Dos óculos de grau ao Google Glass: a reconfiguração da visão a partir dos computadores vestíveis

June 28, 2017 | Autor: Aline Corso | Categoria: Media Archaeology, Wearable Computing
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Dos óculos de grau ao Google Glass: a reconfiguração da visão a partir dos computadores vestíveis1 CORSO, Aline (Mestranda em Processos e Manifestações Culturais)2 Universidade FEEVALE, Rio Grande do Sul Resumo: Os computadores vestíveis, enquanto dispositivos que, somados ao corpo do usuário, funcionam como uma espécie de segunda pele, ampliam e reconfiguram nossas capacidades motoras e/ou cognitivas. Partindo de uma reflexão sobre o conceito de computadores vestíveis, buscamos compreender quais são as principais propriedades e quais os elementos necessários para o seu funcionamento, a fim de poder distingui-los de outros dispositivos. Frente a isso, pergunta-se: quais são os computadores vestíveis que reconfiguram a visão? Como se dá essa reconfiguração? O objetivo deste estudo, portanto, é investigar a reconfiguração da visão a partir da utilização de computadores vestíveis, observando o contexto social em que estão inseridos e suas características funcionais, sob a ótica da tecnologia. Para tanto, a bibliografia consultada versa, principalmente, sobre os conceitos de computadores vestíveis, por meio de autores como Mann (2001) e Donati (2005). Metodologicamente, utiliza-se da arqueologia da mídia (RÜDIGER, 2011; FELINTO, 2011; SILVEIRA, 2011; ERNST, 2013) para viabilizar este estudo, uma vez que ela permite mapear o surgimento e evolução destes computadores vestíveis. Palavras-chave: mídia digital; computadores vestíveis; arqueologia da mídia.

1 Introdução Ackerman afirma, em A Natural History of the Senses, “que 70% dos receptores do sentido humano encontram-se nos olhos, tornando-os os grandes monopolistas dos sentidos” (ACKERMAN apud NETTO et. al., 2002, p. 4). A partir desta proposição inicial, podemos observar que alguns indivíduos já nascem com doenças oculares (ametropia, estrabismo3, cegueira parcial ou total, etc.), porém muitas enfermidades são adquiridas com o passar dos anos - os olhos são facilmente expostos a doenças, tais como catarata e glaucoma4. Diversas tecnologias foram criadas de modo de corrigir estas doenças e melhorar a vida dos indivíduos. Frente a isso, o objetivo deste trabalho é investigar a reconfiguração da visão a partir de computadores vestíveis, que são os dispositivos tecnológicos que estendem os sentidos, observando-se, principalmente, os 1

Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Digital, integrante do 10º Encontro Nacional de História da Mídia, 2015. 2 Mestranda em Processos e Manifestações Culturais (FEEVALE), bolsista Prosup/Capes e Bacharela em Tecnologias Digitais (UCS). Professora do técnico em Jogos Digitais (FTEC) e da especialização em Cultura Digital e Redes Sociais (UNISINOS). Contato: [email protected] 3 Ametropia é um erro de refração ocular (como miopia, hipermetropia e astigmatismo), enquanto o indivíduo portador de estrabismo (o popular “vesgo”) possui os olhos desalinhados. Ver http://goo.gl/15vNTb Acesso em 14 abr. 2015. 4 Catarata é a opacificação do cristalino e o glaucoma é o aumento da pressão nos olhos. Ver http://goo.gl/15vNTb Acesso em 14 abr. 2015.

contextos sociais em que estão inseridos e suas características tecnológicas. Logo, pergunta-se: quais são os computadores vestíveis que reconfiguram a visão? Como se dá essa reconfiguração? De forma a contribuir na construção da memória destes computadores vestíveis, utilizaremos a arqueologia da mídia como estratégia metodológica que permite mapear como estas diferentes tecnologias evoluíram com o passar dos anos. O trabalho está dividido da seguinte forma: em um primeiro momento, o conceito de computadores vestíveis será apresentado, para, em um segundo momento, discutir-se questões ligadas à arqueologia da mídia. O passo seguinte envolve a apresentação de computadores vestíveis cuja função é ampliar e reconfigurar o sentido da visão. Por fim, serão traçadas algumas considerações finais e perspectivas futuras. 2 Computadores Vestíveis Para uma melhor definição do termo computadores vestíveis5, retomam-se, inicialmente, as reflexões feitas por Luisa Paraguai Donati6. Conceitualmente, sob a ótica da autora (2005), os computadores vestíveis são um tipo de computador cujas características básicas são: estar adicionado ao corpo do usuário, permitindo o acesso a informações de forma simples, enquanto este realiza suas atividades cotidianas, além de auxiliar em atividades motoras e/ou cognitivas. De forma mais completa, Donati (2004) propõe: O que é um computador “vestível”? Ele deve estar incorporado ao espaço pessoal do wearer – usuário, potencializando um uso mais integrado, sem limitar os movimentos corporais ou impedir a mobilidade. Está sempre ligado e acessível com uma performance computacional que permite auxiliar o usuário em atividades motoras e/ou cognitivas, sem, no entanto, ser considerado como uma simples ferramenta. O que diferencia um computador “vestível” de outros dispositivos móveis, como palmtop, pager ou celular, é a possibilidade de apreender informações, tanto do usuário como do ambiente, tornando seu funcionamento mais interativo. Isso se deve à existência de sensores no sistema que podem, por exemplo, medir a posição do wearer, seu deslocamento, ou sinais vitais, reconhecer a presença de objetos/pessoas em torno e, também, as condições do ambiente como temperatura e luminosidade. Esses sinais podem ser 5

O termo computadores vestíveis pode ter como sinônimos wearable computers ou wearcomp e, para Leonard J. Bass, pesquisador da Carnegie Mellon University, personal information processing system e personal information architecture podem ser alternativas (DONATI, 2005, p. 23). 6 Em 2005 Luisa defendeu, na Unicamp, a tese “O computador como veste-interface: (re) configurando os espaços de atuação”.

constantemente obtidos, independentemente da requisição do usuário, e, a partir disso, conforme a programação, provocar outras ações. Essa constante disponibilidade e integração do dispositivo vêm, assim, propor novas conexões, uma outra forma de sinergia entre o homem e o computador, que potencialmente pode estender e projetar a capacidade do usuário de interagir e atuar no espaço (DONATI, 2004, p. 94, grifo nosso).

Bass propõe cinco características para diferenciar um computador vestível de outros dispositivos7: Deve ser usado enquanto o usuário está em movimento; deve ser usado enquanto uma ou ambas as mãos estão livres, ou ocupadas com outras atividades; existe dentro do envelope corpóreo do usuário, isto é, não deve meramente estar atachado ao corpo, mas tornar-se uma parte integrante do vestuário do usuário; deve permitir ao usuário manter controle; deve exibir constância, isto é, podendo ser constantemente avaliável. (BASS apud DONATI, 2005, p. 28, grifo nosso)

Já para Steve Mann, pesquisador da Universidade de Toronto e considerado o pai da computação vestível (MANN, 2005, p. 4) e o primeiro ciborgue8 do mundo, os computadores vestíveis não são gadgets9 que apenas anexamos ao nosso corpo (como um Ipod ou fone de ouvido), mas sim equipamentos que visam ampliar as nossas capacidades humanas (corporais e mentais), funcionando como uma espécie de segunda pele10 (MANN, 2001, p. 11). Com o objetivo de ampliar-se a proposta de Bass, construiu-se um quadro a fim de se apresentar as principais propriedades e atributos de um computador vestível (Quadro 1):

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Estes podem ser, por exemplo, dispositivos móveis, como smartphones, ou gadgets de vestir. O termo ciborgue (ou cyborg) deriva da ligação das palavras inglesas cybernetic organism, ou seja, organismo cibernético, e foi trazido pela primeira vez em 1960 por Arthur Clark e Manfred Clynes no artigo Cyborgs and Space. O ciborgue, surgido na literatura de ficção científica, é um híbrido marcado pelos dualismos natural X artificial, animal X máquina, humano X inumano. 9 Geringonça ou dispositivo tecnológico portátil, como mp3 players e celulares. Possuem forte função social de status. Ver http://goo.gl/dIVXYi Acesso em 2 abr. 2015. 10 Mann (2001) é claramente seguidor dos princípios de McLuhan, que afirma: “o vestuário, como extensão da nossa pele, pode ser visto como um mecanismo de controle térmico e como meio de definição do ser social (…) a roupa é uma extensão mais direta da superfície externa de nosso corpo” (MCLUHAN, 2007, p. 140). 8

Quadro 1: Principais propriedades de um computador vestível

Constância

Ampliação

Mediação

Não restritivo para o usuário Não monopolizar a atenção do usuário

Perceptível pelo usuário Controlável pelo usuário Monitoração do ambiente Comunicativo para outros Pessoal, integrando a relação homem/máquina. Ciborguização.

Modos operacionais Trabalha continuamente e está “sempre pronto” para interagir com o usuário, diferente de laptops e smartphones, que precisam ser repetidamente ligados e desligados. O fluxo de sinais do usuário para o computador vestível - e vice-versa - está continuamente ocorrendo. Tradicionais paradigmas da computação baseiam-se na ideia de que o usuário exerce apenas uma atividade central e única. Computadores vestíveis realizam várias atividades simultaneamente e assumem que o usuário esteja realizando outras atividades, não necessariamente computacionais. Ampliam as atividades intelectuais e sensórias do usuário. Encapsula o usuário em diferentes níveis, como nos seguintes aspectos: a) Solidão: funciona como uma espécie de filtro de informações, bloqueando materiais e informações indesejadas, tais como publicidade ofensiva, e permite alterar, de maneira modesta, a percepção da realidade; b) Privacidade: permite bloquear ou modificar as informações que entram e saem do nosso espaço de encapsulamento e serve, muitas vezes, de intermediário para interagir com sistemas não confiáveis. A mediação cria filtros para bloquear ou modificar informações ou acessos, onde são permitidas - ou não experiências situações, compartilhamentos e conteúdos. Atributos É móvel, itinerante. Não restringe o usuário, que pode exercer outras atividades simultaneamente. Considera a computação uma atividade secundária e assim o usuário não tem a sua atenção concentrada em um único contexto como acontece, por exemplo, com os jogos e a realidade virtual. A capacidade sensória dos usuários estaria assim idealmente sendo ampliada/projetada, mas necessariamente transformada. Constantemente ao alcance do usuário. A qualquer momento o usuário pode controlar o dispositivo e requisitar funções, mesmo durante processos programados a serem automáticos. Ambientalmente consciente, multimodal e multissensorial como resultado, dá ao usuário maior consciência situacional. Pode ser usado como meio de comunicação entre as pessoas. O conceito de prótese coloca o computador vestível como extensão do corpo e mente do usuário.

Fonte: Adaptado de Mann (2001, p. 32-34) e Donati (2005, p. 33-34).

Pode-se dizer que, tecnicamente, um sistema vestível possui geralmente os seguintes elementos (Quadro 2): Quadro 2: Elementos necessários para o funcionamento de um computador vestível

Elementos Dispositivo de entrada de dados (no mínimo 1) Um microprocessador

Dispositivo de saída de dados (no mínimo 1)

Uma fonte (baterias)

Funcionalidade Para controle de funções do sistema – como, por exemplo, alguma espécie de teclado ou sensores. Responsável pelo gerenciamento da entrada de dados; tipicamente uma placa – com controladores ou não, cujo tamanho dependerá das necessidades e características de processamento; Geralmente uma tela visível e constante posicionada na frente dos olhos do usuário. A existência da tela permite ao computador vestível diferenciar-se de um palmtop ou pager, e garante a possibilidade de recebimento de informações visuais; tratando-se de um sistema multisensório a saída de dados pode ser também sonora, luminosa, tátil, produzir movimento, etc. Para o processador e possivelmente também para os dispositivos de entrada e saída. Considera-se a autonomia em energia o maior problema oriundo da mobilidade deste dispositivo; o dimensionamento desta capacidade está diretamente relacionado com a carga computacional e as propriedades dos dispositivos de entrada e saída de dados.

Fonte: DONATI (2005, p. 29).

Após essa definição técnica de computadores vestíveis, partiremos para a abordagem de arqueologia da mídia como eixo metodológico para viabilizar este artigo que visa investigar a reconfiguração da visão a partir desse tipo de tecnologia. 3 Arqueologia da Mídia Conforme Rüdiger (2011), é comum os estudos de mídia serem ofuscados pelas novidades e o resultado é “uma cegueira para o fato de que um processo histórico precede e ajuda a entender o seu aparecimento, tanto quanto a dinâmica de seus fenômenos”: O novo tem um valor intrínseco nesse meio profissional e intelectual (...) Os estudos arqueológicos evitam o historicismo puro e simples, que nega a criação inovadora, mas também o culto do modismo de última hora, que desconhece o lastro do presente dentro do passado. A contribuição que nos fornecem está, em resumo, na lembrança do fato de que as formas técnicas e culturais, incluindo aí as da

mídia, não costumam falecer, mas, uma vez criadas, são antes reelaboradas em novas circunstâncias, ainda que por vezes possam sofrer uma longa hibernação. O helicóptero foi desenhado por Leonardo da Vinci para se tornar realidade no século XX. Serviços que hoje nos presta a internet são derivados de experimentos noticiosos com a telefonia no começo do século XX (RÜDIGER, 2011, p. 12, grifo nosso).

Felinto corrobora a proposta de Rüdiger, ao afirmar que a importância da arqueologia da mídia11, é justamente a “necessidade de olharmos mais para o passado, de modo a entender melhor o presente” (FELINTO, 2011, p. 6). Frisamos que, embora a arqueologia da mídia não possua métodos definidos de pesquisa, é justamente a sua indefinição que permite flexibilidade e abrangência (FELINTO, 2011, p. 5). O que importa, na arqueologia da mídia, é compreender melhor a composição histórica dos fenômenos, em especial nos estudos em cibercultura. A arqueologia da mídia surge como uma forma de revisitar as culturas de mídia em uma perspectiva histórica. Triangularizando história, tempo e arquivo, o passado pode ser redescoberto e certas tecnologias, consideradas obsoletas e descontinuadas, podem ser retomadas e aprimoradas. Silveira afirma que a arqueologia da mídia também permite “pensar mídia de uma forma geral, do ponto de vista do potencial tecnológico que, às vezes, não se consumou”: (A arqueologia da mídia) é uma vertente de trabalho, um nicho de estudos, digamos assim, no campo da comunicação, que vem procurando discutir a técnica por um viés histórico, da história da cultura. Não dá para dizer ainda que seja uma teoria acabada, já bem construída. Creio que seja um tipo de abordagem nova para a questão da técnica, que tenta pensar um desenvolvimento tecnológico que não aconteceu. A arqueologia da mídia indaga: onde poderíamos estar hoje caso os desdobramentos da mídia e suas linguagens tivessem adotado outro rumo? (...) Trata-se de uma perspectiva de trabalho que me parece uma novidade (...) Além disso, não tem muito pesquisador que trabalhe com esse assunto e esses estudos ainda estão começando a aparecer no Brasil. Há poucos textos publicados aqui no país, traduzidos já para o português (SILVEIRA, 2011, p. 17, grifo nosso).

A partir das perspectivas apontadas pela arqueologia da mídia e a fim de examinar a trajetória de uma tecnologia e suas implicações com o contexto cultural nas 11

Inspirada na arqueologia do saber, de Foucault. Ver: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

quais estão inseridas, o próximo item pretende traçar uma breve arqueologia dos computadores vestíveis que reconfiguram o sentido da visão, partindo dos óculos de grau até o mais recente óculos digital inteligente, o Google Glass. Como bem observa Wolfgang Ernst, no livro Digital Memory and the Archieve (2013), embora a maioria das teorias atuais da arqueologia da mídia objetivam a formulação de contar histórias, o seu desempenho textual ainda adere ao modelo historiográfico da escrita de ordenação cronológica e narrativa dos acontecimentos. O mapeamento dos computadores que reconfiguram a visão, portanto, seguirá uma ordem cronológica. 4 Dos óculos de grau ao Google Glass: a (re)configuração da visão Esta seção do artigo levanta evidências empíricas em termos de tecnologias que reconfiguram o sentido da visão. Inicialmente apresentaremos os óculos de grau, primeiro registro de dispositivo que teve como objetivo estender o sentido da visão. Embora não possam ser considerados computadores vestíveis, os óculos abriram caminho para o surgimento desse tipo de tecnologia. Devido ao número limitado de páginas para a escrita deste artigo12, buscamos estudar quatro computadores vestíveis que reconfiguram a visão - assim, o mapeamento partirá do ano de 1977 cobrindo até os dias atuais. 4.1 Óculos de grau De acordo com Rocha (2015), armações posicionadas na altura dos olhos eram adorno e símbolo de distinção social em meados de 500 a.C. O surgimento de lentes para ampliar a visão, criadas a partir de um vidro curvado, somente foi possível graças ao aperfeiçoamento das leis fundamentais da ótica. Na Idade Média, especialmente dentro de mosteiros, “pedras preciosas como quartzo e berilo eram lapidadas e polidas a fim de produzir a chamada pedra-de-leitura, um tipo de lupa muito simples” (ROCHA, 2015, online). Em 1267, o monge Roger Bacon13, enviou carta ao papa Clemente IV sugerindo o uso de materiais transparentes para auxiliar a visão: Se examinarmos letras ou pequenos objetos por meio de uma lente de vidro, cristal ou qualquer outra matéria transparente colocada sobre as letras, se essa lente tiver uma forma ligeiramente esférica, se a face 12 13

Conforme regulamento do evento, o número máximo de páginas é 15. Popularmente conhecido como Doutor Admirável.

convexa estiver voltada para o lado do olho e o olho estiver diante do vazio, ver-se-ão então muito melhor as letras, que parecerão mais gordas (...) Este instrumento será extremamente útil aos velhos e às pessoas que têm a vista fraca, porque poderão ver as letras pequenas, se forem suficientemente ampliadas (BACON apud BASSALO, 2015, online).

Anos mais tarde, na Alemanha, óculos sem hastes começaram a se popularizar (Figura 1). Em 1441, surgem as primeiras lentes apropriadas às necessidades dos míopes e, em 1827, as para astigmatismo14 (ROCHA, 2015, online). Figura 1: Primeiro óculos com lentes

Fonte: Rocha (2015).

Embora não seja possível enquadrarmos os óculos de grau como computadores vestíveis, é importante observarmos estas primeiras tecnologias que buscavam estender a visão, compreendendo a influência que exerceram em dispositivos criados posteriormente. 4.2 O computador vestível de C.C. Collins e o Vibravest de Steve Mann Em 1977, C. C. Collins, do Smith-Kettlewell Institute of Visual Sciences, desenvolve um computador vestível para cegos (Figura 2): misto de computador, câmera e colete, “convertia as imagens recebidas em grades quadriculadas, incorporadas 14

“A miopia consiste em uma condição na qual os olhos são capazes de focar objetos que se encontram perto, mas não conseguem visualizar, com clareza, objetos situados mais distantes. Já o astigmatismo é uma deficiência visual provocada em pessoas que apresentam um formato irregular da córnea ou do cristalino, tal irregularidade gera no olho vários focos em diferentes eixos fazendo com que a pessoa tenha uma visão desfocada, distorcida e deformada dos objetos”. Ver http://goo.gl/4RwD3v Acesso em 2 abr. 2015.

na roupa do usuário, tornando-se, assim, passíveis de serem tocadas" (DONATI, 2005, p. 26). Assim o usuário, através de toques do dedos no colete, podia sentir o contorno da imagem apresentada. Figura 2: Computador vestível de C. C. Collins

Fonte: Acesso em: 15 abr. 2015.

Considerado o primeiro registro de uso de computadores vestíveis para a área da saúde, o projeto é pouco referenciado e foi rapidamente descontinuado15. Aparentemente, seu alto valor de mercado foi uma das causas aparentes. O computador vestível de C.C. Collins foi inspiração para Steve Mann desenvolver, nos anos 1980, o Vibravest (MANN, 2001, p. 58), computador vestível em formato de colete para ser usado sobre a pele, que vibra para indicar a aproximação de pessoas e objetos. Mann, no livro Digital Destiny and Human Possibility in the Age of the Wearable Computer (2001), relata a experiência de utilização do Vibravest: Eu fecho os olhos e caminho pelo corredor, confiante de que qualquer parede ou outro obstáculo é sentido como vibrações na veste. Isso é possível graças a um sistema de radar que estabelece um campo de ondas eletromagnéticas que acionam transdutores táteis ligados ao meu corpo. Se alguém está passando ao lado ou atrás de mim, eu posso senti-los "pressionando'' o meu corpo. Quanto mais perto eles ficam, mais forte eu sinto suas presenças contra o meu corpo. Esta tecnologia pode fornecer assistência para os deficientes visuais mas, além disso, descobri que, se eu fechar meus olhos, (o Vibravest) me poupa a carga cognitiva de processar toda a informação visual

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C. C. Collins fez um artigo referente a sua experiência com o computador vestível. Ver: Mobile Studies with a Tactile Imaging Device, C.C. Collins, L.A. Scadden, and A.B. Alden, Fourth Conference on Systems & Devices For The Disabled, June 1-3, 1977, Seatle WA.

existente e, assim, eu consigo pensar mais claramente16 (MANN, 2011, p. 88).

O Vibravest foi um dos primeiros experimentos de Mann, que continuou a pesquisar computadores vestíveis. O próximo item discorre sobre outra criação do cientista, o WearComp, e o Google Glass, produto do Google inspirado nos postulados de Mann. 4.3 Óculos inteligentes: WearComp e Google Glass O primeiro óculos inteligente foi criado há mais de trinta e cinco anos por Steve Mann, enquanto estudante do MIT17. Batizado como WearComp (Figura 3), o óculos possibilita a manipulação de conteúdos digitais através de comandos visuais, de voz, etc.18. A sua primeira versão, ainda sem conexão com a internet, realizava comandos simples e assemelhava-se a um grande monitor de televisão atachado a cabeça do usuário – Mann (2001, p. 24) define esta fase como “I am a Camera”. Figura 3: Evolução do WearComp

Fonte: Acesso em: 25 mar. 2015.

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Tradução nossa. Do original: "I would close my eyes and walk down the hallway, confident that any wall or other obstacle would be felt as warning vibrations on the appropriate side of the vest.This is accomplished by a radar system that establishes a far-field electromagnetic wave pattern whose output is used to drive tactile transducers connected to my body. If someone sneaks up behind me, I can feel them “pressing’’ against my body. The closer they get, the strong I feel them, a cramming sensation against my body. In addition to the assistance this technology may one day provide to the visually impaired, I found that by being able to close my eyes and spare myself the cognitive load of processing all that visual information, I was able to think more clearly’’. 17 Massachusetts Institute of Technology, universidade americana. 18 O WearComp de Mann surgiu muito antes do Google Glass.

A popularização da internet abriu caminho para a revolução de diversas tecnologias de comunicação e informação e isso se estendeu até os computadores vestíveis, visto que, ao vesti-los, os indivíduos estão constantemente conectados a rede. Castells, em A Galáxia da Internet: Reflexões sobre a Internet, os Negócios e a Sociedade (2003), afirma que a internet penetra em todos os domínios da vida social e transforma os indivíduos, configurando-se em uma sociedade em rede, ou seja, a tecnologia é a sociedade. Foi a partir dos anos 1990 que o WearComp passou a estar conectado na internet e Mann explorou extensivamente a funcionalidade de tele presença: através de seu site oficial na internet, transmitia 24 horas por dia o que o WearComp "via". Foi através desta ação que Mann chamou a atenção da mídia para a pesquisa em computação vestível. Sob a perspectiva de Mann (2001), através de seu computador vestível, é possível ser homem, computador, câmera e telefone - todos em uma única entidade. Utilizando diariamente seu computador vestível, Mann não imagina como ele próprio "funcionaria" sem ele, sentindo-se, muitas vezes, nu. Ele afirma que todos os dias decide de que forma verá o mundo: Um dia, eu ponho meus olhos atrás da minha cabeça. Em outros dias, eu adiciono um sexto ou sétimo sentido, como a habilidade de sentir objetos que não estou tocando. As coisas aparecem diferente para mim. Eu vejo objetos cotidianos como hiper-ícones (similares aos que aparecem no computador). Eu posso escolher a visão estroboscópica para `congelar` o movimento das rodas de um carro que vai a cem quilômetros por hora, permitindo-me a contar os sulcos na banda de rodagem. Eu posso bloquear a visão de objetos em particular evitando distrair-me, por exemplo, no vasto mar da propaganda que nos rodeia19 (MANN, 2001, p. 3).

Já o Google Glass (Figura 4) é o óculos inteligente do Google. Este óculos inteligente, constantemente conectado a internet, permite a interação dos usuários com conteúdos digitais e possui a capacidade de tirar fotografias, fazer vídeos, enviar 19

Tradução nossa. Do original: "Every morning I decide how I will see the world. One day, I give myself eyes in the back of my head. On other days I add a sixth or seventh sense, such as the ability to feel objects that are not touching me. Things appear diferente to me than they do to other people. I see everyday objects as hyper-icon I can click on and bring to life (similar to the way you click on a icon on a Web site). I can choose stroboscopic vision to freeze the motion on the spinning wheels of a car going a hundread kilometers an hour, allowing me to count the grooves in the tread. I can block out the view of particular objects – sparing myself the distraction, for example, of the vast sea of advertising that surround us”.

mensagens instantâneas, realizar videoconferências, entre outras funcionalidades, através de comando de voz20. Figura 4: Google Glass

Fonte: GOOGLE GLASS (2015).

Há uma pequena tela disposta acima do campo de visão do olho direito e é através dela que os conteúdos são apresentados, permitindo que o usuário visualize o conteúdo sem a necessidade de mudar o seu foco de visão. Sua resolução é de 640 x 360 pixels, equivalente a um monitor de 25 polegadas de alta definição colocado a 2,5 metros de distância do usuário e o som é transmitido através de condução óssea. Os óculos inteligente, como o WearComp e o Google Glass, são computadores vestíveis que ampliam o sentido da visão ao possibilitar a visualização de conteúdos gerados por computador - como imagens e textos – sobrepostos ao mundo real, conforme apresenta a Figura 5.

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O Google Glass, atualmente, não está sendo comercializado pois está passando por reformulação no centro de pesquisa Google.

Figura 5: Visão a partir do Google Glass

Fonte: GOOGLE GLASS (2015).

O usuário tem a sua realidade ampliada e a reconfiguração da visão, neste caso, está relacionada a capacidade de aprimoramento de sentidos – através dos óculos inteligentes e da "supervisão", é possível ver e explorar um novo mundo. Outras empresas também apostam no desenvolvimento de óculos inteligentes, como a Sony21, Oakley22, Samsung23, etc. Considerações Finais O trabalho procurou promover uma discussão inicial acerca do conceito de computadores vestíveis, tendo como base as reflexões de MANN (2001) e DONATI (2005), observando quais são as principais propriedades e quais os elementos necessários para o funcionamento destes, a fim de poder distingui-los de outros dispositivos. Frente a isso, perguntou-se: quais são os computadores vestíveis que reconfiguram a visão? Como se dá essa reconfiguração? Para tal, a arqueologia da mídia, enquanto abordagem que olha para o passado a fim de compreender o presente, foi utilizada neste artigo de forma a mapear a evolução dos computadores vestíveis que reconfiguram a visão, dos óculos de grau ao Google Glass. Através desse breve estudo, verificou-se que a arqueologia da mídia não é uma 21

Ver http://goo.gl/nnj31n Acesso em 15 abr. 2015. Ver http://goo.gl/UfNNnw Acesso em 15 abr. 2015. 23 Ver http://goo.gl/rAvrsV Acesso em 15 abr. 2015. 22

metodologia “fechada”, ou seja, há flexibilidade de pesquisa. Ao mapearmos a evolução dos computadores vestíveis que estendem a visão com base na arqueologia da mídia, na verdade, buscamos compreender não somente suas características funcionais, sob a prisma da tecnologia, mas também o contexto científico-tecnológico-social em que estavam inseridos. A arqueologia da mídia não olha apenas para âmbito micro (o objeto, aqui os computadores vestíveis), mas para o contexto macro (contexto histórico, social e cultural) de uma época. Como resultado, partimos do estudo dos óculos de grau, primeiro registro de uma tecnologia cujo objetivo foi estender a visão. Os óculos de grau foram de suma importância ao influenciar o surgimento de diversos computadores vestíveis e, para este trabalho, elencamos quatro: o computador vestível de Collins, o Vibravest, o WearComp e o Google Glass. Todos tem como objetivo reconfigurar a visão, mas não necessariamente suprir uma deficiência visual. A criação de Collins visava proporcionar aos cegos “tocar” imagens (a imagem do mundo real era captada, transformada em sinal digital em forma de grades quadriculadas que, transmitidas e incorporadas a veste do usuário, eram passíveis de serem tocadas, ou seja, o usuário tocava a representação do que estava à sua frente), já o Vibravest propunha uma experiência sinestésica: o usuário cego sentia, através de vibrações em seu corpo, quando alguém estava próximo, enquanto o WearComp e o Google Glass proporcionam uma nova forma de “olhar” (ao apresentar conteúdos digitais interativos mixados à visão do mundo real). Embora o computador vestível de Collins não tenha evoluído da fase de pesquisa e testes, o Google Glass está popularizado e em constante processo de aprimoramento. É importante frisar que o computador vestível de Collins inspirou a criação do Vibravest - e, posteriormente, a criação do Wearcomp que, por sua vez, influenciou a criação do Google Glass. Trabalhos futuros poderiam explorar mais a fundo as temáticas aqui apresentadas, especialmente no que tange aos óculos inteligentes - investigando se estes podem, de alguma forma, obstruir ou prejudicar a visão de usuários saudáveis.

Referências BASSALO, José Maria Filardo. Óptica (geométrica) na Idade Média. Disponível em < http://goo.gl/oeOyf2> Acesso em: 21 mar. 2015. CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: Reflexões sobre a Internet, os Negócios e a Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. DONATI, Luisa Paraguai. Computadores vestíveis: convivência de diferentes espacialidades. Conexão - Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 3, n. 6, p. 93 - 102, 2004. ____. O computador como veste-interface: (re) configurando os espaços de atuação. Tese de Doutorado em Multimeios, Campinas: Unicamp, 2005. ERNST, Wolfgang. Digital memory and the archieve. Minneapolis: University of Minnessta Press, 2013. FELINTO, Erick. Um futuro complexo, híbrido, incerto e heterogêneo. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. UNISINOS. Número 375, Outubro 2011. GOOGLE GLASS. Site oficial. Disponível em Acesso em: 21 mar. 2015. MANN, Steve. CYBORG: Digital Destiny and Human Possibility in the Age of Wearable Computer. Canada: Doubleday Canada, 2001. MCLUHAN, Marshall. em Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 207. NETTO, A.V; MACHADO, L.S.; OLIVEIRA, M.C.F. Realidade Virtual: Definições, Dispositivos e Aplicações. Tutorial. Revista Eletrônica de Iniciação Científica da SBC. v. 2, n. 2. , 2002. OCULUS RIFT. Site oficial. Disponível em Acesso em: 25 mar. 2015. ROCHA, Juliana. Por trás desses óculos. Disponível em Acesso em: 21 mar. 2015. RÜDIGER, Francisco. O passado pode nos ensinar a seu próprio respeito. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. UNISINOS. Número 375, Outubro 2011. SILVEIRA, Fabrício Lopes. Arqueologia da mídia: preocupação com os estudos da técnica. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. UNISINOS. Número 375, Outubro 2011.

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