbal, Xuxo, Gouveia. Isto é para o nascimento do cinema angolano. A nossa literatura começou no século 19 ou no século 17, não sei muito bem. E o cinema há de começar’. (Luandino Vieira, 2011)

Com o recrudescimento da guerra civil, o cinema dos pioneiros começa seu lento caminho em direção ao esquecimento. Diante de necessidades vitais, a angolanidade registrada no celuloide é deixada de lado e pouco a pouco perde-se de maneira irremediável. Chama atenção na história desse cinema pioneiro o que muitos consideram a morte precoce de uma cinematografia jovem, que ganhou corpo em dez anos (19751985)7 e entrou num período de quase inatividade após isso, sem recuperar até hoje o ritmo de produção capaz de caracterizar uma indústria cinematográfica. Grande parte dos filmes feitos nessa época não existe mais, suas matrizes não foram conservadas. Quando iniciamos a fase de entrevistas, tínhamos duas certezas. Sabíamos que a história do cinema angolano seria prejudicada a depender da existência de arquivos para contá-la. Também estávamos a par que a produção majoritariamente documental levantava discussões sobre sua capacidade de conformar uma cinematografia nacional. Por isso perguntávamos aos entrevistados se havia existido uma história do cinema angolano. Em meio a respostas afirmativas entusiasmadas, colhemos relatos de cineastas a reconstituir essa história reafirmando o fato de que arriscaram suas vidas acreditando na força do registro e construção da memória de um povo em película. Consternam-se ao saber que hoje grande parte do material não existe.

Quando começamos nosso trabalho, um dos autores fundamentais desse cinema, Ruy Duarte de Carvalho, havia acabado de morrer. Resgatamos seu nome na voz dos outros. Sorte tivemos indo a Angola mais de uma vez, rumando também a Portugal e França, quando conseguimos entrevistar nomes desse cinema pioneiro como Sarah Maldoror, Victor Henriques, Asdrúbal Rebelo, Beto Moura Pires, Sousa e Costa e tantos outros. A entrevista de Beto Moura Pires foi umas das mais emocionantes e ficamos tristes ao saber de sua morte tempos depois das filmagens. Éramos estrangeiros a ter o privilégio de entrar em histórias onde a dedicação ao cinema foi correr risco de vida. Não presenciamos falas de arrependimento, mas sempre certezas de que aquilo era necessário naquele momento do pós-independência. “Vou mostrar a vocês a vossa luta”, ouvimos da pioneira Maldoror sobre sua contribuição como cineasta ainda na guerrilha a tentar ajudar um povo no seu processo de independência. Descobrimos assim mais sobre a amplitude do que pode o cinema. O cinema tem a função primordial de construir e refletir o imaginário de uma nação.

Conclusão Embora seja difícil ter acesso à história em meio ao material fílmico que restou, é fato que houve uma busca por se ter voz enquanto nação via cinema, seja no âmbito artístico ou enquanto ferramenta política e instrumento de educação. Um olhar sobre a história do cinema angolano a partir dos depoimentos daqueles que o fizeram é um meio de dar a conhecer a uma nova geração a sua própria história. Esse é um esforço a ser conjugado com um resgate do arquivo bem como a exibição do mesmo amparada por debates que ajudem a contextualizar o cinema feito em cada tempo. O comum a pioneiros e novos aventureiros é transitar no campo artístico embalados pelo sonho individual de fazer cinema a cruzar com o ideal coletivo de se ter um cinema nacional, com angolanidade O cinema angolano feito hoje apresenta diferentes olhares. Um fenômeno forte é a vontade da periferia de ficcionalizar a realidade vivida. Em certa medida, essa é uma tendência nos cinemas feitos na Angola de hoje a contrastar com a produção documental do passado. Apesar das diferenças, veteranos e novos realizadores que fazem o cinema



contemporâneo alinham-se na vontade de trabalhar temas voltados para a realidade. O cinema documental de outros tempos vira história ficcionalizada quando a violência urbana e o contexto do pós-guerra ganham as telas. E se esse cinema de periferia tem sua qualidade estética questionada, é preciso perceber o ganho de visibilidade desses atores sociais na esfera pública, contudo avaliando como essas representações retratam esse espaço periférico. Esse esforço pode ser realizado pela facilidade de acesso aos filmes do pessoal da poeira, o que possibilita uma reflexão crítica sobre os mesmos. Deve-se apontar ainda a atuação constante do cineasta Jorge António, português radicado em Angola, que além de ter realizado um longa-metragem ficcional num período sem atividade cinematográfica no cenário angolano (O miradouro da lua, 1993), sendo a primeira coprodução luso-angolana, apresentou a partir dos anos 2000 uma série de documentários a retratar o passado e o presente da cultura angolana. Cineastas como Maria João Ganga e Zezé Gamboa fizeram filmes quando obras angolanas já não eram mais produzidas. Por meio de um apoio financeiro pontual nacional e de verbas internacionais, esses cineastas buscaram tematizar a guerra em ficções que chegaram aos festivais internacionais colocando o cinema angolano brevemente em evidência. Não houve uma política de incentivo à cultura sistemática desde então. Sobre o sucesso de Na cidade vazia (2004) ser atrelado a uma onda nomeada como retomada, Maria João Ganga tem uma visão crítica. Este filme teve uma recepção boa em Angola. Não havia cinema em sala, uma ficção feita há mais de vinte anos pra aí. E então tudo tomou uma proporção muito grande, mas ao mesmo tempo é triste porque isso tudo significa que é a pobreza do nosso cinema. Então eu penso que se houvesse mais gente a fazer, o cinema estava mais rico, estava mais atual. Eu estou a vos dar essa entrevista e eu fiz o meu filme há sete anos. Não é normal que ainda se fale de um filme sete anos depois de ele ser feito. (Maria João Ganga, 2011)

Os dois principais filmes da retomada de início dos anos 2000 também são facilmente encontrados. Grave é a dificuldade de se acessar o material da dita Era de Ouro (1975-1985). Na nossa busca por arquivo fílmico relacionado ao cinema angolano de todos os tempos, constatamos o problema apontado já na pesquisa realizada na fase de pré-produção do documentário, o de que a memória do cinema dos pioneiros está



prejudicada pela perda de grande parte do material. Algo foi salvo em cinematecas estrangeiras ou mesmo em arquivos pessoais. A história pode e deve ser contada por aqueles que a protagonizaram e essa foi uma preocupação contemplada na busca por gravar esses depoimentos e por fazer um documentário reflexivo sobre o cinema angolano. Sabemos porém que há um imenso ganho em se visualizar os filmes, os quais hoje poderiam ser fonte de estudo a partir daquilo que realmente retrataram. Do ponto de vista estético, em relação aos pioneiros, poderíamos questionar até que ponto os documentários de fato obedeciam aos preceitos canônicos de um cinema direto. Seria possível ainda perceber se o cinema angolano produziu autores por meio da análise de traços persistentes num conjunto de filmes de um mesmo realizador e mesmo checar seu vínculo a um projeto ideológico maior de revolução política.

Referências ABRANTES, José Mena (2008). Para uma história do cinema angolano. 1ª edição. Luanda: FIC Luanda. ZANETTI, Daniela (2008). Cenas da periferia: auto-representação como luta por reconhecimento. Revista da associação nacional dos programas de pós-graduação em comunicação. Brasília: E-compós. E-ISSN 1808-2599. 2008/v.11: nº 2 (maio/ago 2008). Entrevistas citadas: António Ole, 24/11/2010 Bruno Muel e Marcel Trillat, 03/10/2011 Carlos de Oliveira “Xuxo”, 24/02/2011 Francisco Henriques, 03/05/2011 Henrique Narciso “Dito”, 03/01/2011 José Mena Abrantes, 18/11/2010 Luandino Vieira, 03/11/2011 Manuel Narciso “Tonton” e Mawete Paciência, 26/02/2011 Maria João Ganga, 03/06/2011 Miguel Hurst, 21/02/2011 Sarah Maldoror, 03/10/2011 Zezé Gamboa, 03/08/2011 Informações colhidas ainda nos depoimentos de: Álvaro Pacheco dos Santos (Bito Pacheco), Arnaldo Santos, Asdrúbal Rebelo, Beto Moura Pires, Carlos Sousa e Costa,

Edson Santos, Emídio Canha, Francisco (Chico) Campos, Gita Cerveira, Jorge António, Leonel Efe, Lourenço Roque, Luísa D'Almeida, Manuel Mariano, Mariano Bartolomeu, Mário Bastos, Nguxi dos Santos, Orlando Fortunato, Papi (Miguel Correia Augusto), Pedro Macoça, Pedro Ramalhoso, Victor Henriques. Filmografia Sambizanga (Sarah Maldoror, 1972) O miradouro da lua (Jorge António, 1993) Na cidade vazia (Maria João Ganga, 2004) O herói (Zezé Gamboa, 2004) Assaltos em Luanda (Henrique Narciso “Dito”, 2007) Assaltos em Luanda 2 (Henrique Narciso “Dito”, 2008) 1 O documentário mencionado tem a direção de João Guerra e encontra-se em fase de edição, não tendo portanto nome definitivo e data de finalização. 2 A pesquisadora brasileira Daniela Zanetti abordou em texto de 2008 o cinema de periferia tendo como foco o caso brasileiro. Nesse artigo atestou a presença de produções qualificadas como vindas da periferia de diversos países e de Angola dentre eles em um festival de cinema brasileiro caracterizado por abordar “o cotidiano das favelas” (CINECUFA apud Zanetti, 2008). 3 O programa Opção era veiculado na Televisão Pública de Angola (TPA), tendo os irmãos Henriques do Angola Ano Zero envolvidos na sua produção. O programa “mostrava por um lado os aspectos do evoluir da guerra e por outro o próprio desenvolvimento do país apesar dessa guerra” (Carlos de Oliveira “Xuxo”, 2011). 4 FAPLA é a sigla para Forças Armadas Populares da Libertação de Angola. 5 O cinema direto é mencionado como influência pelos realizadores e profissionais que os treinaram nos diversos depoimentos colhidos para o documentário mencionado. 6 Conferir artigo de Maria do Carmo Piçarra, O cinema é uma arma, em AngolaII – o cinema da independência. 7 A produção desse período está documentada num catálogo produzido pelo IAC, titulado 10 anos - cinema angolano - filmografia: 1975-1985. Tivemos acesso a esse material primeiramente por meio de Mena Abrantes, que nos forneceu seu arquivo pessoal colecionado ao longo dos anos para a pesquisa, a amparar nosso documentário em produção. Na busca por material, fomos recebidos e ajudados de alguma forma pela TPA, Cinemateca nacional de Angola e IACAM. Os realizadores entrevistados também forneceram alguns materias quando possível.



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