Dos Passos e Gaga: enunciar o fotograma

July 26, 2017 | Autor: Ana Maria Kauppila | Categoria: American Literature, Music, Art Theory, Portuguese Literature
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Dos Passos e Gaga: enunciar o fotograma ©ana maria kauppila 14.I.2013

Dos Passos desenvolveu [a par de outros escritores] o conceito de stream of consciousness, complexo constructo [emanado da Psicologia] que - sobretudo em Manhattan Transfer transporta para a Literatura processos de edificação e de questionamento de sentidos, de metaforização do real que eram, claramente, exclusivos de outros registos artísticos, nomeadamente da Pintura. Nesse texto, Dos Passos “visita” Nova York e desenvolve uma crítica feroz à sociedade de então, caracterizada por uma pobreza e uma riqueza extremas, uma completa perversão dos valores, uma total alienação e uma densa crueldade social. A perenidade da sua escrita testemunha o valor literário da mesma, mas é um facto que os grandes escritores da época, relembro, aqui, Jean-Paul Sartre, descreveram a obra de Dos Passos como de primeiríssima importância. O escritor estudou pintura e foi, ele próprio um pintor. As técnicas pictóricas, concederam à sua obra uma poética do espaço insinuada numa palete morfossintáctica que enuncia, de forma magistral, a efemeridade e a perenidade dos sentimentos, a crueza da vida dos pobres, o transtorno da corrupção e um ennui Baudelairiano, um spleen nova-iorquino que apenas as suas opções políticas afastam do reconhecimento que não só merece, como se torna obrigatório. Com efeito, Jonh Dos Passos percorreu um trilho de opções políticas que se deslocou desde um comunismo estudado em terras soviéticas em direcção a um olhar de direita que o afastou da amizade com Hemingway, por exemplo. Retorno a Manhattan transfer porque se trata de um paradigma da grande literatura do séc. XX. Esta obra, totalmente avant-gardiste, encena o amor e a morte como grandes temas literários, mas explicita a imprensa como veículo privilegiado do acesso ao conhecimento e denuncia-se, shakespearianamente, na sua melancólica relação com o Tempo. A técnica de colagem "cut-up technique" que aplicou à semântica da complexidade, encontra eco, actualmente, em produções literárias mas, sobretudo, videográficas sendo frequente encontrar exemplos desta técnica pictórico-literária em registos ligados à chamada música designada como “alternativa” mas, feliz e igualmente, em

registos da considerada música “comercial”. Poderia ser considerado os “antípodas” da magistralidade de Dos passos, mas arrisco que um desses exemplos radica em vídeos que acompanham algumas das canções de Lady Gaga. Refira-se o vídeo de Paparazzi que elucida, embora numa linguagem outra, a técnica que Dos Passos desenvolveu - de forma inovadora e despudorada - nos seus textos magistrais. A intersecção das linguagens artísticas, a leitura multipolar dos produtos que a Arte nos lega nem sempre é acolhida por alguns sectores mais conservadores do espectro crítico. O facto das múltiplas "colagens" de diversas linguagens literárias e artísticas de Dos Passos encontrarem eco moderno nos registos videográficos revela, também, a intemporalidade da sua obra sublinhando, metaforica e paradigmaticamente, o seu avantgardisme. A "redução" de um artista que rasgou convencionalismos a discursos que o aprisionam aos mesmos empobrece a Arte e viola a sua essência e pode, ainda, configurar

posturas

epistemologica

e

cientificamente

questionáveis.

Recentemente, em 2012, Philip Roth, foi distinguido com o Prémio Príncipe das Astúrias – Letras. A acta do júri refere que a sua obra é: parte de la gran novelística estadounidense, en la tradición de Dos Passos, Scott Fitzgerald, Hemingway, Faulkner, Bellow o Malamud. A obra de John dos Passos é ignorada pela intelligenzia literária portuguesa, mas conta - apesar de tudo - com um importante Centro Cultural ao mesmo dedicado, em Ponta do Sol, Madeira, terra natal dos seus antepassados.

É de um outro madeirense, Herberto Hélder a citação com a qual terminamos esta reflexão e que visa, como uma vertigem, enunciar a verdade literária do escritor lusoamericano: “Tudo o que disso se recolher servirá de alimentação. Quer dizer: podemos devorar a nossa biografia, podemos ser antropófagos, canibais do coração pessoal. Aquilo que se escreva conservará cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o nosso rosto filmado no abismo do mundo.”

Pintura: "Nude" por John Dos Passos Vídeo: Paparazzi, de Lady Gaga http://www.youtube.com/watch?v=d2smz_1L2_0

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