Dos intelectuais na política à política dos intelectuais: pensadores, escritores e militantes no diálogo com o poder (edited book)

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais Pensadores, escritores e militantes no diálogo com o poder

Flavio M. Heinz Organizador

Dos intelectuais na política à política dos intelectuais Pensadores, escritores e militantes no diálogo com o poder

OI OS EDITORA

2015

© Dos autores – 2015 [email protected] Editoração: Oikos Revisão: Luís M. Sander Capa: Juliana Nascimento Arte-final: Jair de Oliveira Carlos Impressão: Rotermund S. A. Conselho Editorial (Editora Oikos): Antonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia) Arthur Blasio Rambo (IHSL) Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL) Danilo Streck (UNISINOS) Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ) Ivoni R. Reimer (PUC Goiás) Luís H. Dreher (UFJF) Marluza Harres (UNISINOS) Martin N. Dreher (IHSL – MHVSL) Oneide Bobsin (Faculdades EST) Raul Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha) Rosileny A. dos Santos Schwantes (UNINOVE) Esta publicação apresenta resultados parciais de pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto PROCAD-NF/CAPES “Composição e recomposição de grupos dirigentes no Nordeste e no Sul do Brasil: uma abordagem comparativa e interdisciplinar”, reunindo equipes do PPGH-PUCRS, PPGS-UFS e PPGCP-UFPR. Editora Oikos Ltda. Rua Paraná, 240 – B. Scharlau Caixa Postal 1081 93121-970 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 www.oikoseditora.com.br [email protected]

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais: pensadores, escritores e militantes no diálogo com o poder / Organizador Flavio M. Heinz. – São Leopoldo: Oikos, 2015. 170 p.; 16 x 23cm. ISBN 978-85-7843-459-5 1. Intelectualismo. 2. Política – Poder. I. Heinz, Flavio M. CDU 165.63

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

Sumário Sobre autoras e autores ......................................................................... 7 Apresentação ....................................................................................... 9 Auguste Comte................................................................................... 17 Mary Pickering A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio .... 39 Eduard Esteban Moreno Trujillo Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão ..................... 67 Marisângela Martins As usinas do anticomunismo castrense. Os intelectuais do nacionalismo de direita na Argentina, 1955-1966 ................................ 89 Juan Manuel Padrón Escritos de propaganda republicana: estratégias de publicação e inserção sociopolítica a partir da atuação de Joaquim Francisco de Assis Brasil e João Capistrano de Abreu (década de 1880) .............................................................................. 111 Tassiana Maria Parcianello Saccol Dom Chimango e a torre de marfim: a literatura de Homero Prates e a política oligárquica da Primeira República (1890-1927) ................ 133 Cássia Daiane Macedo da Silveira Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução ................153 Jefferson Teles Martins

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Sobre autoras e autores Cássia Silveira é graduada e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é docente no curso de Licenciatura em História na Universidade Federal do Pampa. Atua na área de História do Brasil Republicano, com especial interesse em história da imprensa, história da literatura e as relações entre os intelectuais e a política. Eduard Esteban Moreno é graduado em Ciências Sociais pela Universidad Pedagógica Nacional (Colômbia, 2009) e Mestre em História pela Universidad de los Andes (Colômbia, 2011). Foi pesquisador do Centro de Investigación y Estudios Sociales, CIES (Colômbia, 2010-2012), em temas de História Intelectual, História Política e Movimentos Sociais. Na atualidade cursa o Doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e desenvolve pesquisas sobre a história das ideias de esquerda na América Latina desde uma perspectiva comparada. Flavio M. Heinz é Doutor em História e Sociologia do Mundo Contemporâneo pela Université de Paris-Ouest, Nanterre. Atualmente, é professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná e coordena o Laboratório de História Comparada do Cone Sul. É autor de Les fazendeiros à l’heure syndicale: représentation professionnelle, intérêts agraires et politique au Brésil, 1945-1967 (Septentrion/ ANRT, 1998) e organizador, entre outros, de Por outra história das elites (Editora FGV, 2006) e Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina (Editora Oikos, 2009), História social de elites (2011) e Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história (2012). Jefferson Teles Martins é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre e doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), pesquisa temas relacionados à história social dos intelectuais. Em 2013, participou de estágio doutoral no Lateinamerika Institut da Freie Universität Berlin (FUB).

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Sobre autoras e autores

Juan Manuel Padrón é Doutor pela Universid del Centro de la Provincia de Buenos Aires (UNICEN), de Tandil, Argentina. Atualmente é docente e pesquisador na Faculdade de Arte – UNICEN, e membro do Centro Interdisciplinario de Estudios Políticos, Sociales y Jurídicos (CIEP – FCH/FD – UNICEN) e do Centro de Estudios de Teatro y Consumos Culturales (TECC – Faculdade de Arte – UNICEN). É um dos coordenadores de Ensayos sobre vanguardias, censuras y representaciones artísticas en la Argentina reciente (UNICEN, 2010). Marisângela Martins é Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), instituição e área nas quais concluiu Mestrado no ano de 2007 e formou-se no curso de Licenciatura Plena em 2004. Atualmente, é Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Dedica-se ao estudo dos intelectuais, especialmente os intelectuais comunistas, e das possíveis articulações entre política e literatura. É coautora do “Dicionário Ilustrado da Esquerda Gaúcha” (Evangraf, 2008) e autora de “À esquerda de seu tempo: escritores e Partido Comunista do Brasil (Porto Alegre/ 1927-1957)” (tese, UFRGS, 2012). Mary Pickering é professora da San José State University, Califórnia, onde leciona metodologia, historiografia e história intelectual e cultural da Europa moderna. É titular de um DEA pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e doutora pela Universidade de Harvard. Biógrafa de Auguste Comte, Pickering é autora da obra monumental Auguste Comte: an intellectual biography (3 volumes, Cambridge University Press, 1993-2009). Tassiana Maria Parcianello Saccol é Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2010) e Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013). Dedica-se à pesquisa da história política no Brasil da segunda metade do século XIX até a Primeira República, com ênfase nas instituições político-partidárias e na trajetória de seus líderes. Também se interessa pela história dos intelectuais e história da imprensa. Atualmente é doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde desenvolve o seguinte projeto: De líderes históricos a opositores: a atuação dos dissidentes do Partido Republicano Rio-grandense na Primeira República (1889-1923).

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Apresentação O presente volume reúne artigos dedicados à análise das relações dos intelectuais, nas mais diversas e generosas acepções do termo, com o mundo da política. Seria excessivo aqui retomar toda a literatura dedicada ao tema intelectuais & política. Muito se discorreu sobre a dupla experiência, de sedução e vertigem, que caracterizou o engajamento político de escritores, artistas, jornalistas e profissionais universitários, e grandes autores produziram sínteses relevantes sobre o tema. Na perspectiva da história social, que é a que anima o grupo de pesquisadores à origem deste volume, um nome incontornável seria o de Christophe Charle, em uma obra definitiva, Naissance des “intellectuels”, 1800-1900, ou, para citar autores brasileiros, os trabalhos igualmente incontornáveis de Sergio Miceli e Angela Alonso. Mas reconhecemos que qualquer tentativa de “fechar” o tema a partir de uma ou outra reivindicação de autoridade acadêmica seria, neste caso, inútil. Com efeito, os intelectuais foram, desde muito cedo, apaixonados pela política e pela possibilidade de discutir essa paixão com o público. Assim, muita tinta foi e segue sendo derramada, pelos atores e por seus biógrafos e historiadores, na tentativa de se explicitar a natureza íntima dessa relação. Nossa pretensão é mais modesta. Buscamos recuperar exemplos de pesquisa que restituam a complexidade da relação, suas zonas de sombra, suas contradições, não explicá-la cabal e definitivamente. Para fazê-lo, o aporte da história, a análise empírica fina dos atores e de suas negociações cotidianas com o poder – e com outros atores, tendo a perspectiva do poder e o Estado como panos de fundo –, revela-se fundamental. E na perspectiva histórica, duas dimensões devem ser observadas: primeiro, as condições sociais de emergência dos ‘intelectuais’ como grupo, suas caraterísticas gerais e diferenciação em relação a outros grupos preexistentes ou emergentes; segundo, os momentos de inflexão – notadamente as crises políticas –, em relação aos quais tomadas de posição serviram para mapear posições,

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Apresentação

para identificar proximidades e afastamentos, para reunir/separar/rearranjar seus membros. Em relação às condições sociais de emergência dos intelectuais, é oportuno lembrar a perfeita síntese de Christophe Prochasson: “O grupo social formado pelos intelectuais – cuja designação e conceituação modernas aparecem progressivamente nos anos 90 do século XIX – se constitui nas últimas décadas do século XIX, ao mesmo tempo como produção social (resultado de um reforço de categorias médias, de um lado, e dos efeitos da massificação da cultura, de outro) e como produção política ligada à aparição de um sistema republicano-democrático no qual o saber está associado à política (as classes dirigentes devem ser classes instruídas, sendo o Estado aquele que promove o ensino das massas e que ergue o Panteão dos “grandes homens” – que por vezes se confunde com o Panteão real – no qual escritores, pensadores e cientistas são maioria)”. Identificando no caso Dreyfus o momento de entrada do termo intelectual no vocabulário político e social francês, Prochasson sustenta que, naquela ocasião, as “minorias cultas se definiram como um contrapoder frente ao Estado, do qual passaram a denunciar as derivas, a infidelidade aos próprios princípios que ele mesmo instituíra e o chamaram à ordem, por diferentes meios, sendo o mais importante deles a imprensa”.1 Desde a conjuntura que marcou o aparecimento da figura do “intelectual” na sua mais duradoura representação contemporânea, aquela associada ao Émile Zola de J’accuse, o termo intelectual tem se prestado a toda espécie de tráfico de sentidos e de desejos. Homem de ideias e convicções, fustigador da injustiça perpetrada pelo poder, espécie de consciência da sociedade e da nação, crítico social, o intelectual responde, é verdade, a certo senso comum sobre as características que o termo recobre. Contudo, como bem mostrou Christophe Charle, na sua análise das disputas entre dreyfusards e anti-dreyfusards, o engajamento político de homens de letras, publicistas, profissionais ligados ao mundo da cultura, em geral, obedecia

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PROCHASSON, Christophe. Sobre el concepto de intelectual. Historia contemporânea, v. II, n. 27, p. 803, 2003.

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primordialmente a uma lógica de disputa (e reprodução) de posições, e reafirmação de solidariedades, presentes no campo artístico e literário, e nas universidades. O acirramento de posições frontalmente opostas no caso Dreyfus levaria à consolidação de um sentido novo para o termo, como “profissionais do intelecto que, em nome de sua especificidade social, reivindicam um poder de tipo especial”2. O propósito desse volume é ir além do senso comum mencionado no parágrafo acima. E quando reafirmamos a necessidade de irmos além dos clichês usuais, não o fazemos como uma ressalva apenas à possível percepção equivocada do grande público, mas também aos usos que os próprios intelectuais fazem desses clichês. Com efeito, os usos sociais da posição de intelectual não podem ser percebidos, apenas, desde uma perspectiva externalista, sociologicamente ingênua, que ignora a instrumentalização perpetrada e os ganhos simbólicos e políticos auferidos pelos atores em questão. Trata-se aqui, e fizemos questão dizê-lo no título deste volume – “dos intelectuais na política à política dos intelectuais” –, de nos interessarmos pela dimensão da atuação dos intelectuais no espaço político, é certo, mas, igualmente, de reconhecer suas estratégias de posicionamento, as percepções que são as suas, não apenas sobre os temas em debate, mas sobre o lugar que ocupam no espaço dos intelectuais, sobre como preferem ser representados e percebidos pelo público. Constituiria um truísmo sociológico asseverar que o intelectual é uma personagem ambígua ou multifacetada. Uma vez que todos os indivíduos recobrem uma gama imensa de características não redutíveis tão somente à sua imagem exterior, é de se imaginar que a boa pesquisa “revele” não o novo, mas aquilo que já se poderia imaginar lá estar, aquilo que se mantinha coberto pelo manto espesso da representação consagrada do intelectual dreyfusard.

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CHARLE, Christophe. Nascimentos dos intelectuais contemporâneos (1860-1898). História da Educação, Pelotas, n. 14, p. 141-156, set. 2003, p. 15.

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Apresentação

Os textos O primeiro dos textos aqui reunidos traz à luz o itinerário de Augusto Comte, filósofo, cientista, reformador, um autor que dificilmente se encaixaria, à primeira vista, no modelo bem-sucedido e popularizado de intelectual dos últimos anos do século XIX. Não obstante, pareceu-nos interessante trazer aos leitores este depoimento da biógrafa de Augusto Comte, Mary Pickering, apresentado no formato de uma conferência ministrada na Maison de Auguste Comte, em Paris, em janeiro de 2010. Nele, Pickering refaz, de forma necessariamente sintética, o longo percurso de sua investigação sobre o autor do Sistema de Filosofia Positiva, apontando características pessoais do biografado que não apenas influenciariam sua obra escrita, mas que, igualmente, contribuiriam para a atração de novos discípulos e chegariam a afetar seriamente a continuidade de seu círculo próximo de relações. O texto de Pickering é especialmente interessante por cotejar, de forma clara e objetiva, a produção da obra com o conjunto de questões e circunstâncias históricas às quais o autor estivera exposto ao longo de sua longa atividade intelectual. A autora demonstra (em verdade, um trabalho intensivo de demonstração se encontra nos 3 volumes de sua magistral biografia do fundador do Positivismo) que adesões, filiações e solidariedades não são produto apenas do enorme fascínio intelectual exercido por Comte e sua obra, mas são também a resultante de esforços de aproximação e hierarquização nas relações que o próprio Comte mantinha com seus seguidores. O segundo texto, de Eduard Moreno, a Conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio, trata das circunstâncias específicas enfrentadas por intelectuais comunistas colombianos na conjuntura de retração global de ideais comunistas ou socialistas, particularmente o impacto do processo de liberalização associado à chegada ao poder, na União Soviética, de Mikhail Gorbachev, e à consolidação da Perestroika, após 1985. O autor analisa estratégias e possibilidades de atuação/reconversão dos intelectuais comunistas na Colômbia – marcados, é preciso frisar, não apenas pelo impacto global da crise do modelo soviético, mas igualmente pela con-

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turbada experiência do ativismo comunista no país –, na formulação de uma categoria, a de intelectual-funcionário. Para Moreno, a distinção entre as categorias de intelectual e intelectual-funcionário se impunha, visto que o “processo corresponde[ria] às contradições encontradas entre as teorias que tentam explicar o intelectual e as práticas dos intelectuais vivos, existentes, aquelas pessoas que encarnam as ideias e são movidas por paixões, utopias, sonhos e mentiras. Daí que a categoria de intelectual sozinha não correspondia à história que se pretendia contar”. (MORENO TRUJILLO, p. 61-62) Poderia se advogar que é próprio das categorias consagradas de análise do mundo social, e em particular desses atores de inserção no espaço público que são os “intelectuais”, que seu conteúdo descritivo não abarque toda a complexidade das relações ali supostamente contidas. De fato, os processos de nomeação e classificação dos grupos sociais, tema caro, por exemplo, à história social dos grupos profissionais, encontra nos intelectuais ‘militantes’ de esquerda um desafio particular. Esse desafio também é enfrentado por Marisângela Martins em Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão.Para a autora, “a expressão ‘intelectual comunista’ evoca uma determinada imagem de contornos mais ou menos imprecisos”. Martins propõe um panorama historiográfico muito instigante sobre o lugar dos intelectuais comunistas no âmbito do partido e no espaço dos intelectuais, mostrando, a todo momento, a tensão em se combinar o problema da desconfiança face à origem de classe, não operária, dos intelectuais e sua dedicação ao partido. Embora com recorte temporal distinto (aqui se trata de privilegiar as primeiras décadas de atuação do Partido Comunista, até o início da década de 1950), o texto serve de contraponto interessante àquele de Moreno e mostra dificuldades e angústias de indivíduos envolvidos em diferentes áreas de produção da cultura (mas também de outros profissionais de nível universitário absorvidos circunstancialmente sob a designação de intelectuais) em corresponder às expectativas das instâncias autorizadas do partido acerca da legitimidade de seu engajamento. O texto seguinte, As usinas do anticomunismo castrense. Os intelectuais do nacionalismo de direita na Argentina, 1955-1966, de Juan Manuel Padrón, também explora o tema do engajamento político dos intelectuais, mas agora no extremo oposto do espectro político: os intelectuais anticomunistas e sua

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Apresentação

recepção nos meios militares, através da análise de dois casos exemplares de intelectuais nacionalistas de direita argentinos, Jordán Bruno Genta e Julio Meinvielle. Para Padrón, a fragilidade do encaminhamento da questão do peronismo no período pós-Perón, o ambiente da Guerra Fria e a autonomia de movimento das Forças Armadas garantiram as circunstâncias favoráveis à recepção da retórica anticomunista no meio. Ainda que, no tocante às duas últimas circunstâncias, não haja exclusividade do caso argentino, e que se possa encontrar outros exemplos – notadamente sul-americanos, mas não apenas – de aproximação entre intelectuais anticomunistas e meio castrense, o autor sugere certa originalidade na ação dos dois intelectuais argentinos analisados: o ideal anticomunista articulado a um “conjunto de conceitos que visavam centralmente desprestigiar a democracia e reclamar para as Forças Armadas um papel central em sua destruição”; a cobrança crítica de maior “zelo antidemocrático ou anticomunista” na ação dos militares; e, finalmente, no longo prazo, a evidência de sua contribuição “nada desprezível no reforço de um pensamento autoritário, intolerante e violento dentro d[as] [...] Forças Armadas”. (PADRÓN, p. 107-108) Os próximos três textos apresentam uma análise em redução de escala, passando-se do quadro nacional de atuação dos intelectuais a um quadro regional. Com efeito, os três trabalhos discorrem sobre situações às quais estiveram confrontados homens de letras do Rio Grande do Sul, da última década do período monárquico às décadas que seguem à revolução de 1930. Em Escritos de propaganda republicana: estratégias de publicação e inserção sociopolítica a partir da atuação de Joaquim Francisco de Assis Brasil e João Capistrano de Abreu (década de 1880), Tassiana Saccol mostra a relação de Assis Brasil, então jovem liderança republicana do Rio Grande do Sul, e Capistrano de Abreu e sua decisiva influência na publicação de dois livros do primeiro, A República Federal, com grande repercussão à época, e História da República Rio-grandense. A autora mostra como Assis Brasil soube utilizarse da amizade com Capistrano de Abreu para ter acesso a espaços de notabilidade literária e política e, assim, obter certo reconhecimento nacional como uma das lideranças intelectuais do movimento republicano, um resultado que se poderia supor improvável fossem outras as condições de produção e

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circulação de suas obras. A presença de Capistrano na Corte, sua posição na Biblioteca Nacional e, sobretudo, a abertura de seu círculo de relações a Assis Brasil foram funcionais à sua ascensão no plano nacional. Segue-se o trabalho de Cássia Silveira, Dom Chimango e a torre de marfim: a literatura de Homero Prates e a política oligárquica da Primeira República (1890-1927), destacando a atuação literária de Homero Prates, autor que oscilaria entre distintas formas de expressão artística segundo o público e inserção desejados e que usaria a temática regionalista para posicionar-se politicamente no contexto local. Como bem resume a autora, o escritor “transitava por suas redes e ‘jogava’ com as variadas posições e identidades que ocupava no espaço social. [...] Quando pretendia apresentar-se como ‘artista’, recorria à escrita que considerava mais ‘universal’ e, portanto, superior enquanto arte; quando, ao contrário, pretendia manifestar uma opinião ou tornar um dado ponto de vista ‘oficial’, comunicando-se com um público mais amplo e transmitindo a ele uma ideia de forma mais objetiva, recorria a outro modo de escrita, ‘inferior’ na sua escala da arte, mas com possibilidades mais pragmáticas de interlocução”. (SILVEIRA, p. 149-150) Last but not least, encerra este volume o texto de Jefferson Teles Martins, Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução, incursão do autor em uma das mais longevas polêmicas que mobilizaram os intelectuais ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, desta vez em torno da interpretação da Guerra Farroupilha, no início dos anos 1930. Essa polêmica colocou em posições antagônicas Alfredo Varella, autor da obra citada no título, e Souza Docca e terminaria por atrair a adesão de outros homens de letras e historiadores do estado, como Walter Spalding. O que Martins nos mostra com detalhes é a riqueza dos embates que recobriam a polêmica, como aquele, central no período, entre lusitanistas, apoiadores de uma visão da “preponderância da influência lusitana na formação histórica do Rio Grande do Sul”, e platinistas (de Varella), que destacavam os fortes vínculos da história do Rio Grande do Sul com o Prata, de viés separatista ou autonomista. Mas não é apenas a matriz historiográfica e a legitimidade desta ou daquela interpretação histórica que estão em jogo, mas também, como bem mostra o autor, há uma dimensão política contemporânea na questão. Com efeito, a polêmica recobre também a opo-

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Apresentação

sição entre defensores de um autonomismo regional (grupos e lideranças políticas regionais ligadas ao antigo sistema político da Primeira República, gravemente feridos no processo iniciado pela Revolução de 30) e alinhados, no texto, à interpetação varelliana, e o grande campo de vitoriosos e reconvertidos (locais ou nacionais) à centralização política brasileira da época, solidários à crítica de Souza Docca. Por fim, uma palavra sobre o livro em perspectiva ampla. Este é, com efeito, o terceiro e último de uma série que, ao longo dos últimos anos, buscou situar ao público acadêmico a ambição que orienta os trabalhos do Laboratório de História Comparada do Cone Sul, a saber, a de produzir uma história social de elites, intelectuais e grupos profissionais que seja metodologicamente clara e cujos resultados sejam escrutináveis, ampliando a possibilidade de comparação dos casos em estudo com aqueles de outros grupos de pesquisa, nacionais e internacionais, e assegurando a abertura para a rotinização do diálogo e de práticas interdisciplinares concretas, notadamente com a Sociologia e a Ciência Política. Para fazê-lo, publicamos, em 2011, a obra coletiva “História Social de Elites”, reunindo bons exemplos da opção metodológica fundadora de nosso coletivo de pesquisa, a prosopografia; em 2012, foi a vez da coletânea “Poder, Instituições e Elites – 7 ensaios de comparação e história”, que retomou a importância da dimensão comparativa em nosso trabalho. Superado esse momento de ‘inscrição do perfil metodológico’ do nosso grupo no meio profissional, este último livro vem trazer à apreciação da área um tema de pesquisa caro aos nossos pesquisadores e colaboradores eventuais: a relação dos intelectuais – nas suas mais variadas formas e modos de apreensão – com a política e o poder. Com este livro, concluímos, portanto, a presente série. A agenda de pesquisa do LabConeSul permanece nas suas linhas de força – a prosopografia, a comparação, o estudo das elites e das profissões –, mas avança em direção ao estabelecimento de novos vínculos e parcerias institucionais, além de uma ampliação na sua rede nacional e internacional de pesquisadores. Flavio M. Heinz

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Auguste Comte1 Mary Pickering Comecei a escrever a biografia de Auguste Comte há 30 anos, quando aluna de doutorado na Universidade Harvard. Meu orientador era especialista em história da ciência e me incitou vivamente a escrever a primeira biografia daquele que havia sido seu fundador. Enquanto historiadora da França do século XIX, aceitei o desafio. Depois de ler, ao longo de vários anos, as obras de Comte que haviam sido publicadas, fui a Paris para pesquisar, pois Harvard havia organizado tudo de modo a que eu pudesse me inscrever no DEA2 da Sciences Po.3 Pouco depois de minha chegada, em 1983, fui visitar Henri Gouhier, que, nos anos 1930, havia escrito três volumes sobre a juventude de Comte. Com um brilho no olhar, esse adorável intelectual desejou-me boa sorte em meu projeto, que consistia em escrever um estudo sobre toda a vida de Comte. Imagino que soubesse que esse trabalho levaria décadas para ser concluído. Passei três magníficos anos na Maison d’Auguste Comte, onde fui calorosamente recebida por Isabel Pratas-Frescata, Gilda Anderson, Trajano Carneiro e, mais recentemente, Aurélia Giusti e Bruno Gentil. Aurélia e o Sr. Gentil, que hoje dirigem o museu e a Association Internationale Auguste Comte, foram muito simpáticos e me deram todo o seu apoio. Sou muito grata a eles. Aprendi muito com o grande número de especialistas que realizaram estudos extraordinários sobre Comte. Também devo muito a eles. Durante os anos em que frequentei a Maison d’Auguste Comte, estudei principalmente as cartas de Comte e a correspondência entre os positivistas, e explorei documentos não indexados. Certo dia, descobri dentro de

Esse texto é a versão escrita de uma apresentação oral da autora na Maison d’Auguste Comte, em Paris, em 14/01/2010. Tradução de Julia da Rosa Simões. (N.T.) 2 DEA (Diplôme d’études approfondies): diploma francês de estudos superiores avançados. (N.T.) 3 Institut d’Études Politiques de Paris. (N.T.) 1

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PICKERING, M. • Auguste Comte

uma caixa que pertencera a positivistas do século XX três traduções das obras de Kant, Herder e Hegel. Elas haviam sido enviadas a Comte por um amigo, Gustave d’Eichthal, nos anos 1820, e eram consideradas perdidas desde sua morte. Utilizei esses manuscritos para demonstrar, pela primeira vez, a possibilidade de uma influência da filosofia alemã sobre o positivismo. Também descobri que discípulos de Comte haviam destruído certos materiais, como algumas cartas da esposa que poderiam fazê-lo parecer menos perfeito. Eu estava decidida a procurar em toda parte documentos sobre ele e seu movimento. Explorei outros arquivos em Paris e em Lyon. Percorri de ponta a ponta bibliotecas da Inglaterra e dos Estados Unidos. Por outro lado, li textos de inúmeras fontes secundárias. Ao longo dos últimos 30 anos, assistimos ao desenvolvimento da história do proletariado, da história das mulheres, da teoria das raças, da história cultural, do pós-colonialismo, da biografia pós-moderna e, mais recentemente, da história das religiões. Esses domínios da história influenciaram a maneira com que abordei a vida e as ideias desse homem fascinante. Minha biografia de Comte refaz as interconexões entre sua evolução pessoal e sua trajetória intelectual, enfatizando seu desenvolvimento enquanto pensador e a continuidade de sua filosofia. Ao mesmo tempo, procuro situar seu desenvolvimento pessoal e intelectual no contexto do período pós-revolucionário. O ponto mais importante no pós-Revolução Francesa dizia respeito ao problema dos fundamentos e dos fins do poder. As questões de legitimidade levariam às controvérsias ideológicas que formaram o pensamento de Comte. Essas controvérsias eram constantes, visto que ao longo de toda a sua vida, de 1798 a 1857, os franceses não conseguiram estabelecer um governo estável. A meu ver, as ideias de Comte emergiram da interação entre as crises do mundo exterior à sua volta e as que existiam em seu próprio mundo interior. No fundo, o positivismo foi tanto uma resposta à Revolução Francesa quanto à própria luta de Comte contra a doença mental. Ele buscava a integração, a harmonia e a unidade, características que faltavam tanto à sociedade em geral quanto em sua própria vida. Nascido em Montpellier, numa região devastada pela guerra civil, uma guerra civil que era reproduzida em sua família, cujas crenças monarquistas e católicas ele detestava, Comte procurou criar um novo sistema social que daria à França a paz e a estabilidade que esta desejava. Ele passou a vida tentando concluir o trabalho da Revolução.

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Derivado de minha tese de doutorado, o primeiro volume de minha biografia de Comte foi publicado em 1993. Esse volume abrange o período que vai do nascimento de Comte, em 1798, ao ano de 1842, quando terminou o Curso de filosofia positiva. No Curso, Comte afirmava que a teoria sempre precede a prática e que a reconstrução do mundo pós-revolucionário só poderia ser concretizada depois que o método científico ou “positivo” fosse estendido ao estudo da política e da sociedade, último baluarte dos teólogos e dos filósofos metafísicos. Adotar o método científico significava ligar as leis científicas à observação dos fenômenos concretos, particularmente evitando as especulações que eram invariavelmente teológicas ou metafísicas. Ele cunhou o termo “sociologia” em 1839 para se referir à sua nova ciência da sociedade. O termo “filosofia positiva” ou “positivismo”, que talvez venha de Saint-Simon e dos saint-simonianos, referia-se ao conjunto do sistema de conhecimentos, baseado no método científico. O segundo e o terceiro volumes de minha biografia sobre Comte foram publicados em setembro de 2009. O segundo volume cobre os anos de 1842 a 1852. Aborda a resposta de Comte à Revolução de 1848 e sua estreita relação com Clotilde de Vaux. O terceiro volume cobre os cinco últimos anos de sua vida, de 1852 a 1857, e se concentra em sua segunda obra-prima, o Sistema de política positiva, e outros livros importantes como Síntese subjetiva. Os dois últimos volumes de minha biografia de Comte cobrem o período de 15 anos que compreende os mais controvertidos de seu desenvolvimento, sua chamada segunda fase. Em 1847, Comte conseguiu transformar em religião, a Religião da Humanidade, seu sistema filosófico baseado nas ciências. Ele continuou sendo um ardente defensor da sociologia, novo campo de estudos, mas acrescentou uma sétima ciência, a moral, à hierarquia positivista das ciências. Cultivando o “altruísmo”, palavra que cunhou em 1850, a moral se focaria no indivíduo. Em 1847, Comte alterou seu sistema científico para que este se tornasse uma religião, demonstrando que todas as ciências, assim como todas as nossas atividades e todos os nossos sentimentos, deveriam futuramente ser dirigidos à sociedade, o sujeito da sociologia. A religião positivista englobava tanto um sistema comum de crenças quanto os processos ritualísticos e socializantes que estimulavam as emoções do povo, unindo-o em torno da veneração da sociedade, isto é, da Humanidade, e que honravam as personalidades que contribuíam para a melhoria do bem-estar do homem. Assim, durante a Revolu-

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PICKERING, M. • Auguste Comte

ção de 1848, quando os clubes conheceram grande proliferação, Comte fundou o movimento positivista, ou melhor, a Sociedade Positivista, para acelerar a transição à era positivista da história, quando esta religião floresceria. Com frequência essa fase de religião na vida de Comte é vista como uma contradição ao chamado período científico anterior. Um dos principais argumentos de minha biografia é que não houve uma ruptura súbita na trajetória de Comte depois que ele concluiu o Curso e depois de sua relação não consumada com Clotilde de Vaux, ao contrário do que em geral dizem os especialistas. Tratava-se apenas de uma “nova fase do positivismo”, como ele mesmo havia observado em 1847.4 As raízes dessa Religião da Humanidade eram claramente perceptíveis em seus escritos de juventude que preconizavam um novo poder espiritual para substituir o poder temporal, bem como um novo sistema moral e intelectual. Em 1826, Comte escreveu um artigo intitulado “Considerações sobre o poder espiritual”, no qual declarava: “O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana, aquele ao qual ela se inclina, por sua natureza, de maneira contínua e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se dele”. Tanto os céticos quanto os revolucionários dão uma “forma dogmática” a suas “ideias críticas”.5 Desde o início, Comte procurou fornecer a seus contemporâneos um sistema de crenças que satisfizesse seus desejos ardentes de certeza e que os unisse como os adeptos de um credo. Esse sistema obteria certa legitimidade se fundamentado em princípios que pudessem ser demonstrados. Ele seria mais influente se tivesse uma base institucional num novo poder espiritual. No Curso, Comte se refere especificamente à necessidade de criar uma “Igreja positiva”.6 Em sua obra, ele também frisava ter compreendido desde o início a importância dos sentimentos associados à religião. Desde a juventude, considerava as

Carta de Comte a Henri de Tholouze, 18 de dezembro de 1847. In: Auguste Comte: Correspondance générale et confessions. Org. de Paulo E. de Berrêdo Carneiro, Pierre Arnaud, Paul Arbousse-Bastide e Angèle Kremer-Marietti. Paris: Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1973-90, 8 v. v. 4, p. 130. 5 COMTE, Auguste. Considérations sur le pouvoir spirituel. In: Système de politique positive ou Traité de sociologie instituant la religion de l’Humanité.(Paris, 1851-1854. 5. ed., idêntica à 1ª edição. Paris: Au Siège de la Société Positiviste, 1929, 4 v. v. 4, Appendice, p. 202-203. 6 COMTE, Auguste. Physique sociale: Cours de philosophie positive, leçons 46 à 60. Org. de Jean-Paul Enthoven. Paris: Hermann, 1975, p. 696. 4

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emoções como o motor da existência. Elas estimulavam o intelecto e davam-lhe uma direção moral. Ele escreveu, no Curso, que “o amor universal [...] certamente é mais importante que a própria inteligência, na economia usual de nossa existência, individual ou social, porque o amor utiliza de maneira espontânea, para proveito de cada um, até as menores faculdades mentais; ao passo que o egoísmo desnatura ou paralisa as mais eminentes disposições – a partir de então muito mais perturbadoras que eficazes – à real felicidade, seja privada ou pública”.7 O Sistema nada mais fazia que colocar em obra o programa que Comte havia formulado no início dos anos 1820. Além disso, Comte não traiu seu primeiro programa, pois desde o início de sua carreira afirmava que nunca havia confiado no modelo de pensamento moral e neutro, “positivista” ou “científico”, que hoje está ligado a seu nome. Ele rejeitava as estatísticas e o empirismo e suas coleções inúteis e simplistas de fatos e números. Para ele, o poder da razão era limitado. Escreveu que “o espírito humano [...] [estava] muito mais apto a imaginar do que a raciocinar”.8 Para observar um fato qualquer, o espírito precisava imaginar uma hipótese provisória. Em sua opinião, o espírito era fraco e nunca poderia compreender a realidade e a verdade absoluta. Era particularmente impossível ter uma compreensão total e objetiva da realidade social, que era extremamente complexa e próxima de nós. Insistindo na necessidade de fazer juízos de valor, continuou atribuindo a seu sistema filosófico uma missão prática e política, a de concluir a Revolução Francesa e criar um novo sistema social baseado na justiça para todos. Desde o início foi motivado pelas reformas sociais e pelo ativismo político. Nunca glorificou as ciências em si, mas considerava-as uma ferramenta capaz de melhorar o bem-estar social. Recorreu a elas para criar a nova atitude mental requerida pela sociedade industrial moderna em vias de emergir. O positivismo desencadearia uma revolução intelectual que levaria a uma ordem moral marcada pelo acordo geral dos indivíduos por meio da simpatia e, a seguir, a uma transformação política que daria início a uma nova era positivista de acordo geral e de harmonia social. Apesar de

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Ibid., p. 362. COMTE, Auguste. Philosophie première: Cours de philosophie positive, leçons 1 à 45. Ed. de Michel Serres, François Dagognet, Allal Sinaceur. Paris: Hermann, 1975, p. 99.

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os críticos terem zombado dos positivistas, criticando sua preocupação exclusiva com fatos insignificantes e a manutenção do status quo, Comte era a favor das grandes teorias capazes de lançar uma revolução intelectual e moral de grande alcance. Embora seja comum pensar que aqueles que controlariam a sociedade positiva de Comte seriam os cientistas, demonstrei que Comte não confiava neles. A especialização os deixava com mentes estreitas e indiferentes aos problemas da sociedade em geral. Reagindo contra os cientistas, ele afirmava que os filósofos positivos, homens que haviam sido formados em todas as ciências e, consequentemente, com um conhecimento mais geral, possuíam os pontos de vista mais diferentes possíveis e as afinidades mais diversas. Eles deveriam substituir o clero tradicional e guiar a nova sociedade positivista, conduzindo sua energia rumo a um objetivo comum, o aperfeiçoamento da humanidade. No entanto, Comte avisou para nunca darmos a eles o poder em si, pois tentariam exercer um controle total. Comte era a favor de um sistema de separação dos poderes. Os filósofos positivos, que formariam o poder espiritual, seriam fiscalizados pelos industriais, que constituiriam o poder temporal. Mas Comte criticava muito os industriais, pois a especialização deles exigida, como a dos cientistas, levava ao orgulho e ao egoísmo. Eles tampouco conseguiam focar sua atenção no bemestar do povo. Como Marx, Comte afirmava que a assustadora luta de classes não era causada pelos operários, mas pela “incapacidade política”, pela “incúria social” e, principalmente, pelo “egoísmo cego dos empreendedores”.9 Ele esperava, portanto, que os operários constituíssem o poder temporal até que os industriais fossem reabilitados. Estava a dois dedos de preconizar a famosa ditadura do proletariado de Marx. Comte se encontrava numa situação paradoxal, da qual tinha consciência. Ele recomendava uma filosofia social baseada nas ciências, mas alimentava uma profunda desconfiança da capacidade do espírito puramente científico de regenerar o mundo político e social. Além disso, a legitimidade de suas ideias antielitistas que davam prioridade às necessidades do conjunto da comunidade só poderia ser obtida se ele fizesse parte do grupo elitista dos cientistas. Apesar de tudo, sua filosofia generalista, que destaca-

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COMTE, Physique sociale, p. 620.

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va a importância do método científico, não satisfazia os padrões da especialização que os novos profissionais do século XIX exigiam. Conforme revelado pelos documentos dos arquivos da École Polytechnique, os cientistas não o prezavam nem profissional nem pessoalmente. A decepção de Comte é perceptível na frase que conclui o Curso, que condenava “o cego ou malintencionado impulso dos preconceitos e das paixões próprios de nosso deplorável regime científico”.10 O Curso de filosofia positiva, aparentemente uma obra científica, tinha como objetivo limitar o espírito científico da idade moderna, cuja especialização, egoísmo e indiferença social causavam um prejuízo moral incomensurável. A meu ver, Comte adotou uma terminologia religiosa tradicional em parte por razões pragmáticas. Após o declínio das práticas religiosas resultante da Revolução, as ideias religiosas tinham se tornado aceitáveis e correntes no início dos anos 1840. Os românticos enfatizavam a importância do espiritual. Novas ordens religiosas e escolas privadas proliferaram graças à Lei Falloux, de 1850, que permitiu a liberdade de educação. Na sequência de uma aparição da Virgem Maria em 1846,11 a noção de Imaculada Conceição tornou-se dogma em 1854. Impacientes para ajudar a classe operária e as mulheres, muitos socialistas tentaram restabelecer o cristianismo de uma nova forma, mais igualitária. Não se sentindo à vontade com o agnosticismo, o ateísmo e o ceticismo, Comte queria fazer parte dessa escalada do fervor religioso, com a audácia que lhe era característica. Ele insistia no fato de não ser necessário que a razão e a ciência fossem antitéticas à religião. No segundo volume do Sistema, chegou a dizer que “Nossa natureza, individual ou coletiva, torna-se, então, mais e mais religiosa”.12 Como justificou esse comentário notável? Através do lamarckismo. Comte afirmava que o aspecto fundamental do desenvolvimento humano era o fato de que, por meio do exercício, as características únicas da espécie humana – a inteligência e a sociabilidade – se tornavam dominantes, tanto no indivíduo quanto na sociedade. Assim, as pessoas se tornavam não apenas mais racionais, como mais altruístas, mais ligadas aos outros, em suma, mais religiosas. Ele acreditava que a essência da religião residia na capacidade de estabele-

Ibid., p. 791. Aparição da Nossa Senhora de La Salette (nos Alpes franceses) a duas crianças. (N.T.) 12 Système, v. 2, p. 19. 10 11

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cer laços entre os indivíduos. Criticado por ter dado o nome de religião a seu sistema moral, Comte explicou em 1849 que havia “ousado unir [...] o nome [religião] à coisa [positivismo] a fim de logo instituir uma concorrência declarada com todos os outros sistemas”.13 Ele queria uma batalha doutrinal bem definida contra o catolicismo e as versões esquerdistas do cristianismo, uma batalha que aceleraria o triunfo do positivismo e o início de uma nova ordem. Preocupado com o crescente ceticismo do período pós-revolucionário, decidiu formular uma síntese para fornecer a seus contemporâneos ideias e crenças novas e homogêneas, isto é, uma nova fé que pudesse aproximá-los. Somente se fosse ao mesmo tempo emocional e racional é que essa síntese unificadora poderia levar à concordância geral no domínio social, necessária para destruir o materialismo e o egoísmo da sociedade industrial moderna. Ela precisava ser atraente tanto para a esquerda quanto para a direita, a fim de elevar-se acima dos problemas deixados pela Revolução Francesa e criar a harmonia. No Sistema de política positiva, Comte imaginou uma cultura religiosa totalmente nova, que permitiria unir a sociedade. Ele admitia que, nos novos tempos, a ação política utilizasse a religião, a educação e as artes para formar sentimentos, crenças e representações. Tendo vivido sob os reinados de Napoleão I e de Napoleão III, que fizeram uso da iconografia para popularizar seus regimes, ele compreendia a importância da cultura visual para reforçar as mensagens sociais e políticas. Nesse sentido, mandou pintar seu retrato e encomendou um busto de Antoine Etex para imortalizar sua imagem, concebeu bandeiras positivistas nas quais uma jovem mãe representava a Humanidade, desenhou plantas dos Templos da Humanidade, imprimiu seu próprio esquema do espírito humano e adotou o verde como cor do positivismo. As pessoas se aproximariam umas das outras por crenças comuns, mas os laços emocionais, cultivados por imagens específicas e referências visuais, também contavam muito. Ao apresentar uma visão de conjunto da Religião da Humanidade, Comte almejava sobretudo reviver o concreto, a intensa espontaneidade emocional e as predisposições poéticas do primeiríssimo estágio da vida religiosa, o fetichismo. Apesar de ser conhecido como um apóstolo do pro-

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COMTE, Quatrième confession annuelle, 31 de maio de 1849. In: Correspondance générale, v. 5, p. 22.

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gresso, Comte paradoxalmente temia os efeitos da ciência e do pensamento abstrato, que tornavam as pessoas orgulhosas e egoístas, e estava convencido de que o Ocidente precisava de uma injeção de religião primitiva para continuar seu avanço. Ele foi um dos primeiros pensadores a celebrar o fetichismo, que associava à raça negra. Para ele, “os humildes pensadores da África central” eram mais racionais sobre a natureza humana e a sociedade do que os “magníficos doutores germânicos” e suas “verborragias pomposas”. Comte dizia que “A tocante lógica do mais simples dos negros é [...] mais sábia que nossa aridez acadêmica que, sob o pretexto empírico de uma imparcialidade sempre impossível, consagra diariamente a desconfiança e o receio”.14 Ao contrário dos homens modernos, os adoradores de fetiches cultivavam seus afetos mais valiosos por meio da veneração, da confiança e da adoração de todos os seres. Eles admiravam o que era concreto e útil e respeitavam o mundo natural. Comte tentou reproduzir esse tipo de veneração incentivando o povo a se devotar à Humanidade, o “Grande Ser”, e a respeitar a Terra, o “Grande Fetiche”. Em vez de celebrar as maravilhas da indústria, enfatizou a importância da humildade e da modéstia demonstrando que todos os povos estavam ligados uns aos outros e à Terra. Quando modificavam a Terra, as pessoas deveriam aprender os benefícios morais da cooperação social. Se elas se conformassem com mais inteligência às leis da Terra, tornar-se-iam menos egoístas e mais felizes. Em suma, o positivismo incorporaria o fetichismo. Paradoxalmente, o estágio mais avançado da civilização representaria um retorno às origens. Comte foi de fato um dos primeiros adeptos da ecologia. Condenando o racismo, a escravidão e o imperialismo, julgando que estes dividiam a humanidade em vez de uni-la, Comte lançaria um desafio aos estereótipos raciais ao afirmar que um dia “algum pensador negro” poderia estudar suas obras e dar-lhe seu apoio.15 Apesar de ter adotado uma posição essencialista segundo a qual os brancos eram inteligentes, os negros eram emotivos e os “amarelos” eram ativos e pragmáticos, ele não pensava que as diferenças raciais fossem imutáveis ou totalmente determinantes. Uma pessoa negra podia ser emotiva acima de tudo, mas igualmente inteligente e ativa. Comte afirmava que as diferentes raças se pareceriam

14 15

Système, v. 3, p. 99, 121, 155. Ibid., p. 156.

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cada vez mais à medida que desenvolvessem partes diferentes de seu cérebro, graças às mudanças no meio ambiente. Na era positivista, elas seriam obrigadas a utilizar e, consequentemente, desenvolver todas as suas capacidades. Ele foi um dos poucos pensadores a louvar os casais de etnias diferentes, afirmando que os casamentos mistos envolviam a partilha das características associadas a cada raça. Na esperança de acabar com o militarismo e as guerras, Comte desejava disseminar o sentimento de nossa humanidade comum, ou sociabilidade, pelo mundo inteiro. Foi um dos poucos pensadores do século XIX a promover o cosmopolitismo e a cultura da sociabilidade aos quais os filósofos do século XVIII davam grande valor. Oposto ao nacionalismo extremo de seus semelhantes europeus, condenou o envolvimento da Inglaterra na Guerra do Ópio contra a China, sua recusa de ceder Gibraltar e seu tratamento à Índia. Em sua opinião, essas iniciativas imperialistas estavam ligadas a interesses industriais. Também condenava a invasão francesa da Argélia, que, como insistiu repetidamente, devia ser devolvida aos árabes. Criticava a criação de um império por Napoleão I e Napoleão III. Para ele, a opressão interna sempre iria de par com a opressão externa. Alguns de seus discípulos, que acreditavam na missão dos franceses no plano da civilização, ressentiram-se de seu anti-imperialismo. Para opor-se ao nacionalismo e às ambições imperialistas, e principalmente para reduzir a ameaça de guerra, Comte preconizava que todas as nações fossem divididas em pequenas repúblicas, onde a sociabilidade seria mais fácil de cultivar e onde a lealdade das pessoas seria espontânea e voluntária. A França seria dividida em 17 dessas pequenas repúblicas. A capital desse sistema republicano universal seria Constantinopla, a cidade que, para Comte, melhor uniria o Leste e o Oeste. Como seus contemporâneos franceses, ele era fascinado pelo Oriente. Dentro de seu objetivo de mostrar o profundo respeito do positivismo pela história como um todo e uma generosa avaliação das outras religiões, ele frequentemente louvava Maomé e o Islã. Acreditava que os muçulmanos estavam maduros para uma conversão positivista, pois sua fé era tolerante e simples. Eles se preocupavam com as necessidades da comunidade e tinham sido preservados das influências anarquistas dos especialistas em metafísica e dos legisladores. Comte chegou inclusive a expressar a esperança de que os argelinos convertessem os franceses ao Islã, em vez de os franceses os transformarem em católicos.

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Na era positivista por vir, as 500 repúblicas do mundo inteiro seriam caracterizadas internamente pela harmonia entre os principais grupos: os industriais regenerados, que constituiriam o poder temporal, e os filósofos, as mulheres e os operários positivistas, que representariam as componentes do poder espiritual. Os filósofos positivistas, que encarnariam a razão, seriam ajudados sobretudo pelas mulheres, que personificavam os sentimentos, e os operários, que representavam a atividade. Ao contrário da burguesia masculina no poder, as mulheres e os operários escapariam à cultura artificial e materialista da época. Comte recorria cada vez mais ao apoio deles, pois havia sido repelido pelos cientistas de seu tempo. A partir de 1851, Comte passou a convocar ainda mais as mulheres, após ter percebido que seria impossível tirar os operários do socialismo. Alguns intelectuais acusam Comte de ser um “falocrata”.16 No entanto, tendo lido Uma defesa dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, tendo se tornado amigo da intelectual inglesa Sarah Austin, tendo ouvido John Stuart Mill e conhecido o notável trabalho de sua tradutora, Harriet Martineau, Comte deu às mulheres uma identidade positiva. Ele afirmava que, na qualidade de peritas em matéria de emoções, elas seriam os agentes morais que poderiam unificar uma sociedade cada vez mais fragmentada. Após a Revolução de 1848, ele expressou seu temor de que o problema da anarquia não seria resolvido “enquanto a revolução não tiver se tornado feminina”.17 Tinha medo de que, sem o suporte feminino, seu próprio movimento reformista se visse desacreditado. Aliás, uma razão pela qual ele enfatizava a Religião da Humanidade é o fato de querer agradar às mulheres, que associava à religião. Seu Catecismo positivista, que consistia num diálogo entre uma mulher e um sacerdote positivista, dirigia-se especialmente ao público feminino. Além disso, ele incentivava as mulheres a formar a opinião pública retomando os salões e a escapar à dominação dos homens exercendo um controle sobre o próprio corpo e tendo filhos sem qualquer participação masculina. E como elas eram dotadas da melhor característica humana, a sociabilidade, ele insistia para que as mulheres representassem a própria Humanidade. Nos templos positivistas, a Humanidade seria sempre repre-

KOFMAN, Sarah. Aberrations: Le Devenir-Femme d’Auguste Comte. Paris: Aubier Flammarion, 1978, p. 233. 17 Carta de Comte a Georges Audiffrent, 7 de junho de 1851. In: CG, v. 6, p. 108. 16

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sentada por uma mulher acompanhada do filho. Essa audaciosa substituição do Deus Pai no sistema positivista reflete a convicção de Comte de que as mulheres ocupariam a “primeira posição da sociedade normal” do futuro.18 O papel delas ilustra o objetivo de Comte, que era colocar os sentimentos empáticos no centro da vida pública a fim de criar uma sociedade mais compassiva e mais harmoniosa. A visão de Comte quanto a uma sociedade futura caracterizada pela harmonia não era apenas uma reação ao caos de seu tempo, mas também uma resposta ao caos que existia dentro dele. Ao longo de toda a vida, Comte precisou lutar contra a psicose maníaco-depressiva. Ele sofria crises de excitação que se alternavam com ondas de profunda depressão. As piores crises ocorreram em 1826, 1838 e entre 1845 e 1846. Demonstrei o quanto essa doença o tornou rebelde, paranoico e delirante. Ele lutava todos os dias para ter boa saúde. Comia refeições simples, dormia entre sete e oito horas por noite, eliminava o café e demais estimulantes, e dava longas caminhadas todos os dias, para se cansar fisicamente. Intelectualmente, a fim de evitar o estresse, retirou-se cada vez mais em seu mundo pessoal, recusando-se, em 1838, a ler o que quer que fosse, exceto poesia. Ele afirmava que esse regime de higiene cerebral seria a única maneira de manter sua pureza enquanto gênio e reformador moral. Na verdade, a loucura era uma doença comum nos homens criativos do século XIX. Até mesmo John Stuart Mill teve uma depressão nervosa. Mas sustento que Comte se retirou do mundo contemporâneo literário e intelectual para preservar seu frágil ego dos ataques dos críticos. Qualquer tipo de controvérsia, ou mesmo um esforço intelectual intenso e emoções violentas, constituíam uma ameaça a seu bem-estar mental, e ele organizou sua vida de modo a evitar esses perigos. Mesmo assim, o que mais caracterizou suas relações com os outros foi o conflito, que em geral resultava em rompimento. Seu temperamento apresentava outro grande paradoxo que considero fascinante: o fundador da sociologia – a ciência que se especializou no estudo das relações sociais – era um homem que não se sentia à vontade nas associações humanas mais elementares. Ele tinha a impressão de ser um estrangeiro na sociedade que era o objeto de seu estudo. Vários exemplos explicativos permitirão elucidar a psique de Comte.

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Carta de Comte a Harriet Martineau, 29 de dezembro de 1853. In: Correspondance générale, v. 7, p. 160.

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Apesar de Comte reivindicar o respeito da família por se distanciar da filosofia do amor livre dos saint-simonianos, ele estava em constante desacordo com os membros de sua própria família. Comte acusava a irmã de conspirar para deserdá-lo. Seus pais não gostavam de seus ataques contra a religião, de seu republicanismo e de sua escolha profissional. Em 1838, Comte disse ao pai que desejava romper toda comunicação com a família. Seu pai ficou completamente aturdido. Quase dez anos se passaram antes que eles retomassem a troca de correspondência. Esta manteve-se fria. Comte conheceu uma pessoa capaz de preencher temporariamente o papel de pai: Henri de Saint-Simon. Ao contrário de Henri Gouhier, que minimizava a importância de sua influência, penso que Saint-Simon deu à reflexão de Comte um certo direcionamento filosófico. Ao longo do Império napoleônico, Saint-Simon havia sustentado que a criação de um novo sistema unificado de conhecimentos científicos, centrado no estudo da sociedade, daria início a uma nova era em que os industriais substituiriam os líderes militares no poder temporal ou secular, e os cientistas tomariam o lugar do clero no poder espiritual. Quando Comte começou a trabalhar para Saint-Simon, esse filósofo que começava a envelhecer se voltava para a organização prática e industrial da sociedade. Mas Comte retomou a missão inicial de Saint-Simon, a fundação do sistema científico, isto é, a filosofia positiva, bem como a ciência da sociedade. Fiel ao conceito de SaintSimon que preconizava que a teoria deveria preceder a prática, Comte desenvolveu as ideias espalhadas ao acaso no conjunto dos escritos irregulares de seu mestre. Contudo, depois de trabalhar em estreita colaboração com Saint-Simon no jornalismo ao longo de sete anos, com frequência expressando sua afeição por ele, um dia Comte decidiu que não queria mais relacionar-se com ele. Acreditava que Saint-Simon estivesse roubando suas ideias. Em suas últimas obras, portanto, chamou Saint-Simon de “charlatão superficial e depravado”.19 Outro mestre foi o célebre cientista Blainville, que Saint-Simon lhe havia apresentado. Comte jantava uma vez por mês na casa de Blainville. Em 1850, porém, quando Blainville não pôde mais ajudá-lo financeiramente

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Carta de Comte a George Frederick Holmes, 18 de setembro de 1852. In: Correspondance générale, v. 6, p. 378.

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e passou a manifestar suas tendências religiosas em obras científicas, Comte se virou contra ele. Falou duramente de Blainville no discurso durante as exéquias deste, declarando que sua morte por ataque cardíaco, sozinho dentro de um trem, havia sido adequada, pois ele era egoísta. Muitos foram os que pensaram que Comte havia sido cruel ao tratar dessa maneira um amigo íntimo. Vários outros amigos próximos romperiam relações com Comte. Fisher e Émile Tabarié, amigos de infância, foram rejeitados depois de supostamente terem criticado a esposa de Comte. O melhor amigo de Comte, Pierre Valat, sugeriu-lhe que tentasse escrever com mais clareza e concentrar-se na epistemologia. Comte respondeu-lhe, furioso, dizendo que já havia passado da “idade da discussão”.20 A amizade de 30 anos chegou ao fim. Gustave d’Eichthal, amigo e primeiro discípulo, também recomendou a Comte ser menos abstrato. Sentiu-se distante de Comte com a resposta que recebeu e desistiu da relação. Conhecidos importantes como François Guizot e os intelectuais ingleses George Grote, Sarah Austin e Harriet Martineau se afastaram. Jules Michelet levou uma patada quando visitou Comte pela primeira vez. Colegas de trabalho, dentre os quais alguns velhos amigos, como Duhamel, acabaram dispensando-o da École Polytechnique. Todos estavam cansados do egoísmo, da paranoia e da beligerância de Comte. Problemas similares prejudicaram sua importante relação com John Stuart Mill, que lhe escreveu em novembro de 1841 para dizer o quanto suas ideias haviam tido um impacto profundo em seu próprio desenvolvimento intelectual. Mill se uniu a Comte naquilo que ambos consideraram como o início de uma aliança dos intelectuais mais avançados da época. Dois anos depois, no entanto, Mill começou a mudar de opinião a respeito do positivismo quando ouviu falar de um ponto de vista de Comte, que declarava que a vida conjugal estava baseada nas desigualdades sexuais e que as mulheres não eram tão inteligentes quanto os homens, conforme demonstrado pelo tamanho do cérebro. Mill afirmava que a maioria das defasagens entre homens e mulheres poderia ser minimizada se as mulheres recebessem uma educação melhor. A amante de Mill, que mais tarde se

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Carta de Comte a Pierre Valat, 17 de setembro. In: Correspondance générale, v. 2, p. 86.

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tornaria sua mulher, a feminista Harriet Taylor, acusou-o de agir covardemente para com Comte. Ela escreveu: “A raiz seca que é esse homem não representa um adversário de valor”.21 Mill sentiu vergonha. A amizade acabou em 1847, depois de Comte ter insultado Mill e seus amigos, atacandoos por não lhe darem mais suporte financeiro. Mill concluiu: “[Comte] é um homem que só podemos servir dizendo sempre o mesmo que ele”.22 Alguém concordava com Mill: a mulher de Comte, Caroline Massin. Tentei reabilitá-la em sua relação com o marido e estudei sua correspondência, revista e publicada em 2006 pelo Sr. Gentil. Ex-diretora de biblioteca, Caroline Massin era uma mulher inteligente e cheia de espírito que ajudou Comte a se recuperar da crise de loucura de 1826. Ela lhe deu todos os tipos de conselhos para sua saúde, seu trabalho e sua maneira pouco diplomática de tratar as pessoas, especialmente os colegas. Quando Comte se recusou a ouvi-la, agindo como se ela não existisse, ela o abandonou, em 1842, acusando-o de ser um tirano. Anos depois, escreveu a Comte uma carta pungente que resumia suas dificuldades: “Sempre fui-lhe muito devotada, mas não era submissa. Com menos devotamento verdadeiro e mais submissão, as coisas teriam ido melhor entre nós. Quantas vezes você no fundo teve razão, mas me pedia para ceder em nome de sua autoridade, e eu me erguia à sua frente enquanto deveria me submeter. Submissa mesmo assim, eis o que eu não soube ser. Mas mesmo assim o amei, veja bem”.23 Furioso por ter sido deixado, Comte puniu-a numa de suas últimas obras, chamando-a de prostituta. A alegação foi perpetuada pelos discípulos de Comte, que a detestavam porque ela desejava contestar seu testamento. Mas a acusação é muito discutível. Era uma atitude típica da época: as mulheres eram vistas ou como anjos do lar ou como tentadoras fatais. Como o espírito independente de Caroline Massin não combinava com o primeiro tipo, Comte colocou-a sob o segundo. Harriet Taylor, nota a John Stuart Mill, sem data, Mill-Taylor, GB 0097, v. 2, item 327, fólio 723, 723v, 724, 724v, British Library of Political and Economic Science, London School of Economics. Ver também HAYEK, F. A. John Stuart Mill and Harriet Taylor: Their Correspondence and Subsequent Marriage. London: Routledge and Kegan Paul, 1951, p. 114-115. 22 Carta de J. S. Mill a Mrs. Sarah Austin, 18 de janeiro de 1845. In: ROSS, Janet. Three Generations of Englishwomen: Memoirs and Correspondence of Mrs. John Taylor, Mrs. Sarah Austin, and Lady Duff Gordon. London: John Murray, 1888, 2 v., v. 1, p. 200. 23 Carta de Caroline Massin a Auguste Comte, 17 de janeiro de 1850. COMTE, Auguste; MASSIN, Caroline. Correspondance inédite: l’histoire de Caroline Massin, épouse d’Auguste Comte à travers leur correspondance. Org. de Pascaline Gentil. Paris: L’Harmattan, 2006, p. 250. 21

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A pessoa que correspondia ao primeiro tipo, para Comte, era Clotilde de Vaux. Como Caroline Massin, era muito mais forte, inteligente e independente do que os biógrafos de Comte a descrevem. Quando conheceu Clotilde de Vaux, em 1845, essa mulher de 30 anos vivia na miséria, totalmente responsável pela família depois de ter sido abandonada pelo marido. O que a tornava fascinante era o fato de ser uma jornalista e romancista promissora que, como muitas mulheres do século XIX, tentava ganhar a vida e se realizar através de seus escritos. Paralisada pelo amor de seus pais, bem como pelo amor exigente e possessivo dos homens, ela tinha sede de “liberdade”: “Há momentos em que sinto vontade de morrer sem laços, tanto sofri por causa deles”.24 Ela almejava sobretudo ter a liberdade de se entregar a quem quisesse, quando e se quisesse. Comte cortejou-a deliberadamente para desenvolver sentimentos que, segundo ele, estavam diminuídos devido às más relações que mantinha com sua família e sua mulher. Ele estava a ponto de escrever o Sistema que tratava do lado emocional da existência humana, e pensava precisar de mais profundidade nesse aspecto. Rejeitando as aspiração jornalísticas de Clotilde de Vaux, sentia dificuldade em respeitar seu desejo, que consistia em limitar suas discussões a questões intelectuais interessantes. Ele exasperou-a ao insistir que sabia o que seria melhor para seus interesses e ao afirmar que a achava moralmente superior. Ela respondeu: “Ainda não encontrei a perfeição, nem nos outros nem em mim. Há grandes úlceras no fundo de cada ventre humano. Resta saber como escondê-las”.25 De fato, Clotilde de Vaux recusava a Comte venerá-la. Tal adoração lhe parecia não apenas artificial, como restritiva. Mesmo que os positivistas celebrassem seu amor por ele, na verdade Clotilde de Vaux não era tocada pelos estratagemas de Comte. Ela resistia a seus avanços sexuais e o mantinha à distância, vendo nele apenas um amigo. No entanto, foi cada vez mais obrigada a contar com sua boa vontade e seus recursos financeiros quando começou a perder a batalha que travava contra a tuberculose. Em abril de 1846, morreu em seu quarto. Comte estava a seu lado e não permitiu que os pais dela entrassem. Queria ser o único a reco-

Clotilde de Vaux à Comte, 5 de dezembro e 12 de dezembro de 1845. In: Correspondance générale, v. 3, p. 221, p. 235. 25 Carta de Clotilde de Vaux a Comte, 25 de maio de 1845. In: Correspondance générale, v. 3, p. 24. 24

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lher seu último suspiro. Incapaz de dominá-la completamente quando ela estava viva, passou a exercer seu poder sobre ela transformando-a na mulher perfeita, submissa e pura, tudo o que sua esposa, pretensamente detestável, não era. Refletindo a lógica binária intrínseca da identidade sexual da época, ele transformou Clotilde de Vaux num anjo que inspirava sua própria bondade, enquanto sua esposa, Caroline Massin, era um demônio que ameaçava seu trabalho. A veneração de Comte por Clotilde de Vaux chegou a fazer parte de sua Religião da Humanidade. Silenciada pela morte, ela não podia mais objetar à própria canonização. De fato, representações de mulheres mortas abundam nas artes e na literatura de meados do século XIX, pois elas permitiam aos homens se sentirem triunfantes sobre os aspectos ameaçadores da feminilidade. Não partilho da opinião de John Stuart Mill, nem da de Raymond Aron, que afirmavam que Clotilde de Vaux foi a causa do declínio intelectual de Comte e que ela mudou a direção de suas ideias. Clotilde de Vaux reforçou a importância crescente que ele atribuía aos sentimentos e fez renascer o interesse de Comte pela “questão da mulher”, silenciado pela acrimoniosa relação com Caroline Massin. A aliança entre as mulheres e os filósofos positivistas, que ele já havia promovido no último volume do Curso, tornou-se o centro de sua doutrina. Esses episódios da vida pessoal de Comte demonstram as dificuldades que ele teve para de fato estabelecer relações pessoais normais. Ele insistia tanto na necessidade de uma harmonia total que, para alcançá-la, sacrificou a família, em primeiro lugar, depois a mulher e, a seguir, um amigo depois do outro. É como se tivesse aplicado sua higiene cerebral a seu círculo social. Sentindo uma necessidade absoluta de harmonia perfeita na própria vida, prescreveu a mesma coisa para a sociedade. O tipo de sociedade que imaginava não seria formada por grupos de facções conflitantes ou concorrentes, mas por um regime supervisionado por um poder espiritual encarregado de exercer o controle, que educaria as pessoas e as inspiraria a entrar em acordo sobre o conjunto de opiniões. Indiferente às necessidades dos outros, Comte encontrou certa gratificação num amor abstrato pela Humanidade, que lhe permitia evitar as dificuldades inerentes às relações pessoais. Ele se vangloriava de ser a única pessoa capaz de compreender as ideias gerais e, ao mesmo tempo, dar provas de altruísmo. Ao fim da vida, reivindicou ser “mais completo que qual-

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quer um dos personagens que, até o momento, ocuparam a cena revolucionária”. Afirmando ser um modelo de virtude, dizia ser o fundador legítimo de uma sociedade e de uma religião, igualmente novas. Graças à autoconfiança e à inteligência superior de Comte, tanto quanto à doutrina aprofundada que dava prioridade ao bem-estar da comunidade e previa um futuro harmonioso, ele granjeou um pequeno número de adeptos da esquerda e também da direita, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos e na América Latina. Alguns admiravam suas ideias esquerdistas. Quando a Revolução de 1848 se desencadeou, Comte tentou incitar os operários a se afastarem do socialismo e fundou a Sociedade Positivista para lançar um movimento positivista. Seu manifesto, o Discurso sobre o conjunto do positivismo, condenava o extremismo político, especialmente o de direita, preconizava a incorporação dos proletários à sociedade através da melhoria de suas perspectivas de emprego e educação, e apresentava uma visão geral da ideia de um triunvirato positivista dirigente, saído inicialmente da classe operária. Ele dizia que apesar do positivismo não procurar abolir a propriedade privada, ele absorvia e reforçava os princípios básicos do comunismo, no sentido de que aceitava o fato de que a comunidade deveria intervir para “subordinar [a propriedade] às necessidades sociais”.26 Comte também apoiava os operários que reivindicavam o direito de trabalhar, uma melhor educação e uma república em que detivessem mais poder. Invocou esquerdistas renomados como Proudhon, Blanqui e Barbès, pedindo seu apoio. Contudo, temendo que os revolucionários se tornassem violentos demais e anarquistas, por um breve período de tempo apoiou o regime de ditadura de Luís Napoleão, que esperava converter ao positivismo, o que seria a primeira etapa para obter os favores do país inteiro. Em dado momento, chegou inclusive a sugerir-lhe que designasse como sucessor, pretendente legítimo, o conde de Chambord. Em 1855, Comte escreveu um Apelo aos conservadores, para convencê-los a unir-se aos positivistas contra a esquerda. Comte queria uma aliança com os jesuítas e dirigiu-se aos aristocratas ingleses, ao czar da Rússia e aos dirigentes turcos. O crescente conservadorismo de Comte lhe custou o apoio dos esquerdistas. Seus discípulos ficaram horrorizados ao descobrir que ele havia

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Système, v. 1, p. 155.

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perdido não apenas Mill, como também seu adepto francês mais importante, Émile Littré. Ambos haviam dado certa legitimidade ao movimento graças ao renome de que gozavam. Charles Robin e George Henry Lewes eram outros adeptos que também desertariam. Mas Comte ainda tinha cerca de 50 discípulos fiéis na Sociedade Positivista. Havia uns 15 operários, mas a maioria era formada por homens jovens de classe média que vinham de Paris e da província. Eram escritores, estudantes e médicos. As pessoas se filiavam ao movimento por um número variado de motivos, pois liam de maneiras diferentes sua doutrina rica e complexa. A política era uma razão pela qual muitos aderiram a seu movimento. Alguns o consideravam um humanista ou um republicano que se interessava pelos homens do povo. Outros estavam convencidos de que o positivismo era um baluarte contra a Revolução. Muitos ficavam fascinados pelo sistema científico de Comte enquanto síntese do saber erudito. Esse sistema parecia explicar as ciências, numa época sedenta por categorização, e explicava a orientação da história, que adquiria então estatuto científico. A nova ciência da sociologia parecia fornecer uma maneira racional de absorver os problemas aparentemente insolúveis do modernismo. Alguns adeptos não se interessavam pelos aspectos científicos do positivismo, mas manifestavam muito entusiasmo pela Religião da Humanidade elaborada por Comte. Esta oferecia ritos e dogmas suficientes para substituir o cristianismo junto a pessoas que haviam abandonado sua fé tradicional com grande dificuldade, ou às que nunca tinham adotado uma religião. A eliminação de Deus por Comte e o sólido sistema moral baseado nos fatos e na transparência pareciam estar livres da hipocrisia e agradavam aos céticos religiosos que agora podiam se orgulhar de si mesmos e de sua sinceridade. Muitos agnósticos e ateus sentiam a necessidade de acreditar em alguma coisa coerente, abstrata e abrangente. Graças ao estrito sistema moral de Comte, também podiam trabalhar para seu próprio aperfeiçoamento e receber honrarias, como os crentes. Graças a seu elaborado sistema de rememoração, eles podiam alcançar a imortalidade. Também podiam utilizar sua doutrina para atacar as igrejas tradicionais. Algumas pessoas se sentiam atraídas pelo positivismo devido à personalidade de Comte. Ele permitia que membros da Sociedade Positivista

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se aproximassem uns dos outros e ficassem orgulhosos de pertencer a um movimento exclusivo que construía uma nova era. Eles admiravam não apenas sua visão audaciosa, mas também seu dogmatismo e, acima de tudo, seu notável senso de certeza. Comte lhes dizia no que deveriam acreditar. Um professor de Lyon, jornalista republicano, Charles Maynard, foi um exemplo típico. Apreciava o positivismo porque este eliminava suas ilusões, trazia uma certa clareza à sua visão de mundo e o impedia de tentar encontrar uma solução a questões que não podiam ser respondidas. O positivismo oferecia “uma solução racional ao problema social”. Ele escreveu a Comte em 1853: Meus olhos, como os de São Paulo, se livraram de suas vendas, a luz se fez em meu espírito, e agora sei onde está a verdade. Graças ao senhor gozo dessa tranquilidade perfeita que sempre acompanha uma convicção sincera, e tenho à minha frente um objetivo magnífico que é preciso alcançar. Obrigado, mil vezes obrigado, por ter-me devolvido essa vida do coração sem a qual a outra não é nada. Permita contar-me entre os que o admiram e amam.27

Muitos discípulos amavam Comte. Mesmo os que não eram discípulos se viam tocados por sua filosofia. Harriet Martineau sempre chorava quando traduzia o Curso, pois este parecia eliminar todas as dúvidas e refletia a “profunda simpatia humana” de Comte.28 Fica claro que a solicitude de Comte em ouvir os problemas dos solitários e isolados o ajudou a convertê-los. Esses discípulos contavam a Comte coisas pessoais espantosas. Muitos buscavam os conselhos de Comte para encontrar uma mulher. Outros tinham relações e perguntavam se deviam casar com suas amantes. Outros confessavam que frequentavam prostitutas e que recorriam à masturbação para aliviar seus desejos sexuais. Henry Edger, de Nova York, contou a Comte suas aventuras sexuais, que o desmoralizavam e davam-lhe “uma dor surda e profunda [...] nos testículos”.29 Em resposta, Comte disse-lhe com a maior honestidade que havia sofrido problemas idênticos e que os havia resolvido apenas evitando qualquer estimulante. A aceitação de Comte do papel de sacerdote que recebia confis-

Carta de Charles Maynard a Comte, 3 de junho de 1853. Archives de la Maison d’Auguste Comte. 28 MARTINEAU, Harriet. Autobiography. Org. de Marian Weston Chapman. Boston: James R. Osgood, 1877, 2 v., v. 2, p. 71-82, 90. 29 Carta de Henry Edger a Comte, 22 de junho de 1857. Archives de la Maison d’Auguste Comte. 27

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sões e dava a absolvição era um grande conforto para homens que se sentiam afastados da autoridade religiosa tradicional. Eles o consideravam o salvador, aquele que os havia tirado das profundezas do desespero, não apenas intelectual, como também psicológico. Sua própria candura, suas manifestações de vulnerabilidade e sua tendência natural às emoções comoviam muitos leitores que temiam que seu desenvolvimento emocional fosse freado pela profissão, pela religião ou pelo papel que desempenhavam enquanto homens e mulheres. Se o suposto defensor da racionalidade podia se lamentar de suas perdas pessoais no prefácio de seus livros e em suas cartas, eles sentiam que também podiam expressar suas angústias. Dada a diversidade dos discípulos em toda a Europa e nas Américas, não surpreende que tenha havido tensões entre eles e com Comte. Os discípulos se tornaram ciumentos uns dos outros, e a rivalidade para reter sua atenção prejudicou o movimento, contrariando Comte profundamente. Às vezes, os discípulos tinham objeções quanto aos aspectos da doutrina de Comte, sua maneira de tratar as pessoas, como a esposa, e sua política. Comte raramente dava ouvidos e com frequência respondia com insultos. Acusou Pierre Lafitte, por exemplo, que era um discípulo muito próximo, de ser preguiçoso e fraco. Comte era menos paciente com os discípulos que não lhe davam dinheiro para satisfazer suas necessidades ou que não aceitavam totalmente sua religião. Eles eram, retomando suas próprias palavras, “positivistas incompletos”.30 Comte era de fato o sumo pontífice. Em 1857, Comte começou a sofrer de um inchaço no estômago. Sua dor física era agravada por seus distúrbios emocionais. Ficou furioso com um discípulo, Célestin de Blignières, que publicou um livro sobre o positivismo sem sua permissão. Queria constantemente ocupar uma posição de controle. Sua arrogância contribuiu para uma morte dolorosa: quando ficou doente, recusou a ajuda dos médicos, mesmo dos que eram positivistas. Em setembro, morreu de câncer no estômago. Depois de sua morte, os discípulos se digladiaram com sua esposa por décadas a respeito do testamento. Apesar de toda essa confusão que se assemelhava a um drama, o positivismo se tornou uma força significativa no campo acadêmico – especialmente na filosofia, na sociologia e na historiografia – e no político, não

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Carta de Comte a Henry Dix Hutton, 27 de dezembro de 1853. In: Correspondance générale, v. 7, p. 156.

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apenas na França como no mundo inteiro. Continuou tendo muitos sentidos diferentes, como durante a vida de Comte. Conforme sugerido pela grande especialista em Comte Annie Petit, houve e ainda há muitos positivismos. Meu trabalho demonstrou que também havia muitos Comte: o engenheiro, o reformador social, o amante frustrado, o poeta inspirado, o moralista rigoroso, o médico, o papa e o devotado reformador religioso. Indivíduo teatral, ele gostava de expor suas diferentes personalidades, como vários de seus contemporâneos românticos. Ele amava o melodrama, que utilizou para analisar sua própria vida. O segredo para escrever essa biografia consistiu em não apenas permitir que essas múltiplas personalidades se mostrassem, como também em assinalar o que havia de constante nos bastidores.

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A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio Eduard Esteban Moreno Trujillo “O inventamos, o perecemos compañero!” (Jaime Caycedo1, 2011).

O intelectual é filho de seu tempo e só pode ser entendido como produto das forças sociais, econômicas, culturais e políticas sob as quais age. Nesta perspectiva, o seguinte texto tem como propósito expor o processo de configuração do intelectual comunista da Colômbia e seu papel como funcionário-intelectual, no marco da crise que originou a queda do socialismo real e do reexame da teoria marxista-leninista das décadas de oitenta e noventa do século XX, além de salientar as características que condicionaram seu agir no seio do partido e da sociedade. Para a realização de tal propósito, sugiro a categoria de intelectualfuncionário. Isto tem como objetivo ir além dos clássicos olhares sobre o intelectual comunista como mero reprodutor acrítico do catecismo socialista2. Pelo contrário, o que se pretende é distinguir a imbricada contradição inserida no sujeito intelectual como uma constante em seu longo processo de formação3, e que eu chamo de conversão de olhares. Esta contradição tem seu fundamento na distinção entre o intelectual como sujeito crítico e objetivo, que utiliza as ideias para denunciar desapaixonadamente o poder,

Intelectual e secretário-geral do PCC. Para o caso colombiano ver os trabalhos de Sánchez (1995); Pizarro (1991); Meschkat (2009); Medina (2007); Delgado (2007, 2009). Na mesma linha, para o caso da América Latina, o texto do mexicano Jorge Castañeda (1994). 3 Ao falar do processo, não faço referência a um processo que tenha um caminho demarcado e um fim último. Só pretendo enfatizar a constante reconstrução e reelaboração da figura do intelectual e também observar uma virada nas formas de leitura de mundo por parte dos intelectuais, mudança que corresponde à rotura de seu campo. 1 2

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e aquele sujeito membro do partido político fechado, que segue incondicionalmente as ordens do aparelho. Dessa maneira, distinguem-se dois momentos que moldaram a figura do intelectual comunista na Colômbia durante as décadas propostas – ainda que se possa falar de diferentes características num mesmo período de tempo: um primeiro período de contradição guiado pelo “seguidismo” silencioso, que se pode localizar entre 1985 e 1990, e um segundo momento, que tenho chamado de ressignificação e que tem seu ponto de partida na assimilação do debate sobre a crise no seio do marxismo-leninismo e se estende até o final do século.

1. O intelectual-funcionário No marco de uma história intelectual, assumir o intelectual como protagonista pode ser óbvio e até parece absurdo formular uma dúvida sobre isso. No entanto, quando o historiador sai do mundo das representações e enfrenta as fontes (sejam quais são), as categorias saltam ao rosto e se tornam mais complexas do que se imaginava. Neste ponto, a categoria de intelectual (como qualquer outra) fica carregada de ambiguidade, e fazer uma história sobre o intelectual torna-se problemático. Neste contexto, pretendo propor uma leitura do intelectual confrontado com os fatos, contrastar aquela “objetividade” que comumente se atribui ao intelectual com seu agir subjetivo na história. Além disso, com o fim de enriquecer a leitura sobre o intelectual, um ser que a priori é extremamente ambíguo4, este é colocado num campo altamente politizado (o comunismo) e num período de plena ruptura para tal campo (a perestroika). Por outro lado, o intelectual imerso nas lógicas da doutrina comunista, além de ser um sujeito construído socioculturalmente (ZERMEÑO, 2003, p. 781782) e estar dotado de uma representação de tipo político, adere a um imaginário que preestabelece suas percepções sobre o mundo, afastando-o de

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É importante advertir, seguindo Michael Löwy, que um intelectual é um ser singular e difícil, já que “el intelectual puede ser reclutado en todas las clases y capas de la sociedad; puede ser aristócrata (Tolstoi), industrial (Owen), profesor (Hegel) o artesano (Proudhon). En otros términos: los intelectuales no son una clase sino una categoría social; igual que los burócratas y los militares se definen por relación con lo político, así los intelectuales se sitúan por su relación con la superestructura ideológica” (LÖWY, 1978, p. 17).

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uma capacidade de crítica total5. Mas será que este posicionamento frente a um imaginário que permitiu ao intelectual comunista agir, tanto dentro do mundo das ideias como no mundo da ação, distancia-o do ser intelectual como sujeito crítico? Uma possível resposta será desenvolvida nas seguintes linhas. Para entender as formas de agir do intelectual comunista da Colômbia nas décadas de oitenta e noventa, ele deve ser assumido sob quatro perspectivas. Primeiro, como um sujeito mergulhado numa lógica global de um imaginário; segundo, como um sujeito homogeneizador de ideias com relação à sua organicidade frente a um bloco histórico particular; terceiro, como um sujeito que responde a um conjunto de condições do espaço social em que se encontra; e por último, deve-se assumi-lo como um sujeito comprometido com uma cosmovisão de mundo particular. Segundo o historiador chileno Alfredo Riquelme (2009), ao falar do intelectual comunista inserido num imaginário global, faz-se referência a que o comunismo aparece para o intelectual como a revelação dos meios necessários para alcançar um “estado ideal” de desenvolvimento humano. Nesse estado se sobrepõe uma série de crenças que consistem no caminho correto, nos meios necessários e em uma única narração correta, que levarão a humanidade à construção de um mundo ideal, um mundo sem classes. Não obstante, a aquisição dos meios para a mudança só se pode constituir se o intelectual assume uma função determinada dentro da maquinaria do partido. Assim o diz Lênin e assim se enfatizou no seio do partido: [...] es necesario que los intelectuales repitan menos lo que ya nosotros sabemos y que nos den más de lo que todavía no sabemos por nuestra experiencia fabril y “económica”, o sea: conocimientos políticos. Estos conocimientos vosotros, los intelectuales, podéis adquirirlos solos y tenéis el deber de proporcionárnoslo cien y mil veces más [...] debéis ofrecérnoslo no sólo en

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Para este texto relaciono imaginário com ideologia, já que aquele me permite compreender as formas como os intelectuais-funcionários do PCC aderem às lógicas de um aparato doutrinal que em numerosas situações os levou a justificar o injustificável. Assim, concordo com o historiador chileno Alfredo Riquelme quando diz que “[e]l uso de este concepto en la historiografía se origina en el reconocimiento de que la vida de los individuos y los colectivos en la sociedad no se limita a las realidades materiales o tangibles, sino que comprende representaciones de sí mismos que desbordan el límite puesto por la interacción entre la experiencia y la argumentación racional. El imaginario alude, de esta manera, a un vasto y complejo conjunto de representaciones que se constituyen en las esferas, no solo de las ideologías, sino también de la cultura y las mentalidades […]” (RIQUELME, 2009, p. 42).

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MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio forma de razonamientos [...] sino indispensablemente en forma de denuncias vivas de todo cuanto nuestro gobierno y nuestras clases dominantes hacen [...] (LENIN, 1961, p. 103).

Assim, o intelectual comunista colombiano é entendido em sua posição como funcionário, devido à sua assimilação ao comunismo, apresentado na forma de verdades irrefutáveis. Assim lembra o intelectual e funcionário do Partido Comunista Colombiano (PCC) Carlos Lozano ao referirse às lógicas de agir dos comunistas: […] estaba esa idea de que todo ya estaba dicho, de que todo estaba ya agotado, que simplemente había una especie de recetario, y que tocaba mirar que se podía coger de ahí, que nos orientaba más de lo que Marx o Lenin escribieron en sus libros […].6

Ao aceitar que tudo já estava dito na teoria, o intelectual ficou condicionado, e isto o levou a assumir e justificar posições que na prática não eram coerentes com seus discursos, embora reconhecesse suas funções como quadro do partido. Afinal, o importante era que a maquinaria do centralismo “democrático” funcionasse. O enquadramento do intelectual comunista dentro de um imaginário global leva-me a pensar nele também como um homogeneizador de ideias. Segundo o intelectual italiano Antonio Gramsci, todos os homens podem ser intelectuais, mas nem todos têm na sociedade a função de intelectual (GRAMSCI, 1967). Isso quer dizer que, num determinado grupo social ou bloco histórico, alguns sujeitos são chamados a dar coerência às ideias que homogeneízam e delimitam a atuação do grupo. Isto significa que, além de serem portadores das características que os relacionam à atividade intelectual7, aquilo que me permite identificar os intelectuais do PCC como intelectuais-funcionários é seu papel dentro do processo de homogeneização das ideias comunistas na Colômbia8. Assim, os intelectuais têm a função de configurar as formas culturais e ideológicas que dão unidade ao grupo coEntrevista com Carlos Lozano, 31 de março de 2011. Neste aspecto é importante sublinhar que os intelectuais-funcionários aos quais se faz referência neste trabalho se identificam por serem docentes universitários, pesquisadores e escritores, representando o que Gramsci chama de trabalho intelectual. 8 Deve-se esclarecer que com esta afirmação não pretendo reduzir o complexo campo do comunismo colombiano à opinião dos comunistas afiliados ao PCC. No entanto, não é de meu interesse debater neste curto texto as múltiplas posições que a esquerda em geral tinha sobre o comunismo como ideologia. Para aprofundar-se neste debate, pode-se ver o trabalho do professor Archila (2009) sobre a história das esquerdas na Colômbia. 6 7

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munista, condição necessária para exercer hegemonia sobre outro grupo social. Deste modo, os intelectuais não foram uma classe alheia à massa social, pelo contrário, constituíram-se na sua relação orgânica com a classe social que representaram ou pretenderam representar. Por conseguinte, o caráter orgânico dos intelectuais que outorga homogeneidade a um grupo social foi uma ferramenta fundamental para caracterizar os intelectuais do PCC. Porquanto, o desafio para os sujeitos desta história foi procurar a homogeneidade do grupo a partir da perda de seu principal referente. Abordar o intelectual como sujeito histórico permite-me enfatizar sua subjetividade em contraposição à objetividade que pretendiam ter, já que os protagonistas desta história, além de estar imbuídos dos marcos da ideologia, também foram afetados pelo conjunto de condições do espaço social dentro do qual se desenvolveram. O intelectual é uma construção social que corresponde à sua época (ALBA, 1976) e, neste sentido, não pode ser tratado como um extraterrestre, pelo contrário, deve ser enquadrado sob as lógicas de todos os seus condicionamentos materiais, impostos pela concretização do momento histórico. O intelectual também está determinado pelas lógicas que compõem seu campo intelectual, construído pelas forças de detenção de certo capital simbólico. Isto é, finalmente, aquilo que permitiu aos intelectuais apresentar “interesses particulares” como “interesses universais, comuns ao conjunto do grupo [que representam]” (BOURDIEU, 2002, p. 10). Nesta perspectiva, e entendendo que o campo “es el producto de un proceso histórico [y por lo mismo], este sistema no puede disociarse de las condiciones históricas y sociales de su integración [...]” (BOURDIEU, 1967, p. 145), é necessário localizar o intelectual comunista no seu contexto sociopolítico, com o fim de ir além das simples lógicas do condicionamento ideológico. Com isto quero afirmar a importância que teve o contexto de violência e repressão no condicionamento das leituras feitas pelos intelectuais do partido, e que apresentarei mais adiante. O último elemento que quero salientar no âmago do ser intelectual é a concepção que Edward Said propõe em seu texto Representaciones del intelectual (1996). No texto, Said fala sobre um intelectual comprometido, aquele que, sendo estrangeiro em seu próprio território e em sua solidão construída pela força de seu ofício, é capaz de dizer a verdade ao poder, constituin-

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do-se num sujeito duro, eloquente9, imensamente corajoso e aguerrido (1996). Pontualmente, o que me interessa na proposta de Said é o caráter de compromisso que o intelectual adquire para revelar as contradições do mundo. Aqui quero relacionar o compromisso com a função, pois esta função do intelectual, no caso do intelectual comunista, levou-o à escolha do cumprimento de seu trabalho dentro da organização partidária, aquilo que lhe permitiria encarnar o apparatchik, já que, num primeiro momento, ele é o aparelho (partido) feito homem (BOURDIEU, 2002). É sua função revelar o mundo aos demais homens, para que assumam suas responsabilidades (SARTRE, 1969). Com isto, a contradição do intelectual-funcionário se agravou ainda mais. O intelectual-funcionário é, então, um sujeito carregado de subjetividade, multiplicidade e imerso num processo de configuração histórica (ver gráfico1)10. Assim, proponho a construção de um marco flexível para interpretar o intelectual do PCC nas contradições próprias do contexto que teve que viver, e os conflitos ontológicos que teve que enfrentar entre sua função dentro de um aparato burocrático e sua capacidade de ler criticamente o mundo.

Visto desde a distância, tanto espacial como temporal, a eloquência (assumida também como coerência) não pode ser atribuída ao intelectual comunista. Mas como romper então os juízos de valor e estudar o sujeito ou o ser do intelectual na sua forma concreta de existência e representação dentro da sua realidade? Deve-se então admitir, pelo menos nos limites desta proposta, que dentro do mundo vivido pelo intelectual comunista ele se assumiu como um sujeito eloquente. 10 O gráfico permite construir uma imagem do campo dos intelectuais comunistas e, a partir daí, conhecer as correlações de força em que se desloca o intelectual /intelectual-funcionário. Além disso, permite detonar as miradas simplistas sobre um processo de aceitação e transformação intelectual, colocando os sujeitos de estudo no espaço onde se constroem as regras de seu campo. 9

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Em suma, o intelectual-funcionário foi condicionado por três lugares interconectados de enunciação que corresponderam: 1) à sua materialidade, isto é, à sua concretização como um sujeito histórico, permeado pelo seu contexto social, político e econômico; 2) ao seu caráter orgânico, ou seja, à sua intencionalidade de dar coerência a um grupo social determinado11; 3) ao seu compromisso com um projeto de sociedade que, bem ou mal, tem configurado sua cosmovisão.

2. O contexto Entre 1985 e 1986, abriu-se para os intelectuais do PCC, e para a esquerda em geral, um período de expectativas marcado por dois fatos que afetaram diretamente seu campo de ação. Por um lado, no nível nacional, e sob o abrigo das conversações de paz entre a guerrilha e o governo da Colômbia, as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC-EP)12 decidiram criar um partido político de esquerda, a Unión Patriótica (UP)13, que possibilitou a convergência política de um amplo setor da esquerda nacional. Entretanto, no plano internacional, os olhos do mundo comunista viram chegar ao poder do influente Partido Comunista da União Soviética (PCUS) o “moço” Mikhail Gorbachev, em 11 de março de 1985, figura paradigmática que foi considerada pelos divulgadores do PCC como um “gran organizador […] con una excelente capacidad política”14. Com isto, pode-se pensar que o intelectual-funcionário do PCC se viu mergulhado num contexto no qual devia responder a dois fenômenos ideológicos complexos. No plano local os intelectuais-funcionários achavam uma possibilidade de participação política. E no plano global deviam tentar interpretar um fenômeno que demarcava uma transição no seio do comunismo mundial15. Isso era, segundo o intelectual-funcionário, dar a cara à “juventud del socialismo”16, tanto no nível local como no global. Neste caso, corresponde à militância do partido comunista. Para uma historia das FARC-EP ver Arenas (1982); Pizarro (1991; 2011); Ferro & Ramon (2002); Pécaut (2008). 13 Ver Buenaventura (1985); Campos (2003); Dudley (2008). 14 Semanario Voz, p. 13, 14 mar. 1985. 15 Segundo o historiador chileno Alfredo Riquelme, não se trata simplesmente de considerar as relações dos intelectuais do PC com a URSS como um fator de incidência exterior, e sim de entender cada dimensão da história nacional durante esse período, imbricada em outras histórias. 16 Semanario Voz, p. 13, 14 mar. 1985. Grifo meu. 11 12

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2.1 A relação FARC-UP-PCC como contexto interno O pano de fundo no qual os intelectuais-funcionários do partido constituem a conversão de seus olhares frente à sua concepção do mundo constitui-se por dois fenômenos contraditórios. Por um lado, vivia-se um período de aumento significativo da violência, e, por outro, iniciava-se um processo de paz que, como veremos, nascia morto. Ao iniciar a década de oitenta, os esforços do país se centraram num processo de paz com as guerrilhas. Este esforço se constituía numa urgência, devido ao recrudescimento da violência e ao descontentamento social (PÉCAUT, 2006); no entanto os diálogos de paz, segundo o historiador Mauricio Archila (2009, p. 85), estiveram destinados ao fracasso: [...] no solo porque se desarrollaban en medio de la guerra, manteniendo cada parte una agenda oculta para fortalecerse militarmente, sino porque se agigantaba el paramilitarismo, alimentado ahora por instituciones como las cooperativas Convivir, por los lazos con sectores de las Fuerzas Armadas y las elites regionales, y especialmente por la financiación del narcotráfico, que salpica también a la insurgencia en forma creciente.

Assim, no âmago do PCC objetivou-se o agravamento da crise, com o fim de fazer aumentar as perspectivas de transformação que operavam sob o processo de paz. Na declaração política do XIV congresso, realizado em novembro de 1984, exprimia-se que: La nueva situación que apunta en el país significa una profundización de la lucha de clases y una ruptura del inmovilismo político. Es un resultado, en primer término, de los acuerdos de cese de fuego iniciados con el pacto de La Uribe, entre la Comisión de Paz y las FARC-EP, seguido por los acuerdos del gobierno con el M-19, el EPL y el ADO. Pero es también la consecuencia de las múltiples luchas de los trabajadores, el pueblo y las corrientes progresistas, en los más variados frentes del combate popular, en un momento en que la crisis económica debilita la capacidad de maniobra de la oligarquía y pone en movimiento a grandes masas populares que se empobrecen día tras día.17

A nova situação a que se refere o PCC converge na crença que tinha a esquerda radical de que as condições objetivas para a revolução estavam se apresentando (PÉCAUT, 2006; DELGADO, 2007). Este pensamento conjurado pelos intelectuais-funcionários18 permite estabelecer uma rela17 18

“Declaración Politica del CC del PC” p. 1. Revista Puntos de Vista, n. 16, 1985. Aqui se pode observar que a dialética entre o funcionário e o intelectual é superada pelo funcionário. O objetivo era homogeneizar a posição do Partido de qualquer modo.

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ção entre as guerrilhas e os partidos de esquerda radical, que o historiador Daniel Pécaut definiu como a “Constelación FARC-Unión Patriótica-Partido Comunista”. Esta constelação se baseou na premissa de que [t]anto la UP como el Partido Comunista estaban convencidos de que había llegado la hora de “profundos cambios democráticos” y que la coyuntura [era] “prerevolucionaria”. Los activistas de los dos grupos canalizaron los movimientos de protesta; esto no les impidió incitar a los sectores populares a “insurgir” contra el ascenso del “fascismo” (PÉCAUT, 2006, p. 359).

Esta relação formou o cenário sobre o qual se apresentaram os diferentes níveis de interpretação, tanto da realidade colombiana como do papel desempenhado pelo PCC dentro dela. Este cenário foi determinado pelo avanço das guerrilhas, que tiveram suas causas no crescimento das tensões sociais, na insuficiência das políticas públicas, na disponibilidade de jovens sem perspectivas, assim como na acumulação de recursos por parte das guerrilhas, graças ao novo controle do cultivo da planta de coca (PÉCAUT, 2006). Além disso, houve uma crescente fidelidade da população ao processo guerrilheiro, devido ao estabelecimento de proteção por parte da guerrilha e à construção de uma ordem que substituiu as carências do Estado e limitou as pressões de militares e narcotraficantes sobre algumas regiões. Finalmente, no tocante às expectativas abertas pelo processo de paz e as atuações da guerrilha no seio da esquerda, apresentou-se, como já mencionei, a construção da U.P. Este novo partido político foi una propuesta política [...], ideada por Jacobo Arenas19, surgida de los anhelos de paz y de los acuerdos logrados en 1984 por el gobierno con las FARC, [propuesta que] fue víctima de la más feroz campaña criminal contra la dirección de un grupo político jamás vivida en Colombia (MORENO, 2001, p. 42).

Deste modo, as estratégias da extrema esquerda e das guerrilhas entraram num processo que Pécaut chamou “la modernización de las reaciones” e que se concretizou porque as reações tanto das FARC como da U.P se centraram na realização de atos de protesto “frecuentemente muy pacíficos”. Foram atos dentro dos quais se observou uma manifestação de autoridade dos dirigentes e intelectuais comunistas (PÉCOUT, 2006, p. 358-

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Foi um guerrilheiro colombiano, liderança ideológica das FARC-EP, e uma de suas principais figuras durante as décadas de oitenta e noventa. Antes de integrar as FARC, Arenas foi militante ativo do PCC, e suas posições sempre estiveram contra a tendência intelectual do PC.

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359) e nos quais se delineou, estrategicamente, sua antiga proposta de combinação das formas de luta20. O papel dos intelectuais-funcionários consistiu em articular três objetivos históricos: a autodefesa das massas contra a violência reacionária, a combinação de todas as formas de luta e a transformação da autodefesa em luta guerrilheira. Esses objetivos reforçaram a dualidade do intelectual comunista frente à luta democrática e à luta armada (PIZARRO, 1991; DUDLEY, 2008; DELGADO, 2009). No interior do partido, os intelectuais confrontavam a sua dualidade: a crítica ao partido a partir de sua postura como intelectuais ou a aceitação muda das contradições como funcionários, como quadros absorvidos pelo partido. A crise explodiu. Gilberto Vieira21 saiu da secretaria geral do partido em 1991 após um longo período de luta e liderança, mas sua saída foi o limite da contradição que há anos se vivia no interior do PCC. Por um lado, agravou-se o enfrentamento interno dos intelectuais-funcionários, entre os partidários da glasnost e da perestroika e os setores ortodoxos. Além disso, a crise se fortaleceu pelo “aire renovador que impuso desde la Unión Patriótica gente con mentalidad abierta como Bernardo Jaramillo22 y José Antequera23” 24. Num discurso pronunciado por Álvaro Delgado durante o XVI Congresso do partido, realizado em agosto de 1991, o intelectual advertia que “[e]l partido está acabando. Actuando más por defecto de los atropellados cambios en el mundo del socialismo que bajo una convicción sincera de

A combinação de todas as formas de luta foi contemplada pela primeira vez no PCC durante seu Congresso nº 11 em dezembro de 1971. Neste congresso se começou a considerar a luta armada como algo inevitável e necessário para a revolução colombiana (DELGADO, 2008), mas, com o passar do tempo, esta estratégia foi se convertendo numa doutrina que tinha vida própria, “[...] en un credo que no podía ser cuestionado bajo ninguna circunstancia” (DUDLEY, 2008, p. 59). Também se deve observar que esta estratégia pretendia harmonizar as perspectivas da luta armada com as lutas politicas e sociais que aconteciam no país, embora também pretendesse dar uma resposta à pugna sobre as vias da revolução encarnada na cisão chino-soviética dos anos 60. 21 Intelectual e secretário do PCC entre 1947 e 1991. 22 Liderança das lutas agrárias do país, militou no PCC e foi presidente da Unión Patriótica. Foi assassinado por grupos de extrema direita em 22 de março de 1990. 23 Reconhecido intelectual das Juventudes Comunistas de Colombia (JUCO) e, por um curto período, secretário do PCC. Também foi dirigente nacional da Unión Patriótica. Foi assassinado por grupos de extrema direita em 03 de março de 1989. 24 El Tiempo, 24 nov. 1991. Citado ap. MORENO, 2001, p. 19-48. 20

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renovación y reencuentro con los colombianos […]”25. Esta crise também foi precedida pela saída de mais de 30 intelectuais-funcionários do partido; assim apresenta o jornal El Tiempo em 24 de novembro de 1991: “a la luz de la lectura de los documentos de renuncia y de las reacciones aparecidas en ‘Voz’, son las revelaciones de guerra sucia interna que se estaba viviendo dentro del PCC”.26 Finalmente, deve-se falar da violência que permeou todo o período de estudo e estourou o campo intelectual dos comunistas na Colômbia. Não precisando aprofundar-se muito nos dados para entender a magnitude da situação, basta dizer que por volta de 1993 as forças de direita do país tinham exterminado “7 congresistas, 13 diputados, 11 alcaldes, 69 concejales y alrededor de 3.000 dirigentes y militantes de base”27 que tinham relação com a esquerda. Nesse cenário, as palavras de Jaime Caycedo28 cobram crucial relevância: “como pensar teóricamente en lo que pasaba cuando todos los días teníamos que enterrar a un camarada[?]”.29 Desta maneira se constitui o conjunto de circunstâncias internas nas quais se desenvolveram as lutas pela imposição de sentido, protagonizadas pelos funcionários-intelectuais do PCC. Além disso, neste marco se desenvolveu a luta interior do ser intelectual da qual se falou no primeiro trecho deste texto. Agora apresentarei o contexto global, representado no desafio que a interpretação da queda do mundo comunista pelos intelectuais do partido implicou, que é outro fenômeno que expõe a dualidade entre o funcionário e o intelectual. 2.2 Perestroika: a ruptura no nível global A perestroika é o ponto de não retorno no qual as construções teóricas dos funcionários-intelectuais do PCC são condicionadas pela necessidade dos questionamentos. A queda do “socialismo real” foi um acontecimento que causou impacto no campo intelectual no todo mundo, chegando-se Discurso de Álvaro Delgado no 16º Congresso do PCC (p. 4 e 5). El Tiempo, 24 nov. 1991. 27 Corporación para la Defensa y Promoción de los Derechos Humanos REINICIAR, n. 1, p. 4, fev. 2005. 28 Secretário-geral do PCC, docente da Universidade Nacional da Colômbia e vereador de Bogotá. Foi vítima de diversos atentados, durante a década de 80 esteve perto da morte, fato pelo qual teve que sair do país. Em 1994 assumiu a secretaria geral do PCC, depois do assassinato do intelectual-funcionário Manuel Cepeda Vargas, que era o secretário. 29 Entrevista com o intelectual Jaime Caycedo Turriago, 19 de abril de 2011. 25 26

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inclusive a propor o fim das ideologias e o fracasso total do marxismoleninismo como cosmovisão válida para a interpretação da realidade social. No interior do PCC, este acontecimento provocou um ambiente de ceticismo que caracterizou a saída atomizada, mas significativa, de funcionáriosintelectuais do seu interior30. Mas que foi a perestroika? E que significou para a conversão de olhares do intelectual comunista? A perestroika foi concebida como um conjunto de reformas aplicadas na União Soviética entre 1985 e 1992. Esta reforma tinha por objetivo a liquidação do sistema burocrático-autoritário, para construir um organismo social baseado na democracia e autogoverno (GORBACHEV, 1993). Evidentemente o plano falhou. Em pouco tempo, as políticas de reforma que pretendiam combater o estancamento econômico e o extremo burocratismo levaram à destruição de todo o sistema socialista. Aliás, este processo de destruição foi reforçado pelo crescente desejo social de reformas imediatas, principalmente nos países satélites do PCUS, desejo que, nas décadas anteriores, refletiu-se nos protestos da Hungria (1956), na greve dos operários industriais da Polônia (1956) e na primavera de Praga de 1968 (SERVICE, 2009; HOBSAWM, 1995). Assim, o impulso acumulado de uma necessidade urgente de mudança, além de uma cega competição armamentista contra o Ocidente, levou a URSS a desmoronar frente aos olhos atônitos do mundo. O intelectual comunista Jose Arizala31 expressou em lacônicas palavras o sentimento da contradição intelectual: “Hoy sabemos que […] las promesas no se cumplieron. Algo más. Que las cosas marchaban hacia un colapso de los gobiernos de los países del Este aún más dramático del que hemos sido testigos” (ARIZALA, 2007, p. 240). A perestroika instaurou o ponto de inflexão no qual a teoria marxista foi posta à prova em relação à prática real de seu agir. Configurando-se

Segundo Delgado, “[l]a desbandada intelectual de los años 90 fue la segunda más grave en la vida del partido, después de la que se presentó como efecto del ascenso de la violencia política desde mediados de los años 40 hasta la implantación del frente nacional en 1962. Pero a diferencia de la primera, en la de fines del siglo pasado el resorte no fue propiamente el agravamiento del fenómeno represivo gubernamental sino el copamiento de las filas partidarias por la intolerancia política y la decapitación de las delgadas normas democráticas que presidian la vida interna del partido” (DELGADO, 2009, p. 60). Note-se que neste ponto já são dois os fatos que levaram à saída de militantes do seio do PC. 31 Durante a conjuntura, ele se encontrava na zona do bloco soviético como representante do partido no jornal internacional (ARIZALA, 2007). 30

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como uma reforma necessária e intensa em nível econômico e social, a perestroika tentou solucionar as fortes contradições entre os níveis estruturais e superestruturais que se acumularam na sociedade soviética durante as décadas de setenta e oitenta. Segundo o historiador soviético Kiva Maidanik, a perestroika era uma superação das debilidades, defeitos e deformações, que permitiu encarnar em toda a sua amplitude os ideais de Marx e Lenin (HARNECKER, 1987). Não é de meu interesse mergulhar aqui no já longo debate sobre a queda do socialismo real32. A referencia só será utilizada para marcar o fato como “divisor de águas” da figura do intelectual-funcionário. Já que, depois de tal acontecimento, o mundo dos “camaradas” corre atrás deles, parafraseando um grafito nos muros da Sorbonne durante as mobilizações de 196833. Ainda que esta referência seja anedótica, pode-se lê-la como a premonição da queda, declarada nos muros e lemas da revolução do “sistema mundo” de 1968 (WALLERSTEIN, 1989). Em termos gerais, pode-se dizer que a atitude do PCC e da esquerda nacional frente ao processo de transformação do mundo socialista foi similar à atitude do resto da esquerda na América Latina. O mexicano Jorge Castañeda (1994) oferece um panorama amplo ao afirmar que a esquerda latino-americana não soube como responder ao derrubamento do socialismo. A princípio, os partidos comunistas tradicionais reagiram de um jeito formal e simplista. Constantemente insistiu-se que as mudanças do mundo socialista não implicavam mais que uma prova adicional da vitalidade do socialismo e de sua capacidade de renovação. O peso dos funcionários fez seu trabalho na coerção da crítica do intelectual. Segundo o historiador colombiano Mauricio Archila, todo o processo de derrubamento do sistema socialista ocasionou, em primeira instância, que os partidos comunistas foram duramente criticados, somando-se a isto que “la centralidad y el universalismo de la clase obrera se relegaran al pasado” (2009, p. 81). Neste contexto, apareceram no horizonte novos movimentos sociais que agenciaram, sob suas numerosas formas de ação, a descentralização das lutas contra o capitalismo tardio, deixando em eviAlgumas referências sobre este tema foram trabalhadas na minha dissertação (MORENO, 2011, p. 26-70). Também se pode estudar a seguinte bibliografia: Fazio (1992); Gorbachev (1987, 1993); Harnecker (1987); Poch-De-Feliu (2003); Ferro (1990). 33 Grafito aparecido nos muros da Universidade de Sorbonne na França em 1968. 32

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dência o estancamento do PCC, perceptível de há vários anos (PIZARRO, 1991, p. 24). Neste cenário, a ruptura se fez evidente. O mundo muda vertiginosamente, e o que antes parecia uma verdade revelada hoje é só uma recordação. O sólido se desmancha no ar, e a velocidade se apropria dos ritmos do tempo. Os intelectuais-funcionários têm que assumir sua realidade, sua crise. A sua batalha interior de transformação está em seu ponto culminante.

3. A contradição34, a crise, a reconstrução da esperança A transgressão das análises da realidade pela defesa apaixonada da ideologia é uma constante contradição dos funcionários-intelectuais. Aqueles sujeitos que tiveram que justificar a validade do comunismo, contra os erros de seu ponto de referência, entraram numa etapa em que as contradições de anos de silêncio saíram à luz. Um exemplo histórico que oferece luzes sobre o conflito latente entre o intelectual e seu papel como funcionário se apresenta na experiência vivida pelo intelectual e militante do PCC Nicolas Buenaventura, que no ano de 1992 escreveu o livro ¿Que pasó, Camarada?35. Desse texto é interessante um episódio em particular. Buenaventura conta que, durante a década de oitenta, foi chamado a participar de uma assembleia sindical como representante do PCC. Nessa assembleia, um grupo de operários empenhou-se em fazer uma resolução de protesto contra o PCUS pelo confinamento em presídio do cientista russo Andrei Sakharov, que em 22 de janeiro de 1980 foi levado à cadeia por seus protestos públicos contra a invasão soviética do Afeganistão em 1979. A ese respeito diz Buenaventura: “[…] la misión mía era sencillamente detener esa resolución” (1992, p. 29). Como intelectual e funcionário do PCC, Buenaventura confessa que assumiu a tarefa de elaboração de um discurso “persuasivo”, que permitiu dissuadir este grupo de operários. Com este fim, construiu toda uma dissertação a respeito da diferença entre democracia capitalista e democracia operária, que finalizou da seguinte maneira: Neste caso, a contradição não pretende gerar uma imagem idílica e oposta entre aquele intelectual do qual Julien Benda (2008) sentia saudade e o intelectual apolítico cooptado pelo partido. Só se pretende sublinhar a existência de uma contradição dentro de um mesmo ser. 35 Neste texto, o intelectual (que militou no PCC por mais de 40 anos) fala de sua experiência e exprime diversas críticas ao partido. 34

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais Yo pregunto a ustedes, compañeros, les pregunto. ¿Es que acaso le vamos a permitir nosotros a esta minoría que llore, que chille? ¿Es que vamos a tolerarle que se pasee con carteles frente a la fábrica protestando contra la huelga? […] ¡Yo pienso que no!, compañeros. Y estoy seguro de que ustedes piensan igual, -añadí-. Y por eso digo: ¡No! En la democracia socialista no. Allí manda la mayoría, una mayoría real, difícilmente construida y estructurada, a menudo con mucha sangre y sacrificio. Pero ¡la minoría no!, no protesta, no llora, no chilla. No tienen ese derecho. Comencé a insistir sobre la tesis de Lenin en el sentido de que con el gobierno obrero las cosas van en serio. Que allí no hay juegos. Y ello por una razón, porque la democracia allí es verdad o sea que es el gobierno de la mayoría. Fue así como se enterró el proyecto de resolución de la asamblea sindical a favor de la excarcelación de Sájarov en la URSS (BUENAVENTURA, 1992, p. 34-35).

Reafirmam-se todas as peripécias dos intelectuais comunistas para cobrir os erros do regime soviético. Mas esta experiência exposta pelo Buenaventura não finaliza aqui. A contradição estava por chegar. O mesmo intelectual termina seu relato da seguinte forma: […] la noticia de la libertad de Sájarov ordenada por el jefe del gobierno y primer secretario del partido soviético Mijaíl Gorbachov […] me impactó demasiado [sic] por una circunstancia casual. Se encontraba conmigo, cuando la escuchamos, en reunión de partido, a través de un noticiero televisado, el camarada dirigente obrero que me había acompañado a la “asamblea sindical” mencionada y que me había apoyado y felicitado mucho, entonces, por la “claridad” y la eficacia de mi “intervención” en ese momento […] concluida la noticia, los dos, él y yo, nos miramos a los ojos. Éramos iguales, igualmente honrados. Pero no había nada qué argumentar. Esto no estaba en el orden del día, había que concluir la reunión (BUENAVENTURA, 1992, p. 35; grifo meu).

Trata-se de contradições obstinadas, no entanto esclarecedoras da falta de coerência que inundou o campo intelectual do comunismo colombiano. Os intelectuais-funcionários, como disse o professor Buenaventura, foram ficando sozinhos em um caminho cheio de meias-verdades e mentiras defendidas com firmeza. Era uma solidão cadavérica que se introduziu entre os ossos de um partido e de sujeitos que, devagar, assistiram à dissolução de seu sonho. Dali em diante tiveram que repensar o caminho andado, mas desta vez com os olhos bem abertos. Contudo, como as contradições podem constituir o campo intelectual? Como as forças que impulsionam as cosmovisões dos intelectuais, ou seja, as formas em que os condicionamentos objetivos (violência social e queda do socialismo real) e subjetivos (sua capacidade de crítica e análise dos contex-

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tos dentro do PC) mexem nas regras do jogo e determinam o que o intelectual pode ou não pode falar ou fazer? Assim se estrutura a transformação silenciosa de um campo inteiro. Outra comprovação das contradições que constituem o campo pode ser vista no acompanhamento de um espaço particular no PCC. Os intelectuais-funcionários agiram dentro do Centro de Estúdios e Investigaciones Sociales (CEIS), que se configurou como um projeto com sucesso desde a década de setenta, pois esteve dirigido ao fomento do estudo da realidade nacional, baseado nas necessidades criadas pelo devir da luta política (DELGADO, 2009). Entre as décadas de setenta e oitenta, o CEIS se constituiu no espaço a partir do qual os intelectuais operaram em apoio à crítica pública ao Estado e à homogeneidade ideológica do PCC. Por esta razão, ao acompanhar a trajetória deste centro, podem-se evidenciar as características do contexto intelectual do comunismo na Colômbia e a lógica de desenvolvimento da sua luta interior frente à ruptura ideológica representada pela queda do socialismo real. Do mesmo modo como a contradição rachou o sujeito intelectual, ela também desestabilizou o CEIS. No meio da década de oitenta, o CEIS e o jornal Margen Izquierda36 deixaram de existir devido a três elementos fundamentais. Primeiro pelo difícil contexto de segurança para a esquerda colombiana, no marco do aumento da violência interna. Segundo, o CEIS se transformou num foco de crítica e autocrítica ao socialismo real. De tal modo lembra-o Carlos Lozano numa entrevista: […] me acuerdo que el CEIS estuvo a punto de que lo clausurara el partido porque en un curso se le hicieron algunas críticas a la república democrática alemana y había unos alemanes que habían invitado, y entonces los cogió Nicolás Buenaventura y les metió un regaño a esos pobres alemanes, y la dirección iba a acabar con el CEIS por eso.37

O terceiro fato que levou ao fechamento do CEIS foi, como afirma Álvaro Delgado (2009), a determinação do partido de afirmar seu compromisso com a luta armada, como via para a revolução social, incentivando, assim, o desmantelamento do núcleo de intelectuais orgânicos que dirigiam o CEIS e eram opostos a tal caminho. Sob esta forma, expõe-se uma posição enviesada e retrógrada que caracteriza o PCC e que se complementa 36 37

Órgão de difusão do partido. Entrevista, 31 de março de 2011.

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com uma posição que não tolerava dúvidas públicas sobre o processo da esquerda no nível global (ARCHILA, 2009). Assim, o CEIS se constituiu numa força centrífuga que depurou o campo intelectual e exigiu uma tomada de posição. O PC, a violência de direita e o deslocamento da reflexão esmagaram o CEIS e fecharam o campo de ação intelectual. E, nesse contexto, a esquerda viveu um lento processo de aceitação da crise e de câmbio geracional, que quebrou os antigos olhares ortodoxos, embora ainda não tenham sido esquecidos por completo. 3.1 A crise Em 1980, o jornal mexicano Dialética publicou uma entrevista com os filósofos franceses George Labica e Etienne Balibar, na qual disseram: […] El primer problema [que se quería] plantear es si [ellos] piensan que existe verdaderamente una crisis del marxismo, y si existe, cuáles son los puntos, digamos las causas básicas de la crisis, o cómo abordan [ellos] el problema.38

Nessa entrevista, os filósofos fizeram uma série de afirmações que ratificaram a evidente existência de uma crise no interior do marxismo, entendendo que esta se achava “no coração da teoria”39. Faço referência a esta publicação com o fim de acentuar a tardança com que foi assumido o debate da crise no âmago da intelectualidade comunista. Só dez anos depois (1990) esta entrevista será citada num aparelho de difusão comunista na Colômbia40. Com isto não pretendo dizer que nos círculos intelectuais do PCC não houvesse um conhecimento prévio de tal debate, mas o que se consegue ver é que foi só na década de noventa que os intelectuais do PCC assumiram a crise e começaram a introduzi-la em seus próprios debates. São duas as perguntas pertinentes ao fenômeno de crise dentro do campo da intelectualidade comunista. Em primeiro lugar, cabe perguntar pelas razões da tardança com que foi assumido o debate da crise. E, em segundo, é importante questionar a forma como foi assumido esse debate, ou seja, as posições construídas pelos intelectuais-funcionários na sua virada.

Dialéctica, n. 8, p. 113, jun. 1980. Grifo meu. Ibid. 40 Ver: Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 1-3, abr. 1990. 38 39

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A primeira questão só pode ser entendida ao se examinar as condições sociais em que viveram os comunistas em geral na década de noventa na Colômbia. Deve-se, então, fazer referência à perseguição e ao extermínio de que foram vitimas, e a que fiz referência anteriormente. A violência contra a militância de esquerda gerou um progressivo adiamento do debate teórico. A segunda questão sobre a posição dos intelectuais frente à crise pode ser respondida ao se acompanhar os textos escritos nas suas publicações41. Para eles, “[e]l marxismo [solo] entraría en crisis cuando ya no pueda decir nada sobre los problemas que agobian al hombre contemporáneo”42. Neste sentido, o marxismo ainda era válido, já que as condições de contradição social nas que vive a sociedade são claras e evidentes. Já nas reflexões feitas pelo intelectual comunista Gilberto Vieira entre 1993 e 1995, o funcionário do PCC afirmava: Consideramos que […] lo que ha fracasado no es la teoría marxista-leninista sino su deformación; y de allí se desprende una enorme cantidad de lecciones y de enseñanzas que es necesario profundizar en un estudio colectivo que tenga en cuenta los principios esenciales del marxismo (cit. ap. FAJARDO, 2005, p. 209).

Na mesma linha, podem-se encontrar artigos em que os intelectuaisfuncionários faziam referência a uma crise do socialismo como prática. Por exemplo, no mesmo ano o intelectual Nelson Fajardo43 escreveu um artigo intitulado Aproximaciones hacia una crítica sobre la crisis teórica y práctica del socialismo, em que expõe como propósito: […] elaborar algunos planteamientos en torno a la actual discusión sobre las perspectivas de la teoría clásica del cambio revolucionario, la forma como este avanzó y se distorsionó en su implementación práctica, generando la actual crisis que requiere en la perspectiva de la reconstrucción del proyecto transformador.44

Assim, o papel dos intelectuais do partido, consciente ou inconscientemente, visou à procura de uma nova racionalidade que lhes permitisse pensar um modelo superior de socialismo45. No mesmo sentido, nos escriNeste ponto só me interessarei pelos escritos das pessoas que ainda são militantes ativos. Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 23, abr. 1990. 43 Professor universitário e dirigente nacional do PCC. 44 Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 50, abr. 1990. 45 Ibid., p. 58. 41 42

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tos do professor Sergio de Zubiria Samper46, intelectual e membro do Comitê Central do PCC, encontram-se ideias que tentam ir além da crise. O intelectual pretende fazer o resgate do marxismo como teoria possível e viável para a leitura crítica da realidade, a partir das propostas da escola de Frankfurt: Reflexiones expresas sobre el marxismo hoy y el concepto de crisis han sido elaboradas por Marcuse y Habermas. Textos invaluables en esta tarea son “La dialéctica marxista” (1936), “El marxismo soviético” (1958) del primero, y “Problemas de legitimación del capitalismo tardío’ (1973), “La reconstrucción del materialismo histórico” (1976) del segundo. Marcuse dedica su esfuerzo a elaborar una crítica inmanente del marxismo soviético en sus tendencias leninistas, estalinistas y postestalinistas, desarrollando sus consecuencias ideológicas y sociológicas; mientras Habermas reflexiona sobre las nociones de crisis y reconstrucción en las ciencias sociales […].47

Fica em evidência uma multiplicidade de fatores que incidiram na apropriação de um discurso por parte do conjunto de intelectuais-funcionários comunistas. Em primeiro lugar, a relativa dilatação de tal discurso devido às precárias condições do debate interno. Em segundo lugar, a posição a partir da qual os intelectuais-funcionários defenderam o terreno em que eles se desenvolvem, ou seja, o plano das ideias48; assim, assumiram que a crise se encontra só no cenário da prática. Mas também se faz evidente uma nova maturidade intelectual caracterizada pelas análises críticas sobre a experiência. Uma mostra disto se encontra nas referências à teoria clássica que Vieira deixara antes de morrer: […] los clásicos del marxismo concibieron su teoría como una guía para la acción y no como un dogma de fe; actitud, esta última, que condujo a la dogmatización y esquematización del marxismo y del leninismo por parte de amplios sectores del movimiento comunista mundial, con graves deformaciones para la teoría como [para] la práctica socialista (cit. ap. FAJARDO, 2005, p. 209).

Portanto, pode-se reconstruir o curso de desenvolvimento do pensamento comunista em geral, e dos intelectuais-funcionários em particular,

Professor universitário e reconhecido filósofo. Ibid., p. 22. Grifo meu. 48 Aqui não me interessa entrar no debate da distinção entre a teoria e a prática e a forma em que os intelectuais comunistas assumem tal relação, devido a que, em última análise, o intelectual é um sujeito que trabalha no campo das ideais. 46 47

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sempre marcado por uma experiência frustrada pela fragmentação, e que, além disso, contribuiu para a formação de um sujeito particular, um intelectual filho de seu tempo e das condições de leitura que lhe permitiram sua realidade, seus medos e suas angústias. Esta atitude é encarnada em uma frase do intelectual Jaime Caycedo: “o inventamos o perecemos, compañero […] y esa es la función de la intelectualidad comunista, reinventar las posibilidades de cambio” 49. 3.2 A reconstrução Progressivamente se discute o caráter de reconstrução que exige o labor dos intelectuais no campo comunista. Essa reconstrução envolveu a releitura teórica a partir do prisma pluridimensional da teoria marxistaleninista, que foi tirada do sagrado, para introduzi-la (na imaginação própria da utopia) em uma realidade concreta, determinada pelos ventos da perestroika, pela violência da conjuntura nacional e pelas profundas contradições do comunismo local e global. Este foi, pois, o contexto em que se apresenta a conversão de olhares no interior do sujeito intelectual. La reflexión nos llevaría a la necesidad de la formulación de una teoría de la crisis de la teoría marxista; entendiendo el fenómeno de crisis tanto en su sentido destructivo y de degradación, como de la posibilidad de construcción y/o reconstrucción de opciones que mantengan la coherencia entre los elementos sobrevivientes y los nuevos que se han insertado en la estructura fundamental de la propuesta.50

Sob esta perspectiva, as contribuições e releituras partiam da percepção que os intelectuais e funcionários do partido tinham de suas experiências da URSS e do labor que eles mesmos, como mobilizadores de ideias, pretenderam levar para o futuro do partido. Já se romperam os laços, e agora só resta a “solidão” de uma luta que olha o nacional sem nenhum referente idílico de verdade no estrangeiro, e é só dentro deste campo que se poderá entender a labor dos intelectuais do PCC. No hay duda que el hecho más aleccionador de esta época es el derrumbe de lo que se llamó el campo socialista en Europa; esto nos obliga a un estudio más profundo en primer lugar de la realidad contemporánea, y en segundo lugar de los fundamentos del marxismo y el leninismo. Para nosotros debe

49 50

Entrevista, 19 de abril de 2011. Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 25, abr. 1990.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais ser claro que el derrumbe del campo socialista en Europa no significó ni mucho menos el fin de las ideologías, ni el fin del socialismo científico, del marxismo-leninismo (FAJARDO, 2005, p. 187).

Portanto, as reflexões que os intelectuais comunistas têm realizado a respeito da experiência histórica da URSS abriram-se. Na atualidade têm surgido uma serie de reinterpretações da experiência soviética no seio dos intelectuais, que têm enriquecido a visão de tal experiência. Por exemplo, para o professor Jaime Caycedo, uma leitura poderia radicar na revalorização: Hay muchas cosas que hay que revalorizar, yo hago un cuerpo de cosas, cuando uno analiza la relación entre las experiencias socialistas […] a partir de los textos de los utopistas del siglo XIX, sobre todo los utopistas socialistas (particularmente Saint Simon, Charles Fourier) que le daban cierto sentido a la opción de ciertas reformas profundas a partir de sus ensayos incipientes de otras formas de organizar el mundo. Cuando uno ve en la URSS el tema de la cooperativización de los campesinos en el campo, de las granjas de estado y […] como de alguna manera el socialismo temprano se guio mucho por la utopía, postulando las bases de reflexión sobre experimentos posibles […] entonces a mí me parece que esas experiencias están por revalorizarse contra los propios teóricos y analistas.51

Nesta análise é importante valorizar o espaço que o intelectualfuncionário dá à imaginação. Hoje este aspecto faz parte do pensamento dos intelectuais comunistas, devido a que, para a maior parte deles, a imaginação é uma função importante da teoria marxista, até o ponto de dizer que [no están] de acuerdo con ciertas actitudes, que tienden a lo que hemos llamado en algún momento, una especie de dogmatismo, de dogmatismo ilustrado, que piensa que la autenticidad del marxismo se encuentra en el formalismo de ciertas categorías que hacen parte del cuerpo de doctrina, pero ese cuerpo de doctrina también está en desarrollo, está en creación a partir de sus cimientos básicos como una guía para la construcción de nuevas cosas, y no anquilosarse en lo que dijeron los clásicos.52

Daí que o labor dos intelectuais-funcionários seja reinventar-se a cada dia com as ferramentas que brinda o marxismo e sua complexa multiplicidade, temendo que, se isto não acontecesse, [e]l PCC corre el riesgo de anularse, de achatarse, si solo se atiene a hacer una repetición tipo cotorra del pasado, de las consignas de siempre”53. Depois da queda do socialismo Entrevista, 19 de abril de 2011. Ibid. 53 Ibid. 51 52

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real, só restou aos intelectuais a defesa imaginativa das “contribuciones del marxismo y del leninismo [y] ante todo de su método de investigación científica de la realidad” (FAJARDO, 2005, p. 215). Finalmente, o período que os funcionários-intelectuais viveram entre 1990 e 1992, com relação aos acontecimentos da URSS, teve duas características identificáveis. Primeiro, a aceitação do debate da crise dentro do marxismo, debate no qual os intelectuais assumiram a defesa da teoria e a crítica aos erros cometidos. A segunda etapa foi a inserção da criatividade revolucionária no discurso teórico usado pelos intelectuais. Essa era a reivindicação imaginativa de uma teoria que ainda tem muito que dizer a respeito da sociedade e suas contradições. Sob a convergência de dois fenômenos que transformaram a realidade social, tanto no nível local como no global, segue-se o nascimento de uma nova sociedade de reinterpretação e a recomposição dos funcionários comunistas. Essa recomposição pode chegar mais perto daquilo que Gramsci chamou intelectual orgânico, e também do infatigável rebelde de Said, e concorda com uma nova visão da esquerda que, segundo Archila, “no parece estar por la dictadura del proletariado, y más bien, en un retorno a su tradición libertaria, asume la defensa de la democracia mientras rechaza el autoritarismo. Pero no se trata de cualquier democracia” (2009, p. 22). Este aspecto foi muito mais forte ao iniciar a década de noventa e se evidencia nos debates dos intelectuais em torno da relação socialismo-democracia: Nosotros desde los años noventa para acá hemos tratado de discutir sobre estos temas en medio de debates, algunos que dicen –No, que al socialismo no se le puede poner apellido […] el socialismo es eso y punto– nosotros hemos abordado el tema del socialismo humanista […] creo que hacia el programa próximo hay compañeros que hablan del socialismo democrático y humanista, bueno, todo eso se puede discutir en la idea de ver realmente cual es el concepto más adecuado, y no por su estética o su belleza semántica, sino por su calidad, por el fondo del problema. […] Yo tengo claro que los caminos al socialismo son distintos, y creo que eso es algo que sí se ganó con el derrumbe soviético, y fue el entender que el socialismo es diverso, que el socialismo no es un patrimonio de nadie […].54

De tal modo, no período final da perestroika os olhares dos intelectuaisfuncionários tiveram um giro de reinterpretação que permitiu à ruptura de uma serie de pressupostos teóricos. As lutas no terreno das ideias já não se 54

Entrevista com o intelectual Carlos Lozano, 31 de março de 2011.

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livraram só contra a “classe hegemônica”, mas também contra a rigidez dos próprios camaradas. Nas palavras de Carlos Lozano: […] alguna vez [escribí] un texto que fue muy polémico, que se llama El marxismo, ideología en construcción, y había compañeros que me decían no, ¿pero cómo así que en construcción? Si el marxismo existe y está ahí […] y yo decía todo lo contrario, que no […] incluso una vez unos compañeros de la juventud me criticaban eso, yo les decía –mire ustedes están jóvenes y tienen mucho tiempo por delante, investiguen, estudien, porque ustedes pueden aportarle mucho a esto, quien ha dicho que las leyes de la dialéctica, por ejemplo solo son tres, entonces porque Marx lo dijo son tres, no, ojala uno de ustedes descubra la cuarta, y la quinta, eso es posible, porque hoy estamos viviendo otras épocas, Marx no era adivino para pensar que estas cosas iban a cambiar tanto, que el mundo iba a cambiar a tantas velocidades, tantos años después–. Entonces hay cosas nuevas, hay nuevos elementos en la vida que tienen que interpretarse desde el punto de vista marxista, por supuesto, pero con un criterio creador, no girando como hacían los alquimistas que se encerraban a descubrir la piedra filosofal y nunca les apareció, no nosotros nunca la vamos a descubrir, nunca así.55

No horizonte dos intelectuais colombianos se pode distinguir uma serie de fatos que tentaram fazer frente ao dogmatismo56 e alinhamentos internacionais, para se aproximar da sociedade colombiana. Foi esta a melhor forma de dar uma resposta criativa à crescente crise das esquerdas mundiais (ARCHILA, 2009).

4. À maneira de conclusão A história faz-se nesta luta, neste combate obscuro em que os postos moldam de modo mais ou menos completo os seus ocupantes que se esforçam por se apropriar deles; em que os agentes modificam de maneira mais ou menos completa os postos, trabalhando-os à sua medida (Pierre Bourdieu, 2002, p. 103).

Na leitura destas páginas o leitor pôde perceber um irritante jogo de palavras entre as categorias de intelectual e intelectual-funcionário. Esse processo corresponde às contradições encontradas entre as teorias que tentam explicar o intelectual e as práticas dos intelectuais vivos, existentes, aquelas 55 56

Ibid. Devo aclarar que seria ingênuo pensar que esse dogmatismo terminou completamente. Podese dizer que a contradição continuou no campo dos intelectuais comunistas; por isto, não se pode falar de um intelectual livre de contradições, a menos que ele seja tirado do campo que o constitui, neste caso o PC.

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pessoas que encarnam as ideias e são movidas por paixões, utopias, sonhos e mentiras. Daí que a categoria de intelectual sozinha não correspondia à história que se pretendia contar. Deste modo, e como resumo, a intenção do texto é expor o campo do intelectual comunista da Colômbia entre 1985 e 1992. Daí que, sob a convergência crítica entre os contextos locais e os globais, definiu-se que as formas de agir dos intelectuais correspondiam às sutis regras impostas pelo seu campo, que, num primeiro momento, propunha uma escolha entre a reafirmação acrítica dos seus princípios e a ruptura aberta com seu passado militante, ou seja, o resgate do clérigo. Porém, o campo reconstruiu suas regras de jogo a partir da crise e, respondendo às condições histórico-sociais que tornaram possível sua existência, levou a que os intelectuais procurassem novas formas de justificar seu ser aceitando a ruptura, embora sem desconhecer seu passado. Quero, então, insistir que não foi minha intenção reconstruir uma imagem idílica de um intelectual comprometido, crítico e heroico, e tampouco defender as estridências, contradições e/ou birras dos intelectuais comunistas. O que pretendo é apresentar uma forma particular de olhar a figura do intelectual, partindo de sua confrontação com as condições históricas de sua atuação. Além disso, quero transgredir os maniqueísmos, tanto de esquerda como de direita, e expor as rupturas históricas e sociais de um campo, olhar a nudez das categorias mergulhadas nas condições de seu fazer. Este texto pode finalizar dizendo aquilo que já é “lugar comum” nos estudos sobre o intelectual: “o intelectual é um ser ambíguo”. Mas que sentido pode ter aquela afirmação? As categorias correspondem a uma realidade concreta, e o campo intelectual só pode construir seu sistema enunciativo a partir de sua realidade. Trata-se de uma realidade que, para o caso dos protagonistas desta história, esteve repleta de contradição, acumulação de poderes de interpretação do mundo e a contundência da morte. Só assim se pode definir a “ambiguidade” como a pugna pela apropriação de uma cosmovisão do mundo.

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Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão Marisângela Martins Os intelectuais atuantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) compõem um grupo que se tornou objeto de estudo há pouco tempo no país.1 De um modo geral, pesquisas desenvolvidas na área da história e da sociologia voltam-se para militantes de destaque, escritores e historiadores – como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Caio Prado Júnior – radicados no eixo Rio-São Paulo (centro da produção editorial brasileira e palco das disputas em torno da definição das sucessivas linhas políticas adotadas pelo Partido). Esses estudos, via de regra, exploram a relação entre as imposições partidárias e a liberdade de criação e de teorização sobre a revolução, as políticas da organização direcionadas para a cultura e os escritores e o realismo socialista. A exemplo do que ocorre com o termo “intelectual”, a expressão “intelectual comunista” evoca uma determinada imagem de contornos mais ou menos imprecisos. A rigor, somente a dissertação de Mestrado de Ana Paula Palamartchuk (1997) se propôs a enfrentar essa problemática. Numa análise indutiva, a autora tentou retirar do exame da experiência dos atores históricos escolhidos os significados de ser intelectual. A historiadora enfatizou a relação entre os intelectuais – em especial os escritores –, suas produções e sua opção política, procurando analisar o(s) significado(s) que eles atribuíram à denominação “intelectual comunista”. Palamartchuk partiu da fundação do Grupo Clarté, na década de 1920, e estendeu sua análise a meados da década de 1940, concluindo que ser “intelectual comunis-

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Para os objetivos desse texto, concentramos nossa análise na época do “Partidão” (de 1922 a 1962). No início da década de 1960, o PCB, criado no início dos anos 1920, sofreu uma cisão, dando origem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), dirigido por Luís Carlos Prestes, e ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sob a liderança de João Amazonas, Maurício Gabrois e Pedro Pomar, dirigentes do alto escalão do até então PCB.

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ta” abarcava várias maneiras de ser, sobretudo no que dizia respeito ao grau e aos tipos de envolvimento, às visões de mundo e às formas de contribuição às necessidades do Partido. No caso de Caio Prado Júnior, por exemplo, a autonomia intelectual chocou-se com a disciplina partidária. Já Astrojildo Pereira foi um legítimo “intelectual de partido”, submetendo-se disciplinarmente ao núcleo dirigente, interpretando a situação do país de acordo com as orientações da Internacional Comunista (IC), cumprindo tarefas e fazendo autocríticas. Ainda que o grupo estudado por Palamartchuk evidenciasse modos de ser distintos, uma pergunta na direção inversa permanece: que atributos uniam militantes com diferentes maneiras de ser sob uma mesma denominação, a de “intelectual comunista”? Não temos a pretensão de oferecer uma resposta completa, absoluta e definitiva nesse texto. Convidamos o leitor a nos acompanhar num breve exercício de reflexão acerca dos possíveis contornos dessa expressão, baseando-nos, para tanto, em um excerto datado de 1945. Após amargar décadas de clandestinidade, o PCB emergiu do Estado Novo em condição legal, e seus militantes empenharam-se para colocar seus representantes nas casas legislativas de todo o país. Em Porto Alegre, parte da campanha às eleições de dezembro de 1945 foi veiculada na revista Libertação, da qual extraímos o trecho que segue: O Partido Comunista é o partido da classe proletária e do povo. E do seio do proletariado é de onde tem saído a maioria de seus dirigentes. Ninguém melhor, pois, do que os trabalhadores para compreenderem os problemas de sua classe, as suas necessidades e as suas aspirações. [...] O trabalhador, ao falar de suas necessidades, sentidas todos os dias, está falando por toda a sua classe e por todo o povo. Por isso, ele é o mais credenciado para estar à frente do Partido do proletariado e do povo, o Partido Comunista. Mas o povo tem encontrado outros amigos. Elementos de outras camadas sociais, que tiveram recursos para estudar e que compreenderam as necessidades do povo e se [sic] resolveram lutar por elas. Poucos, é certo. E por isto dignos de toda a admiração. [...] são homens que colocam o seu saber, manifestado através da imprensa, da literatura, da ciência e das artes, para defender os interesses do proletariado e do povo. São sábios e são heróis, também. A participação dos intelectuais honestos na direção do Partido Comunista é o justo prêmio que recebem da classe proletária, pela sua dedicação e amor à causa do povo (Os Dirigentes Comunistas no Rio Grande do Sul. Libertação, Porto Alegre, n. 15, p. 12-15, 18, 20 e 29, 28 jun. 1945. Grifos nossos).

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O objetivo do artigo era apresentar os dirigentes dos comitês estadual e municipal do PCB, e, no trecho em destaque, justificava-se a presença de intelectuais entre eles. Primeiramente, o autor deixa claro um recorte de classe: o intelectual não provinha da classe desfavorecida trabalhadora, mas de camadas sociais com recursos suficientes para garantir sua liberdade em relação à necessidade econômica. Não obstante sua origem de classe, os intelectuais foram reconhecidos como legítimos representantes do povo, como pessoas honradas e confiáveis, porque haviam dado provas de suas honestas intenções. A ideia que se insinuava aqui, e que se estendeu com mais força ao longo da década seguinte, era a de que o intelectual, “por sua origem não proletária”, havia aderido e colaborava com uma luta que não era sua por estar ciente da exploração do operariado e por solidarizar-se com ele (GARCIA, 1999, p. 128). Essa visão condescendente em relação ao militante intelectual, porém, não era unânime, nem antiga, entre os comunistas. A fundação do PCB teve quase nenhuma repercussão entre os intelectuais, e, no fim da década de 1920, os poucos que nele atuavam passaram pelo traumático processo de “proletarização” (conhecido no Brasil também como a política do “obreirismo”), orientado por novas diretrizes do comunismo soviético. A III Internacional havia abandonado as esperanças na formação de uma frente única, passando a apostar na tática revolucionária da “classe contra classe”. Na União Soviética (URSS), defendeu-se que, para melhor combater a burguesia e as classes médias, os dirigentes comunistas não deveriam ser oriundos desses segmentos, mas exclusivamente do proletariado. A historiadora Dulce Pandolfi (1995, p. 100-101, grifos nossos) relata que, no Brasil, inicialmente, a proletarização teve um sentido romântico, como relembrou Leôncio Basbaum, dirigente comunista na época: Proletarizar-se significava, segundo alguns, abandonar hábitos burgueses, só fumar cigarros baratos, andar malvestido. A própria gravata passou a ser um sinal de tendência pequeno-burguesa. E [...] até tomar banho diário era um resquício pequeno-burguês capaz de afetar a ideologia proletária do Partido.

Nesse sentido inicial, a origem de classe do militante intelectual evidenciava não apenas uma posição nas relações de produção, mas também um modo de viver a ela associado e que passou a ser repudiado no interior da organização. Condenou-se o burguês e seu estilo de vida, obrigando os

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militantes de origem não proletária a abandoná-lo e a adotarem o modo de vida considerado próprio das parcelas humildes. O relato de Basbaum revela-nos que os “hábitos burgueses” eram associados ao consumo de itens caros e a um certo cuidado com o corpo, sinais distintivos de uma classe beneficiada materialmente, cujo esbanjamento era uma afronta à parcela considerável da população que pautava seu consumo pela privação. Os intelectuais deveriam fazer escolhas razoáveis, de acordo com as imposições das condições de vida dos trabalhadores. No processo de proletarização, a privação dos bens necessários foi tornada virtude. Era preciso se adaptar à necessidade, aceitá-la. Dentro de pouco tempo, o romantismo cedeu lugar a uma orientação radical. Os intelectuais, julgados e condenados por sua origem de classe, ou foram substituídos em suas funções dirigentes, ou foram expulsos, ou caíram no ostracismo, ou receberam árduas tarefas (impostas com o objetivo de proletarizá-los) (PANDOLFI, 1995, p. 101). A adoção de tais procedimentos gerou o afastamento desses militantes da direção do PCB (inclusive daqueles que ali militavam desde sua criação), considerados de origem pequeno-burguesa – logo, inimigos da classe trabalhadora –, e sua substituição por operários, mesmo que estes não tivessem capacidade teórica ou disponibilidade para tal.2 Foi assim que, na interpretação que Jorge Ferreira (2002, p. 82) oferece desse episódio, o estigma de “intelectual” ou de “pequeno-burguês” começou a se impor no horizonte político e cultural do PCB. O termo “pequeno-burguês” – que evocava uma postura egoísta, vaidosa e individualista, própria da classe burguesa – passou a ser usado entre os militantes de origem humilde como um insulto àqueles acusados de se desviarem do perfil do “verdadeiro revolucionário” – solidário, modesto, reservado, corajoso e constante nas emoções (FERREIRA, 2002, p. 75-78).3 De acordo com Palamartchuk (1997, p. 52), a noção de “intelectual” apareceu no PCB no fim dos anos 1920, com a expulsão do alfaiate Joaquim Barbosa – membro da direção partidária – e seus companheiros de O caso mais grave e sempre destacado é o da expulsão de Astrojildo Pereira, secretário-geral da organização, que acabou vítima da política que ele mesmo havia implementado. 3 Narrativas romanceadas do processo de proletarização podem ser apreciadas em Parque industrial, publicado por Pagu sob o pseudônimo de Mara Lobo em 1932, e em Caminho de pedras, de Raquel de Queiroz, publicado em 1937. Para outros relatos historiográficos e memorialísticos, conferir CARONE, 1982, p. 9; PERALVA, 1962, p. 233-242; SEGATTO, 1981, p. 36-37; VINHAS, 1982, p. 17. 2

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opinião, tachados pejorativamente de “intelectuais pequeno-burgueses”. Paradoxalmente, a despeito do afastamento de vários militantes sob essa acusação, outros intelectuais que poderiam facilmente ser classificados como tais aderiram ao Partido, como Oswald de Andrade, Pagu e Tarsila do Amaral. E, na década seguinte, sob sistemática propaganda da União Soviética e da Internacional Comunista (IC), generalizou-se mundialmente a simpatia de diversos escritores e artistas pelo comunismo (PALAMARTCHUK, 1997, p. 53 e 56). No Brasil, algumas condições favoreceram a confluência entre intelectuais e Partido Comunista: o desencanto com os caminhos tomados pelo governo Vargas após o movimento de 1930, o ingresso de Luís Carlos Prestes e de inúmeros tenentes no PCB e o surgimento da Aliança Nacional Libertadora (ANL). A repressão desencadeada aos levantes de novembro de 1935 e o golpe do Estado Novo dois anos depois arrefeceram as adesões, porém não as impediram completamente. Alguns proeminentes nomes da cultura brasileira aderiram ao comunismo nesse período: Caio Prado Júnior, Dalcídio Jurandir, Dyonélio Machado, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Vitor Márcio Konder, entre outros. É provável que a transigência em relação aos militantes intelectuais observada na citação extraída da revista Libertação estivesse relacionada à recente virada tática do PCB. A partir da Conferência da Mantiqueira, realizada em 1943, a organização defendeu – não sem alguma resistência – a União Nacional, que consistia, basicamente, na defesa da aliança entre proletariado, camponeses e burguesia nacional, inclusive com o governo Vargas, em prol da democracia. Talvez também aquela postura tolerante tivesse como motivação o reconhecimento do suporte dado pelos intelectuais ao Partido durante o Estado Novo, período em que a ação comunista ficou altamente comprometida pela repressão. Nesse contexto, a rede de relações sociais – em cujas pontas poderiam se encontrar pessoas importantes do mundo editorial e da política com influência nos espaços de decisão, bem como sobre as regras e os loci de reconhecimento e de consagração –, a notoriedade e o prestígio desses comunistas constituíram-se em recursos possíveis de lhes conferir “imunidade intelectual”, uma prerrogativa praticamente inexistente para os militantes de origem humilde. (PALAMARTCHUK, 1997, p. 97; 2003, p. 164). No Rio Grande do Sul, por exemplo, a reestruturação do PCB foi planejada ainda na clandestinidade, tendo à frente

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o professor universitário Otto Alcides Ohlweiller, secretário-geral da organização no estado nos anos finais da ditadura estado-novista, cargo que entregou ao companheiro metalúrgico Abílio Fernandes em meados de 1945 (Os dirigentes comunistas no Rio Grande do Sul. Libertação, Porto Alegre, n. 15, p. 12-15, 18, 20 e 29, 28 jun. 1945). Ainda que fosse sofisticado teórico do materialismo histórico e dedicado militante, Ohlweiller provinha de família de classe média, era diplomado em Química Industrial e docente da Escola de Engenharia da, então, Universidade de Porto Alegre. Estava, assim, longe de preencher os requisitos do revolucionário-modelo, mas dispunha dos recursos necessários para manter-se em liberdade e reorganizar a seção gaúcha do PCB naquele momento. Devido a sua “condenável” origem de classe, os intelectuais relacionavam-se com personalidades importantes e influentes: escritores, editores, jornalistas, diplomatas, homens do mundo dos negócios e do mundo da política. A vida pública dessas pessoas encerrava sociabilidades próprias ao estilo de vida das classes dominantes, como rodas literárias, chás, jantares, banquetes, exposições, saraus e concertos.4 Eram práticas sociais que exigiam o domínio de códigos específicos, de determinados saberes, posturas e comportamentos possíveis de serem incorporados, sobretudo, na educação formal e/ou no próprio convívio com os membros da elite. Tais práticas encontravam terreno propício em livrarias, editoras, redações de jornais e revistas, institutos de pesquisa, associações (culturais, profissionais, etc.), cafés, confeitarias, clubes e salões.5 A historiadora Mônica Velloso (1996) identificou a existência de espaços e de práticas constitutivas de um “microcosmo intelectual” no Rio de Janeiro desde o fim do século XIX, situados, principalmente, na Rua do Ouvidor, onde ficavam a Confeitaria Colombo e o Café Papagaio. Nesse tradicional logradouro, instalou-se a Livraria José Olympio Editora em 1934, cujo proprietário, exímio cultivador da “arte da amizade” (SORÁ, 2004),

Sociabilidades são entendidas aqui no sentido de espaços e de comportamentos, formais e informais, por meio dos quais um grupo se movimenta, expressa suas ideias e estabelece e cultiva vínculos, construindo e reforçando distinções sociais. 5 O circuito de sociabilidades da intelectualidade brasileira foi mapeado e analisado pelas historiadoras Ângela de Castro Gomes (1993; 1999) e Monica Pimenta Velloso (1996). Para uma reflexão sobre os cafés como manifestações culturais tipicamente europeias apropriadas e ressemantizadas no sul brasileiro, conferir Lewgoy, 2009. 4

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acabou por concentrar a edição dos livros considerados indispensáveis para sentir e pensar o país em fins dos anos 1930. Quem queria ser visto e ver os escritores consagrados – cujas obras eram consideradas “autenticamente brasileiras” – frequentava a livraria de José Olympio (SORÁ, 2004, p. 1). De acordo com Sorá (2004, p. 11-12), a identidade do grupo de autores do catálogo de Olympio foi reforçada no contexto de crescente intervenção e repressão cultural por parte do Estado, quando a casa, por manter boas relações com o círculo político de Vargas, passou a ser refúgio de diversos intelectuais comunistas. Por ocasião da prisão de parte de seus escritores, José Olympio interveio em seu favor, reforçando os laços de confiança deles para consigo. O poder do editor se expressava na extensão e na força dos vínculos que havia tecido com autores, políticos de variadas tendências e com elites sociais (SORÁ, 2006, p. 14). A Livraria José Olympio era o porto seguro de Jorge Amado e de outros intelectuais de esquerda, que se lá reuniam frequentemente (PALAMARTCHUK, 2003, p. 236). A partir da década de 1930, São Paulo e Rio de Janeiro – as duas cidades mais importantes na constituição de um campo de produção cultural no Brasil – atraíam e concentravam escritores e artistas das diversas regiões do país. A produção intelectual estava em franco desenvolvimento, sendo lá também que se localizavam as principais instituições de ensino superior. De acordo com Sergio Miceli (2001, p. 156-157), no contexto editorial dos anos 1930 e 1940, a Companhia Editora Nacional, a Livraria José Olympio Editora e a Livraria do Globo, de Porto Alegre, eram as principais investidoras na publicação de obras de ficção, nacionais e estrangeiras, embora cada uma delas aplicasse seus recursos a partir de estratégias diferentes. Em São Paulo, a Editora Brasiliense, de propriedade de Caio Prado Júnior, aglutinava parte da intelectualidade paulistana de esquerda (IUMATTI, 1998, p. 64-65). Já na capital gaúcha, José Bertaso, proprietário da Livraria, Editora e Revista do Globo – frequentadas por um grupo seleto de famosos intelectuais e de personalidades políticas – e seu filho Henrique cumpriram papel semelhante a José Olympio. Eles inventavam projetos para ajudar pessoas em precária situação financeira, cultivando estreitos laços de lealdade com os escritores ligados à casa, e editavam textos de conhecidos comunistas – como Dyonélio Machado, Ivan Pedro de Martins e Lila Ripoll. Teve importância capital para a proximidade entre comunistas e o grupo da Globo, sobretudo ao longo do Estado Novo, a presença do jorna-

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lista Justino Martins na direção da revista, um comunista talentoso do qual o Velho Bertaso não abria mão. Ele soube perceber o saldo positivo que teria no balanço entre os possíveis prejuízos decorrentes do estigma de seus colaboradores e os largos lucros econômicos e simbólicos que o trabalho do jovem revisteiro lhe rendia, preferindo conceder amplo espaço para Justino e seus companheiros. No Rio, além da casa de José Olympio, os escritores comunistas eram abrigados pela Editora Ariel, bem como pelas revistas Dom Casmurro, Boletim de Ariel e Revista Acadêmica (PALAMARTCHUK, 1997, p. 71; 2003, p. 211-212), encontravam-se nos bares Vermelhinho e Amarelinho, e entre os salões mais frequentados por eles estava a residência de Álvaro e Eugênia Moreyra. Em Porto Alegre, por sua vez, a Livraria do Globo, assim como as redações dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, o footing na tradicional Rua da Praia, as sessões de cinema e de teatro, os clubes (como o Jocotó), as confeitarias (Rocco), as casas de chá e os cafés (Rex, Nacional etc.) constituíram um circuito de espaço de sociabilidades refinadas, dirigido para educar a sensibilidade, instituindo, assim, o estilo de vida da elite (BRUM, 2009, p. 197-210). Fosse no eixo Rio-São Paulo, fosse na capital gaúcha, esses espaços informais de circulação e de apropriação de capital social, político, cultural e simbólico revelavam-se locais de trânsito intenso de intelectuais e suas ideias, de aprendizagem, de debate, de fortes conflitos e também de construção de importantes vínculos de amizade. É possível afirmar que, até o fim da Segunda Guerra Mundial, intelectuais comunistas e não comunistas partilhavam esses espaços. Ainda que nos pareçam fortuitos, esses encontros configuravam-se práticas sociais que funcionavam como instâncias de consagração pelas quais escritores já reconhecidos e poderosos homens da política contribuíam para a definição da pauta dos problemas legítimos e dos princípios organizadores da produção cultural brasileira. Uma vez definidos e oficializados tais critérios, esses homens deles se apropriavam, impondo estilos e visões de mundo, legitimando sua produção e seu lugar no polo dominante da esfera cultural. Tratava-se, portanto, de territórios nos quais e de comportamentos pelos quais, fundamentados na dinâmica de trocas características do mundo da cultura e do mundo da política, eram incorporadas disposições e estabelecidas e/ou consolidadas relações promitentes. Os intelectuais comunistas puderam fazer uso do potencial des-

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ses diferentes tipos de capital em sua militância, a qual também oferecia um circuito de sociabilidades próprio do Partido. Comentaremos esses aspectos adiante. Em segundo lugar, a citação da revista Libertação exibida no início desse texto apresenta um recorte de gênero. Os intelectuais eram homens. É possível que esse entendimento tenha raízes no sentido que, historicamente, o termo “intelectual” foi ganhando. A figura do intelectual esteve por muito tempo associada ao mundo público, universo predominantemente masculino. De acordo com Benito Bisso Schmidt (2006, p. 24), os códigos de gênero dominantes na sociedade brasileira nas décadas de 1940 e 1950 aproximavam as mulheres do campo dos sentimentos e as alijavam do terreno da razão –, poderíamos dizer, do intelecto – considerado próprio dos homens. Mencionamos anteriormente algumas artistas e escritoras ligadas ao PCB que poderíamos classificar como intelectuais sob os critérios da produção de bens culturais e do engajamento político. Na década de 1950, a “frente intelectual” do Partido abrigava reconhecidas poetisas, como Lila Ripoll, que, conforme Eliane Garcia (1999, p. 83), embora atuasse também na “frente feminina”, tinha sua imagem comumente associada à “frente intelectual”. As mulheres, entretanto, eram minoria entre os militantes tidos como intelectuais; sua atuação era alvo de discriminação dentro e fora do Partido; e as lutas próprias da condição feminina (igualdade de direitos civis entre homens e mulheres, o divórcio etc.) não eram discutidas e assumidas como bandeiras da organização (GARCIA, 1999, p. 102). Consoante Jorge Ferreira (2002, p. 131), as imagens da mulher revolucionária que os comunistas procuravam construir, ainda que remetessem às virtudes da honestidade, da abnegação e do sacrifício, não excluíam certa hierarquia entre os sexos, reproduzindo, em alguma medida, as mesmas opressões e discriminações que eles denunciavam. Na visão dos comunistas, homens e mulheres eram portadores de diferenças inatas, as quais determinavam a existência de papéis sociais naturalmente distintos (MOTTA, 1997, p. 79). Em terceiro lugar, no excerto problematizado subentendia-se um entendimento a respeito do que caracterizaria os intelectuais comunistas partindo de uma oposição que situava, de um lado, os proletários e, do outro, as pessoas portadoras de saberes específicos. Essa visão apresentava elementos

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ainda recorrentes de uma tradição mais antiga, que estabelecia a distinção entre o trabalho manual – aquele cujo resultado dependia do emprego de energia física – e o trabalho intelectual – aquele cujo produto resultava de um determinado esforço de reflexão –, aproximando deste indivíduos que desenvolviam atividades ligadas à inteligência, à criação, ao intelecto. Esse recorte funcionalista observável no artigo comunista reverberava uma concepção difundida mais amplamente na sociedade brasileira. Podemos tomar como exemplo a União dos Trabalhadores Intelectuais (UTI), criada em 1945 no Rio de Janeiro e da qual poderiam participar categorias de trabalhadores, assalariados ou não, ligados ao trabalho não manual, como médicos, engenheiros, advogados, jornalistas, escritores, artistas etc. O objetivo da UTI – em cuja criação tomaram parte alguns conhecidos intelectuais comunistas, como Astrojildo Pereira e Álvaro Moreyra – era aumentar a participação desses segmentos no processo de democratização do país (BUONICORE, 2004). Tratava-se de uma entidade fundada claramente na divisão do trabalho. Relacionada a ela, é possível identificar na citação extraída da revista Libertação menção aos intelectuais como aqueles que se distinguiam pela instrução. Segundo pesquisa realizada por Garcia (1999, p. 108), a “frente intelectual” do PCB, criada na segunda metade dos anos 1940, era composta por militantes que produziam textos literários, esculpiam, pintavam, encenavam e dançavam, mas também por aqueles cuja ocupação/profissão não estava diretamente ligada a atividades culturais, como engenheiros, arquitetos, advogados, médicos e funcionários públicos, quer dizer, indivíduos com curso superior. Nesse sentido, a distinção baseada na polarização trabalho manual versus trabalho intelectual e no nível de instrução alargava as fronteiras no interior das quais os militantes poderiam ser classificados como intelectuais. A instrução e o capital de relações sociais de que dispunham, decorrentes de sua origem social, eram os principais critérios pelos quais eram distinguidos, no plano das representações, os militantes intelectuais, além de se constituírem no parâmetro pelo qual sua prática militante era definida e distribuídas as tarefas que lhes competiriam. Em alguns casos, presumia-se que a origem de classe e o acesso a um alto nível de escolarização e a determinadas formas de sociabilidade os capacitassem para determinadas funções/atividades/tarefas.

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Mesmo atravessando o século XX em condição ilegal, os militantes comunistas brasileiros colocaram inúmeros periódicos em circulação e desenvolveram ações culturais e educativas que funcionaram como frentes de atuação legal em plena clandestinidade. Rubim (1986, p. 35-36) destaca a década de 1940 como o período de auge da imprensa do Partido, quando foram criados os jornais – de caráter informativo e combativo – e as revistas – dedicadas às artes, à ciência e às letras. Trabalhavam ou colaboravam nos impressos intelectuais nacionalmente conhecidos, como Alina Paim e Jorge Amado (O Momento, de Salvador), Dalcídio Jurandir e Álvaro Moreyra (Tribuna Popular e Problemas, do Rio de Janeiro), Caio Prado Júnior e Afonso Schmidt (Hoje e Fundamentos, de São Paulo) e Lila Ripoll (Horizonte, de Porto Alegre) (RUBIM, 1986, p. 38-45). Cabia a muitos intelectuais a tarefa de editar e escrever na imprensa do Partido, além de dirigir ligas/sociedades/centros/associações/clubes e de participar de suas atividades, organizando e/ou apresentando palestras, horas de arte, conferências, seminários, sabatinas, concertos, etc.6 Para além de um suposto e exclusivo caráter “ornamental” (RODRIGUES, 1996, p. 412) atribuído pelo PCB à atuação dos intelectuais nesses espaços e nessas ações, é oportuno afirmar que estes colocavam mais que sua imagem a serviço da causa revolucionária. O prestígio acumulado no mundo da produção científica e cultural, o capital de relações sociais, incorporado nos lugares de sociabilidade próprios desses meios, e sobre os quais já comentamos, bem como o conhecimento adquirido na formação – fosse na educação formal, fosse na busca autodidata – constituíram-se re-

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Na década de 1920, de acordo com Rubim (1986, p. 201), destacaram-se os centros de cultura proletária, de caráter político-cultural. Em Porto Alegre, criou-se a Liga Pró-México Antiimperialista, presidida pelo escritor comunista Jorge Bahlis. No decênio seguinte, já com contingente maior de intelectuais no Partido, formaram-se o Clube de Cultura Moderna, no Rio, o Centro de Cultura Moderna Aparício Cora de Almeida, em Porto Alegre, e, ainda no Estado Novo, formaram-se a já mencionada UTI e o Clube de Cultura Popular Euclides da Cunha. Com sede na capital gaúcha, o Clube de Cultura Popular Euclides da Cunha funcionou, pelo menos, até a segunda metade dos anos 1950 e foi dirigido, na maior parte desse intervalo, por Jorge Bahlis. A entidade contava com uma ampla estrutura e um influente corpo de colaboradores, como as poetisas Beatriz Bandeira e Lila Ripoll, a jornalista Gilda Marinho, os romancistas Cyro Martins e Dyonélio Machado. Comunistas oriundos de outros estados – como Álvaro Moreyra, Dalcídio Jurandir e Jorge Amado –, quando em visita ao Rio Grande do Sul, costumavam dispensar parte de seu tempo e de seu conhecimento para ações culturais no Clube. Mas a entidade também recebia a colaboração de não comunistas bastante populares, como Lupicínio Rodrigues (Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 11 set. 1945).

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cursos extremamente úteis dos quais comunistas intelectuais lançaram mão para o trabalho militante nos periódicos e a promoção das ações culturais no interior do Partido (para não falar da importância de suas boas relações com grandes fazendeiros e industriais na arrecadação de fundos para a organização). Eles emprestavam sua imagem para dar maior visibilidade a determinadas atividades, solicitavam colaborações e favores a amigos não comunistas e abordavam os assuntos que tinham propriedade, contribuindo, à sua maneira, para os objetivos da agremiação. É possível argumentar, em outro sentido, que militantes não intelectuais tinham suas imagens igualmente exploradas pelo Partido. Eram reconhecimentos conquistados por meio de investimentos em meios com regras distintas das do mundo da literatura. Na hora de “puxar uma greve”, de organizar um comício ou de concorrer a um cargo eletivo, não era qualquer militante que o fazia, mas aquele com projeção no seu campo de atuação e escolhido pela direção partidária, alguém cuja influência se estendesse num amplo raio de ação, por conta de capital simbólico acumulado ao demonstrar combatividade, comprometimento com as reivindicações da classe e solidariedade. Esse bem simbólico, construído mediante regras diferentes das do meio intelectual, fazia com que um líder operário tivesse seu prestígio e sua notabilidade usados em proveito do Partido tanto quanto um escritor consagrado, demonstrando que o PCB servia-se de um e outro nas suas tentativas de estabelecer ligações com os diferentes setores sociais. Ainda sobre essa questão, Marcelo Ridenti (2010, p. 61) afirma que são inúmeros os depoimentos que atestam a condição “ornamental” à qual os intelectuais eram relegados no interior da organização, mas havia contrapartidas que os mantinham na órbita partidária. Se a boa imagem de que gozavam os escritores se constituía em valioso recurso aproveitado pelo Partido Comunista, por outro lado, este oferecia canais para que seus militantes intelectuais tornassem pública sua produção. Para Marcelo Camurça (1998), junto com o encantamento diante da causa, a busca pelo status – que a notoriedade do movimento comunista conferia – foram as principais motivações para a adesão de intelectuais ao PCB. Mas, no estudo que realizou considerando o contexto da década de 1950 (marcada pela Guerra Fria, pelo alinhamento do governo brasileiro com os americanos e pelo alijamento dos intelectuais comunistas dos principais espaços de produção e de divulgação cultural no Brasil), Ridenti afirmou que essa relação entre artis-

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tas e intelectuais e o PCB “não caberia numa equação simples, como a que supõe que a militância comunista de intelectuais e artistas fazia parte de um desejo de transformar seu saber em poder. Tampouco seria adequado, no outro extremo, supor que houvesse mera manipulação dos intelectuais pelos dirigentes do PCB.” Para o sociólogo, não se tratava “de uso indevido e despótico da arte e do pensamento social para fins que lhes seriam alheios, mas de uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agentes envolvidos, implicando ainda uma dimensão utópica que não se reduz ao cálculo racional” (RIDENTI, 2010, p. 57).7 Se essa relação de vantagens e prejuízos implicava uma dimensão que não se reduzia ao cínico cálculo racional, como acertadamente observou Ridenti, os pesos da balança nem sempre foram equilibrados. Houve casos em que, a despeito de todos os recursos empregados para a causa partidária, o estigma decorrente de ser comunista foi nefasto para a carreira de determinados intelectuais (MARTINS, 2012). Em quarto lugar, o excerto da revista Libertação demonstra-nos que intelectuais comunistas eram aqueles que usavam seu saber e sua competência para defender os interesses do proletariado. O compromisso com questões alheias ao seu suposto campo de interesses (o literário, o artístico, o científico), como tem apontado a farta produção acadêmica, tinha raízes históricas mais longínquas. De acordo com François Dosse (2003, p. 20, 21 e 63), por exemplo, desde o Iluminismo, pelo menos, é possível observar a aproximação da “figura do intelectual” à defesa de princípios de verdade (a erudição visaria a discriminar o verdadeiro do falso) e de justiça (oposição à arbitrariedade do poder). O episódio paradigmático do engajamento do intelectual nesse sentido (no caso, um escritor), extrapolando os limites do que poderia lhe dizer respeito, foi protagonizado por Émile Zola na Paris

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Além das atividades culturais decorrentes da definição de políticas oficiais do PCB, os intelectuais participavam de um conjunto de ações que extrapolavam o terreno do intelecto. Muitos deles adentravam territórios populares, envolvendo-se na organização de blocos carnavalescos, como a poetisa Beatriz Bandeira e o advogado Marino dos Santos (GARCIA, 1999, p. 130131), e de churrascos populares (Correio do Povo, Porto Alegre, p. 10, 22 nov. 1946). Em outros casos, o dia a dia da militância invadia o âmbito do privado, como o episódio em que o romancista Dyonélio Machado foi padrinho de casamento de Serafina (filha da operária Julieta Batistioli), cuja cerimônia foi celebrada na residência da camarada Maria Crespo (Entrevista com Serafina realizada por Maria Luiza Martini). A participação nessas esferas aponta para o estabelecimento de vínculos de outras naturezas e para formas de convivência extrapartidárias ainda inexploradas pela historiografia.

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do fim do século XIX (o Caso Dreyfus). No Brasil, o historiador Nicolau Sevcenko observou a questão da função social do intelectual nas obras de Euclides da Cunha e de Lima Barreto. Ambos os autores apresentavam divergências no que dizia respeito à ciência, à civilização e à raça, mas compartilhavam a rejeição das elites vitoriosas, de modo que sua formação positivista e, em decorrência dela, um credo inabalável num humanismo cosmopolita repercutiram em sua produção literária, tornada um instrumento de ação pública – “literatura como missão” (SEVCENKO, 2003, p. 142-143, 146-149 e 152). De acordo com Palamartchuk, após a Proclamação da República, surgiu a ideia do atraso cultural no Brasil atrelada a propostas de modernização do país que perseguiam o modelo da Europa. Os intelectuais do período esforçaram-se para forjar uma nação europeizada, objetivo que permaneceu vivo na década de 1920, quando comunistas, como Astrojildo Pereira, também assumiram para si a responsabilidade de elaborar propostas de modernização da nação, tendo como referencial modernizador a URSS e a construção do socialismo como meta, necessitando, para tanto, conscientizar os trabalhadores (PALAMARTCHHUK, 1997, p. 97; 2003, p. 48). Quer dizer, a “vocação messiânica” (RUBIM, 1998, p. 350) do intelectual brasileiro como portador de uma consciência iluminada e responsável pela realização de um projeto de nação transcendia o Partido. Na tradição marxista, o compromisso histórico do intelectual com a verdade e a justiça traduzia-se no dever de esclarecer o povo, fazendo-o despertar para a luta revolucionária. Segundo Daniel Aarão Reis Filho, as opiniões em relação aos intelectuais dividiam os comunistas brasileiros. Alguns os elogiavam, dando seguimento às reflexões de Marx – o qual havia reservado um papel importante para esse grupo no movimento, o de fazer brotar a consciência socialista através da investigação teórica. Outros, contudo, hostilizavam-nos, devido à sua origem burguesa (na maioria dos casos), modo de proceder originado do processo de proletarização comentado anteriormente (REIS FILHO, 1990, p. 143-147). Na visão de Karl Kautsky, contemporâneo de Marx, como os intelectuais não tinham interesse na exploração capitalista e possuíam o monopólio do saber numa sociedade dividida claramente em trabalho manual e trabalho intelectual, eles deveriam ser considerados aliados dos trabalhadores. A socialdemocracia alemã, portanto, deveria tirá-los da influência da burguesia (BOBBIO, 1996,

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p. 122). Essa tese foi adotada por Lênin (1902, p. 40) em Que fazer?, obra em que oferecia uma interpretação do marxismo para a ação. O líder russo defendia que os operários tinham a experiência prática das fábricas, cabendo aos intelectuais, portadores da ciência, ensinar-lhes seus conhecimentos políticos.8 Na época de Stálin, porém, a monopolização daquilo que se acreditava ser a verdadeira interpretação da obra de Marx e de Lênin limitou drasticamente as possibilidades de se questionar as orientações vindas de Moscou, e a política da proletarização preconizada por ele, mesmo que revista posteriormente, deixou marcas profundas no imaginário comunista. É possível afirmar que o papel dos intelectuais no PCB e na revolução brasileira tornou-se objeto de maiores discussões no fim do Estado Novo. Naquele contexto, a função social de homens e mulheres dedicados à produção de bens culturais no Brasil passou a ser problematizada de forma organizada por meio da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), criada em 1942, e dos congressos de abrangência nacional promovidos por essa entidade. Os comunistas inseriram-se no debate, que evoluiu de momentos de influência até o controle total do PCB sobre a Associação e o consequente abandono desta por parte dos escritores não comunistas. O I Congresso Brasileiro de Escritores, ocorrido em janeiro de 1945, marcou um momento da história brasileira em que o discurso político esteve explicitamente vinculado às questões relevantes para a profissionalização do escritor (LIMA, 2010). Neles, as atuações dos participantes vinculados ao PCB – sobretudo no tocante aos temas políticos – afinaram-se às orientações de Pedro Pomar, dirigente comunista com o qual os congressistas comunistas encontravam-se diariamente para receber orientações (AMADO, 1992, p. 20). O objetivo era trabalhar no sentido de assegurar que a posição política do evento fosse a mais próxima possível à resolução da Conferência da Mantiqueira. Por isso, em suas participações, os comunistas defenderam o retorno da democracia, além de ajudarem a traçar o perfil do povo brasileiro (CAVALCANTE, 1986, p. 102-108). De modo geral, os congressistas atribuíram-se o papel de “guias” de um povo inculto e ignorante, um povo que – de acordo com a interpretação

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Nessa obra, Lênin reconhecia que a consciência socialista não havia surgido espontaneamente no seio da classe do proletariado, mas havia sido importada de intelectuais burgueses, como Marx, Engels e os pensadores da social-democracia na Rússia (p. 16 e 20).

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de Berenice Cavalcante para o episódio –, relegado ao abandono, à pobreza, à fome e à doença, era destituído das condições de participação por força da ignorância. O intelectual – homem de cultura no sentido de fruto de reflexão que não se produzia no meio popular – era visto como detentor de um saber que deveria ser difundido, popularizado, promovendo a conscientização das massas através da elevação do seu nível cultural (CAVALCANTE, 1986, p. 106 e 108). Nesse sentido, o intelectual neutro fugiria da sua missão de ser intérprete da comunidade nacional. Para os comunistas Dyonélio Machado e Juvenal Jacinto, dois dos delegados gaúchos e comunistas presentes no congresso, sendo os intelectuais os “líderes natos do povo”, a “camada superior da sociedade”, seu papel era o de promover o debate sobre os problemas e o de mobilizar a população (Serão fascistas os escritores gaúchos? Revista do Globo, Porto Alegre, ano XVI, n. 362, p. 2831 e 59, 06 maio 1944).9 Essa autopercepção dos escritores como condutores do processo de conscientização do povo e os demais assuntos amplamente debatidos no decorrer do congresso foram resumidos na Declaração de Princípios, lida solenemente pelo romancista Dyonélio Machado: Os escritores brasileiros, conscientes de suas responsabilidades na interpretação e defesa das aspirações do povo brasileiro, e considerando necessária uma definição do seu pensamento e de sua atitude em relação às questões políticas básicas do Brasil, neste momento histórico, declaram e adotam os seguintes princípios: Primeiro – A legalidade democrática como garantia da completa liberdade de expressão do pensamento, da liberdade de culto, da segurança contra o temor da violência e do direito a uma existência digna. Segundo – O sistema de governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal, direto e secreto. Terceiro – Só o pleno exercício da soberania popular em todas as nações torna possível a paz e a cooperação internacionais, assim como a independência econômica dos povos. CONCLUSÃO – O Congresso considera urgente a necessidade de ajustarse a organização política do Brasil aos princípios aqui enunciados, que são aqueles pelos quais se batem as forças armadas do Brasil e das Nações Unidas (LIMA, 2010, p. 209. Grifos nossos).

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A enquete foi promovida pela Revista do Globo alguns meses antes do encontro, evidenciando que os temas nele em questão estavam sendo debatidos na imprensa com relativa antecedência.

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Somente com a queda da ditadura varguista e seus mecanismos cerceadores da liberdade de expressão é que os escritores, os tradutores e os jornalistas teriam assegurada a plenitude de condições para suas atividades. O documento selou o evento que, em seu próprio desenrolar, começou a ser construído como marco de uma nova fase na vida cultural e política do país (PALAMARTCHUK, 2003, p. 308-309).10 No fim daquela década e na seguinte, a “missão” do intelectual comunista ganhou traços mais nítidos na organização. É possível vislumbrar seus contornos, principalmente, no compromisso do PCB com a campanha mundial pela paz e na adoção do realismo socialista como corrente estética oficial do Partido. Segundo estudo de Jayme Fernandes Ribeiro, acreditava-se numa possível “ação direta” do imperialismo norte-americano contra a União Soviética e, por essa razão, em reunião do Kominform de novembro de 1949, a “luta pela paz” foi definida como tarefa central do movimento comunista, à qual deveriam subordinar-se todas as outras tarefas e objetivos. Com o Apelo de Estocolmo, lançado em março de 1950 pelo Comitê Mundial dos Partidários da Paz, teve início a Campanha pela Proibição das Armas Atômicas. O objetivo era reunir assinaturas em diversos países e enviá-las à Organização das Nações Unidas (ONU), manifestando a posição de milhões de pessoas em favor da paz (RIBEIRO, 2008, p. 262-263). O documento mobilizou comunistas em todo o mundo contra as armas atômicas. Eles eram chamados “combatentes da paz”. Os comunistas brasileiros lançaram mão de diversas estratégias para lograr o maior número possível de assinaturas: comícios-relâmpago, festas, festivais, concurso, palestras, dramatizações sobre os efeitos da bomba atômica, distribuição de panfletos, matérias jornalísticas na imprensa partidária etc. (RIBEIRO, 2007, p. 64). No Rio Grande do Sul, a poetisa Lila Ripoll atuou intensamente na campanha, organizando e participando de congressos, compondo a direção do Movimento Estadual dos Partidários da Paz, escrevendo poesias (BALBUENO, 2005, p. 117, 125 e 142). Na direção da revista Horizonte, a poetisa divulgou o Apelo de Estocolmo e convidou intelectuais “das mais variadas tendências políticas” para participar da

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Os encontros subsequentes foram marcados pelo crescente domínio do PCB sobre a ABDE. Para maiores informações sobre as disputas políticas no seio da entidade, conferir: AMADO, 1992; CAVALCANTE, 1986; LIMA, 2010; RUBIM, 1986.

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campanha, procurando convencê-los de que poderiam “dar um poderoso auxílio”, “colhendo assinaturas de personalidades” (o que aumentaria a notoriedade da campanha e lhe conferiria credibilidade) e “usando sua arte para a propaganda da Paz” (Intensificar a luta pela paz. Horizonte, Porto Alegre, n. 7, p. 187, jul.1951). Podemos situar o trabalho pela campanha no periódico entre as estratégias usadas por Lila e seus companheiros para sensibilizar os leitores e lograr suas assinaturas no documento. Naquele contexto – em que a Guerra Fria e o retorno à clandestinidade motivaram a radicalização da linha política do PCB – a literatura não era considerada atividade acessória, mas uma tarefa política prática da maior importância, porque estava inserida no movimento revolucionário. Considerava-se que a chamada “arte revolucionária” – a literatura, a gravura e as demais formas de expressão artística – deveria atuar sobre o desenvolvimento da revolução, inspirando-se nela e, ao mesmo tempo, servindo-lhe de instrumento para o alcance de seus objetivos. Dessa forma, a classe operária tinha um de seus importantes instrumentos de luta na “arte de vanguarda”, a qual tinha o dever de ir contra “a arte velha, burguesa, degenerescente”, que não refletia a “abnegação e o sacrifício das grandes massas populares” e não servia à causa do povo (Participemos da luta heroica do povo brasileiro. Horizonte, Porto Alegre, n. 7, p. 189-190, jul. 1951). A criação realista – difundida em revistas e em livros editados pelo Partido – deveria fixar tipicamente os temas e os personagens populares brasileiros não só pelo comprometimento em mostrar a verdade, mas pelo compromisso com a transformação ideológica e com a educação dos trabalhadores nos princípios do socialismo. Essa concepção de arte fazia-se tanto mais necessária diante do imperialismo. Argumentava-se que, desprovido de autonomia cultural, um povo tornava-se incapaz de pensar por si, aceitando passivamente imposições externas (O cosmopolitismo e as tarefas atuais da literatura. Horizonte, Porto Alegre, ano II, n. 8, p. 230, set. 1952). Por isso crescia a responsabilidade dos escritores, cuja “tarefa” era criar uma literatura que não se satisfizesse apenas em expressar a situação de miséria e de opressão em que se encontrava o país, mas que indicasse ao povo brasileiro a solução revolucionária de seus problemas. Para tanto, fazia-se necessária íntima ligação com a população, com seu folclore e com seu passado cultural, e essa aproximação poderia ser conquistada observando o método do realismo socialista.

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A arte era uma arma de luta naquele estágio da revolução mundial que o intelectual comunista tinha a capacidade e o dever de operar. Os intelectuais, de um modo geral, concordavam com a política arbitrada pelo Partido (MORAES, 1994, p. 91). No terreno das artes plásticas, os clubes de gravura – impulsionados em todo o país pelo PCB nos anos 1950 – são um exemplo de como a organização se serviu da arte para agitação e propaganda (RIDENTI, 2010, p. 69). Para o gravurista Carlos Scliar, que atuava no Clube dos Amigos da Gravura de Porto Alegre junto a Vasco Prado e Danúbio Gonçalves, a defesa do realismo socialista se justificava por ser uma arte que “mexia com a cabeça das pessoas”, e só alguém com consciência poderia modificar a realidade social (apud MORAES, 1994, p. 176, n. 125). Parece ter sido na produção literária que a adoção de uma cultura proletária exigiu maiores sacrifícios e gerou decepções. Num relato ressentido, Osvaldo Peralva (1962, p. 238) conta-nos que Alina Paim e Dalcídio Jurandir, aceitando levar as teses do realismo socialista às últimas consequências, dispuseram-se a viver algum tempo no cenário em que se desenrolaram as histórias que iriam ser transformadas em romances. Partilharam todas as privações que a realidade impunha a seus personagens e, ao entregarem os originais para a direção, a fim de os terem publicados pela editora do Partido, foram duramente criticados e humilhados pelos dirigentes, que chegaram a questionar se os referidos camaradas eram “realmente romancistas”. Ao compararmos esse episódio com a citação reproduzida da revista Libertação no início desse texto, constataremos duas visões diametralmente opostas em relação aos intelectuais. Enquanto naquela eles foram exaltados, nesse foi-lhes negada até a condição de escritores, evidenciando um menosprezo que compunha uma tradição anti-intelectual com raízes antigas na cultura partidária (FERREIRA, 2002, p. 189). Ora elogiados e úteis, ora desprezados e não confiáveis, os intelectuais não escaparam das exigências impostas a todo militante comunista. Como os camaradas operários, eles também foram submetidos ao “massacre de tarefas” e chamados a comprometer a própria existência em prol da revolução. Mas eles carregavam consigo algo que os diferenciava dos trabalhadores e que, para o bem ou para o mal, estava na base do que unia, sob a denominação de “intelectual comunista”, mulheres e homens com trajetó-

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rias as mais diversas e diferentes maneiras de se adaptar ao dia a dia da militância: a origem social. A julgar por sua origem de classe, e pelas distinções sociais e recursos (capacidade de criação, saberes, relações etc.) possíveis de serem incorporados em trajetórias que ela determinava, os intelectuais comunistas tinham um lugar e um papel no interior do PCB. A potencialidade da sua contribuição para a revolução ou os problemas que poderiam acarretar ao Partido, suas qualidades e seus vícios, eram interpretados à luz da bagagem social que traziam consigo e de tudo o que era, pejorativamente ou não, associado a ela. Intelectual comunista, assim, era o substantivo que dava nome a um grupo específico de militantes e o adjetivo com o qual se (des)qualificava alguém que apresentasse comportamento considerado típico daqueles oriundos das classes abastadas, expandindo as fronteiras do que poderia ser compreendido pela expressão.

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As usinas do anticomunismo castrense Os intelectuais do nacionalismo de direita na Argentina, 1955-1966 Juan Manuel Padrón Introdução Nos anos 60, especialmente depois do triunfo da Revolução Cubana, o anticomunismo passou a ocupar um lugar central para as elites latinoamericanas que se sentiam ameaçadas pela expansão do modelo cubano. Essas elites encontraram ao menos quatro aliados em sua cruzada contra o “perigo vermelho”: um exterior, as potências ocidentais, particularmente os Estados Unidos, e três internos, os intelectuais de direita, as cúpulas da Igreja Católica e das Forças Armadas. Embora o peso desses atores fosse dessemelhante em cada país latino-americano, é inegável que eles foram fundamentais para a difusão de um anticomunismo muitas vezes radicalizado e violento, que alimentou, nas décadas posteriores, as ditaduras mais sangrentas que a América Latina tinha experimentado. Neste trabalho, busco uma primeira aproximação à relação que se estabeleceu entre dois desses atores: os intelectuais de direita e as Forças Armadas. Para isso, irei me concentrar no caso da Argentina do início dos anos 60. Além disso, e pensando no campo intelectual, esse recorte corresponderá ao que chamaremos de “intelectuais do nacionalismo de direita”, um subgrupo que, como mostrarei na primeira parte deste ensaio, constituía um universo bem definido, ainda que heterogêneo em sua composição, que, embora compartilhasse o anticomunismo com o restante dos intelectuais de direita, bebia de uma tradição alheia (e crítica) à liberal. Nesse sentido, irei me concentrar em duas figuras desse universo, cuja obra se articulou, já antes dos anos 60, na denúncia do comunismo e de seus efeitos destrutivos sobre a Nação: Jordán Bruno Genta e Julio Meinvielle.

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Entendo que a história dos intelectuais, ou história intelectual, permite mais de uma abordagem. Nos últimos 30 anos, ela passou por um amplo desenvolvimento. A renovação historiográfica ocorrida nesse mesmo período, com a revalorização do político como campo autônomo e reconhecido da pesquisa, revitalizou e redefiniu outros espaços para a análise histórica. A tradicional história das ideias, embora não tenha declinado em sua significação dentro do campo historiográfico, deixou um lugar significativo para outras formas de abordar o estudo dos intelectuais. Nesse sentido, optarei, de uma maneira eclética, por uma análise que, nas palavras de Carlos Altamirano, “comunique a história política, a história das elites culturais e a análise histórica da literatura das ideias”, que não reduza essa história intelectual a “ser história puramente intrínseca das obras e dos processos ideológicos, nem se contente com referências sinóticas e impressionistas à sociedade e à vida política” (ALTAMIRANO, 2005). Quanto à organização deste trabalho, esboço duas grandes seções. A primeira apresenta os intelectuais do nacionalismo de direita na Argentina no período compreendido entre dois golpes de Estado, de 1955 a 1966, em que expomos de maneira geral como esse universo estava organizado internamente e quais foram suas principais posturas políticas e ideológicas. A segunda se concentra nas figuras de Genta e Meinvielle, em suas ideias e nas redes que construíram para alcançar com sua pregação anticomunista o ator que consideravam a última barreira contra o avanço comunista, as Forças Armadas.

Os intelectuais do nacionalismo de direita entre duas “revoluções” O nacionalismo de direita era, em inícios dos anos 60, um conjunto heterogêneo de agrupações, intelectuais e projetos jornalísticos. Muitas vezes, ele foi apresentado erroneamente como um setor estático, cujas ideias e práticas não pareciam ter variado significativamente desde os anos 20 e só tinha adotado uma linguagem mais “popular” para se aproximar das massas peronistas (ROCK, 1993, p. 190-192). Em seu interior, podem-se diferenciar ao menos dois subgrupos: o primeiro é uma corrente de intelectuais nacionalistas que compartilhavam certas ideias básicas sobre a sociedade e a política: respeito e defesa das

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hierarquias, apoio a modelos corporativistas de organização política e social, apego ao revisionismo histórico, um catolicismo militante, oposição a liberais e setores de esquerda, um antissemitismo muitas vezes disfarçado de antissionismo e um nacionalismo econômico radical; o segundo é composto por um sem-número de organizações juvenis nacionalistas organizadas como verdadeiros grupos de choque, em que não só apareciam os traços antes mencionados para os setores intelectuais, mas em que a violência, como prática política, ocupava um lugar central; essas organizações concebiam a revolução como motor da mudança política e social, ainda que a partir de uma perspectiva alheia e oposta à tradição de esquerda (LVOVICH, 2006). Sua história remontava a fins dos anos 20, mas, em termos imediatos, a experiência peronista tinha marcado a fogo seu posicionamento político e ideológico. Durante os governos peronistas, os nacionalistas assumiram uma atitude ambígua frente ao novo fenômeno político. Sem dúvida, foram participantes ativos dos governos instaurados em 1943, ocupando espaços secundários dentro das administrações dos presidentes Ramírez e Farrell1. Não obstante toda a reserva que mostravam frente ao próprio Juan Domingo Perón, seu apoio foi evidente nas eleições de 1946, e muito poucos desses intelectuais podiam negar que Perón era o “mal menor”, especialmente ante a coalizão de radicais, socialistas e comunistas que enfrentava (WALTER, 2001, p. 262-264). Nos anos posteriores, esse apoio inicial condicionado passaria, lenta mas inexoravelmente, a transformar-se em hostilidade aberta. Em princípio, os nacionalistas creram descobrir no peronismo lemas que lhes eram próprios, particularmente em relação ao que chamavam de “justiça social”. Entretanto, esse uso de slogans e ideias alheias por parte de Perón não foi acompanhado de espaço algum para as aspirações políticas dos nacionalistas. Os veículos de imprensa destes últimos começaram lentamente a minguar, e grande parte das organizações existentes nos anos anteriores se dissolveu ou ficou vinculada ao próprio peronismo, como foi o caso da Alian-

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Uma vez ocorrido o golpe de junho de 1943, embora a participação dos nacionalistas nele fosse marginal, aprovaram a nova gestão, e algumas de suas figuras passaram a ocupar lugares dentro da administração, em especial no campo educacional, ou nas administrações provinciais (NAVARRO GERASSI, 1968, p. 179-182).

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ça Libertadora Nacionalista. Mais tarde, vários conflitos avivaram o ressentimento para com o governo. Embora reconhecessem certos êxitos na política econômica e na política externa, o que não deixava de incomodar esses setores era o pragmatismo de Perón, especialmente no tema da política social e na busca de apoio entre os setores operários (WALTER, 2001, p. 266). Também os incomodava o papel assumido por Eva Duarte, esposa de Perón, dentro do governo, e frente a ela demonstravam, em muitos casos, simplesmente desprezo. Este se devia a que a relação entre Perón e a jovem atriz, segundo matrimônio do coronel, “ia contra as grandiloquentes normas morais pregadas pelos nacionalistas como elementos essenciais da salvação nacional e espiritual” (WALTER, 2001, p. 262). A aproximação do governo de setores que os nacionalistas não viam com bons olhos avivou essa antipatia para com os integrantes do governo, em especial quando um desses grupos foi a própria comunidade judaica2. Em termos gerais, como expressou um reconhecido sacerdote nacionalista católico, o presbítero Julio Meinvielle, o peronismo, preocupado que estava em solucionar as questões materiais, tinha sido incapaz de dar à ordem estatal e política verdadeiros valores nacionalistas e católicos. Entretanto, se houve uma questão que acabou rompendo os frágeis laços que podiam existir entre o nacionalismo e o peronismo foi o conflito entre o Estado peronista e a Igreja Católica. Desde o início dos anos 50, primeiro a crise econômica e depois a morte da esposa de Perón implicaram mudanças radicais de direção nas políticas do governo. O gasto público excessivo, a busca de apoio econômico nos Estados Unidos e a crise moral que os nacionalistas acreditavam descobrir no governo foram os prolegômenos para os acontecimentos e enfrentamentos que ocorreriam a partir de 1954. Perón avançou numa série de medidas que contrariavam a Igreja Católica e o pensamento nacionalista (lei do divórcio civil, legalização do exercício da prostituição, abolição do ensino religioso), fazendo com que esses setores se voltassem naturalmente para a vasta oposição que estava se formando contra ele. 2

A partir de fevereiro de 1947, o governo de Perón começou a se aproximar de alguns setores da comunidade judaica que tinham se reunido na Organização Israelita Argentina (OIA); esta concorria com a Delegação de Associações Israelitas Argentinas (DAIA) pela representação dos judeus perante o governo, ainda que a partir de uma posição partidária que a DAIA não tinha. De modo geral, as relações do governo peronista com a comunidade judaica argentina foram boas, embora nesta última nunca tenha desaparecido inteiramente o temor de uma possível atitude antissemita por parte do peronismo (veja REIN, 2001, p. 57-138).

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A participação dos nacionalistas no golpe de setembro de 1955 foi muito importante. Eles fizeram isso, sobretudo, como católicos, junto com seus antigos inimigos ideológicos e agora eventuais aliados: radicais, socialistas e comunistas. Ainda assim, uniram-se atrás da rebelião do general Lonardi, e, com o triunfo deste, muitos obtiveram postos de relevância na nova administração3. Entretanto, esse fato, somado à política conciliadora implementada pelo novo governo, acabou desencadeando a queda do próprio Lonardi e dos nacionalistas que lhe eram próximos e sua substituição por uma nova administração de perfil liberal, encabeçada pelo general Pedro Eugenio Aramburu e pelo almirante Isaac Francisco Rojas. Embora fosse errôneo considerar o setor nacionalista como homogêneo e inclusive estabelecer uma relação direta entre ele e os setores lonardistas, é certo que a queda de Lonardi significou um fracasso para os nacionalistas, que tiveram de abandonar o governo e passaram a engrossar as fileiras da oposição. Era mais uma derrota, como aquela que tinham vivido com “a hora da espada” em 1930, ou com a “revolução restauradora” em 1943, e uma nova frustração de seu intento de acionar as lideranças castrenses nas quais depositavam todas as suas esperanças4. Ainda assim, o nacionalismo sobreviveu à crise de novembro de 1955, mas o fez radicalizando uma de suas características centrais, a tendência à divisão. Entre 1955 e 1958, quando houve nova eleição para presidente, foram vários os empreendimentos políticos e jornalísticos levados a cabo pelos nacionalistas (veja Quadro 1). Essa fragmentação se expressou cabalmente na impossibilidade de articular uma proposta política única e com certo apoio. Esse fracasso tem múltiplas explicações possíveis. Por um lado, os nacionalistas sofreram,

Entre os intelectuais nacionalistas católicos do novo governo de Lonardi devem ser destacados Mario Amadeo, ministro de Relações Exteriores; Juan Carlos Goyeneche, chefe da Secretaria de Imprensa; Luis María de Pardo Pablo, ministro do Interior após a renúncia do liberal Eduardo Busso, e Clemente Villada Achával, secretário assessor do presidente (SPINELLI, 2005). 4 Os golpes de Estado de setembro de 1930, que derrubou o governo radical de Hipólito Irigoyen, e o de junho de 1943, que acabou com o governo do conservador Ramón Castillo, foram apoiados pelos nacionalistas, e muitos intelectuais e políticos provenientes de suas fileiras ocuparam postos secundários nas administrações governamentais. Entretanto, em ambos os casos eles abandonaram o governo: no primeiro caso, por causa do fracasso da reforma corporativista que se propunha o general Uriburu, cabeça da revolução; no segundo, por causa do abandono da postura neutralista na Segunda Guerra Mundial, percebida como uma traição da tradição argentina (cf. DOLKART, 2001; ECHEVERRÍA, 2009, WALTER, 2001). 3

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depois da queda de Perón, uma mudança significativa em suas posturas ideológicas, com escassa referência no passado dos próprios participantes, o que, muitas vezes, podia ser interpretado como simples oportunismo. Como destacava nessa época o socialista Oscar Troncoso, se esmeraban en demostrar que ellos representaban una nueva corriente dentro de su ideario; procuraban usar un lenguaje más mesurado que el que era habitual en sus antecesores; muestran actitudes algo circunspectas y opiniones más contemporizadoras […] Como principal síntoma de su evolución o de su revisionismo de las ideas nacionalistas, manifiestan a través de su hoja su amor por la libertad y su profundo respeto por las garantías individuales […] frente al nacionalismo de otrora, tipo Legión Cívica o Alianza, militarizado, agresivo, intolerante, criminal y rabiosamente totalitario, ellos se presentan con un nacionalismo pintado con los colores de nuestra bandera, versión despojada de aquellos vicios… (1957, p. 72-73).

Quadro 1 Partidos e publicações nacionalistas destacadas5 (1955-1958) Partido Político

Publicação

Referências

Ano de surgimento

Marcelo Sánchez Sorondo, Ricardo Curuchet, Máximo Etchecopar, Carlos Ibarguren, Juan Carlos Goyeneche, Mario Amadeo, Mariano Montemayor, Alberto Tedín, Santiago de Estrada.

1956

Bandera Popular

Gral. Justo León Bengoa.

1956

Combate

Jordán Bruno Genta, Gustavo Martínez Zubiria (Hugo Wast), Carlos Alberto Felici.

1955

Cruzada

Cosme Beccar Varela, Jorge Labanca, Juan Carlos Clausen.

1956

Mayoría

Tulio Jacobella.

1957

Cristiano

Gral. Carlos E. Velazco, Bonifacio Lastra.

1955

Partido Social Demócrata

Horacio Godoy, Francisco Arias Pellerano.

1956

Presencia

Pbro. Julio Meinvielle.

1949

Revolución Nacional

Luis Cerrutti Costas

1956

Azul y Blanco Azul y Blanco

Partido Laborista

5

Nesse grupo foram incluídos alguns partidos e jornais de orientação católica nacionalista.

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Partido Político

Publicação

Unión Popular Demócrata Cristiana Unión Federal

Unión, Media Hora

Unión Cívica Nacionalista Unión Republicana

La Voz Republicana, Unión Republicana

Referências

Ano de surgimento

?

1956?

Mario Amadeo, Emilio Mignone, Horacio Storni, Eduardo Enrique Ariotti, Clemente Villada Achával.

1955

Horacio Naya.

1942

Julio Irazusta, Rodolfo Irazusta.

1955

Fonte: Elaboração própria a partir de Rock (1993), Zuleta Álvarez (1975), Navarro Gerassi (1968), Beccar Varela (1970), Fares (2007), Caponnetto (1999), Melón Pirro (2002).

Em segundo lugar, depois do golpe de setembro, eles mostraram uma atitude vacilante frente à revalorização de alguns aspectos do peronismo. Enquanto que, imediatamente após setembro, e em consonância com a política conciliadora de Lonardi, alguns nacionalistas resgatavam a influência de sua doutrina nos aspectos mais destacados do peronismo, em meados de 1956 muitos denunciavam isso como um verdadeiro “saque” (SPINELLI, 2005, p. 232). Frente às massas peronistas, que logo se mostraram mais fiéis ao líder exilado do que todos os atores políticos poderiam prever, atacar o regime passado ou denunciar o oportunismo de seu líder não encontrou uma resposta favorável nesses setores. Quando tentaram reeditar um “peronismo sem Perón”, elogiando os aspectos positivos do regime passado, em especial o “sentido social” de sua política, e criticando com dureza as posturas do antiperonismo mais radical, encontraram poucos interlocutores dentro do campo dos vencidos, para não falar de adesão popular. A candidatura de Frondizi às eleições presidenciais de 1958 constituiu um novo golpe para os nacionalistas. Ele tinha conseguido construir uma ampla aliança de apoio à sua candidatura, e uma parte dos intelectuais nacionalistas tinha se somado a ela6. Entretanto, uma parte importante de6

Amadeo foi premiado por Frondizi com o cargo de Embaixador argentino nas Nações Unidas (cf. ZULETA ÁLVAREZ, 1975, p. 552-553). Já Raúl Puigbó e Mariano Montemayor passaram a fazer parte da equipe da revista Qué!, dirigida por Rogelio Frigerio, abordando a grande

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les abandonou o governo, concentrando seus ataques na figura do presidente, que considerava gestor de um plano para o triunfo comunista no país, acompanhado pelos setores liberais maçons e pelos tecnocratas ligados aos organismos financeiros internacionais. Os intelectuais nacionalistas sobreviveram a essas experiências refugiados em diferentes empresas jornalísticas, ou em agrupações, centros de estudos ou ateneus políticos cujo impacto na política cotidiana ficou muito limitado7. A partir desses espaços, incitavam os militares a decidir-se a tomar o poder, e, quando isso aconteceu, exigiam uma verdadeira “revolução nacional”, e mais tarde uma ditadura. O vislumbre de reconstrução de uma ordem democrática, a convocação de eleições e a crise das Forças Armadas, que entre 1962 e 1963 chegou ao extremo de um enfrentamento armado, por causa de posições em confronto em torno do papel dos militares na vida política, implicou um golpe profundo para os projetos e as ideias dos intelectuais nacionalistas8. Ainda assim, sua pregação contra a democracia não se deteve, e eles participaram da destruição do governo de Arturo Illia, candidato da UCR do Povo, que tinha conseguido chegar ao governo com a prescrição do peronismo. Não é de estranhar, então, que a chegada de Onganía ao poder tenha sido aclamada pelos nacionalistas. Entretanto, essa adesão inicial foi se diluindo lentamente. O primeiro aspecto perturbador do novo governo foi sua composição. Embora vários nacionalistas houvessem se somado a ele, também havia uma presença importante de representantes dos setores libe-

possibilidade que o país tinha de sair do estancamento político y econômico, por meio de uma política de industrialização de base (cf. BERAZA, 2005, p. 120). 7 Em inícios dos anos 60 só sobreviviam ainda dois partidos nacionalistas, a União Federal e a União Cívica Nacionalista, que, ao participar de eleições, tiveram um apoio ínfimo. Em 1963, surgiu o Ateneu da República, um agrupamento de intelectuais nacionalistas que tiveram seu momento de reconhecimento no início da Revolução Argentina, em 1966. Só os setores mais reacionários das Forças Armadas, as agrupações antissemitas e filofascistas que atuaram até meados da década de 60 e os grupos católicos integristas foram receptivos a suas ideias. 8 Depois da derrubada de Frondizi, em março de 1962, e durante o governo de seu sucessor José María Guido, entre setembro de 1962 e abril de 1963, dois setores das Forças Armadas, os “azuis” e os “colorados”, enfrentaram-se, chegando inclusive a um confronto armado. O primeiro se identificava com os setores “legalistas”, partidários da entrega do governo aos civis; o segundo representava os setores mais duros do antiperonismo e exigia um governo duro que evitasse o retorno do peronismo ao poder. A confrontação terminou com um acordo, referendado pelo chamado Comunicado 200, em que se chegava a dois acordos básicos: convocar eleições e manter a proscrição do peronismo (cf. POTASH, 1981; ROUQUIE, 1998).

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rais. As esperanças de que o “onganiato” acabasse para sempre com os males da democracia liberal se chocaram com a realidade: a esperada revolução nacional foi traída por um governo que se voltou para os tecnocratas liberais. Durante esses anos, foram vários os temas que marcaram a agenda de reflexão e ação dos intelectuais nacionalistas. Contudo, uma temática se impôs às outras, em especial depois do triunfo da Revolução Cubana e de sua passagem para a esfera soviética. Essa temática foi a “ameaça comunista”, que, no plano local, articulou três temas fundamentais: identificar os responsáveis pela infiltração comunista; atuar no sentido de evitar que as massas peronistas, proscritas politicamente, se voltassem para as opções políticas de esquerda; e conscientizar as Forças Armadas de seu papel central na defesa da tradição ocidental, hispana e católica, frente ao avanço do comunismo. Nessa tarefa se destacaram duas figuras do nacionalismo de direita: Jordán Bruno Genta e o presbítero Julio Meinvielle.

Jordán Bruno Genta, apologeta da guerra contrarrevolucionária Jordán Bruno Genta nasceu em 1909, no seio de uma família de imigrantes. Escritor e professor de filosofia e letras, incursionou no jornalismo e, durante sua vida, escreveu diversos livros de ampla difusão nos círculos próximos do nacionalismo católico. Em 1943, foi designado interventor da Universidade Nacional do Litoral pelo governo surgido com o golpe militar de 4 de junho de 1943, posto que teve de abandonar imediatamente por causa da resistência do movimento estudantil à sua gestão, que tinha se caracterizado pela tentativa de limitar o cogoverno universitário e a liberdade acadêmica. Em confronto com o peronismo, refugiou-se nas aulas privadas de filosofia e política que dava. Com a queda do governo peronista em 1955, ele começou a editar Combate, uma publicação quinzenal que se manteria até o ano de 1967 e se tornaria órgão de expressão do núcleo de seguidores que Gente tinha nas aulas que ministrava. Os temas abordados nessa publicação estavam organizados em torno de certos tópicos centrais: o anticomunismo, o antissemitismo, a denúncia da democracia liberal, o ataque à maçonaria e a defesa das Forças Armadas como reservatórios morais e políticos da Pátria. Em

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sua definição inicial, apresentavam-se como “católicos nacionalistas e hierárquicos”, inimigos de uma democracia liberal que julgavam ter introduzido “a rebelião do pessoal subalterno” e a “total descristianização da sociedade argentina”9. No plano político, embora tenha mantido durante toda a sua existência um discurso fortemente antiperonista, isso não implicou de maneira alguma seu apoio aos governos que mantiveram a proscrição do peronismo e de seu líder. Tanto o governo da Revolução Libertadora quanto as presidências de Frondizi (1958-1962), Guido (1962-1963) e Illia (1963-1966) foram alvo dos ataques de Genta através de sua publicação, esgrimindo em todos os casos como argumentos fundamentais o papel das “forças mencheviques” que, por sua vez, cada governo desdobrava, abrindo a porta ao comunismo na Argentina. Essa pregação se radicalizou depois de 1959, com o êxito da Revolução Cubana, sua passagem para a esfera comunista e a rápida percepção de que o fenômeno se repetiria no resto da América Latina. Nesse contexto, interessa-me destacar quais foram os tópicos centrais desse discurso anticomunista e seu nexo com as Forças Armadas no devir político argentino. Se nos detemos nos primeiros números de Combate, em sua apresentação elas ocupavam um lugar apenas marginal, e só se fazia referência a elas quando se denunciava um espírito de rebelião social que, caso não fosse combatido, afetaria diretamente a hierarquia castrense10. Haveria que esperar até o número 5 da publicação, em fevereiro de 1956, para encontrar uma referência mais extensa ao papel das Forças Armadas na recente revolução que derrubara Perón, a qual estaria sendo tomada pelos políticos tradicionais que ameaçavam a integridade dos jovens militares que tinham levado adiante essa revolução mesmo contra seus superiores “corrompidos até a medula”11. A partir desse momento passariam a ocupar maior espaço os apelos dirigidos às Forças Armadas para que acabassem com o papel que os partidos políticos tradicionais tinham no governo da Revolução Libertadora, em especial os socialistas e radicais12. Nuestra definición. Combate, ano 1, n. 1, p. 2, 8 dez. 1955. Ibid. 11 ¿Por qué la revolución no anda. Combate, ano 1, n. 5, p. 2, 9 fev. 1956. 12 O governo da Revolução Libertadora era formado por um Poder Executivo, ocupado pelo general Aramburu e pelo almirante Rojas, e pela Junta Consultiva, que fazia as vezes de Poder Legislativo e era formada por representantes dos partidos políticos opositores ao peronismo derrubado. 9

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As ligações de Genta e do grupo reunido em torno de Combate com certos setores das Forças Armadas começaram a se estreitar nesses anos. Em meados de 1956, a publicação denunciou a detenção do então vigário geral da Aeronáutica Militar, o presbítero Eliseo Melchiori. Este era um velho conhecido de Genta, com o qual tinha compartilhado seu antiperonismo e suas críticas ao governo de Aramburu. Uma vez libertado e recolocado em seu lugar de vigário geral, Melchiori aproximou Genta da Aeronáutica, onde começou a ser uma referência entre os oficiais antiperonistas mais recalcitrantes. Entre eles se encontrava o Comodoro Agustín Héctor de la Vega, que em setembro de 1957 estava encarregado da chefatura de cadetes da Escola de aviação Militar de Córdoba13. Paralelamente, a partir da publicação se reforçou o discurso a favor de um maior compromisso dos militares com o governo revolucionário, o qual, segundo a denúncia dela, tinha caído nas mãos de certos setores das Forças Armadas afins ao liberalismo, defensores de uma saída democrática e aliados dos velhos políticos. A democracia continuava ocupando um lugar central na lista de alvos dos ataques de Genta e seus seguidores, e o anticomunismo era um tópico secundário, ainda que nada desprezível, nesse discurso. Em inícios de 1958, já confirmada a vitória do candidato da UCR Intransigente, Arturo Frondizi, nas eleições presidenciais, Combate daria maior espaço ao “perigo comunista”, publicando uma série de notas que denunciavam os nexos entre o processo democrático aberto com as eleições e o desenvolvimento de uma guerra revolucionária que terminaria com a instauração de um regime comunista no país. Frondizi era apresentado como o candidato da maçonaria, aliado do peronismo, do Partido Comunista e do judaísmo internacional, e o futuro era imaginado como devastador: Por ahora, la coincidencia de la extrema izquierda se ha producido en las urnas; pero más allá de Perón o de Frondizi, sea que este último pueda cumplir o deje de cumplir sus compromisos peronistas, lo cierto es que el cegetismo bolchevique del proletariado fabril y campesino, conjugado con el laicismo escolar, la coeducación, el divorcio y la reforma universitaria, van a precipitar la descomposición moral y material de la Patria.14

Os chamados dirigidos às Forças Armadas, como reservatórios dos valores morais católicos e patrióticos, começaram a multiplicar-se na publiDe la Vega tinha participado ativamente dos bombardeios da Praça de Maio em junho de 1955, sublevando uma parte dos pilotos da Base de Morón (cf. FERRARI, 2009, p. 214-215). 14 La extrema izquierda en el poder. Combate, ano 3, n. 49, p. 1, 29 mar. 1958. 13

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cação. Paralelamente, Genta começou a fazer conferências em diferentes espaços ligados ao nacionalismo, como a livraria Huemul, de seu cunhado Antonio Rego, que se centravam na relação entre o comunismo e o mundo contemporâneo, denunciando especialmente a infiltração comunista no governo e no âmbito educacional. Além disso, incentivava-se com maior vigor a alternativa ditatorial frente a uma democracia responsável pelo avanço comunista. Nesse sentido, recuperavam-se os ensinamentos do intelectual hispânico Donoso Cortés, para o qual “quando a legalidade basta para salvar a sociedade, a legalidade; quando não basta, a ditadura”15. O tom pessimista foi mantido durante todo o período, particularmente frente ao papel passivo, quando não cúmplice, que se atribuía às Forças Armadas e à Igreja Católica, nesse processo de um caminho inexorável rumo à instauração da “ditadura do proletariado” na Argentina. Isso não impediu que Jordán Bruno Genta aprofundasse os laços que tinha estabelecido com alguns setores militares. Assim, em inícios dos anos 60, a Força Aérea, através do secretário de Aeronáutica, brigadeiro Jorge Rojas Silveyra, encarregou Genta de redigir uma série de textos que seriam distribuídos entre os membros da força em forma de folhetos. O tema desses textos era a “guerra contrarrevolucionária”, e logo o primeiro folheto chegou às mãos de seus destinatários. A denúncia do conteúdo “falangista” da publicação por parte da imprensa de esquerda e o forte debate público que se iniciou em torno do tema levaram Rojas Silveyra a retirar os folhetos de circulação e a proibir sua difusão entre os oficiais. A reação de Genta não se fez esperar, e ele logo atacou Rojas Silveyra dizendo que este estava a serviço da maçonaria16. Pouco tempo depois, as conferências foram publicadas em formato de livro com o título Guerra contrarrevolucionária. O texto tinha um destinatário claro: os membros das Forças Armadas. Não era um texto publicado solitariamente17, mas se inscrevia num

Frente al desorden: LA DICTADURA. Combate, ano 3, n. 63, p. 4, 11 dez. 1958. As denúncias partiram de Afirmación, semanário socialista dirigido por Américo Ghioldi, e encontraram eco na imprensa nacional, que estava sensibilizada frente a uma onda de antissemitismo que assolava o país desde o sequestro e julgamento de Eichmann. O ataque de Genta pode ser visto em “La masonería en la Fuerza Aérea”, ano 7, n. 109, p. 1-3, 21 jun. 1962. A Igreja Católica aprovou o texto do folheto em junho de 1962. 17 Nesses anos seriam publicados Guerra revolucionaria comunista (1962), do coronel Osiris Villegas, Democracia y comunismo (1962), do coronel Abraham Granillo Fernández, e Paredón de América (1964), de Armando Alonso Piñeiro. 15 16

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clima de época que via nas Forças Armadas a última contenção frente ao avanço comunista. Ainda assim, ele pode ser interpretado como todo um programa que pensava a Argentina sob um duplo aspecto: a partir de uma “doutrina positiva”, que apresentava “os princípios, valores e instituições fundamentais que devem ser afirmados, servidos e defendidos em todos os terrenos teóricos e práticos”, e de uma “doutrina negativa”, desencadeada pelo comunismo através da guerra revolucionária, e fundamentada numa estratégia, numa tática e nas armas da dialética (GENTA, 1964, p. 11). O livro tratava de temas tão diversos como a educação universitária e seu papel central na difusão do comunismo, ou o papel fundamental da religião católica como freio à mentalidade liberal e marxista que se impunha a partir dos governos latino-americanos. Mas o eixo fundamental consistia em compreender a realidade de uma Pátria que ele considerava ameaçada “pelo pluralismo, pela subversão e pela anarquia no aspecto espiritual, além da prostração material [...] configuram um paralítico ao qual só falta o soco revolucionário para sua derrubada definitiva” (Genta, 1964, p. 125). Frente a essa realidade, a única solução possível era a “unidade de doutrina”, fundamentalmente dentro das Forças Armadas. Essa unidade deveria estar fundamentada na destruição da democracia liberal e do sufrágio universal, antessala direta do comunismo18. Era fundamental “a doutrinação do militar argentino na política da Verdade que ele deve conhecer, amar e servir até a morte”, sobre a base da doutrina católica hierárquica (GENTA, 1964, p. 239). Embora o livro de Genta tenha tido uma ampla circulação, o êxito de sua pregação anticomunista no seio das Forças Armadas foi escasso. O caos em que os chefes militares se debatiam, alimentado pelo problema insolúvel do período, ou seja, “o que fazer com o peronismo”, eclipsou as conclamações de Genta a acabar com o regime democrático. Ainda assim, suas ligações com figuras como o brigadeiro Cayo Antonio Alsina, comandante da Força Aérea entre 1962 e 1964, ou com o chefe do Estado Maior dessa força, Gilberto Hidalgo Oliva, permitiram-lhe manter laços concretos com

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Como alternativa, Genta propunha a necessidade de uma república corporativista, com um Poder Legislativo composto por uma Câmara de Deputados das Corporações e de um Senado ou Conselho Supremo das Corporações, por um Poder Executivo encabeçado por um presidente de uma República corporativa, representativa e federal, eleito pelos governadores (GENTA, 1964, p. 223-225).

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a Aeronáutica. Tanto Alsina quanto Oliva participaram ativamente das tentativas de levante ocorridas dentro da força durante a primeira metade dos anos 60 e foram expoentes claros do antiperonismo mais radicalizado, fiel, nesse sentido, ao lema de Genta de que, na Argentina, o peronismo era a força destinada a ser o “cavalo de Troia” do comunismo. Entretanto, as tentativas de formar uma organização política que pudesse canalizar as ideias de Genta se organizou em torno do já mencionado Comodoro De la Vega, que, em 1964, tinha se tornado chefe da recentemente criada Legião Nacionalista Contrarrevolucionária19. Ela pretendia canalizar a militância de jovens nacionalistas desencantados com as organizações nacionalistas contemporâneas, juntando esforços com os grupos afins a Genta dentro das Forças Armadas20. Combate se tornou o portavoz da nova organização, que se apresentava disposta “a servir em Cristo à Pátria, que corre perigo iminente de ser desintegrada pela guerra revolucionária e submetida ao terror castro-comunista; empenhamo-nos na defesa e recuperação do ser”21. A organização estava ligada ao círculo intelectual aglutinado em torno de Genta, que se reunia na livraria Huemul, de propriedade do primeiro diretor de Combate, o livreiro Antonio Rego. Seus primeiros membros provinham em sua maioria da Aeronáutica e de uma cisão da Guarda Restauradora Nacionalista, que tinha se apartado da organização por causa de diferenças em relação ao lugar que ela dava ao peronismo em suas reivindicações políticas22. Logo a organização começou a se expandir por todo o país, embora essa expansão carecesse do impulso necessário para consolidá-la em todo o território. Como recordaria anos depois um de seus membros, o fato de sua atuação ficar reduzida ao âmbito da Força Aérea e de não consolidar seu desenvolvimento com militância civil fez com que, em 1967, tanto a LNC quanto Combate desaparecessem da cena local (CAPONNETTO, 1999). Acta de fundación. Combate, ano 9, n. 123, p. 1, maio 1964. Em 1964, as organizações juvenis do nacionalismo, o Movimento Nacionalista Tacuara e a Guarda Restauradora Nacionalista, encontravam-se em plena crise e num processo de desintegração que terminaria com seu desaparecimento virtual da cena política argentina (cf. GUTMAN, 2003, LVOVICH, 2006). 21 Acta de fundación. Combate, ano 9, n. 123, p. 1, maio 1964. 22 Desse grupo provinham Silvio Pestalardo, Ernesto Sylvie (secretário da LNC), Mario Caponnetto (genro de Genta), Héctor Torre, Héctor Marone e Floribel Medina (Aclaración. Combate, ano 9, n. 122, abr. 1964). 19 20

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Genta continuaria sendo um intelectual de renome nos círculos nacionalistas, ainda que sua capacidade de ser uma referência no plano intelectual ficasse restrita a alguns núcleos das Forças Armadas, em especial da Aeronáutica. Mesmo assim, sua relevância dentro da direita autoritária anticomunista ainda era importante em 1974, quando um comando do Exército Revolucionário do Povo, organização armada de esquerda, pôs fim à sua vida num atentado.

Julio Meinvielle, a dialética comunista e o fim das Forças Armadas Dentro dos setores católicos nacionalistas, uma das figuras mais importantes foi o presbítero Julio Meinvielle, que, através de uma série de publicações político-culturais que editou a partir dos anos 40, tornou-se porta-voz dos setores católicos integristas. Ele nasceu em 1905 e estudou no Seminário Pontifício de Buenos Aires, ordenando-se presbítero em 1930. Era doutor em Filosofia e em Teologia, colaborador ativo de diversas publicações católicas e nacionalistas a partir dos anos 30, e pároco na bairro de Versalles, na cidade de Buenos Aires. Com base num tomismo cerrado, para Meinvielle todo o material tinha de estar submetido ao espiritual. Além disso, a política, a economia e as concepções de Estado e a sociedade só podiam ser entendidas na medida em que estivessem subordinadas à teologia. Confrontou-se com os nacionalistas que tinham uma noção do Estado fora da ordem teológica, criticando as posturas profanas desses setores e declarando abertamente que o único nacionalismo viável era aquele com bases doutrinárias firmes fundamentadas na teologia católica (ZANATTA, 1996, p. 49). Seu principal inimigo eram os judeus, que encarnavam todas as características anticristãs na história: eram responsáveis pela morte de Cristo, pela modernidade e por suas ideias e especialmente por ser sustentadores e difusores da tríade liberalismo-marxismo-democracia, que atentava contra a ordem hierárquica ideal do cristianismo. A experiência peronista também marcou a pregação desse sacerdote, que, desde 1944, vinha alertando sobre os perigos das políticas de abertura e reforma social que Perón pretendia encarar a partir da Secretaria de Trabalho. Abordou isso em sucessivas publicações, embora apoiasse tibiamen-

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te sua candidatura e alguns aspectos de seu governo23. Elas se transformaram em verdadeiros espaços de reunião para os nacionalistas, que tinham ficado marginalizados (ou automarginalizados) de toda atividade política sob o governo de Perón. O caso da revista Presencia é singular nesse sentido, pois ela se tornou um dos poucos espaços de difusão do pensamento nacionalista desde que passou a sair em 1949. Suspensa dois anos depois, reapareceu com a queda do peronismo e foi reeditada com breves intermitências até setembro de 1961, quando, por decisão do cardeal Caggiano, máxima autoridade eclesiástica argentina, foi fechada24. Meinvielle era um profundo anticomunista, convicto de que a democracia liberal era o passo anterior à instauração de um regime marxista. Nesse sentido, a partir de Presencia denunciava os limites da legitimidade que todo povo tem de eleger suas próprias instituições. Segundo sua visão, esse princípio liberal se apoiava na ideia duvidosa de que todo povo é capaz de dar a si mesmo as melhores instituições. Essa visão, que levava diretamente a perguntar-se sobre a própria legalidade da democracia, sustentavase em denunciar uma verdadeira política dialética implementada pelo governo argentino, em que a própria repressão de todo “extremismo” que fosse contra a democracia estava impregnada de filocomunismo ou de ação pró-comunista25, ou escondia, atrás de uma linguagem que buscava a harmonia e o desenvolvimento econômico “cristão”, o germe da desagregação social, antessala do comunismo26. Frente a essa realidade, eram poucos os atores políticos ou sociais que, para Meinvielle, podiam exercer a função de diques para o comunismo. Descartados os partidos políticos tradicionais, restavam duas alternativas possíveis. O peronismo, que antes tinha sido avaliado pelo próprio Meinvielle como um freio para o avanço comunista, dificilmente podia cumprir essa função no início dos anos 60. As razões eram três: primeiro, o

Meinvielle foi editor de quatro publicações a partir de 1944: Nuestro Tiempo (jun. 1944 – maio 1945); Balcón (maio 1946 – nov. 1946), Presencia (dez. 1948 – jul. 1951), Diálogos (1954). 24 A razão foi um artigo escrito pelo próprio Meinvielle sobre o presidente Arturo Frondizi, cujo título era “¿Puede ser presidente de la Argentina un agente comunista?”. Presencia, ano 13, n. 87, 8 set.1961. 25 La ley de defensa de la democracia, instrumento del desarrollo comunista. Presencia, ano 13, n. 86, 26 ago. 1961. 26 La política de austeridad no hace sino desarrollar el comunismo. Presencia, ano 13, n. 84, 28 jul. 1961. 23

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clima argentino e latino-americano era propício para o comunismo; segundo, porque o comunismo tinha conseguido “infeccionar” as organizações sindicais; terceiro, era difícil que o peronista se opusesse a uma revolução que tomasse um caráter nacional populista27. A outra eram as Forças Armadas. Como boa parte dos nacionalistas de direita na Argentina, Meinvielle mantinha canais de comunicação com membros das Forças Armadas. Entretanto, diferentemente de Jordán Bruno Genta, esses canais eram muito mais frouxos e lhe permitiam portar-se com maior liberdade na hora de opinar sobre os militares e seu papel frente ao comunismo. Sem dúvida, Presencia tinha entre seu público dileto certos setores das Forças Armadas, em especial aqueles mais profundamente antiperonistas e convencidos de que a única saída política era a instauração de um regime militar autoritário. Ainda assim, o presbítero não poupou esforços para denunciar a infiltração comunista entre os próprios militares. Entre 1960 e 1963, ele proferiu uma série de conferências no país que versavam sobre o avanço do comunismo, que mais tarde foram publicadas pela livraria Huemul, algumas delas com caráter privado28. Nelas, apresentava como se dava o avanço do comunismo na Argentina e dedicava especial atenção a mostrar como a “guerra revolucionária” levada adiante pelos comunistas afetava diretamente as Forças Armadas. O governo de Frondizi, e em particular de alguns de seus colaboradores mais próximos, como Rogelio Frigerio, era apresentado como um dos grandes responsáveis por desenvolver uma “dialética da ação” tendente a instaurar um regime comunista no país. A díade universidade leiga – célula frondizista-comunista eram os eixos em torno dos quais se articulava o avanço marxista. A solução para essa dialética da ação consistia em melhorar as condições das classes trabalhadoras e em reorganizar o Estado, sendo que esta última solução visava Añatuya, prueba piloto del camino al comunismo en el país. Presencia, ano 13, n. 82, 23 jun. 1961. 28 As conferências, publicadas oportunamente, foram as seguintes [títulos no original]: “La dialéctica de la acción” (1960, Córdoba); “La dialéctica comunista y el 18 de marzo” (1962, Buenos Aires); “La guerra revolucionaria en la Argentina” (1962, Concordia); “La dialéctica comunista y el peligro de destrucción de las FF.AA” (1962, Buenos Aires); “La reciente crisis militar y el Aparato Frondizista-Comunista”, com o pseudônimo de Federico Bracht (1962, Buenos Aires); “La economía argentina en la guerra revolucionaria” (1962, Buenos Aires); “El Comunicado 200, factor automático de avance del mencheviquismo al bolcheviquismo” (1963); “Toma bolchevique del poder a través de generales nasseristas” (1963, Curuzu Cuatia). 27

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retomar o controle das universidades e intensificar a repressão do comunismo, evitando a repressão indiscricionária dos setores operários peronistas (MEINVIELLE, 1960). Entretanto, essa luta contra o comunismo se mostrava mais difícil do que nunca. Em princípio, Meinvielle reconhecia que o peronismo não era alheio a esse processo, em especial os setores sindicais, que eram apresentados como cúmplices diretos do plano de instauração comunista com a multiplicação de conflitos operários e políticos dentro do país29. Que lugar ocupavam as Forças Armadas frente a essa realidade? Em primeiro lugar, eram vítimas dessas mesmas contradições que os setores castro-comunistas denunciados por Meinvielle estavam aprofundando, já que, segundo ele, elas acabavam encerradas numa lógica repressiva que lhes alienava o reconhecimento popular, ou seja, o apoio das massas peronistas (MEINVIELLE, 1962c). Meinveille percebia o eixo da crise militar na luta entre “azuis” e “colorados”, ou seja, entre as facções legalistas e aquelas dispostas a instaurar uma ditadura para deter o peronismo. Mas, em seu ataque às altas esferas militares, esgrimia uma explicação tão ousada quanto ridícula, se se pensa em sua denúncia contra alguns dos setores azuis que saíram vitoriosos das crises de 1962-63, que eram acusados diretamente de ser os veículos da infiltração comunista na Argentina. Meinville os chamou de “generais nasseristas”, e eles representavam os setores que, aliados ao frondizismo, estavam aprofundando as contradições que acabariam com o triunfo do castro-comunismo no país (MEINVIELLE, 1963). As reações das Forças Armadas não se fizeram esperar. Depois da conferência na província de Corrientes, onde ele moveu seu ataque aos setores azuis do Exército, o comandante em chefe dessa arma, general Juan Carlos Onganía, solicitou que se iniciassem ações legais contra o presbítero, enquanto que a Igreja ameaçou Meinvielle de inabilitá-lo em suas funções sacerdotais se não parasse com sua pregação. Ele teve de limitar seus ataques, embora não tenha deixado de publicar seus ataques contra tudo que cheirasse a comunismo, muitas vezes sob o pseudônimo de Federico Bracht. 29

Assim, a vitória do peronismo nas urnas em março de 1962, a anulação das eleições e a derrubada de Frondizi faziam parte desse complexo plano comunista para aprofundar as contradições na Argentina (MEINVIELLE, 1962a, p. 7-10).

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À guisa de conclusão Em março de 1976, quando ocorreu o golpe de Estado que instaurou uma das ditaduras mais violentas e sangrentas da América Latina, as Forças Armadas argentinas tinham uma longa tradição de formação doutrinária e prática no campo da luta contra o comunismo. Nessa tradição se inscrevem as doutrinas e ideias que se disseminaram a partir dos intelectuais do nacionalismo de direita. Isso foi possível, em primeiro lugar, porque existiram canais formais e informais que permitiram a intelectuais como Genta ou Meinvielle ter acesso aos círculos militares para difundir suas ideias. Em segundo lugar, porque a partir desses setores do nacionalismo existiu uma convicção clara e direta de que o único espaço onde sua mensagem podia ser ouvida eram as Forças Armadas, e, mesmo quando esses setores foram minoritários na vida política argentina, seu êxito na propagação de suas ideias autoritárias reflete a existência de estratégias bem-sucedidas de acesso a esses espaços. Por último, sua mensagem era contundente, mesmo que muitas vezes se baseasse em leituras descabidas sobre a realidade argentina, mas que encontravam nos setores mais tradicionais e autoritários das Forças Armadas o eco necessário para que esses discursos se tornassem parte constitutiva da ideologia militar. Sem dúvida, é impossível não pensar que o êxito de intelectuais como Genta ou Meinvielle se apoiou na fraqueza de um Estado democrático incapaz de reprimir um discurso que atacava seus alicerces liberais. É certo que essa incapacidade tinha sua história e que a irresolução do problema peronista, o clima da Guerra Fria e a autonomia em que se moviam as Forças Armadas deixaram pouco espaço para que governos democráticos fracos atuassem em favor da ordem legal. Quis deter-me em dois casos que, por seus percursos e suas posturas, são paradigmáticos das ligações entre os intelectuais nacionalistas e os militares. Tanto Genta quanto Meinvielle esgrimiam um discurso e práticas que tinham aspectos originais. Em primeiro lugar, articulavam sua ideia anticomunista em torno de um conjunto de conceitos que visavam centralmente desprestigiar a democracia e reclamar para as Forças Armadas um papel central em sua destruição. Em segundo lugar, nenhum dos dois hesitou em dirigir suas diatribes aos próprios militares, quando entendiam que o zelo antidemocrático ou anticomunista era fraco demais, tudo isso ao

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custo de esgrimir, como no caso de Meinveille, as mais aloucadas teorias sobre as implicações de generais ou coronéis nos mais diversos complôs comunistas. Por último, seu impacto dentro dos círculos militares pode ser interpretado, no curto prazo, como escassamente relevante, já que tanto Genta quanto Meinvielle tiveram de buscar apoios concretos fora das Forças Armadas ou foram censurados por causa de suas denúncias ousadas. Ainda assim, no prazo mais longo, formaram um elemento nada desprezível no reforço de um pensamento autoritário, intolerante e violento dentro dessas mesmas Forças Armadas.

Fontes a) Livros GENTA, Jordán Bruno. Guerra contrarrevolucionaria. Buenos Aires: Nuevo Orden, 1964. BRACHT, Federico. La reciente crisis militar y el Aparato Frondizista-Comunista. Buenos Aires: Theoría, 1962. MEINVIELLE, Julio. La dialéctica de la acción. Buenos Aires: Theoría, 1960. ______. La dialéctica comunista y el 18 de marzo. Buenos Aires: Theoría, 1962a. ______. La guerra revolucionaria en la Argentina. Buenos Aires: Theoría, 1962b. ______. La dialéctica comunista y el peligro de destrucción de las FF.AA. Buenos Aires: Theoría, 1962c. ______. Toma bolchevique del poder a través de generales nasseristas. Buenos Aires: Theoría, 1963. b) Imprensa Combate, 1955 – 1967. Presencia, 1955 – 1961.

Bibliografía ALTAMIRANO, Carlos. Ideas para un programa de historia intelectual. In: ______. Para un programa de historia intelectual y otros ensayos. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. p. 13-24. BECCAR VARELA, Cosme. El nacionalismo, una incógnita en constante evolución. Buenos Aires: Ediciones Tradición – Familia – Propiedad, 1970.

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Escritos de propaganda republicana: estratégias de publicação e inserção sociopolítica a partir da atuação de Joaquim Francisco de Assis Brasil e João Capistrano de Abreu (década de 1880) Tassiana Maria Parcianello Saccol Este ensaio apresenta algumas reflexões sobre a atuação do rio-grandense Joaquim Francisco de Assis Brasil na propaganda republicana no início dos anos 1880. Nosso objetivo é analisar alguns dos investimentos realizados por este agente na escrita de ensaios políticos, bem como na sua publicação e divulgação, numa época em que um mercado editorial bem estabelecido estava longe de se constituir. Neste sentido, o percurso traçado por Assis Brasil contava com uma estratégia que acreditamos ter sido realizada por diversos escritores e propagandistas da época e que era fundamental no sentido de facilitar a circulação dos opúsculos: a mobilização de amigos influentes dentro do incipiente meio editorial – no caso aqui analisado, Capistrano de Abreu. Tal atitude colaborou para que o propagandista tivesse seu nome reconhecido pelos seus pares como um dos principais divulgadores das ideias republicanas em fins do século XIX.1 1

Joaquim Francisco de Assis Brasil nasceu no município de São Gabriel, no ano de 1857. Seu envolvimento com a política data de fins da década de 1870, quando ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Nesta instituição, estreitou laços com vários jovens que, assim como ele, também propagandeavam a República. De volta ao Rio Grande, Assis Brasil participou da fundação do Partido Republicano Rio-Grandense (1882), juntamente com Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, José Gomes Pinheiro Machado, Venâncio Ayres, Fernando Abbott, Ramiro Barcellos, Demétrio Ribeiro, dentre outros, muitos deles também egressos da Faculdade de Direito. Como principais líderes do PRR ao longo da década de 1880, este grupo assumiu o papel de divulgar as ideias republicanas e federativas na província, fazendo-o por meio de conferências públicas, mas, principalmente, através do jornal oficial do partido, A Federação, criado em 1884, onde escreviam artigos de doutrinação política. Para mais informações sobre a trajetória de Assis Brasil, ver Aita (2006).

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A partir da década de 1870 e, com mais força, na década seguinte, as ideias republicanas e federativas – além de outras, como a secularização das instituições e a abolição da escravidão – passaram a ser defendidas com grande entusiasmo por vários grupos sociais e, principalmente, por alguns membros das elites provinciais brasileiras. Estas ideias encontravam um importante espaço de recepção e propagação nos liceus e academias do Império, onde jovens estudantes entravam em contato com a produção teórica estrangeira, ainda que a sua divulgação não se restringisse somente a estes espaços (ALONSO, 2002; SCHWARCZ, 1993). Assis Brasil foi um dos membros da elite rio-grandense que ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo e, a partir daí, começou a se familiarizar com as novas ideias e se envolver mais diretamente com a política. Sabe-se que a passagem pelas academias imperiais tinha grande importância no processo de socialização dos jovens que ingressavam nos quadros políticos do Brasil (CARVALHO, 2003). Se a frequência a essas instituições colaborava para a socialização dos moços que ingressariam nos partidos Liberal e Conservador, elas também foram um espaço de contato importante para os membros da geração de 1870, ou seja, dos indivíduos que guardavam um significativo descontentamento para com a conjuntura monárquica e assumiriam – pelo menos boa parte deles – posições de poder importantes na Primeira República, através dos partidos republicanos.2 Os investimentos de Assis Brasil se concentraram na divulgação das ideias republicanas e federativas, juntamente com alguns colegas e contemporâneos de Faculdade. A contestação das principais bases do Império por parte dos jovens integrantes da geração de 1870 se materializava de diversas formas, dentre elas, produzindo obras doutrinárias, jornais acadêmicos, formando clubes, agremiações e organizando conferências públicas. É im-

2

Angela Alonso define a geração de 1870 como um movimento (intelectual e político) de contestação às principais instituições e valores do período monárquico. Dele faziam parte vários grupos em nível nacional que propunham reformas profundas tanto para o Estado quanto para a sociedade brasileira, em todos os seus aspectos. O fim da escravidão, a secularização das instituições, o liberalismo econômico e a descentralização político-administrativa eram algumas das principais reivindicações levadas a cabo pelos membros deste movimento. A grande maioria dos grupos ainda fazia a defesa de um novo regime de governo, o republicano. Dentre os principais membros da geração de 1870, obtiveram destaque Silva Jardim, Sílvio Romero, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, os irmãos Alberto e Campos Salles, Aníbal Falcão, Júlio de Castilhos e Assis Brasil, dentre outros (ALONSO, 2002).

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portante ressaltar que o próprio ambiente da Faculdade de Direito tornava estas práticas comuns. Sérgio Adorno destacou a importância das atividades realizadas fora do contexto das relações didáticas estabelecidas entre os corpos docente e discente naquela instituição. Para o autor, era no ambiente extraensino, onde se reuniam a militância política, o jornalismo, a literatura e a advocacia, que os jovens estreavam na cena política (ADORNO, 1988, p. 92). O ambiente acadêmico facilitava a formação de laços de amizade entre os moços de várias províncias que ali estudavam. Além disso, a passagem por estas instituições e o período de residência naqueles centros urbanos possibilitavam o contato com os egressos de turmas anteriores, ou mesmo jornalistas envolvidos com a propaganda republicana. A vida nestas capitais tinha sua peculiar agitação: eram inúmeros os espaços de sociabilidade – cafés, livrarias, bibliotecas, clubes de discussão – e grandes as possibilidades de encontros, casuais ou não, entre os propagandistas, tanto os moços recém-estreantes no cenário político, como também aqueles mais experientes. No caso de Assis Brasil, foi a sua passagem pela Faculdade de Direito que permitiu que o mesmo criasse laços com João Capistrano de Abreu, vínculo este intensamente mobilizado para a publicação de seus livros de propaganda política.3 Os quatro anos (1878-1882) em que Assis Brasil esteve na Faculdade e residiu em São Paulo foram de intenso investimento na propaganda republicana. De início, fez o movimento que a maioria dos estudantes fazia naquele tempo. Passou a participar do clube republicano acadêmico, bem como de alguns jornais de propaganda vinculados ao mesmo. Depois, passou a prestar colaborações eventuais em jornais de maior circulação e também a realizar algumas conferências públicas (AITA, 2002). Seu investimento mais decisivo, e que o ajudou a adquirir notabilidade e prestígio

3

João Capistrano de Abreu foi um historiador, nascido no Ceará no ano de 1853. Seus primeiros estudos foram feitos em rápidas passagens por várias escolas. Em 1869, ingressou na Faculdade de Direito do Recife, onde conheceu Silvio Romero e Tobias Barreto, entretanto, não chegou a se formar. No ano de 1875, passou a residir no Rio de Janeiro, onde trabalhou na Tipografia Garnier e, logo depois, como bibliotecário da Biblioteca Nacional (1879-1883). Deixou a Biblioteca para tornar-se lente do Colégio Pedro II. Durante a década de 1880, e quando ainda era um positivista fervoroso, colaborou para a Gazeta de Notícias, onde propagandeava a República. Escreveu vários livros no âmbito da História (RODRIGUES, 1977).

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entre seus pares, foi a publicação de seu primeiro ensaio político, A República Federal (1881).4 Vejamos, a partir de agora, como isto se deu.

I Após ter acumulado razoável experiência com as letras, escrevendo durante dois ou três anos para periódicos diversos, Assis Brasil decidiu-se pela escrita e publicação de um livro de divulgação das ideias republicanas. Assim como ele, vários outros propagandistas realizavam o mesmo procedimento. Daí que inúmeras obras que propunham reformas de cunho político foram publicadas ao longo dos anos 1880. Angela Alonso analisou grande parte da produção intelectual dos membros da geração de 1870, destacando que os livros faziam parte de uma estratégia de propaganda e persuasão deste grupo. Para a autora, a maior preocupação destes jovens era o adensamento do debate público em torno dos temas teóricos (questão religiosa, centralização política, abolição da escravidão e imigração), especialmente nos termos de Comte e Spencer. Daí que, conforme Alonso, “os livros não eram obras teóricas que visassem à formulação de sistemas filosóficos próprios”; pelo contrário, “eram escritas em poucos meses por gente muito jovem, recém-formada ou ainda nos bancos das faculdades, muitas vezes compilando simplesmente artigos antes saídos em jornais estudantis” (ALONSO, 1999, p. 13-14). Participar efetivamente de jornais de propaganda era o primeiro passo a ser dado por aqueles que desejavam se inserir no debate político da época. Assis Brasil assinara vários artigos em jornais acadêmicos e mesmo em periódicos de maior circulação. A atividade constante colaborava para que, pouco a pouco, o nome do autor fosse se tornando conhecido entre os pares, mas também entre o círculo de leitores da época. Cumprida esta etapa, um bom investimento para os que quisessem se manter no debate político era a publicação de ensaios de maior fôlego. A publicação de um livro, se comparado aos periódicos, exigia um esforço mais individualizado

4

A versão utilizada para análise é Assis Brasil (1998). A República Federal tratava de três temas relacionados: a primeira parte contemplava as formas de governo, onde era ressaltada a superioridade da República e sua oportunidade no Brasil. Uma segunda parte era dedicada à federação, evidenciando a inclinação do Brasil para esse sistema administrativo, e um último item trazia a defesa do sufrágio universal como forma de viabilizar a democracia.

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por parte de seu autor, seja em termos financeiros, seja no que dizia respeito ao investimento intelectual empregado. Entretanto, mesmo no caso dos livros, seus autores não dispensavam algum auxílio externo. Mais do que isso, era bastante comum que os jovens escritores mobilizassem pessoas mais experientes ou melhor posicionadas no campo das letras, a fim de facilitar a publicação e a circulação de suas obras. Assis Brasil valeu-se do fato de residir em São Paulo para investir em sua publicação. Provavelmente tentar fazê-lo residindo no Rio Grande dificultaria muito o processo. Mas ainda que residindo em uma das capitais culturais da época, o percurso para se publicar um livro encontrava algumas dificuldades.5 Logo, acionar um amigo que contasse com certa experiência nesse sentido e já conhecesse os procedimentos a serem realizados se apresentava como uma importante estratégia. Nesse sentido, os vínculos sociais estabelecidos na Faculdade e a partir dela foram de grande utilidade. Na academia, Assis Brasil criou laços com o carioca Valentim Magalhães, com quem, inclusive, dividia alguns trabalhos jornalísticos, onde defendiam as causas republicana e abolicionista. O vínculo criado com Magalhães possibilitou o contato entre Assis Brasil e Capistrano de Abreu. A amizade travada entre eles traria inúmeras vantagens ao rio-grandense. De fato, a mobilização do amigo Capistrano de Abreu colaborou não só para a publicação dos dois principais opúsculos de Assis Brasil, mas também abriulhe espaço para outras atividades intelectuais, conforme veremos a seguir. De fato, numa sociedade onde as relações interpessoais eram extremamente importantes, os laços existentes entre os agentes eram mobilizados com muita frequência, e visando a consecução de diversos objetivos. Vários autores têm demonstrado a importância de se levar em conta os circuitos de relacionamento em que os agentes históricos estavam inseridos e a partir dos quais produziam suas ações.6 No emaranhado de ligações pessoais que os agentes estavam envolvidos – e que inclui laços de parentesco, relações de amizade e mesmo relações verticais – interessam-nos, em especial, os vínculos de amizade. José María Imízcoz caracterizou estes

A respeito destas dificuldades, veja-se, por exemplo, os trabalhos de Morel; Barros (2003) e Cavenaghi (2011). 6 Vejam-se os estudos sobre redes de relações que partiram de investigações acerca de comunidades do Antigo Regime, em especial, os trabalhos de Mitchell (1974); Imízcoz (2004); Bertrand (1999); Moutoukias (2000). 5

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laços como “um vínculo social especialmente operativo, uma relação de confiança e reciprocidade, que dava lugar a um intercâmbio de favores e serviços” (IMÍZCOZ, 2010, p. 32). Conforme já mencionamos, após o pedido de auxílio por parte de Assis Brasil, Capistrano de Abreu teve colaboração fundamental na publicação dos livros do rio-grandense. A ajuda que o cearense concedeu ao amigo pode ser vista a partir da correspondência que ambos trocaram. Infelizmente, só tivemos acesso às cartas enviadas por Capistrano a Assis Brasil. Provavelmente as missivas escritas pelo rio-grandense ao amigo também tivessem importantes informações qualitativas que enriqueceriam nossa análise. Mesmo assim, cremos que o conjunto de cartas que nos está disponível contém dados importantes a respeito da relação travada entre Assis Brasil e Capistrano e, especialmente, de como este laço foi mobilizado pelo primeiro, em momentos-chave ao longo da propaganda republicana. Sendo assim, em uma das primeiras cartas do conjunto analisado, Capistrano de Abreu já faz referência ao fato de ter lido as provas do livro que Assis Brasil pretendia publicar – A República Federal. Do mesmo modo, é possível perceber que o mesmo objetivava expor ao seu círculo de amigos a produção do rio-grandense. Escreveu ele: Assis Brasil, Já ontem lhe escrevi dando-lhe notícia de sua comissão; escrevo-lhe, porém, novamente, para responder a sua carta de 10. Começo desde logo retirando o oferecimento que fiz de rever as provas. Venha, venha. Não tenha medo do meio, não tenha medo de nada. Há de conservar-se refratário; há de com sua presença concorrer para elevar e purificar. Vou comunicar sua vinda provável a Patrocínio. Quer isto dizer que V. há de fazer uma conferência; apronte-se, pois, desde logo. [...] Outras cousas que não posso deixar de lhe pedir. Traga as Chispas e a coleção dos jornais em que tem colaborado para a Biblioteca. Traga os documentos para a Exposição. Apronte-se também para tomar parte nas conferências de História do Brasil. O questionário está quase pronto, e entre as questões algumas existem que V. tratará proficientemente [...].7

A partir da leitura do fragmento acima, é possível tecer alguns comentários. Em um primeiro momento, percebe-se o interesse de Capistrano pelos escritos de propaganda de Assis Brasil, tanto é que solicitava ao 7

Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 12 de março de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 73.

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amigo que trouxesse exemplares de tudo quanto já havia produzido – inclusive de seu primeiro livro de poemas revolucionários e anticlericais (Chispas) – para expor na Biblioteca Nacional, seu local de trabalho, provavelmente, para divulgá-los ao seu círculo de amigos e frequentadores da instituição.8 Por outro lado, Capistrano mencionou ter lido as primeiras provas do livro que Assis Brasil desejava publicar, procurando tranquilizar o mesmo em relação à sua primeira investida naquele meio. Além disso, a missiva sugere a importância de Capistrano como ponto de contato de Assis Brasil com outros republicanos, tais como José do Patrocínio, afamado jornalista e abolicionista da época. De fato, Capistrano parece ter iniciado o amigo em meio ao núcleo de propagandistas que atuavam no Rio de Janeiro, abrindo brechas em um espaço onde o próprio Assis Brasil parecia ter algum receio de se colocar. Não obstante, o fato de Capistrano ser empregado da Biblioteca Nacional permitia a organização de algumas publicações e eventos, como as conferências das quais convidou Assis Brasil a fazer parte. Portanto, a própria posição ocupada por Capistrano na instituição permitia que, pouco a pouco, o mesmo pudesse introduzir Assis Brasil no espaço de debates políticos da capital do Império. Mas tratemos de forma mais aprofundada da publicação do livro. Capistrano era um homem letrado e bem-relacionado. Além dos conhecimentos acerca do meio editorial e dos contatos que o cargo ocupado na Biblioteca lhe proporcionavam, o mesmo havia acumulado certa experiência, fruto de trabalhos anteriores, quando foi funcionário da Tipografia Garnier. Logo, Capistrano reunia vários atributos capazes de facilitar ou, pelo menos, agilizar a publicação do livro de Assis Brasil. De fato, ele não mediu esforços em relação àquele pedido de auxílio. Na correspondência trocada, percebe-se que Capistrano se encarregou pessoalmente de entrar em contato com as principais tipografias do Rio de Janeiro, verificando os custos da publicação. Feito isso, escreveu ao amigo, opinando a respeito da decisão a ser tomada: Deixei cair a alma aos pés... quando soube que Leuzinger, que eu julgava ser o mais caro de todos, é exatamente o mais barato. Um meu colega, que com ele falou, disse que ele fará a impressão por 35$ incluindo a brochura. À vista disso, nem é bom pensar nos outros dois, que, inferiores como artistas, só levam-lhe vantagem por serem mais careiros.

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O livro referido é Assis Brasil (1877).

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SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana [...] A vista disso, tendo-lhe submetido as propostas das três melhores tipografias, fico à espera de sua decisão.9

A escolha da tipografia era uma decisão bastante importante, não só em função do custo final da publicação, mas principalmente pelo prestígio da mesma, que agregava certo diferencial positivo ao livro. Não é à toa que Capistrano enviou ao amigo as propostas daquelas que considerava as três melhores tipografias da cidade e que exaltou as qualidades de Leuzinger como artista, em detrimento dos outros dois tipógrafos que ele mesmo havia procurado. Portanto, após entrar em contato com aquelas que considerava as melhores tipografias, Capistrano apontou para o amigo a melhor decisão a ser tomada, ainda que ao final da missiva afirme aguardar a decisão de Assis Brasil.10 Mas se Capistrano teve influência sobre esta importante decisão, também fez várias sugestões, auxiliando o amigo a respeito de detalhes mais práticos, tais como a escolha do tipo de folha e brochura a serem utilizados no livro. Embora estas questões pareçam, em um primeiro momento, sem importância, através das palavras de Capistrano é possível perceber o quanto Assis Brasil não possuía entendimento delas, o que tornava ainda mais importante o seu auxílio, inclusive nestes detalhes. Disse Capistrano ao amigo: [...] o tipo de papel escolhido para A República Federal tem todas as qualidades, menos uma: servir para ela. É muito grande e feita com ele a impressão não teria o chic e o fini que V. deseja como artista. À vista disso, resolvi sustar a impressão até receber resposta sua. Leuzinger tem muito bons e elegantes tipos, excetuando os dois que V. exige. Se faz questão do elzevier, passemos para o Lombaerts, que o tem. Se não,

Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 15 de março de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 74. 10 A Casa Leuzinger, propriedade do suíço George Leuzinger, funcionava como oficina de gravura, tipografia, litografia e ateliê fotográfico. O estabelecimento de Leuzinger teve grande importância como casa editorial, tendo publicado, entre outros, o Catálogo da Exposição de História do Brasil, organizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, entre 1881 e 1882. A Casa imprimiu livros de muitos autores, dentre eles Alfredo Taunay, Joaquim Nabuco e o próprio Capistrano de Abreu. Além dos livros, também produziu inúmeras revistas e jornais ilustrados. Leuzinger participou de quatro edições da Exposição Nacional, no Rio de Janeiro, e das Exposições Universais de Viena, em 1873, de Antuérpia, em 1885, e de Paris, em 1867 e 1887. Portanto, trata-se de uma instituição que já contava com prestígio considerável a época da publicação do livro de Assis Brasil. Para mais informações sobre a Casa Leuzinger, ver Borges (2004). 9

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais fiquemos mesmo no Leuzinger, que lhe imprimiria melhor do que qualquer outro e, principalmente, com mais brevidade e barateza.11

A leitura do fragmento aponta para as intervenções sem muitos rodeios de Capistrano de Abreu. Na verdade, ele parecia se sentir bastante à vontade não só para expressar suas opiniões, mas também para interferir nas decisões a serem tomadas. Tal pode ser visto não só no que dizia respeito à escolha do papel a ser utilizado na publicação, mas também no que se referia ao acabamento do livro e ao número dos exemplares especiais a serem encomendados, conforme se vê no trecho a seguir: Em sua última carta, mandou-me amostra do papel que prefere para os números especiais. Não escolhi, porém, daquele, porque no Leuzinger há superiores. O número de exemplares especiais V. não fixou precisamente; por isso contratei com Leuzinger que seriam cinquenta.12

Como se vê, o acompanhamento da publicação do livro por parte de Capistrano de Abreu foi constante. Várias decisões relativas ao conjunto da obra, fossem elas de maior ou menor complexidade, contaram com a opinião de Capistrano, quando ele mesmo não as tomou sozinho. É bem verdade que, a partir da leitura das cartas, é possível concluir que havia uma relativa demora na comunicação, agravada pelo próprio fato de algumas missivas terem se perdido, o que talvez tenha influenciado para que Capistrano tomasse algumas decisões sem ouvir as opiniões de Assis Brasil. Por outro lado, é possível depreender da leitura da correspondência a existência de uma relação de intimidade e confiança entre ambos. Não é coincidência que Capistrano se mostrasse bastante seguro ao expressar suas opiniões e informar ao amigo as decisões tomadas, ainda que elas contrariassem as intenções primeiras do autor da publicação. Lembre-se ainda que a experiência de Capistrano em questões editoriais certamente contribuía para a confiança que Assis Brasil depositava nele, bem como para o grau de liberdade que exercia na tomada de decisões a respeito da incumbência que recebera. Mas Capistrano não se limitou a opinar sobre os aspectos externos referentes à publicação do livro. Em uma das missivas enviadas, o mesmo sugere o fragmento de um ensaio que poderia servir como epígrafe à obra Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 06 de abril de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 75. 12 Ibid., p. 75-76. 11

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de Assis Brasil: “Encontro agora em Michelet o seguinte trecho, que pode servir de epígrafe a República Federal, e que por isso copio”.13 Além disso, o republicano cearense se dera ao trabalho de revisar as provas e as primeiras páginas impressas do livro: “Como me prometera, hoje, deu-me Leuzinger as primeiras provas. Lendo-as ligeiramente, antes como amador do que como revisor, reconheci que no geral estão limpas. À vista disso não continuei a revisão, e dora em diante não exigirei mais duas provas de paquet”.14 Logo, percebe-se que o cearense realizou ações bastante diversas no que se refere ao acompanhamento da publicação. Em outra missiva, Capistrano expõe sua opinião pessoal a respeito do conteúdo do livro, enfatizando a sua não concordância com algumas das ideias veiculadas pelo autor: Agora outro ponto. Pela primeira vez li hoje a República Federal e, francamente, gostei muito. O prólogo está como uma de suas grandes poesias, com o mesmo sopro vasto, inspiração concentrada e soído metálico. Quanto ao corpo, existem entre nós divergências que ainda não posso calcular até onde irão; mas devo reconhecer que V. argumenta com lucidez, com elevação e calor, que torna simpáticas suas ideias e muito, mesmo muito interessante a leitura.15

Capistrano de Abreu era adepto da leitura e doutrina positivista, ao passo que Assis Brasil guardava certas ressalvas à mesma. Este último chegara a declarar-se, em certo momento, inclinado a aceitar o método, mas não a doutrina do filósofo francês.16 Daí o cearense apontar as divergências que dizia não saber até onde iriam, pois ambos idealizavam a República e sua instauração no Brasil de formas diferenciadas. De fato, em meio ao turbilhão de novas ideias que circulavam em fins do século XIX, é possível detectar a existência de pontos de debate compartilhados pela maioria dos propagandistas. Por outro lado, também existiam algumas divergências entre eles. Exemplo disso é que a maioria dos membros da geração de 1870 concordava a respeito da necessidade de se instalar uma República, mas discordava quanto à forma que o novo regime deveria assumir.17 Mesmo assim, tal Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 11 de março de 1881. In: ibid., p. 72. Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 20 de abril de 1881. In: ibid., p. 78. 15 Ibid., p. 79. 16 Manifesto de 1891 – Assis Brasil aos seus concidadãos. In: BROSSARD (org.), 1989, p. 44. 17 Também a questão abolicionista era vista sob múltiplos pontos de vista. Sobre as especificidades, convergências e divergências entre os diferentes grupos da geração de 1870, ver Alonso (2002). 13 14

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era o descontentamento com a Monarquia que estas divergências eram minimizadas em prol de uma solidariedade que beneficiava a todos os propagandistas e incluía o auxílio na circulação dos livros de divulgação destas novas ideias – pelo menos enquanto a hora decisiva de se pensar o modelo republicano a ser instalado não chegasse. Tamanha era a importância das solidariedades que existiam entre os propagandistas e se traduziam em ações práticas tais como o auxílio de Capistrano de Abreu na publicação do opúsculo de Assis Brasil que, em uma das missivas enviadas, Capistrano procurou tranquilizar o amigo quanto à concretização do mesmo. Explique-se: ao mesmo tempo em que prestava esse favor ao amigo, Capistrano esteve envolvido com o seu noivado e casamento, o que parece ter causado certa preocupação a Assis Brasil quanto ao andamento da publicação. Tentando acalmá-lo, Capistrano pontuou: “[...] já vê, portanto, que não há perigo de que, no meio de um noivado que já passou, esqueça-me de sua incumbência. Ao contrário, há probabilidade de que quantas incumbências me forem cometidas sejam melhor executadas, porque duplicaram os órgãos”.18 A incumbência que Assis Brasil havia dado a Capistrano de Abreu parece ter sido muito bem desempenhada. Dada a lume no ano de 1881, A República Federal foi muito bem recebida pela crítica – vários jornais teceram inúmeros elogios à obra e ao seu autor –, tornando-se referência entre os livros de propaganda republicana e circulando por vários espaços sociais. O republicano mineiro Lúcio de Mendonça se referiu ao livro como “uma bela obra, de traços largos e vigorosos, e tão claros e firmes que maravilham um escritor de tão poucos anos”. Além disso, sustentou que o livro de Assis Brasil, “[...] magnificamente escrito, magnificamente impresso, pode, com muita justiça, contar-se entre os melhores de nossa escassa literatura científica”.19 Em outra oportunidade, referiu-se a Assis Brasil como “um dos mais esforçados lutadores da causa republicana e, um dos nomes mais respeitados da nossa política militante”.20 Já o jornal A Província de São Paulo, editado por Rangel Pestana e Américo de Campos, considerou o livro “uma importantíssima obra de doutrina política que haverá de trazer muita glória Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 11 de abril de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 77. 19 Jornal O Colombo, 26.07.1881. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 20 Jornal O Colombo, 08.11.1882. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 18

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ao seu autor”. Para o editorial, “a argumentação vigorosa, a linguagem corrente e o estilo simples, mas elegante, imprimem no dizer do Sr. Assis Brasil um toque convincente que lhe abrirá largo caminho para a conquista do povo em favor da ideia que defende e evangeliza”.21 Como se vê, o livro circulou por vários espaços sociais, tendo sido elogiado por alguns dos líderes republicanos das províncias de São Paulo e Minas Gerais.22 Tamanho foi o sucesso do livro que o mesmo era indicado como leitura obrigatória na Academia Militar do Rio de Janeiro23 e, em São Paulo, o Partido Republicano chegara a subsidiar e distribuir gratuitamente uma segunda edição da obra aos seus filiados.24 Além disso, o livro de Assis Brasil teve influência na construção da obra de Alberto Salles, Política Republicana (1882), publicada um ano depois e que continha vários aspectos semelhantes ao livro do rio-grandense.25 Portanto, temos indícios de que o livro circulou por alguns espaços onde o movimento republicano foi bastante expressivo: as províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (BOEHRER, 1950). No Rio Grande do Sul, terra natal de Assis Brasil, o livro foi lido pelos seus correligionários da fronteira, já que os clubes republicanos locais adotaram como meta distribuí-lo aos seus sócios.26 Mesmo em terras de além-mar, o livro se tornou conhecido: A República Federal foi alvo de muitos comentários entre os republicanos de Lisboa, tendo sido resenhada em uma revista de grande circulação.27 Ou seja, a obra de Assis Brasil alcançou grande notabilidade entre os republicanos, fosse entre aqueles que atuavam em prol da propaganda em nível local, participando dos clubes, fosse entre as figuras de maior expressão política na época, que costumavam participar

Jornal A Província de São Paulo, 08.07.1881. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Para mais informações a respeito da circulação do livro e os comentários realizados por outros jornalistas, ver Saccol (2013). 23 CASTRO, 1995, p. 81. 24 ALONSO, 2002, p. 223. 25 Para mais informações sobre as proximidades entre estas duas obras, ver Mello (2010). 26 Livro de Actas do Clube Republicano de São Gabriel. Museu João Pedro Nunes (São Gabriel). Sessão de 15 de dezembro de 1885. 27 MATTOS, Júlio de. A República Federal, por Assis Brasil. O Positivismo: Revista de Filosofia, ano 3, n. 6, p. 438, ago./set. 1881. Acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa. Júlio de Mattos era cunhado de Theophilo Braga, um dos principais propagandistas republicanos de Lisboa, com quem dividia a direção da Revista. Para mais informações sobre a circulação do livro de Assis Brasil entre os republicanos portugueses, ver Saccol (2013). 21 22

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de periódicos diversos e, portanto, tinham influência sobre o círculo de leitores. Neste sentido, o auxílio e a amizade de Capistrano – estrategicamente bem posicionado no incipiente mercado editorial da Corte – foram fundamentais para o alcance e o sucesso da obra. Leitor atento, ele enxergou as capacitades intelectuais do jovem rio-grandense e ofereceu um voto de confiança ao mesmo, “apadrinhando” a sua publicação. A colaboração de Capistrano de Abreu foi tão essencial a ponto de ele ser mobilizado mais uma vez, agora para prestar auxílio na publicação do segundo livro do mesmo autor.

II Publicada A República Federal, os laços sociais com Capistrano de Abreu foram acionados novamente, desta vez para auxiliar na publicação de outro livro de Assis Brasil: História da República Rio-Grandense.28 O livro seria uma edição comemorativa ao 47º aniversário da Revolução Farroupilha, lançada sob encomenda do Club Vinte de Setembro, agremiação que reunia os estudantes rio-grandenses da Faculdade de Direito de São Paulo.29 A nova obra consistia em uma espécie de resposta política a uma publicação anterior, o livro de Tristão de Alencar Araripe, Guerra Civil no Rio Grande do Sul (1881).30 Neste volume, o ex-presidente da província do Rio Grande do Sul oferecia a sua visão sobre os acontecimentos da Revolução Farroupilha, visão esta que os rio-grandenses consideravam distorcida. No novo projeto levado a cabo por Assis Brasil, o amigo Capistrano de Abreu também assumiu papel importante, fazendo circular algumas informações referentes ao livro de Araripe, bem como, mais uma vez, auxiliando na publicação e circulação do livro-resposta, escrito por Assis Brasil. A versão que utilizamos para análise é Assis Brasil (1981). O livro, como seu próprio título sugere, tinha como objetivo principal narrar os principais fatos da Revolução Farroupilha (1835-1845). Seu autor aborda as principais causas que deflagraram o movimento, aponta alguns dos principais fatos políticos e militares ocorridos durante a Revolução e encerra sua narrativa com a instauração da República Rio-Grandense, no ano de 1836. Uma análise da construção do livro História da República Rio-Grandense, bem como do uso político do mesmo no sentido de legitimar o PRR a partir de uma identificação dos membros deste partido com os ideais expressos pelos farrapos na Revolução de 1835, pode ser vista em Grijó (2010). 30 Araripe (1881). 28 29

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A ação de Capistrano, ao fazer circular informações sobre a publicação de Araripe foi bastante importante, na medida em que Assis Brasil pôde valer-se delas no preparo de seu próprio livro. Disse Capistrano a Assis Brasil em umas missivas enviadas: “Tenho que dar-lhe uma notícia: o livro do Araripe sobre a Guerra dos Farrapos está pronto até o fim do mês. Quero ver se consigo que V. seja a primeira pessoa de São Paulo que o leia”.31 As informações privilegiadas eram fruto de um contato pessoal nutrido entre ambos: “Disse-me ele ontem, no bonde, que sabe que os rio-grandenses não hão de gostar muito do seu livro; mas que não se preocupa com isto, porque, no meio de reclamações interessadas, hão de vir clamores justos e talvez documentos curiosos, que tragam a luz e a verdade”.32 Em outra oportunidade, Capistrano sinaliza cumprir com o prometido, conforme escreve na missiva: “Foi hoje publicado o livro do Araripe. Se ele tiver mandado para a Gazeta, hoje mesmo lhe enviarei o exemplar que prometi, se não, irei a casa dele, e amanhã mandarei”.33 Portanto, Capistrano de Abreu exerceu novamente um importante auxílio, buscando as informações referentes ao livro de Araripe e repassando-as com extrema rapidez a Assis Brasil, que tanto interesse demonstrava nelas. Como Capistrano previra, os rio-grandenses não gostaram do livro de Araripe, tanto é que no prefácio da obra de Assis Brasil, publicada no ano seguinte, o autor pontuava que o escrito de Araripe era uma construção de elementos que estavam desconexos, e que tal era a sua discordância com as ideias do autor e mesmo quanto à exatidão de alguns fatos, “ [...] que devo confessar que no seu livro bebi a inspiração de escrever o meu”.34 De tal modo, o processo de verificação de dados e informações sobre a Revolução para a escrita do livro de Assis Brasil ganhava maior importância. De fato, numa década em que a preocupação com o método era uma constante, a busca por fontes, documentos e depoimentos de pessoas que testemunharam os fatos era importante para a escrita da história, especialmente para a escrita da história de uma revolução “difamada” por publicação anterior.

Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 20 de abril de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 79. 32 Ibid., p. 79. 33 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 05 de maio de 1881. In: ibid., p. 80. 34 ASSIS BRASIL, 1998, p. 22-85. 31

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Júlio de Castilhos, amigo e companheiro do Club Republicano RioGrandense, foi acionado no sentido de entrar em contato com indivíduos que pudessem dispor de documentos úteis para a escrita do livro de Assis Brasil. Em correspondência escrita a Apolinário Porto Alegre35, Castilhos expressou o desapontamento dos rio-grandenses para com o livro de Araripe, apontando que a obra encomendada pelo Clube tinha como finalidade “[...] rememorar a Revolução de 1835, restabelecendo ao mesmo tempo a verdade dos sucessos que tão adulterados têm sido (como acabou de sê-lo em uma memória do Conselheiro Alencar Araripe)”.36 Em outro fragmento da carta, Castilhos faz o pedido de auxílio ao velho professor, falando em nome do Clube e, em especial, em nome do amigo Assis Brasil: Mas para escrever um livro de tal natureza precisamos de bases seguras e diretoras, como documentos, dados, informações etc. É exatamente isso o que venho lhe pedir. Com meus companheiros, espero – fora supérfluo acrescentar – que o distinto correligionário não se recusará a auxiliar-nos o mais que lhe for possível, fornecendo-nos para aquele fim tudo o que puder obter, principalmente sobre os sucessos da revolução de 1835. Tomo a liberdade de lembrar que na biblioteca ou na coleção da Revista do Parthenon, há, segundo estou informado, muitos e preciosos documentos sobre o mesmo movimento revolucionário. Se não for possível enviar-nos o original, ainda mesmo com a condição de prontamente devolver, rogo-lhe o especial obséquio de enviar-nos, ao menos, a cópia. Contamos com o seu apoio e, portanto, com a sua indispensável coadjuvação.37

É possível perceber que a busca por documentos que tornassem evidente uma nova versão dos fatos da guerra se tornou bastante importante dentro do processo de construção do livro. Capistrano de Abreu também participou desta empreitada, ajudando Assis Brasil a verificar alguns fatos da Revolução, contatando conhecidos no Rio de Janeiro, dentre eles o professor Antônio Alves Pereira Coruja. Disse ele: “Está aqui o Coruja, com Apolinário Porto Alegre nasceu no Rio Grande do Sul, no ano de 1844. Em 1861, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, entretanto, não concluiu o curso em função do falecimento de seu pai. Retornando ao Rio Grande, passou a trabalhar como professor particular e a divulgar a causa republicana através da imprensa. Fundou e dirigiu dois estabelecimentos de ensino em Porto Alegre e foi um dos membros fundadores e mais atuantes da Sociedade Parthenon Literário (1868-1880) (fonte: MARTINS, 1978, p. 452). 36 Correspondência de Júlio de Castilhos a Apolinário Porto Alegre. São Paulo, 28 de maio de 1881 (APA-056 – Arquivo Pessoal Apolinário Porto Alegre – IHGRGS). 37 Ibid. 35

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quem conversei sobre o caso do Vicente Ferrer. Diz ele que ocorreu em Porto Alegre, que foram-lhe cortadas as orelhas e que Marques Alfaiate as teve em seu poder [...]”.38 Em outra oportunidade, afirmou Capistrano: “Estive ontem conversando sobre a Revolução com o major Fausto de Sousa. Disse-me ele que na restauração de Porto Alegre, Manuel Marques não passou de instrumento e que os documentos comprobatórios desta asserção estão no Arquivo Público”.39 Ou seja, Capistrano de Abreu não só fez circular as informações a respeito do livro de Araripe, como também pesquisou informações e testemunhos da época para auxiliar Assis Brasil em sua empreitada, seja através da coleta de depoimentos orais, seja da indicação de documentos comprobatórios (e seu local de guarda) – que poderiam colaborar para conferir um caráter mais científico à obra do jovem propagandista. O conjunto de cartas trocadas entre Capistrano de Abreu e Assis Brasil e que trata da publicação de História da República Rio-Grandense é muito menos numeroso se comparado ao número de missivas que versam sobre a editoração de A República Federal. Ainda assim, depreende-se pela leitura das mesmas que Capistrano prestou o mesmo tipo de auxílio concedido anteriormente. A carta que aponta para uma ação diferenciada realizada por Capistrano sugere seu importante papel na divulgação do livro e na tentativa de fazer circular, através da imprensa, informações e comentários sobre o texto recém-publicado. Para isso, distribuiu pessoalmente alguns exemplares a pessoas influentes, livrarias e jornais de maior prestígio na Corte. Em suas palavras: Acabo de chegar da casa do Leuzinger, donde trouxe 10 exemplares para distribuir pelos jornais. Já entreguei o do Globo; vou entregar ao Araripe Jr. o dele, que servirá ao mesmo tempo para a Gazeta da Tarde; o que assim economizei darei ao Teixeira de Melo. Os outros distribuirei amanhã. Deixei um na vitrine da Faro e Lino para ser exposto: amanhã somente é que será exposto à venda. [...] Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil. 19 de setembro de 1882. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 82. Dias depois, nova missiva trazia informações importantes: “Por uma casualidade encontrei-me com Carlos Jansen, que era muito amigo de Berlink, e trabalhou com ele no Cruzeiro. Perguntei-lhe pela casa da viúva e pela biografia do Duque de Caxias”. Em outro trecho, na mesma carta dizia: “Relativamente a Cunha, nada lhe posso dizer agora. Vou falar com o Paz, que se deve dar com ele, ou com o Bocayuva. Do que houver de novo lhe darei notícia” (Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 28 de setembro de 1882. In: ibid., p. 82). 39 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 19 de setembro de 1882. In: ibid., p. 81. 38

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais Penso que o livro será bem vendido, não só porque foram muito apreciados os extratos que deu A Gazeta, como, porque o preço torna-o muito acessível. [...] Se suceder, porém, o contrário, pois tudo é possível neste inverossímil Rio de Janeiro, é melhor, passado certo tempo, levantar o preço.40

No auge da propaganda republicana, o objetivo daqueles que escreviam livros e artigos em periódicos não era o de obter lucro com tais publicações, mas sim fazê-las circular, veiculando as ideias e valores defendidos. Neste sentido, algumas práticas eram comuns e necessárias, à medida que se objetivasse uma circulação mínima das obras recém-publicadas em um espaço que o próprio Capistrano considerava imprevisível. Além de estabelecer um preço de venda acessível, o envio de exemplares a alguns jornalistas notáveis, especialmente àqueles com os quais se nutria uma relação amistosa, constituía-se em importante estratégia. Através de comentários elogiosos nas páginas de seus periódicos, esses jornalistas poderiam agregar certo valor simbólico ao livro, aumentando a curiosidade do público leitor a seu respeito. Conhecer essas “regras” era um passo importante a todos aqueles que quisessem investir na escrita e divulgação de livros, tal como Assis Brasil o fez. Inexperiente nesses assuntos, mas agindo de forma pragmática, mobilizou os laços existentes com o amigo Capistrano, aproveitando-se do conhecimento prático e das próprias relações pessoais com jornalistas que não ele, mas o amigo possuía. É necessário ressaltar que Capistrano de Abreu, talvez o contato de maior importância e também o que mais vezes foi acionado pelo rio-grandense, era apenas um dos tantos indivíduos que integravam uma rede de relações maiores, da qual Assis Brasil fazia parte. Tal rede social era formada por republicanos de várias partes do Brasil e era constantemente mobilizada no sentido de propagandear as novas ideias e fazer circular os escritos políticos de seus membros. Logo, através dela, as novas ideias eram divulgadas com maior rapidez, especialmente dentro de um contexto onde os republicanos se constituíam como minorias políticas e precisavam valer-se de diferentes estratégias para ganhar visibilidade e atrair outras pessoas para as hostes republicanas.41

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Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 05 de maio de 1881. In: ibid., p. 80. Para mais informações a respeito, ver Saccol (2013).

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Considerações finais Como se viu, os dois livros de Assis Brasil foram alvo de constantes elogios por parte de afamados jornalistas da época, que escreviam em alguns dos periódicos de maior circulação daqueles anos. Esses comentários colaboraram para que Assis Brasil se tornasse um nome bastante reconhecido pelos pares republicanos. Sua República Federal foi considerada um dos melhores livros de propaganda na época e seu autor, um dos talentos mais brilhantes daquela geração. Tamanho foi o sucesso do livro entre os republicanos e, possivelmente, entre o círculo de leitores da época, que a República Federal chegou a ser reimpressa seis vezes ao longo da década de 1880.42 Esse indicativo aponta que, de alguma forma, para além da capacidade intelectual do autor, o percurso seguido pelo mesmo visando publicar e fazer circular seus opúsculos foi, no mínimo, eficaz. Não é certo que existisse um percurso adequado e que garantisse o sucesso no que se referia às publicações. Entretanto, os passos seguidos por Assis Brasil, e que combinaram a busca de auxílio de um amigo experiente no ainda incipiente meio editorial, a escolha de uma tipografia de renome e alcance considerável, o cuidado com o acabamento da obra, a distribuição do livro a pessoas influentes e periódicos de grande circulação, parecem ter sido um bom investimento por parte do autor. Na realização de todas estas etapas Capistrano de Abreu teve papel fundamental, e, de modo geral, é possível dizer que, sem a sua colaboração, o processo de publicação dos livros de Assis Brasil teria sido muito mais tortuoso. Capistrano conhecia os meandros do círculo editorial e, isto, sem dúvida, foi de grande valia. Contudo, é preciso considerar que ambos tinham interesse em divulgar as ideias republicanas e isso, muito provavelmente, colaborou para a concretização deste auxílio.43 Por outro lado, a relação pessoal cultivada entre os dois não pode ser minimizada, pois a correspondência por eles

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ALONSO, 2002, p. 223. Mesmo na semana em que ocorreu seu casamento, os assuntos políticos não foram deixados de lado, conforme atesta Capistrano: “Mesmo o grande e gravíssimo momento não me impediria de, mesmo esta semana, prestar à República toda a atenção de que é digna e de que sou capaz” (Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 29 de março de 1881. In: RODRIGUES [org.], 1977, p. 75).

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trocada também é permeada por detalhes de seus encontros e de indícios da amizade que existia entre eles. Exemplo disso é que, próximo ao dia de formatura de Assis Brasil, Capistrano escreveu ressentido ao amigo, expressando o quanto gostaria de participar daquele momento, ainda que não pudesse fazê-lo: “Estava esperando tirar a sorte grande para ir assistir à sua formatura. Vã esperança. Sinto pelo que perco”.44 A relação de amizade entre Capistrano de Abreu e Assis Brasil perdurou por vários anos e o laço existente entre ambos foi mobilizado várias outras vezes, gerando inúmeras trocas. No que se refere ao mundo das letras, Capistrano convidaria Assis Brasil para participar de vários outros projetos. Ainda em 1882, o bibliotecário cearense avisava ao amigo que Ubaldino do Amaral estava com a ideia de publicar anualmente alguns livros sobre a História do Brasil e perguntava se ele não gostaria de escrever a história da Revolução do Rio Grande, insistindo mesmo para que aceitasse o convite: “[...] Responda depressa e responda sim”.45 Já em 1893, sendo um dos organizadores da coleção intitulada Monografias Brasileiras, que objetivava preparar o centenário do descobrimento do Brasil, ainda na procura de escritores para alguns volumes, Capistrano atribuiu a tarefa de redigir um deles ao amigo: “Já vê que V. não pode deixar de escrever o volume, e ditatorialmente já o inscrevi entre os colaboradores cujos volumes podemos garantir”.46 Capistrano visitou o amigo algumas vezes já no Rio Grande, tendo se hospedado em sua casa. Quando da morte de seu filho, já no período republicano, “desorientado, refugiou-se em Pedras Altas”, onde recebeu todo o apoio da família de Assis Brasil, que o ajudou a atravessar aquele momento difícil. Portanto, a amizade iniciada em princípios da década de 1880 perdurou vários anos e foi essencial para a publicação dos escritos de propaganda que consagraram o jovem republicano Assis Brasil, abrindo outras portas ao mesmo, sobretudo na política. Capistrano estava posicionado no coração político do Império e, por que não dizer, no centro de atuação dos letrados brasileiros. Participava de jornais importantes, possuía inúmeros

Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 19 de novembro de 1882. In: ibid., p. 83. 45 Ibid., p. 83. 46 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 23 de janeiro de 1893. In: ibid., p. 84. 44

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contatos, além de um cargo importante na Biblioteca Nacional e, posteriormente, no Colégio Pedro II, onde foi professor. Sem dúvida, esta posição central ocupada por Capistrano foi de grande auxílio para um recém-chegado de uma província distante e que tinha anseios de se posicionar no interior do grupo que ficou conhecido como geração de 1870. Capistrano realizou inúmeras ações, por exemplo, convidando o amigo para participar de conferências e eventos, objetivando inseri-lo no espaço de debates da Corte, Corte esta que, anos depois, seria o palco de uma conspiração republicana e militar, insuflada parcialmente por jovens e letrados como Assis Brasil e Capistrano de Abreu.

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Dom Chimango e a torre de marfim: a literatura de Homero Prates e a política oligárquica da Primeira República (1890-1927) Cássia Daiane Macedo da Silveira Política e literatura sempre mantiveram relação estreita na história do Brasil. A historiografia sobre o começo da República no Brasil costuma dividir em “fases” a atuação dos intelectuais, inclusive daqueles mais propriamente ligados às atividades literárias. A partir da periodização usual, nos últimos anos da Monarquia, houve engajamento tanto em prol do fim da escravidão quanto pelo advento do novo regime republicano: os intelectuais brasileiros teriam se envolvido diretamente nessas lutas políticas (ALONSO, 2002; COELHO NETTO, s/d; PEREIRA, 1994). Logo nos primeiros anos da República, contudo, uma boa parte da intelectualidade brasileira, em particular aquela ligada à produção literária, teria se “desiludido” com o rumo político tomado pelo regime outrora tão vigorosamente defendido e teria decidido se retirar para uma “torre de marfim” ou aceitado render-se aos gostos “levianos” das elites, produzindo uma literatura sem vinculação com a realidade social de seu tempo. Algumas raras ocorrências de escritores que mantiveram vivos seus laços com a realidade circundante recaíram em profundo isolamento, como seriam os casos de Lima Barreto e de Euclides da Cunha (SEVCENKO, 1983). A década de 1920, com o crescente nacionalismo desenvolvido após a Primeira Guerra Mundial, finalmente teria, pouco a pouco, trazido um retorno ao engajamento perdido no decurso das três primeiras décadas republicanas (PÉCAULT, 1990). Por outro lado, matizando o rigor de periodizações como esta, alguns historiadores e críticos já mostraram o quão políticas foram associações literárias tão importantes quanto a Academia Brasileira de Letras (RODRIGUES, 2003). Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros” e principal poeta parnasiano do país, que talvez poderia ser considerado um sím-

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SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim

bolo da fase em que os escritores decidiram afastar-se do mundo, escrevendo “longe do estéril turbilhão da rua” (BILAC, 2002), engajou-se na luta republicana durante o fim da Monarquia, pelo alistamento militar obrigatório no ano de 1916 e, em literatura, escreveu poemas satíricos de cunho político utilizando pseudônimos. Bilac diferenciava uma literatura “séria”, sua produção como escritor parnasiano, a qual assinava com seu verdadeiro nome, e uma literatura “menor”, na qual a intervenção política seria possível e na qual utilizava pseudônimos, visando “preservar a respeitabilidade e o prestígio do estilo ‘sério’, sujeito a rígidos preceitos estéticos” (JUNIOR, 2007, p. 28). Durante as primeiras décadas da República, assim, os escritores procuraram alegar a separação rigorosa entre a literatura que produziam e a política. Utilizo o verbo alegar conscientemente, já que desconfio da possibilidade de separação rígida entre literatura e política no Brasil, sobretudo num período permeado por conflitos como foi a Primeira República. Contudo, é preciso questionar: toda e qualquer literatura pode se relacionar com a política? Existem gêneros literários mais “propensos” a expressar opiniões políticas? Essas não são questões simples, nem são questões que possam ser encerradas com o estudo de um ou de outro caso particular. Entretanto, pretendo, neste texto, refletir sobre as possibilidades de intervenção política suscitadas pela literatura, relacionadas à própria percepção dos gêneros literários pelos escritores. No caso específico que aqui analisarei, meu objetivo é compreender como o escritor gaúcho Homero Prates (1890-1957) percebia as possibilidades de vinculação entre estética e política quando selecionava os gêneros com os quais pretendia se expressar. Ao mesmo tempo, pretendo apresentar ao leitor os modos pelos quais os diferentes níveis de relações interpessoais estabelecidas pelo autor influenciavam nas suas decisões, fossem estéticas ou fossem políticas. Nesse sentido, a ideia de “redes”, que vem sendo muito utilizada no estudo de intelectuais, será indispensável.1 Com o intuito de operacionalizar tal ideia, o que

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O historiador francês Jean-François Sirinelli (1986; 1988; 2003) tornou popular a noção de “sociabilidade” para o estudo dos intelectuais, que pode ser entendida tanto por meio da ideia de “rede” – que visaria dar inteligibilidade às relações estabelecidas entre os intelectuais – quanto por meio da ideia de “microclimas” – que comporiam a “atmosfera” de um grupo ou geração de intelectuais. No Brasil, Ângela de Castro Gomes (1999) e Monica Pimenta Velloso (1996) se valeram de tal ideia a fim de estudar a modernidade carioca.

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pretendo é “reconstituir grupos sociais a partir das relações que ligam os indivíduos”. Proponho, assim, que as articulações travadas entre Homero Prates e outros intelectuais, bem como as relações dele com seus familiares, podem ser um meio de esclarecimento do “horizonte social dos atores”, oferecendo oportunidade para conhecer o contexto em que o escritor efetivamente se movia, suas lutas (estéticas e políticas), seus interesses e suas estratégias. As redes, assim, podem ser uma forma de “nos interrogarmos sobre a experiência dos indivíduos e, portanto, sobre as modalidades de construção da identidade social” (CERUTTI, 1998, p. 183).

I. Grupos de escritores, disposições herdadas Homero Menna Barreto Prates da Silva começou sua atividade literária no ano de 1908, com a publicação do seu livro Poemas bárbaros.2 Também naquele mesmo ano, sua identidade enquanto literato se estruturava nas reuniões que ele e os amigos faziam, todas as noites, numa praça da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul: a Praça da Misericórdia. Foi nessa praça que Homero Prates, Álvaro Moreyra, Felipe d’Oliveira, Antonius Barreto, Francisco Barreto, Carlos de Azevedo e Eduardo Guimaraens – o grupo dos sete3 – consolidaram uma amizade que se estenderia ao longo de suas vidas e que influenciaria de modo definitivo seus futuros na literatura. Do grupo dos sete, restaram cinco4, dos quais apenas quatro orientaram seus desejos de estetas para a palavra escrita5: Eduardo, Felipe, Álvaro e Homero. Na literatura dos quatro, alguns aspectos comuns se sobressaem: o interesse por temáticas mórbidas, pela morte, pela doença, pelo

Walter Spalding (1973, p. 254) contesta a existência deste volume, alegando que nunca nenhum exemplar do mesmo foi localizado. Para este autor, a afirmação da existência da referida obra não passaria de mero engano. Se concordarmos com a posição de Spalding, o primeiro livro de Homero Prates teria sido As horas coroadas de rosas e de espinhos, de 1912, publicado no Rio de Janeiro pela Tipografia Progresso. 3 A amizade dos sete jovens foi registrada em 1909, por Eduardo Guimaraens (Doc. no. 2332, AML, P. I. Pasta Eduardo Guimarães, Fundação Casa de Rui Barbosa), em poema em que registrou o interesse de cada um dos amigos, e os seus próprios, pela arte e pela literatura. Posteriormente, foi novamente registrado por Mansueto Bernardi (1944, p. 14), que os designou como “grupo da Praça da Misericórdia”. 4 Não localizei registros vinculados à atividade artística a respeito de Carlos de Azevedo ou de Francisco Barreto na idade adulta. 5 Antonius Barreto era ilustrador. 2

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fim, pelo ocaso, pelo crepúsculo, pelo azul e pelo roxo, pelo outono. Na defesa de uma ideia de sucessão de gerações literárias, pode-se dizer que o grupo da Praça da Misericórdia era tributário, principalmente, de dois outros conjuntos de escritores brasileiros com os quais mantiveram estreitas relações, um em Porto Alegre, outro no Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, os amigos da Praça da Misericórdia assimilaram o legado de um grupo boêmio composto por alguns escritores ligados ao jornal Correio do Povo6, como era o caso de Zeferino Brazil, Marcello Gama e Pedro Velho. Fosse pelo tipo de literatura que escreviam, que provocava uma ruptura no modo de escrita literária até então vigente no estado, trazendo para seus livros elementos caros a Baudelaire e a Edgar Allan Poe, fosse pela “invenção de uma arte de viver”– já que então os artistas também passariam a se definir pelo estilo de vida (BOURDIEU, 1996, p. 73) –, os boêmios gaúchos forneceram um primeiro horizonte de possibilidades estéticas aos mais novos, que recém tentavam se integrar ao espaço de produção literária. Na Capital Federal, o grupo da Praça da Misericórdia se inseriu, no início da década de 1910, nas rodas literárias organizadas em torno da revista Fon-Fon! 7, tendo como ponto de referência a figura emblemática do simbolista Mario Pederneiras. A ideia de um “projeto” de integração ao grupo literário de Mario Pederneiras, quando os gaúchos da Praça da Misericórdia se transferiram para o Rio de Janeiro, transparece na correspondência de Álvaro Moreyra a um amigo não identificado, que comenta estar apaixonado: “Já havia escrito umas palavras para o Felipe, quando recebi a carta... Amas? Louvado sejas! E deve ser linda... Que pena não chamar-se Odette e não ser da prole fon-fônica...” (Porto Alegre, 04/11/1909. Correspondência de Felipe d’Oliveira. Arquivo de Felipe d’Oliveira. Biblioteca Municipal Henrique Bastide, Santa Maria). Odette era o nome de uma das filhas de Alexandre Gasparoni, diretor da revista Fon-Fon!. A irmã de Odette, Stella, efetivamente casou-se, em 1915, com João Daudt de Oliveira, irmão mais velho de Felipe d’Oliveira (O Paiz, 10/07/1915, p. 5). O jornal Correio do Povo foi fundado em Porto Alegre, no ano de 1895, por Francisco Vieira Caldas Júnior, que tencionava pôr em circulação um jornal “imparcial”, que produzisse um jornalismo moderno, sem vinculação partidária. Sob o comando da família Caldas, o periódico permaneceu até o ano de 1984, quando o filho de Francisco, Breno, o vendeu. Sob outra administração, o Correio do Povo circula até os dias de hoje (CALDAS, 1987). 7 A revista Fon-Fon!, de Alexandre Gasparoni, foi fundada em 1907 e teve papel preponderante na difusão da modernidade no Rio de Janeiro do começo da República (VELLOSO, 2010, p. 50). 6

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Homero Prates e seus amigos, assim, constituíram, na juventude, a partir de referências trazidas por gerações anteriores de escritores com quem tomaram contato, uma forma de escrita que era própria do seu grupo, que constituía um projeto particular de ingresso no mundo literário brasileiro, vinculado a uma estética bastante específica. Apesar de cada um deles possuir uma característica própria enquanto escritor, não é enquanto “gênio”, enquanto individualidade criadora que me interessam. É na construção de uma estética própria do grupo que fenômenos sociais mais amplos podem ser observados. Nas palavras de Raymond Williams (1999, p. 140), “existem grupos culturais muito importantes que têm em comum um corpo de práticas ou um ethos que os distinguem, ao invés de princípios ou objetivos definidos em um manifesto”. Assim, é preciso apreender as práticas unificadoras do grupo – a pertença a uma revista, a um jornal, o encontro cotidiano em uma praça ou residência e mesmo as escolhas estéticas que os definem, elementos que, ao mesmo tempo, marcam escolhas intelectuais e constituem solidariedades, estreitam vínculos, constituem laços de admiração e solidificam amizades. Esses espaços conformam estruturas de sociabilidade que nos permitem compreender a significação social e cultural de grupos de escritores, músicos e artistas por meio da identificação de seus valores comuns. É nesse sentido que o conjunto de temáticas eleitas pelo grupo na composição de suas obras poéticas – o azul e o roxo, as olheiras, a enfermidade, o outono, a folha que cai, o corpo que pende sem vida, a melancolia cotidiana, o abismo – ganha significação especial. Elas não marcam apenas a adesão a uma estética específica – simbolista, parnasiana, penumbrista, pós-simbolista e que tais –, mas marcam especialmente o conjunto de valores compartilhados pelo grupo, suas vinculações sociais mais amplas, seu modo de compreender e perceber a realidade. O grupo do qual fazia parte Homero Prates carregou tais valores ao longo de toda a sua produção literária, confirmando a força das suas solidariedades de origem. As relações que constituíram tais solidariedades formadas na juventude são, contudo, apenas uma parte da ampla rede de Homero Prates. Uma parte importante, sem dúvida, que marcou sua existência e a de seus amigos. Mas apenas uma parte. Além de amigo de Felipe d’Oliveira, Álvaro Moreyra e Eduardo Guimaraens, Homero Prates também era um membro, pelo lado materno, do tradicional clã dos Menna Barreto, fração das oligarquias regionais gaúchas, iniciado provavelmente com João de Deus

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Menna Barreto (FIGUEIREDO, 1984, p. 223). Em 1846, João de Deus Menna Barreto recebeu o título de Visconde de São Gabriel, com honras de grandeza, por meio de Carta Imperial. Seu filho, João Propício Menna Barreto, também militar, recebeu do governo imperial, por sua vez, o título de Barão de São Gabriel, após a guerra contra o Uruguai, iniciada em 1864. Já do lado paterno, Homero Prates descendia de uma família de ricos criadores de gado nas cidades de São Gabriel e de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. Quando da morte do avô de Homero, João Raymundo da Silva, no ano de 1899, este deixou um inventário de quase 900 reses, além de mais de 300 outros animais entre bois, éguas, burros, mulas e cavalos, distribuídos nas propriedades das cidades citadas. Além de alguns imóveis urbanos, João Raymundo deixou 1 légua de sesmaria no Lajeado, 43 quadras quadradas “de terras situadas em vários pontos dos terrenos onde se acham as chácaras existentes no lugar denominado Bom Fim, entre os campos da ‘casa branca’, a estrada que de São Gabriel vai a São Sepé e as margens direita [sic] do rio Taquari e as quedas do arroio Mudadomo” (Inventário de João Raymundo da Silva. Comarca de São Gabriel, 1900, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul/APERS). No município de Cruz Alta, ele deixou 2 léguas de sesmaria “na fazenda denominada do Cadeado, entre a serra deste nome, a estrada que vai de Cruz Alta a São Borja e o rio Ijuizinho”, além de 1.838.817 braças quadradas “de terras de matos de cultura na serra denominada do Cadeado, no fundo da fazenda acima descrita, as quais constituem a metade das terras ali medidas e legitimadas, com área total de 3.677.634 braças quadradas” (Inventário de João Raymundo da Silva. Comarca de São Gabriel, 1900, APERS).8 Homero Prates, ao mesmo tempo em que constituía, com os amigos da Praça da Misericórdia, uma estética própria, que lhes conferisse identidade enquanto escritores, também seguia outros rumos menos artísticos, mas bastante condizentes com as disposições herdadas de sua família. Em 1912, concluiu a Faculdade de Direito de Porto Alegre e seguiu para a Ca8

Considerando as análises de Thiago Araújo (2008, p. 42) para a mesma região, no período compreendido entre os anos de 1834 e 1879, os rebanhos de João Raymundo da Silva são bastante expressivos. No período estudado por Araújo, os proprietários que possuíam mais de 500 reses correspondiam a pouco mais de 10% do montante dos inventários analisados. Mesmo levando em conta os mais de 20 anos entre o período estudado por Araújo e o falecimento de João Raymundo, trata-se, sem dúvida, de um criador com um número considerável de posses. Agradeço ao autor pelas referências e pelo auxílio na análise desta fonte.

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pital Federal.9 Após um período vivendo com os amigos no Rio de Janeiro, colaborando com a revista Fon-Fon!, Homero retornou ao Rio Grande do Sul a fim de atuar como juiz distrital na cidade de Dom Pedrito, entre os anos de 1913 e 1915. Sua participação nas “rodas simbolistas” da Capital foi interrompida por uma chamada à sua “verdadeira” profissão. A literatura que escrevia com os companheiros era uma parte importante da sua vida, mas a carreira no Direito precisava também ser alavancada. Entre 1916 e 1918, Homero Prates transferiu-se novamente para o centro do país e atuou como advogado na cidade de São Paulo. Não tenho mais informações sobre esse período a não ser aquelas obtidas por meio de suas publicações na revista Panóplia: mensário de arte, ciência e literatura, daquela cidade. O fato de Homero ter se tornado colaborador (e, por certo período de tempo, também diretor) da revista literária paulista, contudo, nos adverte para o modo como ele investia paralelamente nas duas atividades: a artística e a jurídica, a primeira mais vinculada a suas adesões estéticas juvenis, ligadas, ainda, ao grupo da Praça da Misericórdia, a última mais vinculada às disposições assumidas pelo lugar social que ocupava como parte de um setor das oligarquias gaúchas. Suas duas atividades, contudo, embora conduzidas de modo paralelo, por meio de espaços distintos de atuação (as revistas literárias ou as instituições jurídicas), também se entrelaçavam por meios menos explícitos. As reuniões literárias das quais participava sempre contavam com a presença de indivíduos importantes não apenas na esfera de atuação mais especificamente literária. Em sarau na casa de D. Gaby Coelho Netto, esposa do ilustre escritor maranhense Henrique Coelho Netto, Homero pôde encontrar não apenas outros escritores, como Alcides Maya e Mario Pederneiras, mas também a Baronesa de Werther, filha do Barão de Rio Branco (O Paiz, 17/06/1913, p. 3). No almoço em homenagem ao escritor Elísio de Carvalho, Homero Prates esteve na companhia de seus amigos Álvaro Moreyra e Felipe d’Oliveira, mas também do embaixador francês A. Conty, além de vários senadores, deputados e ministros (O Paiz, 13/08/1921, p. 5). Os locais de reunião para homens e mulheres pertencentes às elites, em geral, contavam com a presença de homens de letras. Por outro lado, os

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Luiz Alberto Grijó (2005) apresenta as estreitas vinculações entre os indivíduos formados na Faculdade de Direito de Porto Alegre, no período entre 1904 e 1937, e a atividade política.

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contatos feitos em um sarau literário serviam tanto ao Homero Prates escritor, quanto ao Homero Prates membro da importante família gaúcha. Ele poderia, assim, acionar tais contatos tanto diante da necessidade de obter editor para um de seus livros, quanto diante da vontade de defender algum interesse de sua família. Por meios indiretos, o fato de Homero Prates se apresentar como escritor, como poeta, lhe possibilitava ingressar em círculos capazes de ampliar significativamente sua rede de relações mais especificamente políticas. Isso significa que ele poderia tirar destas relações muitas vantagens, se assim desejasse; mas não significa, necessariamente, que sua literatura tratasse de assuntos caros aos interesses de sua família ou das redes que estabelecia. Sérgio Miceli (2001, p. 23) argumenta que a rede de relações dos escritores da Primeira República – que ele denomina de “anatolianos”, em referência à influência do escritor francês Anatole France – é um de seus mais importantes trunfos. Em seu estudo, Miceli constata que tais escritores são, em geral, os “parentes pobres” das oligarquias condutoras do jogo político brasileiro. Já não contariam mais com os mesmos recursos econômicos, além de possuírem uma série de desvantagens – como a gagueira ou a morte prematura do pai – responsáveis pelo afastamento de suas possibilidades de atuação política mais direta, no seio das oligarquias das quais fazem parte. As boas relações mantidas pela família, bem como a formação cultural orientada para o domínio de uma cultura europeia, elitizada, seriam os últimos resquícios de sua participação entre as classes dominantes, capazes de serem utilizados na reconversão que operam a fim de ingressar nos mundos da literatura. Não é exatamente o que se verifica na trajetória de Homero Prates; apesar de eu não ser capaz de demonstrar nenhum vestígio de decadência econômica em sua família, a conjuntura específica do Rio Grande do Sul no decorrer da Primeira República talvez seja capaz de explicar seu modo de atuação. Como vimos, Homero Prates pertencia a um importante clã das oligarquias gaúchas do período, a família Menna Barreto. Não é de hoje a constatação de que os conflitos no interior das classes dominantes no decurso da Primeira República não podem ser pensados unicamente em termos de conflitos entre oligarquias de regiões diferentes, por acesso ao poder. É preciso levar em consideração, também, os conflitos internos a uma mesma oligarquia, que não se constitui, embora possa aparentar, em um

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todo homogêneo, harmônico e coeso (PERISSINOTTO, 1997, p. 41).10 Nesse sentido, o período da Primeira República no Rio Grande do Sul pode ser pensado como repleto de incidentes capazes de demarcar a existência de tais conflitos intraoligárquicos: as duas guerras civis – a Guerra Civil Federalista (1893-1895)11 e a Guerra Civil de 1923 (1923-1925)12 – e as eleições de 1906 – quando Borges de Medeiros assume a chefia do estado e as oposições vão às urnas através de Fernando Abbott – são exemplos contundentes do que quero dizer (WASSERMAN, 2004; ANTONACCI, 1979). A família de Homero Menna Barreto Prates da Silva destacou-se especialmente na conjuntura entre 1921 e 1923, que levou à Guerra Civil de 1923, e é sobre este episódio que pretendo me deter. Já vimos que, enquanto literato, Homero Prates compartilhava de uma série de valores com um grupo de amigos de juventude, com quem se manteve unido ao longo da vida e por meio do qual conquistou uma série de posições no mundo literário da Capital Federal, como o posto de colaborador na revista Fon-Fon!. A escrita de poesias que mantiveram a marca de seu grupo foi uma constante na vida do escritor. De um modo geral, uma característica marcante da literatura poética produzida por seu grupo é a aproximação com correntes estéticas que afirmavam a busca por uma arte literária devedora de satisfações apenas a si mesma, sem vínculos com a política, recusando a lógica econômica na produção e na valorização da arte. Homero Prates escrevia poesias sobre ametistas, opalas e outras pedras preciosas; violetas e o Outono também estavam no rol de temas mencionados: “Não! não a quero! Não! que, em seu brilho, a Desgraça / Dorme num leito em flor de violetas; e acesa / Em púrpuras, de Outono a infinita tristeza, / No áureo esquife do Poente, às mãos das Tardes, passa...” (PRATES, 1912). De caráter intimista, a literatura poética desenvolvida por Homero Prates ao longo da vida (muito de acordo com os valores

Para uma revisão ampla da política oligárquica da Primeira República, ver o trabalho de Claudia Viscardi (2012). 11 Guerra civil que opôs as tropas federalistas gaúchas ao governo de Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul, então um dos principais aliados do presidente Floriano Peixoto (FLORES, 2008). 12 Também conhecida como “Revolução Assisista” ou “Revolução de 1923” (1923-1925), foi a guerra travada entre os maragatos, união de toda a oposição, e o exército de Borges Medeiros. A luta foi travada em decorrência da posse no quinto mandato consecutivo do presidente do estado do Rio Grande do Sul. 10

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de seu grupo de amigos) não tinha espaço para tematizar a realidade mais imediata que o cercava. Sobre isso, aliás, o autor discorreu em artigo intitulado “Arte regional”, publicado na revista Panóplia, em 1918. No texto em questão, ele defendia que a arte é “universal” e “sagrada” e não devia tratar de assuntos comezinhos de caráter nacional, regional ou local. Para Prates, a literatura produzida segundo princípios de nacionalismo ou regionalismo não seria digna de chamar-se arte, concluindo que, ao ler algum livro brasileiro produzido “nesse gênero (o que só faço por um ingente esforço patriótico) a tirada de um preto a falar errado ou de um caboclo sentimental a dizer tolices no seu linguajar grosseiro – ainda que nas circunstâncias mais trágicas ou, melhor, precisamente nessas ocasiões patéticas – em lugar de me comover, como razoavelmente pretendeu o autor, sinto uma emoção às avessas: fico vermelho e envergonhado (sei lá por quê) e fecho logo o volume...” (PRATES, 1918, p. 5; grifos no original). Diante dos estreitos laços que uniam Prates a uma fração das oligarquias gaúchas, seria possível ao escritor se manter fechado em uma torre de marfim, sem tratar, em sua escrita, das disputas por poder que marcaram sua família durante a Primeira República? De que estratégias poderia o escritor se valer a fim de contornar as regras que se tentava estabelecer para a produção literária do período, mantendo-a tão distanciada do mundo concreto quanto possível?

II. Regionalismo como arte? É por meio de uma publicação de 1927, na qual Prates mudou temporariamente o rumo de seu estilo, que pretendo compreender estas questões. Trata-se – ironicamente, como podemos pensar após ler seus comentários sobre arte nacional, regional ou local – do poema satírico regional História de Dom Chimango, impresso no Rio de Janeiro, onde então residia (PRATES, 1927). Tal obra já havia sido concluída no começo de 1925, com o fim da Guerra Civil de 1923 no Rio Grande do Sul. Prates inspirara-se no médico e político gaúcho Ramiro Barcelos13, que, anos antes, sob o pseudônimo de Amaro Juvenal, publicara longo poema satirizando Borges de 13

Ramiro Barcelos pertenceu aos quadros do antigo Partido Liberal, mas tornou-se republicano ainda sob o regime monárquico, conformando a “plêiade histórica da propaganda” no estado. Foi jornalista do periódico republicano A Federação desde sua fundação, em 1884 (PORTO ALEGRE, s. d.).

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Medeiros, então presidente do estado do Rio Grande do Sul, apelidando-o de Antonio Chimango – este, aliás, o título de seu popular poema. Mais uma vez, agora com Prates empunhando a pena, Borges sofria ferinos ataques, desta vez com o mote da sua quinta eleição consecutiva na presidência do estado – o que o levaria a 30 anos no poder – e da guerra que mais uma vez dividiu o Rio Grande do Sul em maragatos e chimangos. A partir de agora, analiso a referida obra de Homero Prates em diversos aspectos, enfocando como o próprio eixo narrativo do qual se valeu, compartilhado por muitos outros escritos gauchescos, proporcionou ao autor tratar de algo que à sua produção poética, em geral, não era permitido. Na década de 1920, o ambiente cultural no Rio Grande do Sul ainda era limitado. Foi a partir de 1922-23, contudo, que os intelectuais gaúchos começaram a repensar as antigas gerações de escritores que viam com pessimismo a história do estado. Nesta época, foi refundado o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul – que já havia existido no século XIX – , onde passaram a se reunir intelectuais interessados em escrever uma história gaúcha vinculada ao conceito de nacionalidade, com o objetivo de apresentar e integrar o estado ao restante do país. Já nos últimos anos da década de 1920, este período de otimismo entre os intelectuais tornarase um imenso esforço político por parte do Rio Grande do Sul a fim de alçar-se a liderança nacional (GUTFREIND, 1992). Esse clima de otimismo e fortes expectativas em parte fora criado pela Guerra Civil de 1923, que conformou uma atmosfera propícia a se pensar o Rio Grande do Sul como estado promissor, com uma missão histórica fundamental no Brasil. Foi esse ambiente de entusiasmo geral entre os intelectuais gaúchos que contribuiu para uma transformação na literatura regionalista gauchesca. Ao menos até 1930, há, em todas as obras desse gênero, um tema comum: a valorização do gaúcho-herói. Entretanto, tal temática poderia aparecer de duas formas: no primeiro caso, comum nas obras escritas mais no começo do século, o herói está agonizante em função das transformações ocorridas com a modernização do estado – é o caso do poema satírico Antonio Chimango, de Ramiro Barcelos, e da obra regionalista de Alcides Maya. No segundo caso, porém, surgido a partir da segunda metade da década de 1920, há a persistência do herói, seu renascimento, sua resistência, apesar de todas as transformações sociais, diante de qualquer infortúnio (LEITE, 1978). É o caso da obra de Homero Prates.

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Historia de Dom Chimango inicia com uma dedicatória que já indica qual posicionamento o autor tem diante da situação instituída pela Guerra Civil de 1923. Prates pede desculpas a seu “tio Lauterio” (este é o nome do personagem principal da obra de Barcelos, o homem que conta o “caso” a respeito de Antonio Chimango) se o imita neste livro, mas lembra-o de que ele mesmo sugeriu que alguém terminasse de contar a história do Chimango, já que em 1915 ela ainda estaria inacabada: “Porém, si estou bem lembrado, / Tu mesmo é que imaginaste, / Quando um dia o terminaste, / Que um outro – o que agora faço – / Viesse emendar o laço / No ponto em que o rebentaste (PRATES, 1927, p. 9). Desta forma, Homero Prates se coloca como tributário de uma certa tradição não apenas literária, mas também política. Ele é o continuador da obra e da crítica de Ramiro Barcelos, falecido em 1916. Com seu trabalho literário, faz uma crítica política que, ao mesmo tempo, institui um modelo de gaúcho – bem como seu contramodelo, o anti-herói. No caso em questão, Homero Prates parece querer criar uma distância entre o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) daquele momento, do qual Borges era o representante máximo, e o PRR do passado, fundado, entre outros, por Ramiro Barcelos. Nesse sentido, Prates pretendeu instituir uma tradição republicana rio-grandense que não estivesse ligada ao nome de Borges de Medeiros e à qual ele próprio se vincularia. Para tanto, como já foi dito, colocou-se como tributário de Ramiro Barcelos tanto literária quanto politicamente. Mas não só: também colocou-se como tributário de Júlio Prates de Castilhos, um dos mais importantes chefes do PRR, falecido no início do século XX, primo do pai de Homero, e de quem Borges de Medeiros fora o braço direito: “ - Quem ia assim continuar / A historia do tio Lauterio / Era um tal de João Valério / Cria do Coronel Prates” (PRATES, 1927, p. 20). Homero Prates configurou, assim, uma possível cisão entre o PRR de fins do Império e começo da República e o PRR da década de 1920, recaindo a responsabilidade sobre o péssimo estado das coisas no Rio Grande do Sul sobre Borges de Medeiros. Ligia Chiappini Moraes Leite afirma que, na narrativa regionalista gauchesca, a estrutura comum é dada por dois paradigmas, seguindo uma lógica binária: o do herói, que comportaria certos atributos-padrão, e o do anti-herói, que comportaria atributos contrários àquele. Entre os atributos do herói estariam os atributos físicos da virilidade e valentia, e os morais da

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honra, lealdade, bondade, franqueza, pureza e desprendimento. Já entre os atributos do anti-herói estariam os atributos físicos da impotência, da covardia, e os morais da falta de honra, da traição, da maldade, da dissimulação, da corrupção e da ambição (LEITE, 1978).14 Os atributos do herói são “eminentemente telúricos, mesmo que o telurismo não venha marcado diretamente neles” (LEITE, 1978, p. 59), podendo aparecer numa íntima relação do homem com a natureza, conhecendo seus segredos; numa íntima relação do homem com os animais; ou aproximando a paisagem do homem, participando, também ela, das aventuras do herói. A autora localiza, ainda, a estrutura básica dos textos gauchescos: sua fábula é marcada por um herói, portador das qualidades do herói telúrico, que em certo momento se torna vítima de algum dano, em geral cometido pelo anti-herói. A partir daí, o herói precisa vencer o desafio de limpar sua honra ferida, cobrando do adversário a afronta que lhe foi feita. Herói e anti-herói se envolvem em uma luta, ou duelo, culminando, em geral, na vitória do herói (LEITE, 1978). Utilizando-se desse modelo narrativo típico da literatura regionalista gauchesca, Homero Prates contou a história da relação do povo gaúcho com o governo de Borges de Medeiros. Segundo Homero Prates, foi quando Borges de Medeiros se considerou automaticamente reeleito para o governo do estado que o povo gaúcho tomou sua atitude como “um desaforo”, fazendo o anti-herói – Borges de Medeiros – criar o dano contra o herói – o povo gaúcho. Muito embora, em certo sentido, o povo gaúcho como um todo possa ser entendido como o herói da narrativa de Homero Prates15, há ainda uma série de personagens heróicos, que, contudo, são pessoas de carne e osso, a saber, os líderes da guerra civil de 1923: “Mas D’Chimango que tinha / A faca e o queijo na mão / Ficou fula e fez pressão / Pra que o povo sossegasse / E o sono não lhe tirasse / Com barulhos de galpão. / Ninguém lhe deu importância / E escolheram pra o tal pleito A autora coloca virilidade e valentia e seus opostos como atributos físicos porque eles se manifestam de forma física, em gestos e ações. Seu estudo é realizado com base em textos regionalistas em prosa, ao contrário do texto de Prates aqui analisado, que é um poema. Entretanto, pude verificar a permanência do mesmo esquema encontrado pela autora. 15 Ao povo gaúcho é atribuída a qualidade da valentia, típica do herói regionalista. Entretanto, em certo momento do poema de Prates, o povo gaúcho é cantado como tendo se convertido em “boi de canga” pelo regime de Borges de Medeiros, perdendo o atributo de herói e assumindo o atributo do anti-herói, tornando-se quase como o “herói degradado” que Ligia Chiappini (1978, p. 78) caracteriza: um indivíduo que foi heróico, mas, em decorrência principalmente de circunstâncias do meio, perde os atributos do herói. 14

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/ Um gaúcho de respeito / Com Brasil no sobrenome [Assis Brasil] / Que tendo a Pátria no nome / Sentia-a também no peito” (PRATES, 1927, p. 60-61). Joaquim Francisco de Assis Brasil, oponente de Borges de Medeiros, era configurado não só como herói, em oposição a Borges, mas também como homem que afirmava sua nacionalidade brasileira, estratégia política importante aos rio-grandenses no período. Apesar desta inclinação patriótica, a construção de Assis Brasil como herói passa principalmente pela afirmação de suas qualidades gauchescas, as características típicas do homem do pampa: “Homem guapo como há poucos / Entre os nossos patriotas, / Que usa bombachas e botas / Mas fez figura na estranja / E agora tem uma granja / Lá pras bandas de Pelotas. / Este, sim, é que podia / Transformar aquela estância / Sem relho nem arrogância, / Só com capricho e com zelo / Nalguma granja modelo. / Assim pensei desde a infância” (PRATES, 1927, p. 61). Contrapondo-se a essas características atribuídas a Assis Brasil, Borges de Medeiros era narrado como “um guasca16 que nunca soube / o que foi vestir bombacha” (PRATES, 1927, p. 26), retirando de Borges as características que marcariam sua identidade como gaúcho e concluindo, assim, a oposição herói X anti-herói. Tal dualidade, instituída por meio dos versos de Homero Prates, não é aleatória. Ela expressa uma posição política clara, estabelecendo dois lados em confronto e propondo a adesão a um deles, bem como uma chave de leitura capaz de explicar a situação política do Rio Grande do Sul. Ao redigir seu poema satírico, Homero Prates tomou posição neste embate, posição bastante condizente com aquela manifestada pelos seus familiares que ainda residiam no Rio Grande do Sul: a família de Prates tinha raízes profundas entre os pecuaristas que fizeram oposição a Borges. Segundo Maria Antonieta Antonacci, a conjuntura entre 1921 e 1923 conformou o ápice da luta no interior da classe dominante gaúcha (ANTONACCI, 1979, p. 231). Após um período de euforia econômica para a pe-

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Guasca: denominação dada aos rio-grandenses pelos filhos de outros estados, pelo fato de que neste, em vista da predominância da indústria pastoril e da carência de outros materiais, haver sido generalizado o emprego do couro para as mais diversas finalidades. Tira, correia, corda de couro cru, isto é, não curtido. Doravante, os significados de termos regionais que informo em nota foram extraídos do mesmo dicionário (NUNES e NUNES, 2007).

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cuária do Rio Grande do Sul, proporcionado por ocasião da eclosão do primeiro conflito mundial, entre 1914 e 191817, sucedeu-se uma brusca paralisação econômica. Os produtores, então, recorreram ao governo estadual objetivando obter investimentos públicos que favorecessem seus negócios, como a redução de tarifas ferroviárias, elevação da taxa de importação, que dirimisse a concorrência platina, a redução de impostos, entre outros (ANTONACCI, 1979, p. 233). A rejeição de tais medidas pelo governo de Borges de Medeiros propiciou a eclosão da oposição explícita por parte das frações oligárquicas alijadas do poder, no interior das quais a família Menna Barreto se destacou compondo uma “dissidência republicana” – parte de uma mesma tradição dissidente da qual já havia feito parte Ramiro Barcelos (ANTONACCI, 1979, p. 236; 1981, p. 75). Tal fração republicana da oposição chegou a lançar um “manifesto dos estancieiros”, encabeçado por outro dos irmãos de Homero, João Raymundo da Silva Neto, em que esta categoria apoiava, ainda em 1922, antes da eclosão da Guerra Civil, a candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil contra Borges de Medeiros, procurando suplantá-lo nas urnas: Publicamos na respectiva seção o manifesto-apelo dos estancieiros gaúchos para que apoiem a candidatura Assis Brasil, oposta à candidatura Borges de Medeiros. É uma disputa que dará ao povo sul-rio-grandense, de tão belas tradições democráticas, ensejo para se pronunciar sobre a ação do governo que têm tido. O que convém assinalar nesse manifesto, além do valor político, é a forma lapidar em que vazou o primeiro dos seus signatários, o Dr. João Raimundo da Silva, uma das inteligências mais lúcidas do Brasil de hoje, irmão do nosso companheiro e crítico literário desta folha, Homero Prates. O manifesto é de castilhistas que ora divergem do Sr. Borges de Medeiros, resolvendo combater a sua reeleição. E não há dúvida que encontraram para lançar esse documento uma figura excepcionalmente brilhante (O Paiz, 29/ 10/1922, p. 4).

É possível, agora, compreender melhor algumas das posições trazidas por Prates em seu História de Dom Chimango. O apoio, circunstancial, à liderança de Assis Brasil contra o governo Borges se dava por parte de es-

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O Rio Grande do Sul tinha sua economia voltada, sobretudo, para o mercado interno, com a venda de carne para os demais estados da federação, de modo que a Primeira Guerra Mundial proporcionou a perda da concorrência que o estado sofria por parte de países como Uruguai e Argentina e o consequente incremento em sua economia.

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tancieiros autodenominados “castilhistas”, justificando a afirmação de que o narrador do “caso”, João Valério, seria “cria do coronel Prates”, conforme vimos. Não foi só por meio da literatura, porém, que Prates fez oposição a Borges. Valeu-se também do espaço que conseguiu no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro – obtido por meio das relações mais propriamente “literárias” que estabeleceu naquela cidade, já que era o responsável pela coluna “Notas literárias” – para defender a posição que era sua e de sua família: Tenhamos fé no futuro do Rio Grande do Sul. Cerremos fileiras em torno da figura de Assis Brasil, que por si só vale um programa. Está lançada a ideia nova do “Partido dos Fazendeiros”, únicos e legítimos senhores daquela terra heroica e lendária. Já a agitou em um vibrante e lapidar manifestoapelo aos estancieiros gaúchos – entre outras figuras de responsabilidade e inteligência – um dos mais nobres espíritos do meu tempo, João Raymundo da Silva Neto. [...] Não confundamos esse movimento libertário do Rio Grande do Sul com as triviais agitações populares, sem significação, de todos os dias. Cerca-o alguma coisa de místico e de sagrado que lhe põe em torno um esplendor de auréola: a salvação, a liberdade, a saúde, a alegria do povo riograndense (O Paiz, 28/10/1922, p. 3).

Homero Prates, assumindo a posição dos pecuaristas, lança, inclusive, a ideia de constituição de um “Partido dos Fazendeiros”, tomando o cuidado de distanciar o movimento criado pelos estancieiros gaúchos das “triviais agitações populares” que ocorriam no mesmo período – lembremos da afirmação do movimento operário ao longo de toda a Primeira República e das marcantes greves gerais que se sucederam à Primeira Guerra Mundial, bem como da fundação do PCB, no mesmo ano em que os estancieiros também tentavam se organizar partidariamente. Homero Prates, assim, a despeito de sua adesão aos princípios de uma “arte pela arte” – considerada, por ele, “sagrada” e “universal” – não deixou de expressar, em versos, a opinião política que fazia jus ao lugar social que ocupava. Entretanto, valeu-se de outra orientação estética, distinta daquela da qual se utilizava para redigir seus poemas “artísticos”. Ao contrário de Olavo Bilac, não dividiu sua obra entre seus pseudônimos e seu nome verdadeiro, criando, assim, uma hierarquia interna à sua própria produção; mas, assinalando uma diferença evidente, optou por um estilo marcadamente regionalista quando tratou de oficializar, por assim dizer, uma certa leitura da Guerra Civil de 1923 – aquela partilhada por sua família e por parte da fração oligárquica dissidente do Rio Grande do Sul. Tal estilo, considerado pelo próprio autor como “inferior”, hierarquicamente

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abaixo da “verdadeira” arte, não era pensado por Prates como digno de figurar entre as obras de “valor universal”. Constituía-se, assim, numa estratégia de ação política direta, que visava conformar um ponto de vista claro sobre o passado de lutas recente do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, um poema nem sempre é apenas um poema; ele pode ser um modo estratégico de expressar uma opinião, de criar sentimentos, de alimentar adesões ou rivalidades. Em última instância, o episódio protagonizado por Homero Prates que aqui analisei nos adverte de que nem toda literatura, enquanto obra de caráter ficcional, era pensada por seus produtores como obra de arte, e não pode ser estudada exclusivamente enquanto tal; é preciso, portanto, devolver às obras os sentidos que tiveram no contexto de sua produção, por meio da compreensão de suas vinculações sociais ocultas, de suas redes de interlocução e do espaço dos possíveis aberto aos seus autores. Por outro lado, o episódio estudado também nos chama a atenção para as formas de adesão a lógicas construídas por grupos sociais às vezes muito diversos. Se Homero Prates assumiu integralmente os modos de escrita – e os valores – de seu grupo de amigos, produzindo uma literatura que se queria alheia aos eventos sociais mais imediatos e que almejava o universal, sem render-se à narrativa de eventos cotidianos, ou utilizar-se de um linguajar mais próximo do coloquial, isso não significa, necessariamente, que não aderia a outros conjuntos de valores, por vezes contraditórios em relação a estes. Homero Prates nos lembra que os indivíduos não se pautam por um único sistema de valores, ou por um simples conjunto de regras partilhadas por um grupo social. Como integrante de mais de uma “comunidade” – ele era parte de uma família de pecuaristas, com uma posição específica no jogo político local e nacional, mas também era um escritor ligado a um certo grupo de autores e a uma certa tradição estética, por exemplo –, Homero Prates transitava por suas redes e “jogava” com as variadas posições e identidades que ocupava no espaço social. E jogava, também, com as possibilidades de escrita que sua época lhe legava. Cada modo de escrita, contudo, ocupava, no conjunto de sua obra, uma certa posição mais ou menos coerente com as posições similares que ele próprio ocupava socialmente. Quando pretendia apresentar-se como “artista”, recorria à escrita que considerava mais “universal” e, portanto, superior enquanto arte; quando, ao contrário, pretendia manifestar uma opinião ou tornar um dado ponto de vista “oficial”, comunicando-se com um público mais amplo e

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transmitindo a ele uma ideia de forma mais objetiva, recorria a outro modo de escrita, “inferior” na sua escala da arte, mas com possibilidades mais pragmáticas de interlocução. Cada modo de escrita atendia a um público diferente; assim como o autor, sua obra tinha de ser capaz de transitar por diferentes grupos sociais.

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Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução1 Jefferson Teles Martins Este artigo visa analisar uma das mais importantes polêmicas que dividiram as opiniões e posições dentro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, a fim de revelar os mecanismos de coesão e afastamentos, arranjos, concessões e constrangimentos intelectuais envolvidos em tal disputa. Sem esquecer o teor ideológico das posições intelectuais assumidas, procurar-se-á destacar que esta luta era, também, por posições “objetivas” (sociais e simbólicas) na esfera intelectual. Como uma luta que, por vezes, assumia uma forma implacável e pessoal, implicava a mobilização do máximo de recursos (sociais e intelectuais) no aniquilamento da opinião divergente. As polêmicas e conflitos entre intelectuais permitem entrever certas regras que mediavam o embate, tal como nos “duelos” da “sociedade de corte”. O concurso entre os litigantes assumia caráter público, mobilizando opiniões a favor e contra um lado e outro através da imprensa. A abordagem deste artigo está norteada pela percepção da “polêmica” como parte do conjunto de expressões intelectuais encenadas socialmente e, em que pese o conteúdo que era propriamente objeto da disputa, ela enfeixava um conjunto de repertórios “cênicos” previsíveis ou esperados, dentro de certos limites (às vezes extrapolados). Em suma, a polêmica era um elemento atinente ao habitus intelectual da época. Em torno (ou dentro) das polêmicas podiam estar envolvidos atributos de engajamento ideológico, ou mesmo a propensão para a radicalização das opiniões, mas, principalmente, a polêmica fazia parte do jogo social que proporcionava visibilidade e notoriedade dentro do universo “acadêmico” restrito da época. Como em todo

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Conferência proferida na Sessão Ordinária do 93º aniversário do Instituto Histórico do Rio Grande do Sul, na sua sede, em 5 de agosto de 2013.

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“jogo”, alguns jogadores dominavam mais estas regras e as manejavam com maior destreza social, “encenavam” o jogo com naturalidade e, assim, conseguiam tirar o máximo proveito da disputa.

Um “duelo” entre historiadores Um dos maiores conflitos que ocorreu no interior do meio intelectual rio-grandense se passou na década de 1930, às vésperas do centenário farroupilha, e envolveu duas figuras de proa da historiografia gaúcha: de um lado, Alfredo Varella, diplomata e historiador, reconhecido e operoso na produção histórica rio-grandense desde o final do século XIX, membro correspondente do IHGRGS; e, de outro, Souza Docca, historiador e militar, que se destacou no início da década de 1920 com os seus escritos sobre a Guerra do Paraguai. O primeiro, expoente máximo das teses platinistas, defensor do separatismo dos farrapos e da influência platina na formação rio-grandense. O segundo, lusitanista inveterado, aguerrido defensor da ideologia federalista dos farrapos, ferrenho inimigo das teses “varellianas”, fundador e destacado membro e organizador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Muito embora os dois contendores não residissem no Rio Grande do Sul e boa parte da disputa tenha se dado através da imprensa do Rio de Janeiro, o que estava em jogo eram as posições intelectuais e simbólicas na esfera intelectual rio-grandense, que se relacionavam com os principais motes da historiografia sulina: platinismo e lusitanismo.2 Esta polêmica é importante porque sintetiza as lutas entre as duas principais vertentes ideológicas e historiográficas do Rio Grande do Sul, a partir de 1920, e, pelo grau de aprofundamento da divergência, revela os alinhamentos e tomadas de posição da elite intelectual gaúcha. Em 1933, Alfredo Varella lançou a “obra de tomo e peso” chamada A História da Grande Revolução, que o governo do Estado mandou editar, sob os auspícios do Instituto Histórico do Rio Grande do Sul. A dupla oficialização da obra provocou uma renhida reação dos historiadores membros do Instituto que não apenas não esposavam as ideias contidas na obra, mas 2

Ieda Gutfreind (1992) apontou duas matrizes ideológicas principais na historiografia rio-grandense: a matriz platina e a lusitana. Entretanto, esta mesma autora reconheceu a existência de outras clivagens e “divisão interna em nível de IHGRGS” (p. 108), entre elas, por exemplo, “a continuidade dos ressentimentos entre positivistas e católicos no interior do Instituto” (p. 114).

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eram seus inimigos declarados. Tratava-se da interpretação que Alfredo Varella fazia da Revolução Farroupilha realçando o seu caráter “seccionista” ou separatista, que desagradava a maior parte dos membros do IHGRGS. A chancela dupla de A Grande Revolução gerou constrangimentos aos historiadores gaúchos empenhados, desde 1920, em negar não apenas o caráter “seccionista” da Revolução Farroupilha, mas todas as teses que ressaltassem a identificação do Rio Grande com o Prata, para, em contraposição, assentar como matriz histórica legítima a tese do “federalismo” dos farrapos – como princípio de unidade – e a preponderância da influência lusitana na formação histórica do Rio Grande do Sul (GUTFREIND,1992; NEDEL, 1999). Naquele mesmo ano, Alfredo Varella esteve no Rio Grande do Sul em visita ao interventor federal, general Flores da Cunha, enquanto eclodiam as crises políticas do período, e recebeu deste a oferta de patrocínio para a edição da obra comemorativa ao centenário farrapo. Flores da Cunha havia recém criado um novo partido – Partido Republicano Libertador – constituído por dissidentes do Partido Libertador, do Partido Republicano Rio-Grandense e outros aliados que haviam rompido com a Frente Única Gaúcha (FUG) e apoiado Getúlio Vargas na Revolução Constitucionalista. No plano estadual, o PRL iniciou seus trabalhos sob forte oposição da FUG. No plano nacional, a efêmera aliança entre Vargas e Flores logo deu sinais de fraqueza e vieram à tona os conflitos entre ambos, relacionados a temas como a descentralização do poder e a autonomia dos estados. Segundo Alzira Abreu, “Flores da Cunha instruiu a bancada de seu partido para que defendesse a fórmula federativa, resistindo à centralização e ao aumento das tarifas, destinado a fortalecer a renda nacional às custas dos estados” (ABREU, p. 2551). A publicação da obra de Alfredo Varella apareceu como uma oportunidade de Flores da Cunha demonstrar as suas qualidades de “alto patriotismo” e, ao mesmo tempo, mobilizar ganhos políticos em torno da comemoração daquele que era considerado o maior evento da história gaúcha. Toda a comemoração do centenário recebeu amplo apoio e investimento do governo do Estado. Além disso, o conteúdo da obra de Alfredo Varella ia ao encontro da posição de Flores que, então, defendia a “fórmula federativa” como princípio de descentralização. Os originais da referida obra foram entregues ao presidente do Instituto Histórico, o desembargador Florêncio de Abreu, que, após leitura e

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revisão, não viu óbice à publicação, e passou a responsabilidade da impressão à Livraria do Globo. Entretanto, os demais membros só tomaram conhecimento do conteúdo propriamente dito de A História da Grande Revolução após o trabalho já estar pronto, na rua. Varella, hospedado no Grande Hotel Schimidt, em Porto Alegre, acompanhou pessoalmente, durante quase três meses, todo o processo de edição da obra, indo diariamente às oficinas da Livraria do Globo. Inicialmente, o secretário do Instituto – Dr. Eduardo Duarte – recebeu a notícia da publicação com grande expectativa. Em janeiro daquele ano, anunciou por carta ao amigo Souza Docca: “A publicação do Varela está autorizada (ou aprovada) pelo interventor”. E augurava: “Espero que seja um furo que o Instituto vai dar”.3 Em abril, a expectativa ainda era grande e bastante positiva: “O General Flores autorizou, como te disse, o financiamento da obra, no que teve um gesto de alto patriotismo. E o Instituto levou um tento”. Informava ao confrade e amigo Souza Docca que, então, “a obra do dr. Varella [...] está com o quinto volume da composição, o que quer dizer que os quatro primeiros estão prontos, impressos, faltando a página de errata, que estou ultimando”. Eduardo Duarte, a esta altura, expressava muita admiração pelo trabalho e pelo esforço pessoal de Alfredo Varella: “É um trabalho formidável, como tudo o que sai das mãos daquele homenzinho”.4 Em maio, Duarte prestava mais esclarecimentos a Souza Docca, agora, sobre a conclusão da publicação. Dizia: “A obra de Varela, (este segue para aí [Rio de Janeiro]) já está entregue ao Instituto”. O trabalho fora finalizado em “seis volumes, 3194 páginas de texto”. O secretário do Instituto mandou ofício ao interventor solicitando permissão para “oferecer uma coleção a cada um dos sócios efetivos do Instituto; e aos correspondentes com 50% de abatimento”. Justificava-se: “É que a impressão saiu salgada: 72:391$800!”. Ao ver o livro pronto, Eduardo Duarte, que conhecia de perto o difícil trabalho de edição, atestou: “É de fato, um homem que parece não conhecer o cansaço. O trabalho que teve nestes últimos três meses foi extenuante, apesar de fortemente auxiliado”. E pôde folgar com o resultado: “Quando vi tudo pronto, respirei a pleno pulmões. Deo Gratias!”.

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Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 9-1-1933. Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 19-4-1933.

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Até então, a visão simpática de Eduardo Duarte sobre Varella não havia esmaecido, e ele chegou a aconselhar Souza Docca a estreitar relações com o velho historiador: “Varela é um tipo gentil e te aprecia. Por que não te aproximas desse belo espírito? Faze-o, meu bom amigo, pois são momentos agradáveis que se passa em tão bela companhia”. Revelou a Docca: “Por mais de uma vez estiveste em foco em nossas palestras com Varela”. Mas repetiu, sempre diligente, ao amigo o juízo restritivo emitido por Varella sobre o historiador-coronel: “Esse moço tem muito talento e amor à pesquisa...”, dissera o velho historiador platinista, porém acrescentara: “mas, muito tem errado... fácil seria vencê-lo; não quero, entretanto, pois eu também errei muito. Há de reconhecer seus erros, um dia, e emendar-se-á”. Naquele ano, Eduardo Duarte foi para o Rio de Janeiro, com as diárias pessoais pagas pelo governo do Estado, com o fito de controlar as publicações de O Processo dos Farrapos, obra realizada e anotada por Aurélio Porto, feita a expensas do Arquivo Nacional. Tal motivo oportunizou que Duarte e D. Mimosa, sua esposa, ficassem na Capital Federal, de agosto a outubro. Portanto, neste período cessam as correspondências fiéis entre os confrades Duarte e Docca, pois puderam trocar impressões pessoalmente sobre a obra de Varella. Já em outubro, num tom bem distinto das impressões que Duarte alimentara sobre Varella, começou a polêmica através das páginas do Jornal do Comércio (Rio). Em 12 de outubro de 1933, Souza Docca fez o primeiro ataque a Varella classificando a obra A Grande Revolução de cheia de “inexatidões”, “divagações”, “embaraçadoras de uma boa leitura”, “máculas, em suma, que fazem dos seis tomos um intrincado cipoal”. O que seguiu foi o fogo cerrado de 18 artigos enviados por Alfredo Varella desde Lisboa, e publicados pelo mesmo jornal, em defesa de suas teses e, ao mesmo tempo, de ataque ao tenente-coronel Souza Docca. Antes disso, houve troca de correspondências entre os antagonistas. Em uma delas, Varella evoca princípios da justa cavalheiresca. Dizia Varella, chamando o adversário para a luta: “A grei a que pertencemos, cujas melhores tradições fixei com escrupuloso amor à verdade, observou em todo tempo fidalgas regras, nos choques pessoais. Cavalleria rusticana, mas lídima, pura cavalaria, invariavelmente”. Com alusão direta aos antigos duelos afirmava: “O gaúcho de boa lei, ao arrancar da cintura o instrumento de morte, para agredir, achava indigno de si valer-se da arma, contra um

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ser inerme. Antes de ajustar a mira, bradava, generoso, ao adversário: ‘Tire a sua pistola’”. Justificava essa reminiscência para advertir o tenente-coronel: “V. Exa. me sai a caminho quando me faltam agora todos os meios de defesa ou ataque”, alegando, assim, que estava em desvantagem para o embate, já que “dispõe-me o meu contendor de todas as minhas obras, para espiolhar o que lhe convenha, a fim de que logre melhor êxito a sua empreitada”. Por seu turno, dizia: “ao passo que me não posso aproveitar de nenhuma das suas já numerosas produções”. Por fim, “na esperança de que se queira medir comigo em boa liça”, solicitava ao oponente: “me mande, sem demora, os seus vários trabalhos; que infelizmente não se acham no mercado, razão por que o importuno”, ao passo que, também, se comprometia em arcar com todos os custos da remessa.5 Travada a pugna por carta, veio o contra-ataque público. De 29 de outubro de 1933 a 20 de maio de 1934, em 18 artigos, Varella empregou sua verve áspera e erudita para desafiar o tenente-coronel a apontar as falhas no seu trabalho: “Justifique, na arena, que não é um embusteiro farfalhoso, enumerando, repito, as minhas ‘inexatidões’ e ‘divagações’. O mais é chover no molhado ou escapar-se do rinhedeiro (sic), como galo maltrido (sic) e cacarejador.”6 No quinto artigo (e um dos mais longos), de 18 de fevereiro de 1934, Varella expôs o seu método de pesquisa histórica para contrastá-lo com o de Souza Docca, que, segundo ele, abordou o “mais complicado tema” dos domínios da historiografia sulina “com a superficialidade ou leviandade de um escolar novato nos Liceus”. Ele, ao revés, procedeu “conforme a lição dos veteranos”. Segundo Varella, ele observou os seguintes passos: a) fixação da “tradição oral”: percorrendo de “de Torres a Uruguaiana, do Rio Pardo a Santa Vitória”, cenário da Revolução Farrapa, e ouvindo “aos mais notados, como aos mais humildes, da grei heroica ainda sobrevivente”, dizia Varella: “excogitei, com uma pia de devoção, o que persistiu de inequívoco, nítido assaz, na memória de uns e outros”. b) o trabalho heurístico: consistindo na pesquisa em arquivos públicos e privados, entre os quais o Arquivo Público, a Biblioteca Nacional, “todos os papéis soltos” do Itamarati, as coleções oficiais de Montevidéu,

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Varella a Souza Docca, 5-10-1933. Jornal do Comércio, 31-12-1933.

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Lisboa, Sevilha, Bolonha e os “tombos privados” do Marquês do Lavradio, Condes da Migueira e de Tarouca; c) revisão bibliográfica – explicava Varella, “percorri, um a um, todos os [livros] de história que abraçam o campo da evolução austrina”, entre os quais o historiador incluiu os “descritivos de viagens”, e ainda acrescia: “refresquei minhas noções de uma sólida filosofia”. O trabalho final resultaria na obra em seis volumes, assim divididos: 1º) os antecedentes mais amplos, a “etiologia” ou “origens”, incluindo os “coeficientes morais, intelectivos” que teriam predisposto os habitantes da província sulina a “adotar o programa separatista”; 2º) as causas ocasionais que aceleraram a marcha revolucionária; 3º) a descrição ampla da Revolução; 4º) o papel da “natureza” como “moto que esteve a bipartir o Brasil”; 5º) o idealismo dos farrapos; 6º) a Revolução inserida no contexto platino No quinto volume da obra, Varella resume e defende de forma patente a ideia do separatismo político dentro do programa dos farroupilhas. Este é o ponto fundamental de divergência entre Souza Docca e Varella. Para este, a contradita suscitada “em duas escassas, magras, sofisticantes, desalinhavadas colunas do Jornal do Comércio” faziam de Souza Docca “um impagabilíssimo desfiador de novelas imperialistas, mais que sediças”.7 A abordagem da “metodologia” de pesquisa indica que estava em jogo não apenas o embate ideológico do lusitanismo e do platinismo, mas também os elementos simbólicos que distinguiam o fazer história e o ser historiador naquele momento. Portanto, a disputa que subjaz ao confronto das visões e teses sobre “republicanismo”, “federalismo” e “separatismo” dos farrapos é a luta pela definição de quem é o historiador mais autêntico, mais balizado, por conseguinte, mais “verdadeiro”. As acusações recíprocas de que um e outro historiador não procediam com ética ao abordar os temas históricos chamam a atenção para os aspectos simbólicos da disputa que dizem respeito à prática e representação do ofício do historiador, portanto à luta pela detenção dos atributos simbólicos que distinguem o “verdadeiro” historiador. Souza Docca acusava ao defensor da tese separatista de “pôr de parte o que desconvém” ao seu “pre-

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Jornal do Comércio, 18-02-1933.

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dileto argumento”, ao passo que Varella rebatia: “Vai ficar demonstrado à sociedade, com a máxima superabundância, que o tenente-coronel é quem se mostra useiro e vezeiro em ‘sonegações’”. No seu 15º artigo, Varella procurou expor publicamente a “improbidade” historiográfica de seu “detrator”. Docca havia destacado Marciano Ribeiro como preparador intelectual do movimento farroupilha em oposição à primazia do concurso de Livio Zambeccari, realçado por Varella. Em contrapartida, Alfredo Varella pediu ao seu oponente, em 31 de dezembro de 1933: “Faça o obséquio de trasladar na maneira mais ampla que lhe for possível, o que lhe consta de Marciano Ribeiro, como preparador intelectual do Movimento Farroupilha, destacando mormente quanto supere o seu concurso ao de Zambeccari”. Quatro meses depois, Varella queixou-se da falta de resposta: “Fugiu de responder: bem sabe por quê!”. E adiu a seguinte explicação pelo silêncio do rival: “Transparente eu deixaria, 1º que se serve de fazenda alheia; 2º que avança proposições descabeladas sem ter nem sombra de razão para justifica-las; 3º que ousa falar do que totalmente desconhece, por estudo próprio” (grifos meus). A acusação de citação indevida da fonte também se refere a outro personagem da Revolução Farroupilha, Pedro Vieira, em relação ao qual Varella teria feito nova interrogativa a respeito da fonte utilizada, mas que Docca “também se esquivou de responder, ciente por demais da lição a que se ia sujeitar”. Por fim, assim resumiu o caso de citação indevida: Se, vem a debate, exibiria eu prova de que cita com uma vergonhosa improbidade. Verbi gratia, à página 67, do “Brasil no Prata”, alude a Pedro Vieira, o herói americano que teve berço no Rio Grande. Tudo o que dele menciona foi tirado de “Revoluções Cisplatinas”, I, 108 [de Varella]. Mas como não lhe quadrava confessar onde fora aprender, como também lhe pareceu vantajoso inculcar-se autor do bom informe, estampa que se acha este no Arquivo de Almeida. Isto é, em arquivo que nunca viu e passou inteirinho à minha propriedade! (grifo no original).8

À medida que a polêmica avançava, o tom das investidas se tornava mais veemente e agressivo. Igualmente, iam-se formando grupos de solidariedade de ambos os lados. Em defesa de Varella acorreram, em menor

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Em O Solar Brasílico, obra publicada postumamente, Varella insiste na acusação: “Docca por demais sabe, quanto seus comparsas, quem ‘churrasqueia’ de contínuo a minha custa: sabem por demais quem pratica seguido, em minha ‘invernada’, o mais estranho abigeato!” (VARELLA, 1950, p. 60).

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número, intelectuais de sua geração e do centro do país, entre os quais destacou-se o historiador Basílio de Magalhães, que chegou a travar acirrada controvérsia com Souza Docca, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e, também, pelo Jornal do Comércio. Basílio de Magalhães proferiu no IHGB uma conferência sobre o tema da Revolução Farroupilha, discutindo o caráter do “idealismo farrapo”, se separatista ou não. Nela, Basílio de Magalhães sustentou que negar a existência da ideia separatista “seria o mesmo que negar a luz do sol”. Para ele, “foram os fatos supervenientes que levaram ao coração e ao cérebro dos responsáveis pela República de Piratini o arrependimento da separação”. Amparando-se em Alfredo Varella, Assis Brasil, Tristão de Alencar Araripe e Pandiá Calógeras, sustentou que as ideias separatistas “só haviam praticamente desaparecido em 1845”. Arrematou a tese esposada dizendo: Até 1843, pelo menos, se houve qualquer manifestação, individual ou coletiva, contra a separação do Rio Grande do Sul, entre os próprios “farrapos”, não passou ela de palavras, das quais destoavam todos os atos do governo e do Novo Estado, que além de haver decretado e executado o confisco dos bens dos súditos brasileiros, ali residentes, que não aderiram ao regime republicano (cfe. Araripe, loc. cit., 199-200), chegou a aceitar ou mesmo angariar a cooperação de estrangeiros, e, finalmente a entabular ou firmar pactos diplomáticos de natureza político-militar com os vizinhos do Uruguai e da Argentina.

Do lado de Souza Docca foi maior a solidariedade. A polêmica em questão ensejou a aproximação entre Luiz Felipe Castilhos de Goycochea e Souza Docca. Goycochea disse, por carta, que havia muito procurava estreitar as relações com Souza Docca, tendo “esse desejo acentuado ultimamente com a leitura dos seus lapidares estudos no JORNAL DO COMÉRCIO, em resposta a asserções dos drs. Alfredo Varella e Basílio de Magalhães”.9 Castilhos de Goycochea já tinha entrado em contato com o IHGRGS, através de Eduardo Duarte, e feito pedido veemente para que essa agremiação emitisse parecer público, desautorizando a tese separatista defendida por Varella em A História da Grande Revolução, uma vez que esta obra foi publicada sob os auspícios do IHGRGS. A ideia de escrever ao Instituto surgiu-lhe após ler artigo de Souza Docca, no Jornal do Comércio, rebatendo as afirmativas de Alfredo Varella.10 Solicitou ao secretário do 9 10

Castilhos de Goycochea a Souza Docca, 2 de dezembro de 1934. Revista do IHGRGS, IV trimestre, p. 267, 1934.

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Instituto e diretor do Arquivo Histórico do Museu do Estado, Eduardo Duarte, “encabeçar um movimento no seio do Instituto Histórico no sentido de desautorizar a tese defendida pelo dr. Varela”. Deste “movimento” resultou o parecer oficial do Instituto assinado pelos consócios Othelo Rosa e Darcy Azambuja, que, embora, reconhecendo o “indiscutível valor”11 da obra, concluiu: a) O “Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul”, patrocinando a “História da Grande Revolução”, do dr. Alfredo Varela, ateve-se exclusivamente ao mérito da obra, sem dar a sua solidariedade intelectual às ideias preferidas pelo autor; b) No tocante ao separatismo dos revolucionários rio-grandenses de 1835, em manifestações anteriores e inequívocas havia o Instituto afirmado o seu pensamento, contestando-o e negando-o, o que envolve também a recusa da influência platina no movimento farroupilha, nas condições e na amplitude com que a admite o conspícuo historiador, dr. Alfredo Varela (sic).

Esta mesma refrega aproximou, momentaneamente, Souza Docca e Walter Spalding, jovem professor e historiador, recém-ingressado nas fileiras do IHGRGS. Ambos já haviam divergido em outras searas do estudo histórico. Souza Docca empreendera o trabalho de “reabilitação histórica” de Bento Manoel12, mas, para Walter Spalding, o Brigadeiro sorocabano continuava a ter um papel pouco louvável entre os “heróis” farrapos. Em carta de 2 de fevereiro de 1934, Spalding responde a Docca sobre outra divergência de opinião histórica entre ambos. Trata-se da apreciação de um estudo de Spalding sobre a “influência das estâncias na formação do Rio Grande”. Assim resumiu Spalding a sua posição: “Origem espanhola do Rio Grande do Sul. Este é o ponto capital, digo melhor: o ponto de discordância completa entre os nossos modos de ver”. Para Spalding, naquele estudo, a “origem” do Rio Grande do Sul era espanhola, pois remontava à ocupação jesuítica (espanhóis), de 1626 até 1759, contudo, negava inteiramente o concurso da “influência” espanhola na formação rio-grandense: “Nego, e sempre negarei a influência espanhola no nosso Rio Grande” (grifo no original). E asseverava que “entre origem e influência há um abismo”.

Os autores do parecer reconheceram que seria praticada “injustiça notória” se negassem ao “extenso trabalho, copiosamente documentado”, “o lugar que inquestionavelmente lhe compete entre os estudos de história rio-grandense” (Revista do IHGRGS, IV trimestre, p. 271, 1934). 12 Os esforços de Docca no sentido da reabilitação de Bento Manoel vinham desde uma publicação no Almanaque da Globo, de 1923. 11

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Assim resumia a sua tese, que conciliava a ideia da presença primitiva dos jesuítas espanhóis e a negação de sua influência: Viviam os jesuítas somente entre os indígenas que se foram, na quase totalidade, para além Uruguai, depois de extinta a grande Ordem. A influência, portanto, era somente sobre os silvícolas e em nada atingiu a formação do Rio Grande propriamente dita, que, depois da entrada de João de Magalhães e Silva Pais, mais tarde, ficou puramente português.13

Spalding, portanto, estava numa posição delicada no limite entre as teses platinista e lusitanista; por isso, mereceu a “amável” redarguição do zeloso defensor lusitanista, a quem teve de prestar seus esclarecimentos. A posição de Spalding, que gerava certa dubiedade em seu discurso, expõe a dificuldade dos intelectuais rio-grandenses em conciliar a “opção” ideologizada e consciente da historiografia sulina pelo lusitanismo e o estudo empírico e social que situava o Rio Grande do Sul em um eixo históricogeográfico muito próximo ao Prata. A complexidade desta situação criava, por exemplo, “explicações” históricas pouco sólidas e, ao mesmo tempo, inaceitáveis a um lusitanista inveterado como Souza Docca. Após sua defesa, o jovem historiador porto-alegrense justificou ter-se detido num único e delicado ponto do “questionário” que Docca lhe endereçara: “Não respondi sua carta tópico por tópico porque, como disse no início desta, estou de acordo com a maioria de seus pontos de vista...”. O alinhamento contra Varella, única opção “possível” dentro do ambiente historiográfico gaúcho da época, apareceu em um dos parágrafos finais da missiva, em que Spalding emite enfático juízo condenatório, mais voltado contra a figura pessoal e as “intenções” de Alfredo Varella do que às suas teses, apontando que naquele cenário intelectual, de fraca institucionalidade, as posições intelectuais eram bastante influenciadas pelo critério pessoal: Recebi os seus trabalhos sobre a famigerada Historia do Dr. Varela, homem douto, não resta dúvida, mas massudo e parcial, e tão parcial que chega a ser falsário. O sr. ainda não disse tudo sobre a História da Grande Revolução, pois Varela afirma que toda a influência farrapa foi uruguaia e que Bento Gonçalves foi o que foi graças ao seu convívio com os caudilhos uruguaios!!! Aliás, Varela procura glórias para a Pátria de seus antepassados... de passado duvidoso (V. Remembranças)14 (grifo meu).

13 14

Walter Spalding a Souza Docca, Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1934. Walter Spalding a Souza Docca, Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1934.

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Pela missiva seguinte de Spalding a Docca observa-se que as divergências entre ambos quanto à avaliação da personalidade de Bento Manoel e sobre a questão da origem espanhola do Rio Grande permaneceram inalteradas. Escusando-se por “não poder concordar” com Docca sobre a questão de Bento Manoel, Spalding rogou ao “ilustre amigo”: “Espero, porém, que o sr. não me queira mal por isso e nem veja nessas minhas contraditas má vontade ou prevenção”.15 E ainda reiterou sua posição sobre a “origem espanhola” do Rio Grande. Por outro lado, a esta altura Spalding já havia entrado diretamente na “luta” pública contra Varella, depois da publicação do seu artigo intitulado “Separatismo e castelhanismo”, pelo Correio do Povo. Embora não tenha mencionado intencionalmente o nome de Varella, diz Spalding: “só para não lhe dar o prazer de ler o seu nome”, acrescenta que “para ver que era tudo sobre ele e o sr. Basílio de Magalhães faltaria, apenas, acrescentar a fotografia de ambos”.16 Assim pôde minimizar as divergências com Souza Docca: “Creio que toda nossa questão [da origem ou influência] é simplesmente de interpretação de palavras”, ao passo que realçou o que “realmente” importava e os aproximava: “mas, e graças a Deus, estamos de acordo em uma cousa: na negação da ‘vareliana’ influência espanhola Rio Grande. Isso é o essencial para nós, brasileiros e rio-grandenses.” E amenizou: “O resto são minúcias que nada prejudicam”.17 SoEm artigo do Correio do Povo, o professor Walter Spalding, utilizando uma carta do Barão de Caxias, procurou demonstrar que “o que norteou o guerreiro da espada de dois gumes” – uma alusão às repetidas trocas de lado de Bento Manoel entre legalistas e farroupilhas – “foi não só a sua desbragada ambição, mas também o orgulho e a vaidade”. Fazendo referência a Souza Docca e seu projeto de reabilitação de Bento Manoel, Spalding afirmou que o trabalho de Docca, “um dos nossos maiores historiógrafos, não definiu ainda ‘in totum’ a personalidade complexa de Bento Manoel Ribeiro” (Correio do Povo, 6 de julho de 1934, p. 3). 16 Walter Spalding, Porto Alegre, 4 de dezembro de 1934. Walter Spalding recebeu réplica ríspida e irônica em O Solar Brasílico, de Alfredo Varella, como no trecho a seguir, em que o autor, referindo-se a Docca e Spalding, diz: “um de seus devotos, Walter Spalding, “spirito gentile”, num requinte de benevolência, que Lucifer (sic) invejaria, indagou mui dulçoroso (sic), não há muito, na imprensa diária, se de fato possuo os documentos que cito” (VARELLA, 1950, p. 57). 17 A relação entre Souza Docca e Walter Spalding esteve marcada pelas constantes divergências ao longo dos anos 1930 e 1940. A assimetria também esteve presente nesta relação. De um lado, o historiador estabelecido e reconhecido nacionalmente como referência em estudos riograndenses e das questões do Prata. De outro, o jovem professor e historiador, residente na capital gaúcha, que, embora discordasse e contendesse com o “mestre”, recebia lições e questionamentos particulares com o fim de ser instruído, mais do que abatido. Os “manuais de história” que Spalding recebia em forma de cartas de Docca serviam para ser “ensinado por meio delas”. Entretanto, Spalding muitas vezes mostrou-se refratário aos ensinos do amigo: “sempre há um ‘mas’ a atrapalhar as cousas”. Aos questionamentos de Docca, nem sempre 15

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bre estas “minúcias”, Spalding e Docca continuaram a discutir, por cartas, até que arrefeceram as forças e os argumentos do jovem historiador, que veio a resignar e pedir que o debate fosse encerrado, assim justificando-se: [...] a questão da “origem” do Rio Grande. Vejo que, querendo ser mais explícito, fui ainda mais infeliz, jogando o assunto no terreno da geologia... Francamente: estou convencido de que me não sei exprimir, de que não sei mais escrever. Culpa, talvez, de meu bestunto demasiado cheio de tanta cousa divergente e antagônica que, no fim, querendo eu dizer uma cousa, digo outra. Situação perigosa. Quanto ao que me diz sobre a nossa amigável e, para mim, preciosa contenda, tem toda a razão: foi, realmente, eu quem, indiretamente, a provocou e, por isso, foi que, também, solicitei-lhe deixá-la no pé que ficou.18

Esta “pequena” contenda entre Docca e Spalding, sem que chegassem a consenso, mostra as contradições internas do grupo lusitanista e o quão frágil era o arranjo intelectual em torno do dogma historiográfico por eles defendido. Entretanto, podiam ser vistos de fora como um grupo coeso. A despeito da confissão de fé e da postura iconoclasta de Spalding, cerrando fila ao lado do historiador-coronel, permaneceriam inúmeros pontos de divergência e irreconciabilidades no discurso historiográfico de ambos, ao longo de vários anos. Por outro lado, os ânimos de Souza Docca e Alfredo Varella não arrefeceram, e a controvérsia suscitada em 1933 estendeu-se, e agravou-se, pelos anos seguintes, chegando até o centenário da Revolução Farroupilha, quando saiu do terreno das ideias e das páginas dos jornais para assumir lances mais imprevistos e menos prováveis. Em 1934, Alfredo Varella fez publicar um livro, chamado Res Avita, que sintetizava as teses contidas na História da Grande Revolução e dava resposta às críticas de seu arquirrival Souza Docca. Quando chegou o ano de 1935, Varella pretendeu que o seu Res Avita fosse apresentado na Exposição Farroupilha, no mês de setembro,

Spalding conseguia responder satisfatoriamente. Às vezes, Spalding justificava-se de forma indulgente consigo mesmo, citando “erros” de outros historiadores para atenuar os seus próprios, pois, dizia, “quem erra, erra em boa companhia”. Ou, mesmo admitindo o erro, não deixava de minimizá-los: “basta um pequeno cochilo para se cair em erros”. Mas aceitava a reprimenda, em alguns casos: “[...] fico satisfeitíssimo quando me corrigem, estando eu em erro, e especialmente quando a correção parte de um mestre como Souza Docca”. Já em outras situações, quando não voltava atrás em seus pontos de vista, atribuía as divergências à “questão, não raro, de palavras ou interpretação”. 18 Walter Spalding a Souza Docca, 4 de dezembro de 1934.

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em Porto Alegre. Entretanto, segundo ficou registrado por Varella em O Solar Brasílico, as cópias remetidas do centro do país para Porto Alegre teriam sido escondidas para que não fossem exibidas na Exposição. Os responsáveis pelo suposto sumiço das cópias, de acordo com Varella, foram alguns membros do próprio Instituto Histórico, interessados em ocultar os trabalhos do historiador dissidente. Assim resumiu a ação da qual teria sido vítima, em carta a Darcy Azambuja19: Como Res Avita representava e representa uma sincera oblação em pátrios altares, no recente jubileu setembrino, expedi a tempo um caixote direito ao sul, com um centenar de tomos para venda e mais oito para oferta gratuita; acompanhando os mesmos um rol de instruções e um modelo para anúncios. Pois nem estes feitos, nem os livros postos em mostruário, na fase da grande concorrência à exposição de nossa magna Centúria. Apertado, cerradíssimo, intransponível cordão profilático, em volta de minhas irreverentes “heterodoxias”! Quem o responsável, Exmo., pela nova interdição? É jurista e de nomeada. [...] O traiçoeiro golpe me foi vibrado, é mais que evidente, por quem imaginou obter com ele subterrâneas, inconfessáveis, quanto miserandas, torpes vantagens, já para o agaloado chefe dessa camorra literária, já para seus comparsas, na indecente, iníqua societas sceleris! Tinha eu notícia de que pessoa qualificada, no seio do Instituto, vivia a inquirir, no estabelecimento supra, se já chegada ou não, a obra em anúncios, do paladino incorrupto da verdade. Tanto perguntou, que alfim (sic) se lhe deu conta de que estava intramuros a malsinada publicação. Reativou-se a negra conjura. Seus principais galopins saíram a campo, determinadíssimos a impedir que corresse, ao menos enquanto a frequência de visitantes a Porto Alegre desse aso a maior procura. [...] pois bem, que havia de cavilar o grupo dos maffiosi preditos, egrégio conterrâneo e confrade? Subtraíram-nos de onde eu os coloquei em pessoa, declarando-se aos interessados, que reclamavam o que lhes pertencia, por dádiva minha; declarando-se com bronzea (sic) face, que tais volumes INEXISTIAM na fazenda expedida, também recebida. INEXISTIAM... e por último foram entregues nas últimas semanas de dezembro, quando era de esperar que o fossem pelo meio de setembro – o mês consagrado à celebração do 2º jubileu farrapo!!! (VARELLA, 1950, p. 55, 56).

Este episódio traz à baila, dentro dos conflitos intelectuais, a utilização do boicote como estratégia para silenciar inimigos ou negar-lhes visibi19

Esta carta foi escrita para justificar a razão dos temores de Varella de ser vítima de complô, pois, como queria receber o aval de que a doação dos arquivos históricos particulares (dos quais era proprietário) ao Arquivo Histórico do RS teria destino apropriado, ele escreveu a Darcy Azambuja, que na época era presidente do secretariado do Estado, para obter as garantias do bom destino da doação.

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lidade e reconhecimento. Varella não seria o único a queixar-se de ter sido vítima de tal expediente no meio intelectual rio-grandense. Poucos anos depois, em 1940, era Walter Spalding que se queixaria a Souza Docca de ser alvo de “boicotagem”. Por ocasião da publicação de seu livro A invasão paraguaia, Spalding solicitou a Docca que este falasse com o ministro da Guerra para que apoiasse a sua “modesta contribuição às glórias de nosso Exército” recomendando-o aos oficiais e adquirindo alguns exemplares para as bibliotecas militares do Rio de Janeiro. O apelo ao influente amigo militar residente fora da paróquia rio-grandense justificava-se, porque “nesta nossa Porto Alegre a ‘boicotagem’ é um fato. Quem não pertence à panelinha, quem não convive com a turma do elogio mútuo – nada conseguirá”. E complementava a denúncia: “Meus livros nunca são expostos: escondem-nos” (grifos meus). Spalding percebia a “prevenção” contra ele pelo “verdadeiro desastre de livraria que foi meu livro anterior ‘A Revolução Farroupilha’”, ao passo que “no Centro e no Norte, ao contrário: foi bem recebido”.20 Esta queixa de Spalding lembra muito a denúncia de Varella de que teria sofrido boicote cinco anos antes. Outro fator importante a ser destacado neste episódio é a visibilidade que toda a discussão em torno das teses defendidas por Varella e Docca teve no centro do país, de sorte que a maior parte do debate ocorreu no Rio de Janeiro e não no Rio Grande do Sul.21 Entre os motivos que podem explicar esta centralização do debate, além do fato de que um dos principais antagonistas morava no Rio de Janeiro, está a disputa pela descrição de uma “história legítima” e, também, pela afirmação de quem era o “porta-voz legítimo” da história do Rio Grande do Sul. Portanto, era um debate voltado, em parte, aos historiadores e intelectuais do centro do país, e tinha como móvel os atributos simbólicos que definiam quem era o “verdadeiro” historiador, consequentemente, aquele que produzia a “verdadeira” história.22 Assim, não

Walter Spalding a Souza Docca, 16 de agosto de 1940. Com a aproximação do centenário farroupilha, a imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo publicou diversos artigos de intelectuais e historiadores que retomaram a discussão das teses separatistas e federalistas da Revolução Farroupilha, destacando os pontos de vista de Docca e Varella, entre os quais Roberto Piragibe da Fonseca (pelo Jornal da Manhã) e Plínio Barreto (Estado de S. Paulo). 22 Souza Docca inaugurou, em setembro de 1932, uma série de conferências no IHGB, proferidas sempre no mesmo mês, até 1935, evidentemente, destacando o caráter republicano e federalista da Revolução de 1835. 20 21

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foi difícil a disputa extrapolar os limites da discussão histórica e rumar para o âmbito pessoal. Vale, também, ressaltar que a disputa envolveu, ao mesmo tempo, aspectos geracionais e ideológicos, que ajudam a explicar o desequilíbrio na correlação de forças que permitiu aos contendores dispor da mobilização de diferentes e desiguais recursos sociais a seu favor. Alfredo Varella representava a “velha geração” intelectual rio-grandense, que defendia a “ultrapassada” autonomia do governo estadual frente ao poder central, em voga nos primeiros anos do regime castilhista-borgista. Souza Docca, em contrapartida, identificava-se com o momento histórico coetâneo, de aproximação entre os estados e o poder central, acentuado desde a subida de Getúlio Vargas ao poder, em 1930. Esta condição favoreceu Souza Docca, que contou com a adesão de historiadores e intelectuais do centro do país e de Porto Alegre. Implícita está aí, também, a oposição do curso das trajetórias sociais dos intelectuais envolvidos. Varella vinha numa curva social descendente, enquanto que a trajetória social de Souza Docca estava em franca ascensão. Varella defendia uma ordem política ultrapassada e refratária à vigente no plano nacional. Varella, em carta pessoal a Osvaldo Aranha – depois publicada na íntegra na imprensa –, fez críticas claras ao governo instaurado em 1930, e à “Junta primitiva” e à tendência “a cercear ainda mais a nossa já minguadíssima descentralização”, e deixou clara a sua defesa do “programa federativo”, pelo qual classificava aquela tendência de “DISPENSÁVEL, PERIGOSA, UMA ENÉRGICA REGÊNCIA NO CENTRO DO PAÍS”.23 Havia caído no ostracismo relativo e perdido a posição privilegiada de estreita relação (política) com o governo rio-grandense de que havia gozado no período de afirmação do castilhismo, da qual auferiu ganhos políticos e econômicos.24 Entretanto, teve a oportunidade de lançar a sua nova obra sob o patrocínio do governo do Estado pela afinidade ideológica com o interventor federal no Rio Grande do Sul, que, isolado, naquele momento, defendia a “fórmula federativa” e fazia resistência à centralização do governo federal. A circulação social em sentido descendente de Varella o levou, no final da carreira, à estratégia de investimento simbólico na esfera intelectual, representada pelo lançamento de A História da Grande Revolução, sua obra-prima. Apesar da franca oposição e hostil

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Jornal do Comércio, 11-03-1934, p. 8.

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recepção da obra pelos pares rio-grandenses, pode-se dizer que a estratégia de Varella foi relativamente bem-sucedida, do ponto de vista simbólico, pois o trouxe de volta ao jogo e ele, apesar de tudo, teve o valor da obra reconhecido.25 Por outro lado, pela ótica dos recursos sociais auferidos, os maiores dividendos foram de Souza Docca, que contou com a adesão e solidariedade de muitos e jovens intelectuais e recebeu largo reconhecimento, não tanto pela qualidade das pesquisas realizadas, mas, sobretudo, por enunciar o que aqueles intelectuais queriam (ou deviam) dizer, só que para isso, não desfrutavam da posição institucional e da visibilidade de Souza Docca. No fundo, tratava-se do “único discurso aceitável” para aquela geração. Portanto, havia certa “inexorabilidade” na adesão ao discurso do qual Docca era porta-voz, e que foi sendo construído como único discurso legítimo, ao longo da década de 1920, com o concurso fundamental do próprio Docca.26

Fontes Fundo Eduardo Duarte – Arquivo do IHGRGS. Fundo Souza Docca – Arquivo do IHGRGS. Fundo Walter Spalding – Arquivo do IHGRGS.

Em janeiro de 1897, Alfredo Varella recebeu a concessão para explorar linhas telefônicas que ligam Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, Bagé e Jaguarão pelo período de 24 anos, mesmo ano da publicação de sua obra de estreia em História, Rio Grande do Sul: descrição física, histórica e econômica. Já nos anos 1930, Varella queixava-se, às vezes, de não receber o salário de diplomata aposentado. 25 Na enquete realizada por Carlos Reverbel, na década de 1950, entre 44 intelectuais rio-grandenses, A História da Grande Revolução, de Varella, ficou em 3º lugar entre as Obras Fundamentais da Bibliografia Rio-Grandense. Curiosamente, nenhum dos livros de Souza Docca figurou entre os 10 mais citados ou apreciados. 26 O posicionamento de Basílio de Magalhães ajuda a perceber o gradiente geracional envolvido no conflito. Magalhães, ao findar sua argumentação contra assertivas de Souza Docca a respeito do papel atribuído a Zambeccari na Revolução Farroupilha, marca sua posição ao lado de Alfredo Varella e Assis Brasil: “[...] prefiro continuar em erro com os velhos e eruditíssimos generais da história gaúcha a acertar com o meu jovem e gratuito crítico, totalmente desajudado de provas que liquidem e pacifiquem a controvérsia por ele criada” (Conferência proferida no IHGB, Jornal do Comércio, 4 de novembro de 1934). Em 1934, Basílio de Magalhães tinha 60 anos e Alfredo Varella, 70 anos. Do outro lado, Souza Docca contava 50 anos, Walter Spalding, 33 anos e Castilhos de Goycochea, 43. 24

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MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução

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